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Desana - Povos Indígenas no Brasil

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Desana - Povos Indígenas no Brasil
Os índios que vivem às margens do Rio Uaupés e seus afluentes – Tiquié, Papuri, Querari e outros
menores – integram atualmente 17 etnias, muitas das quais vivem também na Colômbia, na mesma
bacia fluvial e na bacia do Rio Apapóris (tributário do Japurá), cujo principal afluente é o Rio Pira-
Paraná. Esses grupos indígenas falam línguas da família Tukano Oriental (apenas os Tariana têm
origem Aruak) e participam de uma ampla rede de trocas, que incluem casamentos, rituais e comércio,
compondo um conjunto sócio-cultural definido, comumente chamado de “sistema social do
Uaupés/Pira-Paraná”. Este, por sua vez, faz parte de uma área cultural mais ampla, abarcando
populações de língua Aruak e Maku. 
As etnias que estão na região do Rio Uaupés são, além dos Arapaso, Bará, Barasana, Desana,
Karapanã, Kubeo, Makuna, Mirity-tapuya, Pira-tapuya, Siriano, Tariana, Tukano,
Tuyuca, Kotiria, Tatuyo, Taiwano, Yuruti (as três últimas habitam só na Colômbia). Estão no
noroeste da Amazônia, às margens do Rio Uaupés e seus afluentes
O total populacional é de 11.130 no Brasil (em 2001) e 18.705 na Colômbia (em 2000).
Para saber mais informações sobre o Noroeste Amazônico acesse o verbete especial sobre a região
Línguas
Crianças tuyuka. Foto: Aloisio Cabalzar, 2002.
A família lingüística Tukano Oriental engloba pelo menos 16 línguas, dentre as quais o Tukano
propriamente dito é a que possui maior número de falantes. Ela é usada não só pelos Tukano, mas
também pelos outros grupos do Uaupés brasileiro e em seus afluentes Tiquié e Papuri. Desse modo, o
Tukano passou a ser empregado como língua franca, permitindo a comunicação entre povos com
línguas paternas bem diferenciadas e, em muitos casos, não compreensíveis entre si.
Em alguns contextos, o Tukano passou a ser mais usado do que as próprias línguas locais. A língua
tukano também é dominada pelos Maku, já que precisam dela em suas relações com os índios Tukano.
Já as línguas classificadas como tukano ocidentais são faladas por povos que habitam a região
fronteiriça entre Colômbia e Equador, como os Siona e os Secoya.
Considerando o significativo número de pessoas da bacia do Uaupés que estão residindo no Rio Negro
e nas cidades de São Gabriel e Santa Isabel, estima-se que cerca de 20 mil pessoas falem o Tukano. As
outras línguas desta família são faladas por populações menores, predominando em regiões mais
limitadas. É o caso dos Kotiria e Kubeo no Alto Uaupés, acima de Iauareté; do Pira-tapuya no Médio
https://pib.socioambiental.org/pt/Povo:Tariana
https://pib.socioambiental.org/pt/Povo:Tariana
https://pib.socioambiental.org/pt/Povo:Maku
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Papuri; do Tuyuka e Bará no Alto Tiquié; e do Desana em comunidades localizadas no Tiquié, Papuri e
afluentes.
Saiba mais
Língua Desana @ Museu do Índio
Localização
Fonte: Instituto Socioambiental.
O Rio Uaupés tem cerca de 1.375 Km de extensão. De sua foz do Rio Negro até a desembocadura do
Rio Papuri, o Uaupés está situado em território brasileiro e percorre cerca de 342 Km. Entre este ponto
e a foz do Querari, serve de fronteira entre o Brasil e a Colômbia por mais de 188 Km. A partir daí até
as suas cabeceiras se situa em território colombiano e percorre 845 Km. Navegando no Uaupés, H. Rice
(1910) contou 30 cachoeiras maiores e 60 menores.
Depois do Rio Branco, o Rio Uaupés é o maior tributário do Rio Negro. Atualmente, o nome Uaupés é
o mais usado (no Brasil, já que na Colômbia fala-se mais Vaupés), mas também é conhecido como
Caiari. Em seu curso, o Uaupés recebe as águas de outros grandes rios, como o Tiquié, o Papuri, o
Querari e o Cuduiari.
Os principais núcleos de povoamento do Rio Uaupés são a cidade de Mitu, capital do departamento
colombiano do Vaupés, e Iaraueté, que é sede de um distrito do município de São Gabriel. Iaraueté,
além de ser um centro de ocupação tradicional dos Tariana, abriga também uma grande missão dos
salesianos e um pelotão de fronteira do exército. Existem ainda outras duas missões salesianas na bacia
http://prodoclin.museudoindio.gov.br/index.php/etnias/desano/lingua
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http://img.socioambiental.org/d/209269-1/uaupes_3.gif
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do Uaupés, uma em Taracuá (na confluência desse rio com o Tiquié) e outra no Alto Tiquié, chamada
Pari-Cachoeira. Também há um destacamento do Exército na confluência do Querari com o Uaupés e
outro em Pari-Cachoeira.
Etnias e demografia
No Rio Uaupés e em seus afluentes existem atualmente mais de 200 povoados e sítios. Membros dessas
etnias também estão presentes nas cidades da região, sobretudo em São Gabriel da Cachoeira, Santa
Isabel e Barcelos. As etnias presentes na bacia do Uaupés são as seguintes:
1) Arapaso: Etnia de origem tukano oriental que atualmente fala apenas a língua tukano. Vivem no
Médio Uaupés, abaixo de Iauareté, em povoados como Loiro, Paraná Jucá e São Francisco. Várias
famílias também moram no Rio Negro e em São Gabriel.
2 ) Bará: Autodenominam-se Waípinõmakã. Habitam principalmente as cabeceiras do Rio Tiquié,
acima do povoado de Trinidad, já na Colômbia; o Alto Igarapé Inambú (afluente do Papuri) e o Alto
Colorado e Lobo (afluentes do Pira-Paraná). Dividem-se em cerca de oito sibs (grupos de descendentes
de um ancestral comum que não podem casar entre si). São especialistas no preparo do aturá de turi,
muito usado onde não são disponíveis os aturás de cipó maku. Também fabricam o carajuru. São
hábeis ainda na confecção de canoas. Atualmente são os principais especialistas na fabricação dos
adornos de plumas usados nas grandes cerimônias.
3) Barasana: Autodenominam-se Hanera. Vivem nos igarapés Tatu, Komeya, Colorado e Lobo,
afluentes do Pira-Paraná, e no próprio Pira-Paraná, em território colombiano. Também encontram-se
dispersos na bacia do Uaupés, no Brasil. Registram-se 36 subdivisões nomeadas.
4) Desana: Autodenominam-se Umukomasã. Habitam principalmente o Rio Tiquié e seus afluentes
Cucura, Umari e Castanha; o Rio Papuri (especialmente em Piracuara e Monfort) e seus afluentes Turi
e Urucu; além de trechos do Rio Uaupés e Negro (inclusive cidades da região). Existem
aproximadamente 30 divisões entre os Desana, entre chefes, mestres de cerimônia, rezadores e
ajudantes. Este número pode variar segundo a fonte. Os Desana são especialistas em certos tipos de
cestos trançados, como apás grandes (balaios com aros internos de cipó) e cumatás.
5) Karapanã: Autodenominam-se Muteamasa, Ukopinõpõna. Vivem no caño Tí (afluente do Alto
Vaupés) e Alto Papuri, na Colômbia. No Brasil, se encontram dispersos em alguns povoados do Tiquié e
Negro. Tinham cerca de oito subdivisões, mas provavelmente apenas quatro delas deixaram
descendentes.
6) Kubeo: Autodenominam-seKubéwa ou Pamíwa. Possuem uma língua bem particular da família
Tukano Oriental, sendo por isso algumas vezes classificada como Tukano Central. Em sua grande
maioria, se encontram residindo em território colombiano, na região do Alto Uaupés, incluindo seus
afluentes Querari, Cuduiari e Pirabatón. No Brasil, ocupam três povoados no Alto Uaupés e estão em
pequeno número no Alto Aiari. Estão divididos em aproximadamente 30 sibs nomeados. Estes sibs, por
sua vez, estão agrupados em três fratrias não nomeadas que funcionam como unidades para trocas
matrimoniais; em outras palavras, ao contrário da maioria das outras etnias do Uaupés, os Kubeo
costumam casar-se entre si, pessoas que falam a mesma língua. São especializados na fabricação das
máscaras de tururi.
7) Makuna: Autodenominam-se Yeba-masã. Vivem principalmente no território vizinho da Colômbia,
concentrando-se no Caño Komeya, afluente do Rio Pira-Paraná, no baixo curso deste rio, e no Baixo
Apapóris. No Brasil, são encontrados no Alto Tiquié e nos seus afluentes, os igarapés Castanha e Onça.
Estão divididos em cerca de 12 sibs. São especializados em zarabatanas e curare, são também hábeis
fabricantes de canoas, além de fornecerem remos leves e muito bem acabados aos índios do Alto
Tiquié.
8) Miriti-tapuya ou Buia-tapuya: Atualmente falam apenas a língua tukano. São habitantes tradicionais
do Baixo e Médio Tiquié, destacando-se as comunidades de Iraiti, São Tomé, Vila Nova e Micura.
