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O que é arte? Por que e para que ela foi criada? O que ela manifesta? Talvez mais importante do que responder a ‘esses questionamentos seria perguntar: como seria a vida humana sem a arte? A arte pode provocar o sublime, o sórdido, o impensável e o inapreensível, pois é próprio dela “embaralhar as metáforas” – como dizia o filósofo alemão Friedrich Nietzsche – e misturar os compartilhamentos dos conceitos. Ela evoca em nós sensações nem sempre possíveis de serem nominadas pela linguagem e pode nos desvencilhar do real quando se torna poética. Esta obra propõe um trajeto possível por alguns dos principais momentos da história da arte no Ocidente, além de uma breve reflexão sobre a Estética e a teoria da arte. Mais do que um guia completo sobre a trajetória das expressões artísticas no tempo, História da arte: da pintura rupestre ao Pós-Modernismo busca ser um roteiro singelo de iniciação dos seus estudos em Estética e história da arte. H ISTÓ R IA DA A RT E: DA PIN T U R A RU PEST R E A O PÓ S-M O D ER N ISM O A ndréa Carneiro Lobo/ Vania M aria A ndrade Andréa Carneiro Lobo Vania Maria Andrade Fundação Biblioteca Nacional ISBN 978-85-387-6555-4 9 7 8 8 5 3 8 7 6 5 5 5 4 Código Logístico 59028 História da arte: da pintura rupestre ao Pós-Modernismo IESDE BRASIL 2019 Andréa Carneiro Lobo Vania Maria Andrade © 2019 – IESDE BRASIL S/A. É proibida a reprodução, mesmo parcial, por qualquer processo, sem autorização por escrito das autoras e do detentor dos direitos autorais. Projeto de capa: IESDE BRASIL S/A. Imagem da capa: Josemar Franco/muratart/Shutterstock Todos os direitos reservados. IESDE BRASIL S/A. Al. Dr. Carlos de Carvalho, 1.482. CEP: 80730-200 Batel – Curitiba – PR 0800 708 88 88 – www.iesde.com.br CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ L782h Lobo, Andréa Carneiro História da arte : da pintura rupestre ao pós-modernismo / Andréa Carneiro Lobo, Vania Maria Andrade. - 1. ed. - Curitiba [PR]: IESDE, 2019 170 p. : il. Inclui bibliografia ISBN 978-85-387-6555-4 1. Artes - História. I. Andrade, Vania Maria. II. Título 19-60897 CDD: 700.9 CDU: 7(09) Andréa Carneiro Lobo Doutora e mestre em História pela Universidade Federal do Paraná (UFPR), especialista em Imagens, Linguagens e Ensino de História e graduada em História (Licenciatura e Bacharelado), também pela UFPR. Possui experiência em ensino de História, Metodologia Científica e Filosofia para alunos de graduação em Direito e História, com ênfase em história do pensamento ocidental, atuando especialmente na análise do pensamento filosófico contemporâneo (Nietzsche, Benjamin, Foucault, Deleuze) e teoria da história. É autora de livros didáticos nas áreas de história, filosofia, política e arte. Vania Maria Andrade Especialista em Psicopedagogia pela Universidade Tuiuti do Paraná (UTP) e em Altas Habilidades/Superdotação pela Faculdade Padre João Bagozzi. Licenciada em Artes Visuais com ênfase em Computação pela UTP e bacharel em Pintura pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Professora de ensino a distância, autora de conteúdos multimídia e objetos digitais em Arte. Sumário Apresentação 7 1 Teorizações sobre a arte 9 1.1 O que é e para que serve a arte? 9 1.2 A Estética e os diferentes conceitos sobre a arte 13 2 Arte rupestre no Ocidente e nas Américas 25 2.1 A Pré-História e a relação entre arte e magia 25 2.2 Expressões da arte pré-histórica no Brasil 33 3 A arte entre as primeiras civilizações 39 3.1 A arte neolítica: o caminho para a abstração 39 3.2 O nascimento da civilização 45 3.3 Aspectos da arte egípcia antiga 48 3.4 A arte entre as civilizações grega e romana 53 4 A arte medieval e a evocação do sagrado 65 4.1 Idade Média ocidental: conceito e contexto 65 4.2 Expressões artísticas do período carolíngio 70 4.3 Estilos da arte medieval: bizantino, românico e gótico 77 5 O Renascimento e o desenvolvimento da autonomia artística 89 5.1 O conceito de Renascimento e seus fundamentos estéticos 89 5.2 O Humanismo e as origens do pensamento renascentista 95 5.3 Fases do Renascimento italiano 96 5.4 A expansão do Renascimento na Europa 103 6 Barroco: a estética do rebuscamento e do exagero 109 6.1 Maneirismo e Barroco: contexto 109 6.2 A arte do rebuscamento e do exagero 114 6.3 O estilo barroco no Brasil 122 7 Do Neoclassicismo ao Modernismo 129 7.1 Neoclassicismo: conceito, contexto e características 129 7.2 Romantismo 132 7.3 Os principais movimentos dentro do Modernismo 136 8 Expressões pós-modernas 145 8.1 Conceito de Pós-Modernismo 145 