9) Pira-tapuya: Autodenominam-se Waíkana. Estão situados no Médio Papuri (nas proximidades de
Teresita) e no Baixo Uaupés. Migraram e vivem também em localidades do Rio Negro e em São
Gabriel.
10) Siriano: Autodenominam-se Siria-masã. Moram no Caño Paca e Caño Viña, afluentes do Alto
Papuri, em território colombiano. No Brasil são encontrados dispersos em rios da bacia do Uaupés e no
Rio Negro. Há informações referentes a 27 sibs siriano.
11) Taiwano, Eduria ou Erulia: Autodenominam-se Ukohinomasã. Habitam o Caño Piedra e Tatu,
afluentes do Rio Pira-Paraná, e o Rio Cananari, afluente do Apapóris. Todas estas áreas estão situadas
em território colombiano. Há informações que dão conta de oito subdivisões internas.
https://pib.socioambiental.org/pt/Povo:Arapaso
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https://pib.socioambiental.org/pt/Povo:Bar%C3%A1
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https://pib.socioambiental.org/pt/Povo:Makuna
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https://pib.socioambiental.org/pt/Povo:Pira-tapuya
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https://pib.socioambiental.org/pt/Povo:Siriano
https://pib.socioambiental.org/pt/Povo:Siriano
12) Tariana: Autodenominam-se Taliaseri. Diferentemente das outras etnias da bacia do Uaupés, a
maioria dos Tariana adotaram o Tukano Oriental, mas falavam outrora uma língua pertencente à
família Aruak, e algumas comunidades ainda a falam. Atualmente moram no Médio Uaupés, Baixo
Papuri e Alto Iauiari. O centro do povoamento fica entre as cachoeiras de Iauareté e Periquito. São
especializados em implementos de pesca como caiá, cacuri, matapi.
13) Povo: Tatuyo: Autodenominam-se Umerekopinõ. Habitam uma área situada na Colômbia: o Alto
Rio Pira-Paraná, o Alto Tí e o Caño Japu. No Brasil, são representados sobretudo por mulheres casadas
com homens de outras etnias. Existem cerca de oito subdivisões internas.
14) Tukano: Autodenominam-se Ye’pâ-masa ou Daséa. É a etnia mais numerosa da família lingüística
Tukano Oriental. Concentram-se principalmente nos rios Tiquié, Papuri e Uaupés; mas também estão
morando no Rio Negro, a jusante da foz do Uaupés, inclusive na cidade de São Gabriel. É possível que
existam mais de 30 subdivisões entre os Tukano, cada qual com um nome e, idealmente, compondo um
conjunto hierarquizado. Atualmente, com todas as dispersões ocorridas nos últimos séculos, as
posições hierárquicas são razão de polêmicas e versões variadas. Os Tukano são fabricantes
tradicionais do banco ritual, feito de madeira (sorva) e pintado, na parte do assento, com motivos
geométricos semelhantes àqueles dos trançados. É um objeto muito valorizado, obrigatório nas
cerimônias e rituais, onde se sentam os líderes, kumua (benzedores) e bayá (chefes de cerimônia).
15) Tuyuka: Autodenominam-se Dokapuara ou Utapinõmakãphõná. Estão concentrados
principalmente no Alto Rio Tiquié, entre a Cachoeira Caruru e o povoado colombiano de Trinidad,
incluindo os igarapés Onça, Cabari e Abiyú. Estão presentes também no trecho do Rio Papuri próximo
à fronteira Brasil/Colômbia e em seu afluente Inambú. Possuem cerca de 15 sibs nomeados. São
exímios construtores de canoas e, antigamente, eram especialistas na confecção de redes feitas de
fibras de buriti. Também são especializados na confecção do cesto urupema, trançado de finíssimas
talas de arumã, usado para coar sumo de frutos.
16) Kotiria: Autodenominam-se Kótiria. Predominam no Médio Uaupés, entre a cachoeira de Arara e
Mitú. Entre Arara e Taracuá (do Alto Uaupés), os Kotiria são hegemônicos; acima daí, convivem em
território onde a maioria é Kubeo. Há informações de que existem 25 divisões entre os Kotiria. Sua
especialidade no âmbito das relações de troca interétnica é o preparo do carajuru, um pó corante feito
com as folhas de um cipó, muito usado na confecção de artefatos rituais e na pintura do banco tukano,
bem como para a pintura corporal. Também são hábeis cesteiros e produtores de objetos de tururi.
17) Yuruti: Autodenominam-se Yutabopinõ. Etnia de língua tukano oriental, ocupa o Alto Paca
(afluente do Alto Papuri) e os caños Yi e Tui e áreas vizinhas do Vaupés onde estes igarapés desaguam
(em território colombiano). Há informações que possuem nove sibs.
A seguir, é apresentada uma tabela com a estimativa populacional de cada etnia: 
Etnia População no Brasil
Arapaso 328
Bará 39
Barasana 61
Desana 1.531
Karapanã 42
Kotiria 447
Kubeo 287
Makuna 168
Mirity-tapuya 95
Pira-tapuya 1.004
Siriano 17
Taiwano 0
Tariana 1914
Tatuyo 0
Tukano 4.604
Tuyuca 593
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Yuruti 0
TOTAL 11.130
Identidade e diferença
Maloca na região do Uaupés. Foto: Acervo Museu do Índio, 1931.
Junto com seus vizinhos aruak, os Tukano - que serão tratados nesta seção como povos tukano, de
modo que o grupo Tukano será diferenciado com letra inicial maiúscula- compõem um sistema sócio-
político flexível, cuja integração se dá através de redes de intercâmbio recíproco envolvendo visitas,
trocas, casamentos e rituais. A dinâmica desse sistema regional implica a articulação entre semelhança
e diferença, entre um repertório comum que confere aos grupos que o compõem alguma medida de
identidade e aquilo que os diferenciam uns dos outros, possibilitando a interdependência entre eles.
Comecemos com as semelhanças.
Índio Bara com seu filho no Alto Papuri. Foto: Jean Jackson, 1969.
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Os Tukano compartilham uma área geográfica contínua e um mesmo modo de vida básico, que inclui a
caça e coleta, mas no qual predomina a pesca e a agricultura de coivara, sendo a "mandioca brava" o
principal produto. No passado, todos moravam em casas comunais (ou malocas) de estilo
relativamente uniforme: uma grande construção retangular com teto maciço de forma triangular e
portas em cada ponta. Falam línguas muito próximas no que diz respeito à gramática e ao vocabulário.
Também compartilham convenções sobre o uso dessas línguas: a maioria fala pelo menos duas línguas
e freqüentemente compreende outras, privilegiando a língua paterna nas conversas cotidianas. Esses
povos têm ainda estilos de ornamentação corporal semelhantes e, embora as palavras e melodias
possam ser diferentes, usam os mesmos instrumentos musicais e a sua música, danças e cantos têm
uma base comum. Tais convenções relativas ao modo-de-vida, organização espacial, língua, fala,
adornos, música e dança integram o sistema comum de comunicação verbal e não-verbal dos povos do
Uaupés, que se expressa mais plenamente nos rituais inter-comunitários.
Pedro Garcia, da etnia Tariano. Foto: Miguel Chaves, 1998.
Cada grupo tem as suas próprias histórias, mas também compartilham um corpus mitológico comum.
Os mitos explicam as origens do cosmos, descrevendo um mundo perigoso e indiferenciado, sem
limites precisos de tempo e espaço, sem diferença entre gente e animal. As narrativas míticas explicam
como os feitos dos primeiros seres geraram as feições da paisagem e como o mundo se tornou
paulatinamente seguro para a emergência dos verdadeiros seres humanos. Há um mito de origem
chave nesse repertório que explica como uma Anaconda-ancestral penetrou o universo/casa através da
"porta da água" no leste e subiu os rios Negro e Uaupés com os ancestrais de toda humanidade dentro
de seu corpo. Inicialmente, esses ancestrais-espíritos tiveram a forma de ornamentos de pena, mas
foram transformados em seres humanos no curso da sua viagem. Quando alcançaram a cachoeira de
Ipanoré, o centro do universo, eles emergiram de um buraco nas rochas e se deslocaram para os seus
respectivos territórios. Essas narrativas compartilhadas entre os povos do Uaupés expressam uma
compreensão comum do cosmos, do lugar dos seres humanos nele e das relações que deveriam existir
entre diferentes povos, bem como entre eles e outros seres.
Em contrapartida, cada grupo tem uma identidade singular e um lugar específico dentro do sistema. A
população divide-se em aproximadamente 17 grupos exogâmicos, cada qual com direitos sobre um
território específico ou trecho de rio com características e potenciais diferentes. Somado a esses fatores
ecológicos de diferenciação, cada grupo é tradicionalmente associado à produção de artefatos
específicos; assim, os Tukano fabricam banquinhos, os Desana cestos, os Tuyuka canoas etc. Essa
produção especializada constitui um aspecto da identidade grupal e mobiliza os cerimoniais de troca
(ou dabukuris) que são um dos principais componentes das atividades rituais características da região.
Em tais festas, os diferentes grupos se reúnem para dançar, beber caxiri, exibir os seus ornamentos de
penas, recitar as linhagens de seus antepassados e trocar os seus produtos (banquinhos por canoas,
peixe por carne de caça etc.).
Cada grupo tem a sua própria língua, o seu conjunto particular de nomes pessoais, os seus específicos
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cantos de dança e as suas próprias genealogias e narrativas de origem. Cada um tem um ancestral
originário da Anaconda que trouxe o povo para o seu território particular. O corpo dessa Anaconda é
replicado no trecho do rio onde esse grupo mora, nas malocas em que habitam e na composição dos
grupos. A língua, os nomes próprios, os cantos, as histórias e outras formas de discurso operam como
emblemas de identidade, afirmam direitos territoriais e privilégios rituais, assim como manifestam
aspectos da vida, alma e espírito do grupo.
Cada grupo também possui um ou mais conjuntos de Yurupari - flautas e trombetes sagrados feitos do
tronco da palmeira paxiúba -, que são os ossos de seu ancestral e que incorporam o seu sopro e canto.
Junto com as festas e trocas cerimoniais, os rituais envolvendo esses instrumentos musicais - símbolos
condensados da identidade, espírito e poder grupal - formam o outro grande componente da vida
ritual dos Tukano. Enquanto a troca cerimonial enfatiza a equivalência e interdependência mútua
entre grupos diferentes, os rituais de Yurupari realçam a identidade singular de cada um.
[fevereiro de 2003]
Piutr Jaxa, antigo habitante de Pari-Cachoeira, no Uaupés, e que atualmente vive na
[https://terrasindigenas.org.br/pt-br/terras-indigenas/3921 Terra Indígena Balaio]. Foto:
Piort Jaxa, 1993.
Os grupos Tukano são patrilineares e exogâmicos, isto é, os indivíduos pertencem ao grupo de seu pai e
falam a sua língua, mas devem se casar com membros de outros grupos, idealmente falantes de outras
línguas. Externamente, os grupos são equivalentes mas distintos; internamente, cada um consiste em
um número de clãs hierarquicamente ordenados. Os ancestrais desses clãs eram os filhos do primeiro
ancestral Anaconda e a sua ordem de nascimento, que corresponde à ordem de emergência do corpo
de seu pai, determina a sua classificação: os clãs de posição mais alta são coletivamente considerados
"irmãos maiores" para aqueles de posição mais baixa. A posição do clã é associada a uma hierarquia,
sendo ainda frouxamente correlacionada a residência: os clãs de mais alto grau tendem a viver em
lugares mais favoráveis nas partes mais baixas dos rios, enquanto os clãs de menor grau
freqüentemente vivem nas áreas de cabeceiras ou as partes mais altas dos rios. A classificação do clã
também tem os seus correlatos rituais: os clãs de posição mais alta, as "cabeças da Anaconda", são
"chefes" que patrocinam os principais rituais e controlam os ornamentos de dança do grupo e os
Yurupari; os clãs de posição mediana são especialistas de danças e cânticos; abaixo deles são os xamãs;
e o grau mais baixo é ocupado pelos clãs servos, a "cauda da Anaconda", que por vezes são
identificados com os semi-nômades Maku que vivem nas zonas interfluviais.
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Índios Wanana. Foto: Curt Nimuendaju, década de 1930.
Essa hierarquia de papéis especializados e privilégios rituais fica muito evidente durante os rituais
coletivos em que se recitam as genealogias e enfatizam-se as relações hierárquicas e de respeito. De
modo mais sutil, essa hierarquia reflete-se também na vida cotidiana. Os habitantes de uma maloca
comumente correspondem a um grupo de homens estreitamente aparentados, como os filhos do
mesmo pai ou de dois ou mais irmãos, que vivem juntos com as suas esposas e filhos. Quando uma
mulher se casa, ela deixa a sua maloca natal e vai morar junto com seu marido.
Simbolicamente, a maloca reproduz em miniatura o universo e seus habitantes constituem tanto uma
réplica quanto um precursor do ideal de organização clânica acima descrita. Assim, o pai da
comunidade que habita a maloca seria o ancestral-Anaconda do grupo inteiro e seus filhos seriam os
ancestrais dos clãs que dela se originaram. Seguindo essa lógica, o filho mais velho e irmão maior é
geralmente o chefe da maloca, e não raro os seus irmãos menores são dançarinos, cantadores ou
xamãs, cujos papéis costumam corresponder à ordem de nascimento. Mas poder e posição social
dependem de energia e iniciativas pessoais, que não se baseiam apenas em organização formal,
parentesco ou ordem de nascimento.
Confecção de banco tukano. Foto: Rosa Gauditano, 2002
A maioria dos rituais e da vida religiosa tukano está centradaem objetos (como ornamentos plumários
e as flautas Yurupari) e substâncias sagradas - como a pintura vermelha carayuru, cera de abelha, cera
de breu (resina vegetal), epadu (feito com variedades de coca), tabaco e ayahuasca -, assim como em
bens menos tangíveis, na forma de nomes, cerimoniais, encantações e cantos. Tais itens são
propriedade do grupo e constituem expressões de seus poderes espirituais. Em um nível coletivo e
estrutural, os rituais que envolvem tais itens podem ser vistos como expressões formais da identidade
do grupo e das relações inter-grupais. Ao mesmo tempo, esses rituais constituem expressões das
relações políticas em dada conjuntura. Assim, malocas vizinhas são interligadas por intermédio de
líderes carismáticos, que comandam a organização de festas e coordenam o trabalho coletivo para a
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construção de casas maiores que funcionam como centros cerimoniais. Esses líderes são indivíduos que
possuem um grande conhecimento esotérico e se mobilizam para manter e aumentar os bens sagrados
de sua maloca, podendo disponibilizar os recursos necessários para patrocinar os rituais. Tais
capacidades rituais prestam-se a fortalecer sua posição política.
Os Tukano e os Maku
Os povos das famílias lingüísticas Tukano Oriental e Maku convivem mais intensamente na região de
interflúvio entre os rios Tiquié e Papuri e, em menor escala, entre o Papuri e o Médio Uaupés (trecho
entre Iauareté e a foz do Querari). Nesta área, desenvolveram uma estratégia de complementaridade,
uma vez que tradicionalmente ocupam espaços distintos e adotam práticas de manejo do meio
ambiente específicas. Distintamente dos Tukano, que vivem nos rios maiores, os Maku preferem os
igarapés menores, mais no centro da floresta. São bons caçadores, coletores de frutas silvestres e
conhecem muito bem os caminhos na mata. Os Tukano, por sua vez, são agricultores dedicados e
pescadores; mesmo quando caçam, preferem fazê-lo de canoa, surpreendendo pacas e antas que vão
até a beira do rio beber água.
Do ponto de vista dos Tukano, os Maku formam uma categoria sui generis, na medida em que se
diferenciam tanto dos afins quanto dos parentes de mesma descendência, pois não são casáveis e não
são assimilados a eles através da terminologia de parentesco. Os Maku representam uma referência
central no sistema conceitual tukano, estando associados às categorias hierárquicas mais baixas.
Os Maku mantêm com os Tukano relações de troca e colaboração intermitentes. Em geral, grupos
domésticos maku tomam a iniciativa de se associar a grupos domésticos tukano, sendo também eles
que decidem quando devem ir embora para seus sítios ou mudar de "patrão" tukano. Eles podem
permanecer apenas uma semana ou vários meses com os Tukano, mas existem casos em que a relação
é mais estável e certos Maku se acostumam a prestar serviços para grupos domésticos tukano
específicos, mantendo a colaboração através de gerações. Mesmo nestes casos, a convivência é
interrompida quando os Maku resolvem cuidar de suas próprias casas e roças ou viajar.
Os Maku procuram trabalho quando estão passando por momentos de maior privação (suas roças são
em geral insuficientes e há períodos pouco propícios para a caça). Nestas situações, oferecem seus
serviços aos Tukano: as mulheres trabalham nas roças e no processamento da mandioca e os homens
caçam, fazem ipadu ou pegam alguma empreitada (troca da cobertura de uma casa, derrubada da mata
para roça etc.). Em troca, os Tukano pagam com parte da produção da cozinha (farinha, beiju etc.), os
homens recebem ipadu e fumo e ainda roupas usadas, ferramentas, redes, entre outros.
Quando a família maku é muito grande e o custo, em termos de exploração da roça, é alto para a grupo
doméstico tukano que os recebeu, este pode expulsá-los. Mais freqüente, porém, é que os próprios
Maku se sintam fartos e desfavorecidos, retirando-se para seu assentamento por conta própria e
levando consigo um suprimento de farinha e tapioca. Nesses casos, os Tukano reclamam de que eles
saem sem dizer nada, de uma hora para outra.
O que mais marca a relação entre estes dois grupos é a grande autonomia dos Maku, que os Tukano
não podem violar. Os Maku procuram os Tukano visando suprir necessidades imediatas de alimentos;
os Tukano aceitam os Maku e lhes encarregam de vários serviços. Algumas vezes os Maku também
participam dos multirões para derrubar ou plantar roça promovidos pelos Tukano, quando é oferecido
caxiri. Mas nessas ocasiões as relações são distantes e frias, não envolvendo intimidade. De modo geral,
os Maku quase nunca comem junto com os Tukano ou se sentam próximos, a não ser nas manhãs em
que há refeição comunitária e alguns Maku estão presentes.