8.2 O mundo pós-guerra e os movimentos de contracultura 155 8.3 Expressões pós-modernas 157 Gabarito 163 Apresentação O que é arte? Por que e para que ela foi criada? O que ela manifesta? Talvez mais importante do que responder a esses questionamentos seria perguntar: como seria a vida humana sem a arte? Imagine, por alguns instantes, como seria a vida sem a música, sem o teatro, sem os filmes, sem as telenovelas, sem o grafite, sem as histórias em quadrinhos, sem a dança, sem as esculturas, sem o design diferenciado dos móveis e sem as imagens publicitárias. O mundo certamente continuaria a ter cores, formas, sons e ritmos, mas estes passariam por nós desapercebidos. Contemplamos o mundo e tentamos imitá-lo, por isso, desenvolvemos a arte como uma forma de imitação do real e do natural, como já dizia Aristóteles. Mas ao longo da trajetória humana, a arte nem sempre foi tentativa de imitação nem de evocação do belo: ela já se manifestou como idealização, abstração e desconstrução do “real”, chegando ao ponto de criar ela mesma sua própria realidade, composta da irrealidade da ficção para provocar em nós o estranhamento com aquilo que convencionamos chamar de real. A arte pode provocar o sublime, o sórdido, o impensável e o inapreensível, pois é próprio dela “embaralhar as metáforas” – como dizia o filósofo alemão Friedrich Nietzsche – e misturar os compartilhamentos dos conceitos. Ela evoca em nós sensações nem sempre possíveis de serem nominadas pela linguagem e pode nos desvencilhar do real quando se torna poética. Nesse sentido, propomos nesta obra um trajeto possível por alguns dos principais momentos da história da arte no Ocidente, além de uma breve reflexão sobre a Estética e a teoria da arte. Partindo das expressões artísticas na Pré-História, passamos pela arte medieval, buscando desconstruir o conceito de que a Idade Média foi uma “Idade das Trevas”. Chegamos, assim, na arte luminosa e colorida do Renascimento, em que a crença na razão e no aspecto positivo de tudo o que é humano levou os artistas a associarem a beleza ao bem. Passamos pela arte retorcida do Barroco e, por fim, atingimos a arte moderna e a desconstrução pós-moderna. Mais do que um guia completo sobre a trajetória das expressões artísticas no tempo, História da arte: da pintura rupestre ao Pós-Modernismo busca ser um roteiro singelo de iniciação dos seus estudos em Estética e história da arte. Esperamos que você se sinta instigado a contemplar, a olhar com atenção para as expressões artísticas à sua volta e, quem sabe, inspire-se a fazer da sua vida uma verdadeira obra de arte: algo único e inconfundível no tempo e no espaço. Boa leitura! 1 Teorizações sobre a arte Andréa Carneiro Lobo Para você, o que é a arte? Como ela se manifesta? O que define uma obra como artística? Quais características a diferenciam de outra não considerada como tal? Você percebe manifestações artísticas em seu dia a dia? Se sim, quais? Já se questionou sobre a origem e o sentido da arte para a existência humana? Sendo uma das mais antigas formas da manifestação humana, qual é a finalidade da expressão artística? Ela muda ao longo do tempo ou permanece a mesma? Qual é a intenção do ser humano ao criar sons, cores e formas? Neste capítulo, vamos iniciar nossos estudos sobre a história e o sentido da arte, analisando comoela foi pensada por diferentes teóricos de diversas épocas. 1.1 O que é e para que serve a arte? Em tempos como os nossos, em que quase tudo que é relacionado ao fazer humano parece necessariamente ter utilidade prática e imediata, muito se questiona sobre a função da arte. Mas, afinal, é necessário que a arte tenha uma função? Se a arte não tem algum sentido ou alguma função, por que ela foi a primeira forma de manifestação do entendimento humano sobre o mundo, anterior à religião e à escrita? Uma das primeiras formas de manifestação artística é a pintura rupestre, que nada mais é do que pinturas e desenhos geralmente realizados em cavernas ou em superfícies rochosas. Considerada a mais antiga manifestação artística humana, alguns registros têm aproximadamente 73 mil anos. É o caso, por exemplo, das pinturas localizadas na caverna de Blombos, na África do Sul. Antes da escrita, os seres humanos utilizavam imagens como maneira de expressão e imitação do real ou do próprio pensamento em relação ao mundo. Desse modo, os primeiros códigos escritos, surgidos há aproximadamente 6 mil anos, também eram formados por imagens. Embora tenha sido criada há milhares de anos como a manifestação do que é humano, a arte é um modo