A distância social é marcada pelas atitudes. Quando um Tukano conversa com um Maku, este se
posiciona a certa distância, olhando para outro lado. Em outro exemplo, ao devolver um cigarro que
um Tukano pediu para “rezar” (para cortar alguma dor que um filho ou a própria pessoa está sentido),
o homem Maku, ao invés de entregá-lo na mão, agacha-se próximo e joga o cigarro no chão, perto
daquele que o solicitou.
A relação entre os Tukano e os Maku é celebrada em grandes dabucuris (rituais de oferecimento),
realizados na época de coleta de certas frutas do mato (como ingá, cunuri, buriti e açaí silvestre).
Nestas ocasiões, os Tukano preparam muito caxiri e ipadu para receber os Maku, que chegam ainda de
madrugada, antes do alvorecer, tocando trompetes, pequenos tambores e fazendo muito barulho.
Trazem grandes quantidades de frutas que, inicialmente, deixam na beira do rio, para depois conduzi-
las para dentro da casa de festa, no momento propício do ritual (quando há um diálogo cerimonial
entre um par de homens Tukano e outro Maku). Conjuntos de tocadores de flautas pã maku se
revezam ao longo da festa com conjuntos formados por homens e rapazes tukano. Eles formam pares
de dança com as mulheres, sejam elas tukano ou maku, indistintamente. A mesma cerimônia também
pode ser feita com o oferecimento de carne de caça moqueada; os papéis também podem ser
invertidos, passando os Tukano a oferecer beiju e farinha aos Maku. Em geral a festa ocorre no
povoado tukano.
O distanciamento que caracteriza a relação entre os Tukano e os Maku é derivado da forma como os
Maku são concebidos. Os Tukano os descrevem como diferentes, estranhos e, em certo sentido,
inferiores. Alguns aspectos para os quais os Tukano chamam a atenção:
• moram em pequenos tapiris improvisados, como os que se faz em viagens na floresta e na roça;
• nunca se acomodam em um lugar, estando sempre indo e vindo, inquietos;
• são agricultores displicentes e, além disto, não sabem manejar o cultivo, não esperam o tempo
mais produtivo da mandioca, arrancando logo tudo para fazer caxiri; os homens fazem o mesmo
com os pés de coca, desfolham sem controle e acabam tendo que apelar para os Tukano para
conseguir ipadu (que é uma necessidade diária);
• são vistos com desconfiança, não raro acusados de saquearem as roças tukano e ainda
disfarçarem o roubo fincando a haste da maniva no solo depois de arrancar o tubérculo; também
lhes são atribuídos o sumiço de ferramentas, roupas e outros;
• a endogamia local e a constante transformação na constituição dos grupos locais são mau vistos
pelos Tukano, que ainda enfatizam certos casamentos incestuosos, como se não houvesse regras
definidas de casamento;
• os Tukano também dizem que eles não têm higiene, não se limpam nem penteiam o cabelo e
andam maltrapilhos, com roupas velhas e encardidas.
 Esta visão dos Maku tem alguns desdobramentos práticos, por exemplo, o casamento com eles é
expressamente proibido e uma pessoa que tenha alguma ascendência maku (seja por parte do pai ou
da mãe) é estigmatizada. Contudo, o casamento de um homem tukano com uma mulher maku é mais
aceitável do queo casamento de um homem maku com uma tukano, que é impraticável. Com o
contato, representado pela intensificação do comércio, da catequização e da educação escolar,
ocorreram mudanças na relação entre esses povos.
Os Tukano passaram a intermediar a entrada e troca de mercadorias industrializadas. Ao passo que os
Tukano aderiram à prática, hoje muito valorizada e difundida, de mandar seus filhos para a escola até
o final do ensino fundamental e, menos freqüentemente, para o ensino médio na cidade, os Maku
jamais se adaptaram ao sistema escolar e as tentativas promovidas pelos missionários foram todas
fracassadas. Mesmo as escolas criadas nos povoados Maku, com professores tukano, raramente dão
bons resultados.
Atualmente, a intensa migração dos Tukano para os centros missionários ou urbanos, como as cidades
de São Gabriel da Cachoeira e Santa Isabel, tem levado a um processo de esvaziamento de algumas
áreas. Isto tem propiciado o estabelecimento de povoados maku no curso principal dos rios, como é o
caso do Tiquié.
Aspectos cosmológicos
Índios Tukano. Foto: Márcio Meira, 1990.
Como princípio básico, a cosmologia tukano combina perspectiva móvel, replicação da organização
social em diferentes escalas da existência - corpo, communidade, casa e cosmos, e organização análoga
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entre níveis diferentes da experiência. O universo é feito de três camadas básicas: céu, terra e "mundo
inferior". Cada camada é um mundo em si, com seus seres específicos e podendo ser entendidos tanto
em termos abstratos como concretos. Em contextos diferentes, o "céu" pode ser o mundo do sol, da lua
e das estrelas, ou o mundo dos pássaros que voam alto, ou os topos achatados dos tepuis (topos
achatados das montanhas) dos quais descem as águas ou o mundo dos topos das árvores da floresta, ou
mesmo uma cabeça enfeitada com um cocar de penas vermelhas e amarelas de arara, que são as cores
do sol. Do mesmo modo, o "mundo inferior" pode ser o Rio dos Mortos debaixo da terra, o barro
amarelo debaixo da camada do solo onde enterram-se os mortos, ou o mundo aquático dos rios
subterrâneos.
De toda forma, o que define o "céu" ou o "mundo inferior" depende não somente da escala e do
contexto, mas também da perspectiva: à noite o sol, o céu e o dia ficam debaixo da terra e o escuro
mundo inferior fica acima. Há uma história sobre um homem que encontra o cadáver de uma mulher-
estrela que caiu na terra quando fora enterrada por sua família no céu: para seus parentes ela está
morta no mundo inferior; para o homem, ela está viva na terra. O homem casa com a mulher-estrela e
vai com ela visitar sua família no céu. Para o homem, as estrelas são os espíritos dos mortos que vivem
à noite; para as estrelas, ele que é um espírito, e o dia para ele corresponde à noite para elas.
Os diferentes grupos tukano também participam desse esquema. Assim, por exemplo, os Bará são Povo
de Peixe (ou da Água), os Barasana são Povo da Terra e os Tatuyo estão na categoria de Povo do Céu.
Cada um desses grupos tem um ancestral-Anaconda, mas anacondas na água são outra versão de
jaguares na terra ou de harpias no céu (harpy-eagles?) - em um mundo transformacional e
perspectivista, os maiores predadores do céu, da terra e da água são equivalentes e complementares.
Assim como pessoas que estão na mesma "camada" são do mesmo tipo (from the same level are of the
same kind) e não podem casar entre si, os casamentos entre diferentes grupos exogâmicos possuem
dimensões cósmicas. Os Barasana, por exemplo, tendem a casar-se com os Bará, e estes também
costumam casar-se com os Tatuyo. É possível vislumbrar esse sistema em um mito barasana que
tematiza sua origem. Yeba, ou "Terra", o ancestral Barasana em forma de jaguar, casa-se com Yawira,
uma mulher -peixe guaracu, filha da Anaconda Peixe, o ancestral dos Bará. Yawira então abandona
seu marido Yeba e foge com Yuka, o urubu-rei que é uma manifestação do ancestral Tatuyo, que é
também a Anaconda do Céu e Jaguar (Eagle-Jaguar). Outros grupos tukano têm diferentes versões
para esse mito, nas quais os nomes dos personagens podem mudar, mas a lógica é a mesma.
Em termos simbólicos, a maloca é o universo e o universo é uma maloca. O teto de palha é o céu, os
esteios de suporte são as montanhas, as paredes são as cadeias de serras que parecem cercar a
paisagem visível na beira do mundo, e sob o chão corre o Rio dos Mortos. A maloca tem duas portas:
uma no leste que é a dos homens, ou a "porta da água"; outra das mulheres a oeste, com uma longa
cumeeira que corre ao longo do teto da casa entre as duas portas, que é "o caminho do Sol". Nessa
região equatorial, os rios subterrâneos correm do oeste para o leste, ou da porta das mulheres para a
porta dos homens; completando um circuito fechado da água, o Rio dos Mortos corre do leste para o
oeste.
A maloca tanto é o universo, como também é um corpo, ao mesmo tempo o "corpo canoa" do ancestral-
Anaconda e os corpos de seus filhos nele contidos. Esses filhos são os habitantes da casa, réplicas do
ancestral original, receptáculos de futuras gerações e, eles mesmos, futuros ancestrais. Mas, se a
maloca é um corpo humano, sua feição também é uma questão de perspectiva. Do ponto de vista
masculino, a frente pintada da maloca é um rosto de homem, a "porta dos homens" é sua boca, a viga
mestra e as laterais são a sua coluna e costelas, o centro da casa é seu coração, e a porta das mulheres o
seu ânus. Do ponto de vista das mulheres, a coluna, as costelas e o coração permanecem os mesmos,
mas o resto do corpo é invertido: a porta das mulheres é a sua boca, a porta dos homens a sua vagina e
o interior da casa o seu ventre.
De tais princípios de replicação e transformação dão-se uma série desdobramentos. Se os rios correm
através da casa-universo e o corpo é uma espécie de casa, segue-se que as tripas e os genitais humanos
são "rios"; e, ainda, que os vermes parasitas são "anacondas". Há uma história divertida que descreve o
universo do ponto de vista de um verme: quando o seu hospedeiro humano bebe caxiri (cerveja de
mandioca), a chuva fica grossa e pegajosa; quando ele ingere farinha, chove pedras; e quando ele come
beiju, chove grandes rochas. Essa narrativa ilustra um ponto importante: por vezes os mitos explicitam
a cosmologia, mas com mais freqüência a cosmologia simplesmente está subentendida ou implícita e as
pessoas devem pô-las em prática por conta própria. Especialistas religiosos são aqueles que possuem
maior habilidade para "ler" o que está por trás das narrativas sagradas.
Saiba mais
''Antes o mundo não existia: Mitologia dos antigos Desana-Kêhíripõrã'', coletânea de narrativas míticas
desana, por Tõrãmũ Kêhíri e Umusí Pãrõkumu
O ciclo da vida
http://books.google.com.br/books?id=7Kh-BgAAQBAJ&printsec=frontcover&hl=pt-BR&source=gbs_ge_summary_r&cad=0#v=onepage&q&f=false
http://books.google.com.br/books?id=7Kh-BgAAQBAJ&printsec=frontcover&hl=pt-BR&source=gbs_ge_summary_r&cad=0#v=onepage&q&f=false
Índia Tuyuka com seu filho em um evento cultural em São Paulo. Foto: Miguel Chaves,
1998.
Tendo em mente os princípios cosmológicos sintetizados no item anterior, podemos começar a
perceber como alguns processos vitais são elaborados em termos cosmológicos e como se relacionam a
práticas rituais associadas ao ciclo de vida.
A digestão, evacuação, decomposição e morte envolvem um fluxo passivo do alto para o baixo, de rio
acima para rio abaixo, do Oeste para o Leste. A vida em si é um movimento, às vezes uma luta, de
acordo com esse fluxo: as plantas crescem em direção ao sol e as pessoas devem crescer para cima
enquanto amadurecem. O Sol, ou Yeba Hakü (na língua barasana), o "Pai do Universo", fonte de luz e
da vida, move-se constantemente contra a corrente, subindo os rios da terra do Leste para o Oeste
durante o dia e subindo o rio do "mundo inferior" durante a noite, para aparecer de novo no Leste. O
ancestral-Anaconda que trouxe a humanidade para o mundo tambémviajou como o Sol, no sentido
Leste para o Oeste, parando quando alcançou o meio do universo. Esse mesmo movimento de Leste a
Oeste foi também uma ascensão da água para a terra.
O ancestal-Anaconda, um ser aquático, é o próprio rio no qual ele viajou, e os seres em seu interior
somente assumiram a forma humana quando emergiram na terra firme; antes disso, eram "gente
peixe", espíritos na forma de ornamentos de penas. Os animais são chamados wai-bükürã, "peixes
maduros"; e, logicamente, entre eles estão os seres humanos, seres que estão a meio-caminho entre os
"peixes-espíritos" que eram antes e os "espíritos-pássaros" que se tornarão.
A história do ancestral-Anaconda é uma narrativa sagrada sobre os primórdios e, provavelmente, uma
versão das migrações históricas dos povos Tukano. Também pode ser entendida como uma história
sobre a ecologia, sobre as migrações anuais rio acima de peixes amazônicos que vêm desovar nas
cabeceiras; e uma história sobre a reprodução humana, que também envolve uma penetração
ascendente, no sentido "Leste-Oeste", rumo a uma "porta da água", num fluxo ascendente de sêmen, e
uma passagem do mundo aquático do ventre para o mundo seco da existência humana na terra. Não é
de se admirar então que "nascer" é hoe-hea (em barasana), que significa "atravessar rumo a um nível
mais alto". Mas o nascimento também envolve um movimento de descida pelo canal do corpo feminino
- cosmologicamente um movimento do Oeste para o Leste e, em termos sociais, um movimento da mãe
para o pai ou das mulheres para os homens.
Para entender esses movimentos, porém, é preciso começar pela morte. Alguns índios do Uaupés, os
Kubeo em particular, encenam rituais elaborados de luto em que dançarinos com máscaras pintadas e
feitas de casca de árvore se tornam peixes, animais, e outros seres da floresta para dar boas-vindas à
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alma do morto no mundo dos espíritos. Mas o enterro tukano em si é um evento simples: a cova é o
chão da maloca e o caixão uma canoa cortada ao meio. Esse sepultamento simples é o prelúdio para
um futuro nascimento.
Os tukano compartilham uma noção de reencarnação segundo a qual, quando uma pessoa morre, um
aspecto de sua alma volta para a "casa de transformação", local de origem do grupo. Depois, a alma
volta ao mundo dos vivos encarnada em um recém-nascido que recebe o seu nome. As pessoas
recebem o nome de um parente recentemente falecido do lado paterno, o avô paterno para um menino
ou a avó paterna para uma menina. Cada grupo possui um conjunto limitado de nomes pessoais que
vão sendo retransmitidos a cada geração. O aspecto visível dessas "almas-nomes" são os cocares de
penas usados pelos dançarinos, que também são enterrados com os mortos. O rio do "mundo inferior"
é descrito como repleto de ornamentos, assim como na história de origem os espíritos dentro da canoa-
Anaconda tiveram a forma de ornamentos de dança.
Sepultadas em canoas, as almas dos mortos caem para o rio do "mundo inferior". De lá, são levadas
pela correnteza do rio subterrâneo para o Oeste e às regiões rio acima deste mundo. As mulheres não
dão à luz na maloca, mas numa roça no interior da floresta, rio acima e atrás da casa - também ao
Oeste. O recém-nascido é primeiramente lavado no rio e depois levado para dentro da maloca pela
porta traseira, a "porta das mulheres". Confinado dentro da casa por cerca de uma semana com seu pai
e mãe, ele é então banhado de novo no rio e recebe um nome. Assim, em termos cosmológicos, os bebês
de fato vêm das mulheres, da água, do Oeste.
Pessoas, animais e objetos
Um componente crucial das idéias religiosas tukano são as relações entre os seres humanos, os animais
e a floresta.
Índio Tukano no Rio Uaupés. Foto: Acervo Museu do ìndio, 1928.
Masa (em barasana), a palavra para "gente", é um conceito relativo. Pode se referir a um grupo em
contraposição a outro, a todos os tukano em contraste a seus vizinhos, a índios versus brancos, a seres
humanos versus animais e, finalmente, a coisas vivas, inclusive árvores, versus objetos inanimados. Em
discursos míticos e xamânicos, os animais são gente e habitam mundos aparentemente semelhantes ao
mundo dos seres humanos: vivem em comunidades organizadas em malocas, plantam roças, caçam e
pescam, bebem caxiri, usam ornamentos, participam de festas inter-comunitárias e tocam seus
próprios Yurupari (flautas sagradas que representam os primeiros ancestrais).
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Todas as criaturas que podem ver e ouvir, que se comunicam com os do seu grupo e que agem
intencionalmente são "gente" - mas gente de espécies diferentes. São diferentes porque têm corpos,
costumes e comportamentos diferentes e vêem as coisas de perspectivas corporais distintas. Assim
como as estrelas vêem os humanos como espíritos mortos, os animais vêem themselves as humans and
see os humanos como animais. Aos olhos do urubu, quando os humanos vão pescar, eles pescam
cadáveres apodrecendo e fisgam tapuru (conhecido como "bicho de pau"); aos olhos do jaguar, os
humanos são predadores perigosos que bebem sangue como se fosse caxiri; para os peixes, para quem
a água é seu "ar", é impressionante que os humanos não saibam respirar "debaixo da água". Os
humanos, por sua vez, logicamente vêem as coisas de outra perspectiva.
Índios Bara no Alto Papuri. Foto: Jean Jackson, 1969.
Se o denominador comum de todas essas "gentes" é a sua subjetividade e para elas, na condição de
sujeitos, seu próprio modo de vida é aquele da cultura humana, as diferenças entre tais "gentes"
repousam em seus diferentes corpos: em sua forma, cor, sons, hábitos corporais e dieta.
Essas diferenças estão culturalmente representadas em diferentes gêneros alimentícios de uso ritual,
tais como coca, tabaco e a ayahuasca, bem como tintas corporais distintas, ornamentos e roupas, ou
como diferentes armas e equipamento ritual. Os índios se referem a todos esses itens como küni-oka,
"armas ou escudos", idéia que faz lembrar os uniformes de exército com seus brasões - ao mesmo
tempo identidade, vestimenta e arma de defesa. Nessa lógica, as diferenças entre os grupos humanos
são representadas como naturais e inerentes. Conceitualmente, os vários grupos tukano constituem
tantas "espécies" diferentes quanto as múltiplas espécies animais são "povos" diferentes.
Na vida cotidiana, as pessoas enfatizam sua diferença dos animais, mas no mundo dos espíritos, ao qual
se tem acesso pelos rituais, pelo xamanismo, pelos sonhos e pelas visões de ayahuasca, as perspectivas
se fundem, as diferenças são abolidas, o passado é presente, e pessoas e animais voltam a ser um. Isto
tem importantes repercussões práticas, pois, onde os animais são pessoas, caçá-los e ingerir sua carne é
equivalente à guerra e canibalismo. Muitas doenças são assim diagnosticadas como a vingança dos
animais que os humanos matam e comem. O risco advindo dos animais é proporcional a seu tamanho e
habitat: as antas são mais perigosas do que os macacos, os animais terrestres são mais perigosos do que
os peixes, e peixes grandes mais perigosos do que os pequenos.
O perigo também está relacionado ao contato com o domínio metafísico. Um nascimento neste mundo
provoca ressentimento entre os espíritos-animais - para eles, representa uma morte. Os bebês
humanos, recém-migrantes do mundo dos espíritos, não estão ainda firmemente ancorados a seus
corpos e, portanto, precisam ser protegidos das antas ciumentas que ameaçam ingeri-los através de
seus ânus - um nascimento ao avesso. Enquanto visitantes do mundo dos espíritos, as mulheres
menstruadas e os homens que tomam parte nos rituais ganham temporariamente status de criança e
devem restringir sua dieta, evitando alimentos perigosos. Para cozinhar o peixe ou a carne com
segurança, um xamã deve primeiro soprar encantações para remover os seus "escudos de proteção" ou
"armas" (tintas, peles, dentes,espinhos, escamas e outros atributos corporais identificados aos animais
ou peixes) que podem comprometer a identidade especificamente humana do consumidor.
As qualidades de personificação, subjetividade e intencionalidade que os índios aplicam aos animais e
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os peixes também se estendem ao cosmos como um todo. Os mitos dos povos do Uaupés também são
mitos sobre a paisagem, cujos traços distintivos - as serras e montanhas, os rios, as rochas e cachoeiras
-, têm nomes que evocam as histórias de sua criação ancestral. Viajar por terra ou canoa é seguir essas
histórias e compartilhar os atos de criação descritos por elas. Muitas histórias contam sobre as antigas
migrações, atribuindo à paisagem uma dupla dimensão - a dos atos primordiais de criação e a dos atos
mais recentes, como a construção de casas e abertura de roças.
Os poderes de criação ancestral incutidos na paisagem se estendem às plantas, peixes, animais e seres
humanos que a habitam e também aos objetos confeccionados a partir dos materiais que dela provêm.
Nos mitos, os objetos cotidianos tais como canoas, bancos, cestos e potes, emergem como seres
animados e autônomos - como visto, do mesmo modo que os animais podem ser gente, as malocas
podem ser os corpos dos ancestrais ou daqueles que as construíram. Os objetos confeccionados
condensam dois tipos de potência: os poderes de sua matéria-prima e as habilidades e intenções de
seus fabricantes. Conseqüentemente, o processo de fabricação dos objetos tem uma importante
dimensão religiosa. Durante os ritos de iniciação, os homens e mulheres jovens são sistematicamente
treinados na confecção de artesanato, um treinamento que é a um só tempo intelectual, espiritual e
técnico. Fazer artesanato é concomitantemente confeccionar a si mesmo e o mundo, numa forma de
meditação que traz à tona as interconexões entre objetos, corpos, casas, e o universo.
Especialistas religiosos
Entre os Tukano, a religião não é concebida como um domínio discreto, mas sim como uma dimensão
de todo conhecimento, experiência e prática. Isso também se explica porque a vida numa paisagem
impregnada de poderes ancestrais e onde a vida cotidiana tem uma dimensão extraordinária e
metafísica é potencialmente perigosa. Para sobreviver e prosperar, bem como assegurar o bem-estar de
si e de sua família, todos os adultos precisam de alguma habilidade para manejar e controlar as forças
de criação e destruição que os cercam. Os conhecimentos técnicos e metafísicos não possuem fronteiras
precisas. Os homens adultos devem conhecer tanto os recursos naturais do território quanto suas
propriedades espirituais, combinando afazeres rotineiros com procedimentos rituais, com competência
tanto para caçar e pescar quanto para fazer encantações para que a carne e o peixe possam ser comidos
com segurança. De modo semelhante, as mulheres, "mães da alimentação" cujos tubérculos de
mandioca são "filhos", devem controlar a esfera material e espiritual de produção e reprodução de suas
roças, cozinhas e corpos, como uma totalidade integrada.
Índios Tukano. Foto: Renato Aguirre, 1988.
Na Amazônia, freqüentemente se referem aos especialistas rituais com poderes especiais e acesso a
conhecimentos esotéricos como "xamãs", rótulo que pode tanto confundir como revelar. Como
indicado, para agir com êxito todos os homens adultos devem ser em alguma medida xamãs. Aqueles
que são reconhecidos publicamente como tal têm maior conhecimento ritual e uma habilidade especial
para "ler" o que está por trás das narrativas sagradas, optando por desenvolver habilidades e
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conhecimento em favor dos outros, sendo reconhecidos como especialistas. Assim, os "xamãs" são
aqueles que se destacam dos demais - mas sempre há outros esperando nos bastidores.
Um segundo aspecto está relacionado ao gênero. Com raras exceções, os especialistas rituais são
homens - mas a capacidade das mulheres de menstruar e gerar filhos é considerada como o
equivalente feminino ao poder dos homens sobre os ornamentos de penas e os Yurupari. Assim, é
possível dizer que se os homens adquiram as suas habilidades xamânicas através da cultura, as
mulheres já são "xamãs" por natureza. Não é de se admirar então que, na mitologia tukano, o Povo do
Universo, os heróis ancestrais que abrem o caminho para a criação da humanidade, sejam gerados por
uma divindade feminina que os Barasana chamam de Romi Kumu ou "Mulher Xamã"; conhecida como
"A Velha da Terra" (Ye'pa Büküo, Yeba Büro) em Tukano e Desana.
Finalmente, o rótulo "xamã" nubla uma distinção importante entre dois especialistas rituais, os yai e os
kumu. Os yai correspondem ao xamã típico da Amazônia ou o pajé. Suas principais tarefas envolvem
lidar com as pessoas e o mundo dos animais e da floresta. Ele desempenha um papel importante na
caça por soltar os espíritos dos animais das suas casas nas serras, atividade potencialmente perigosa,
que pode demandar compensações no mundo humano como a conversão da vida em morte. O pajé é
um especialista na cura de moléstias causadas pela feitiçaria de criaturas vingativas e seres humanos
ciumentos, doenças que tipicamente se manifestam como espinhos, cabelo, e outros objetos alojados no
corpo. A cura se dá jogando água sobre o corpo do paciente ou soprando-lhe fumaça de tabaco e depois
manipulando-o com as mãos, mas sempre envolvendo a sucção de objetos ou substâncias do corpo do
paciente.
Yai significa "jaguar", termo que dá alguma indicação do status do pajé na sociedade tukano. O Jaguar
é um animal poderoso e potencialmente perigoso, assim como aqueles que têm poder e conhecimento
para agir contra a feitiçaria podem também praticá-la. Um pajé é considerado "bom" ou "mal"
dependendo se ele é um parente ou vizinho de confiança. O termo yai também tem conotação de
selvageria e descontrole, que alude à posição marginal de muitos pajés e ao caráter individual e
idiossincrático de seus poderes, freqüentemente associados ao uso de alucinógenos.
Embora tanto o yai como o kumu sejam especialistas, o kumu é mais um sábio e sacerdote do que
propriamente um xamã. Seus poderes e autoridade são baseados no conhecimento exaustivo da
mitologia e dos procedimentos rituais, resultado de anos de treinamento e prática. Conseqüentemente,
aqueles que são reconhecidos como kumu geralmente são homens mais velhos, cujos pais ou tios
paternos muitas vezes tinham o mesmo status.
Como homem experiente e sábio, o kumu comumente é também um líder político de sua comunidade e
com autoridade considerável sobre uma área mais ampla. Comparados ao yai, figura por vezes
moralmente ambígua, o kumu goza de um status mais alto e um maior grau de confiança,
fundamentada em seu papel ritual proeminente.
O kumu desempenha um papel importante na prevenção de doenças e infortúnio. Ele é um especialista
na arte de soprar encantações sobre a carne de peixe e animais para converter a sua substância em uma
forma similar ao vegetal. Tem papel proeminente nos ritos de passagem, realiza as principais
cerimônias por ocasião do nascimento, iniciação e morte, transições que asseguram a socialização do
indivíduo e a passagem das gerações, assim como ordena as relações entre os ancestrais e seus
descendentes vivos. É o kumu que nomeia os bebês recém-nascidos e é ele que conduz os ritos de
iniciação, públicos e coletivos, para os jovens e os ritos mais individuais e privados realizados quando
moças atingem a idade de puberdade. Tais transições envolvem um contato necessário e
potencialmente benéfico entre os vivos, os espíritos e os mortos. Esse contato pode ser perigoso e é o
kumu que assume a responsabilidade de proteger as pessoas. Para aqueles que gozaram da proteção de
um kumu durante o seu nascimento ou iniciação, ele é seu guu ou "tartaruga", em alusão à carapaça
dura e protetora desse animal.
A outra importante função do kumué presidir as festas de dança, as festas de caxiri e intercâmbios
cerimoniais, e de conduzir e supervisionar os rituais em que se tocam os instrumentos de Yurupari,
rituais que envolvem um contato direto com os ancestrais mortos. Aqueles que participam desses
rituais colocam as suas vidas nas mãos do kumu e é somente os mais sabidos e respeitados que são
encarregados desse papel. Do mesmo modo, patrocinar tais rituais significa reivindicar
reconhecimento como kumu.
Como "gente" e parte integrante de um cosmo vivo, os seres humanos, os animais, as plantas e os
peixes participam de um mesmo sistema, que é engajado e revitalizado durante os rituais de Yurupari.
Esses rituais fomentam a reprodução das plantas e dos animais, asseguram o ordenamento normal das
estações e a fertilidade contínua da natureza. Ao supervisionar e promover esses rituais, os kumus mais
importantes chegam a incorporar os poderes e identidades de Yeba Hakü, o "Pai do Universo", de
Romi Kumu, "Kumu Mulher" e de Yurupari, fonte e espírito da vida vegetal. Como mestres do ritual,
eles mesmos se tornam criadores.
Ritual
O ciclo anual é pontuado por uma série de festas coletivas, cada uma com seus cantos, danças e
instrumentos musicais apropriados, que marcam eventos importantes do mundo humano e natural -
nascimentos, iniciações, casamentos e mortes, a derrubada e o plantio de roças e a construção de casas,
as migrações dos peixes e pássaros, e a disponibilidade de frutas silvestres e outros alimentos colhidos.
Essas assembléias rituais são denominadas "casas", termo que significa ao mesmo tempo um evento
ritual, um grupo de pessoas e um mundo simbólico.
Índios Tukano. Foto: Curt Nimuendaju, década de 1930.
As festas assumem três formas básicas: caxiris (festas de cerveja), dabukuris ou intercâmbio
cerimonial, e os ritos de Yurupari envolvendo flautas e trombetes sagrados. Os caxiris são
fundamentalmente ocasiões sociais quando uma comunidade convida os seus vizinhos a dançar e beber
caxiri, às vezes como um agradecimento pela sua ajuda na abertura de uma roça ou na construção de
uma casa nova, às vezes para marcar a nomeação de uma criança, o casamento de uma mulher, ou a
etapa final de iniciação dos meninos, e às vezes somente por divertimento e reforço dos laços sociais.
Os convidados são os principais dançarinos, e em troca de suas danças, os anfitriões lhes oferecem
grandes quantidades de caxiri preparado pelas suas mulheres.
Com cocares de penas e outros ornamentos, os dançarinos dançam a noite inteira em volta do
recipiente (cuja forma é semelhante a uma canoa) de caxiri, que constitui o foco central da celebração;
é uma questão de honra que todo o caxiri seja consumido antes dos visitantes partirem pela manhã. Há
dois tipos de danças, ou relativamente lentas, no caso de danças formais em que os homens se dispõem
em uma linha entrecruzada por mulheres, ou danças mais rápidas e menos formais em que cada
dançarino dança sozinho, tocando um conjunto de flautas de pã como parte de um coro, e competindo
com os outros para atrair a parceira de sua escolha. Entre essas sessões de dança, os anfitriões e
convidados se sentam frente a frente e trocam presentes como coca e charutos, enquanto recitam as
suas genealogias em cânticos coletivos conduzidos por um especialista. O kumu se senta à parte,
soprando encantações sobre cuias de coca, tabaco e ayahuasca; então as oferece aos participantes para
protegê-los e permitir aos dançarinos que vejam e experimentem em suas danças as viagens dos
primeiros ancestrais e os eventos míticos que os seus cantos e cântico relatam.
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Dabukuri entre os tukano. Foto: Renato Aguirre, 1988.
Os caxiris podem envolver comunidades de irmãos e cunhados, já os dabukuris são, sobretudo,
ocasiões que celebram e reforçam os laços de matrimônio e afinidade. As dádivas são dadas em nome
de um homem para seu cunhado ou sogro: no mito barasana da origem do dabukuri, cujos
personagens são Yeba Yamira (ver item "Aspectos cosmológicos"), a dádiva era do Yeba para seu sogro
Anaconda Peixe. O ritual começa com a chegada dos convidados ao anoitecer. Tratados como estranhos
e inimigos potenciais pelos seus anfitriões, eles não entram na maloca, dançando e cantando por
iniciativa própria do lado de fora. De manhã, eles desfilam dentro da maloca vestidos com elegância e
soprando trombetes de cerâmica ou embaúba. Apresentam suas dádivas aos seus anfitriões e então
iniciam uma dança que continuará o dia inteiro e a noite também. Os anfitriões se mantém distantes,
continuam lhes servindo caxiri, mas enquanto o dia vai se passando, eles se misturam cada vez mais
com os convidados, dançando e cantando junto com eles, quebrando assim as barreiras que foram
estabelecidas, de forma dramática, no começo do ritual. Pela manhã, quando a dança termina,
convidados e anfitriões comem em uma enorme refeição comunal, como se fossem uma comunidade
única e integrada.
Esses intercâmbios têm uma dupla lógica e movimento: a curto prazo, os convidados dançam e
oferecem peixe ou carne em troca do caxiri fornecido pelos anfitriões; a longo prazo, as comunidades
trocam um tipo de produto por outro - peixe por carne ou carne por peixe - e alternam os papéis de
anfitrião e convidado. Ambos os casos estão relacionados a matrimônio, o primeiro refletindo a troca
de carne ou peixe por produtos de mandioca (o beiju e o caxiri) entre marido e mulher; o segundo
refletindo a troca de diferentes tipos de mulheres entre os grupos ligados por inter-casamentos. Em
termos cosmológicos, essas trocas estão intimamente ligadas aos ciclos de procriação e à
disponibilidade sazonal de espécies de peixes e animais. As danças remetem não apenas às
dramatizações e movimentos relativos a peixes e pássaros migrantes, como garantem a fertilidade
continuada da natureza e a disponibilidade de espécies das quais dependem.
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Dabukuri entre os tukano. Foto: Renato Aguirre, 1988.
Os rituais envolvendo os instrumentos musicais sagrados de Yurupari são a expressão mais plena da
vida religiosa dos índios, pois englobam e sintetizam vários temas-chave: ancestralidade, descendência
e identidade grupal, sexo e reprodução, relações entre homens e mulheres, crescimento e
amadurecimento, morte, regeneração e integração do ciclo de vida humano com o tempo cósmico. Em
relação de complementariedade com os dabukuris, esses rituais são concernentes à identidade
masculina e às relações intra-grupais em oposição ao casamento e às relações inter-grupais; do mesmo
modo, dizem respeito à fertilidade das árvores e plantas em oposição aos ciclos de vida dos animais.
As flautas e os trombetes de tronco de palmeira pertencentes a cada grupo são uma entidade ao mesmo
tempo única e múltipla: o ancestral do grupo e seus ossos aos pares, que são também seus filhos; e os
ancestrais dos clãs componentes do grupo. Quando os instrumentos estão juntos e são tocados, o
ancestral volta à vida, de modo que aqueles que os tocam assumem as identidades dos ancestrais
clânicos e entram em contato direto com seus respectivos pais (originários). Esse processo anula a
separação vigente entre passado e presente, mortos e vivos, ancestrais e descendentes, restabelecendo
a ordem primordial dos mitos de origem. Os ritos normalmente envolvem um clã ou o segmento de um
clã, que age como um grupo isolado e assim pode estabelecer a sua identidade enquanto unidade
coletiva indiferenciada em contraposição ao mundo de fora, mas segmentada internamente por uma
hierarquia ordenada.
Os instrumentos Yurupari somente podem ser vistos e manuseados pelos homens adultos. De acordo
com os mitos, originalmente eram as mulheres quem possuíram as flautas enquanto os homens se
encarregavam do processamento da mandioca e outras tarefas femininas. Os mitos acrescentam outro
detalhe importante: quando as mulheres tinhama posse das flautas, os homens menstruavam e,
quando tiraram as flautas delas, fizeram com que as mulheres menstruassem. Esses mitos, e os rituais
que os dramatizam, podem ser entendidos como um discurso complexo e ambíguo sobre os respectivos
poderes e capacidades de homens e mulheres, tal como aquele que se refere aos poderes xamânicos
femininos, já mencionados. Isso implica que os órgãos reprodutivos e as capacidades reprodutivas
complementares de homens e mulheres, isto é: as suas "flautas", são simultaneamente idênticas e
opostas, iguais e desiguais, invertidas e equivalentes.
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Índios Bara no Alto Papuri. Foto: Jean Jackson, 1969.
Há dois tipos de ritual de Yurupari, um evento anual mais sacralizado e elaborado que marca o
começo do ano, e o outro realizado periodicamente durante o ano para marcar a maturação de
diferentes espécies de frutos de árvores. No segundo, os homens de uma comunidade presenteiam os
de uma outra - geralmente os seus irmãos - com grandes quantidades de frutos silvestres, trazendo-os
para o interior da casa acompanhados dos sons berrantes dos trombetes enquanto as mulheres e
crianças permanecem atrás de telas nos fundos. Ao anoitecer, as telas são removidas e as mulheres
voltam a se juntar aos homens. Eles dançam a noite inteira até amanhecer e então distribuem os frutos
entre os presentes.Os mais grandiosos ritos de Yurupari, quando instrumentos diferentes e mais
sacralizados são tocados, estão vinculados aos movimentos do sol e da constelação de Plêiades,
realizando-se no final do verão e começo da estação chuvosa, que é a época em que abundam os frutos
do mato. Eles elaboram ainda mais os temas de crescimento, maturação e periodicidade, bem como a
integração entre os ciclos temporais humanos e cósmicos, mas aqui o enfoque imediato está no
crescimento e amadurecimento de jovens que passam por um processo de iniciação que os conduz a
sua integração como adultos no grupo.
No começo do ritual, os meninos são apartados de suas mães e trazidos para a extremidade masculina
da casa, longe da vista das suas mães, que são confinadas na parte traseira. Sob o cuidado de guardiões
rituais e um kumu oficiante, recebem ayahuasca para beber e são-lhes mostrados os instrumentos
Yurupari pela primeira vez, enquanto eles ficam sentados imóveis e agachados como fetos no chão. À
medida que os instrumentos são tocados sobre as suas cabeças, corpos e genitais, os rapazes são
chicoteados pelos kumu nos seus corpos e pernas, ações que transmitem a vitalidade e as forças
espirituais dos ancestrais e fazem com que os meninos cresçam resistentes, fortes e viris. Os homens
dão então um banho nos meninos junto com os instrumentos no rio, despejando água das flautas sobre
as cabeças dos iniciados. Essa ação alude ao ancestral Anaconda vomitando as primeiras pessoas da sua
boca - e também ao primeiro banho dos bebês depois de nascer, como descrito anteriormente. Mas
dessa vez o nascimento é um renascimento orquestrado pelos homens mais velhos e, como o ancestral
Anaconda que entrou no mundo através da "porta da água" no Leste, os iniciandos renascidos agora
entram na casa pela porta dos homens. No final do ritual, os iniciandos permanecem em reclusão por
um mês em um compartimento especial longe da vista das mulheres. Rigidamente supervisionados
pelo kumu, eles tomam banho todos os dias, observam uma dieta rigorosa e aprendem a fazer cestos. A
reclusão termina com uma grande dança. Como sinal de que estão prontos para se tornarem maridos e
pais, os iniciandos presenteiam com os seus cestos as suas parceiras femininas, que pintam os corpos
deles com tinta vermelha em retribuição.
Como muitos ritos de iniciação, este é repleto de símbolos de morte, renascimento e regeneração. No
começo do ritual, os meninos são pintados de preto e ritualmente "mortos" com doses de rapé de
tabaco; após seu renascimento no rio, são mantidos em reclusão como bebês recém-nascidos, então
emergem para serem pintados de vermelho. No mito associado ao ritual, Yurupari, na forma de
anaconda, engole os iniciandos, os digere dentro de sua barriga (cujo equivalente no ritual é o período
de reclusão), então os devolve a seus pais, vomitando-os como ossos. Para puni-lo, os pais incendeiam
Yurupari para que ele morra. Mas ele não morre: sua alma sobe ao céu e de suas cinzas nasce uma
palmeira, protótipo das frutas da floresta e matéria-prima dos instrumentos Yurupari.
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Como na agricultura de coivara, na qual a fertilidade e a vida humana vêm da queima anual da floresta,
esse conjunto de mito e ritual significa que vida e morte se sucedem como as estações, que os humanos
mortais alcançam a imortalidade através de seus filhos, que a periodicidade das mulheres é como a das
estações, que o crescimento dos homens e das árvores resultam de um único processo, e que, no final
das contas, a fertilidade dos seres humanos e do cosmos estão interligadas em um grande sistema. Ao
expandir a maloca a proporções cósmicas, ao abolir as separações entre os seres humanos e o mundo
dos espíritos, e ao articular as capacidades reprodutivas de homens e mulheres, os rituais de Yurupari
englobam e colocam em movimento boa parte da cosmologia acima esboçada.
Missionários, colonos e a modernidade
A história de contato dos povos do Uaupés com os não indígenas é muita antiga, bem anterior ao
grande auge da borracha na virada do século XX, remetendo às incursões maciças dos portugueses em
busca de escravos na primeira metade do século XVIII. Embora o impacto desses raptores e o contato
traumático e duradouro com os seringalistas, esses comerciantes estavam mais interessados nos corpos
dos índios do que nas suas almas; em termos religiosos, e talvez em termos sociais também, foram os
missionários que provocaram as maiores transformações.
A penetração efetiva dos missionários começou ao final do século XIX, com a chegada dos
Franciscanos. Estes, e os Salesianos que os seguiram, viram a cultura dos povos do Uaupés através das
lentes de suas próprias categorias religiosas: as malocas dos índios eram consideradas "antros
licenciosos e promíscuos", as suas festas de dança ocasiões de "indecência e embriaguez", os pajés eram
"charlatões" que aliciavam o povo, e o culto de Yurupari nada mais era do que o "culto ao Diabo" em
pessoa. Sem conhecer e sem a mínima intenção de saber o quê essas coisas realmente significavam, os
missionários começaram a destruir uma civilização em nome de outra, queimando as malocas dos
índios, destruindo os seus ornamentos de penas, quebrando seus recipientes de caxiri, perseguindo os
pajés e expondo os Yurupari às mulheres e crianças reunidas na igreja.
Enquanto os padres atacavam os fundamentos da cultura indígena, transformaram as suas sociedades,
encurralando as pessoas em vilas com casas rigidamente ordenadas, uma para cada família, e
removendo à força seus filhos para serem educados nas escolas ou internatos. Sob o regime estrito dos
internatos, as crianças foram ensinadas a rejeitar os valores e os modos de vida dos seus pais,
incentivadas a casar-se dentro de seus próprios grupos, e proibidas de falar as línguas que lhes
conferiam identidades múltiplas e interligadas. Para os missionários, somente uma identidade
importava, a identidade indígena genérica, que impedia o progresso da "civilização".
Como reação inicial contra a exploração pelos comerciantes, as pressões dos missionários e as
epidemias que dizimaram a população indígena, irrompeu uma série de movimentos milenaristas na
região do Uaupés durante a segunda metade do século XIX. Vestindo-se de padres e identificando-se
com Cristo e os santos, os pajés-profetas conduziram o povo na "Dança da Cruz", uma fusão dos rituais
de caxiri e dabukuri tradicionais com elementos do catolicismo, que prometiam a libertação da
opressão dos brancos e o alívio dos"pecados" que acreditavam ser a causa das epidemias.
Se os missionários foram rechaçados por seus ataques contra a cultura indígena, também foram bem
recebidos como fonte de bens manufaturados, como defensores dos índios contra os piores abusos dos
seringalistas e como provedores da educação que as crianças indígenas precisariam para se sair bem
nas novas circunstâncias. Dos anos 1920 em diante, os Salesianos estabeleceram uma cadeia de missões
pela região no lado brasileiro da fronteira, alcançando o alto Tiquié no começo dos anos 40 e
destruindo a última maloca nos anos 60. Hoje, a despeito do número crescente de evangélicos, a
maioria dos índios do Uaupés se considera católico. Enquanto aumenta cada vez mais o número de
pessoas que estão deixando suas aldeias para ir a São Gabriel em busca de educação e emprego, a vida
nas malocas e a rica diversidade ritual que a acompanhava persiste agora somente na memória dos
mais velhos.
Nos povoados, um centro comunitário substituiu a maloca como foco de atividades coletivas. O centro
serve ao mesmo tempo para as orações matutinas conduzidas por um Capitão e catequista, e para as
refeições comunitárias, caxiris e dabukuris que marcam eventos importantes nas vidas dos aldeões:
expedições de pesca, trabalho coletivo em projetos comunitários, os dias de santo do calendário
católico, formaturas escolares, eventos esportivos, reuniões políticas etc. Transformações das antigas
festas, esses caxiris e dabukuris de hoje em dia ainda incluem danças e bebidas - mas as danças não são
mais acompanhadas pela música nativa e as flautas de pã, mas sim pelo forró e, ao invés da relativa
moderação do passado, a cachaça é livremente consumida e seu freqüentemente consumo leva a
discussões e brigas. Com níveis crescentes de alcoolismo, a embriaguez que os missionários
imaginavam ver nas festas tradicionais hoje tem se tornado uma realidade cruel da civilização que os
missionários trouxeram consigo.
No lado colombiano, sob o regime dos Monfortianos, o policiamento e a inserção dos missionários
foram muito parecidos às dos Salesianos mas, no final dos anos 50, os Monfortianos foram substituídos
pelos mais liberais Javerianos. Estes eram identificados com a nova Teologia da Libertação, que
pregava a tolerância com a cultura indígena e acomodação com seus valores e crenças; isto, junto com
o isolamento da região, explica porque os habitantes do Pira-Paraná ainda conseguem conservar boa
parte da sua religião tradicional e do seu modo de vida. No lado brasileiro, a mudança foi mais lenta,
mas, depois que a os Salesianos foram denunciados no Tribunal Russell em 1980 pelo crime de
etnocídio, eles finalmente começaram a adotar uma linha mais liberal e progressista.
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