de expressão que permanece sempre se atualizando e constantemente nos instiga a refletirmos sobre nós mesmos. No entanto, à medida que o tempo passa, mudam-se o conteúdo, o significado, o sentido, bem como os artistas; é por meio deles que a arte se manifesta. Quando estudamos a arte, estamos tratando do que é humano por excelência, do ser humano e da maneira como ele compreende a própria existência e manifesta essa compreensão de modo a afetar os semelhantes. História da arte: da pintura rupestre ao Pós-Modernismo10 Diferentemente de outras formas de expressão humana, um elemento fundamental da arte é o poder de nos sensibilizar, de suscitar sensações, de provocar emoções e instigar o belo, o absurdo, o impensado e o sublime, muitas vezes sem o uso de palavras ou relacionando-as com aquilo que supostamente nomeamos. Para continuarmos nossas especulações sobre a importância e o sentido da arte, bem como ela foi pensada por alguns filósofos antigos e modernos, observe a imagem a seguir (Figura 1), que trata de uma obra criada pelo artista holandês Vincent van Gogh (1853-1890). Enquanto a observa, procure sentir-se em meio à composição, deixe-se “flutuar” entre as formas e permita ter seus sentidos invadidos pela explosão de cores, tão vibrantes que parecem querer escapar à nossa percepção. Figura 1 – Memória do Jardim em Etten (Dama de Arles) (1888), de Vicent van Gogh. H er m ita ge T or re nt /W . C om m on s Fonte: VAN GOGH, V. Memória do Jardim em Etten (Dama de Arles). 1888. 1 óleo sobre tela, 73,5 x 92,5 cm. Museu Hermitage, São Petersburgo, Rússia. Como expressar o impacto e estremecimento que uma obra de arte pode causar em cada expectador? Como entender o porquê e onde nos afeta? Não temos conhecimento certo de quando e por que o ser humano inventou a arte – talvez tenha sido a partir do momento em que houve a tomada de consciência de si, da natureza, da imensidão do mundo e da complexidade do pensamento. Sabemos somente das pinturas nas cavernas, dos poemas épicos, das esculturas, dos romances, das telas, dos filmes e de tantos outros tipos de expressão artística. Apesar disso, cada um de nós se relaciona com a arte. Alguns se identificam com filmes, outros preferem poemas, uns ficam extasiados diante de esculturas, há quem se interesse por música e quem seja fascinado por teatro, já outros preferem embarcar nos textos em prosa dos romances, Teorizações sobre a arte 11 vivenciando as angústias e alegrias dos personagens. Isso demonstra que a arte se manifesta de diversas maneiras e uma delas, certamente, já sensibilizou você. Todavia, você saberia definir o que é a arte? Existem diferenças entre as diversas manifestações artísticas? Ernst Gombrich (2013, p. 21), um dos maiores estudiosos da história da arte, afirma que: de fato, aquilo a que chamamos Arte não existe. Existem apenas artistas. No passado, eram homens que usavam terra colorida para esboçar silhuetas de bisões em paredes de cavernas; hoje, alguns compram suas tintas e criam cartazes para colar em tapumes. Fizeram e fazem muitas coisas. Não há mal em chamar todas essas atividades de arte, desde que não nos esqueçamos de que esse termo pode assumir significados muito distintos em diferentes tempos e lugares, e que a Arte com A maiúsculo não existe. Com efeito, a Arte com A maiúsculo tornou-se como que um bicho-papão, ou um fetiche. Podemos esmagar um artista dizendo-lhe que o que ele fez tem lá o seu valor, mas não é “Arte”. Ou confundir uma pessoa que contempla uma tela declarando que o que ela apreciou no quadro não foi a Arte, mas outra coisa qualquer. Segundo Gombrich (2013), não podemos falar em arte com “A” maiúsculo, mas, sim, em artistas, visto que o que é considerado arte em determinada época e lugar pode não ser em outro contexto. Já outras manifestações permanecem quase como atemporais, instigando beleza ou perplexidade, tanto em sua época quanto em outras que lhe são posteriores. Diante disso, percebemos que os significados do termo mudam com o tempo, porém, ainda podemos nos perguntar: o que faz de alguém um artista? O que caracteriza uma obra específica como arte? Vamos iniciar nossas reflexões explorando as origens etimológicas da palavra arte (do latim ars), definida na Antiguidade, segundo o filósofo Nicola Abbagnano (2007), como o conjunto das regras que direcionam uma atividade humana voltada à realização de um fim qualquer, seja ele prático, científico, filosófico ou político. Em seu significado mais geral, todo conjunto de regras capazes de dirigir uma atividade humana qualquer. Era nesse sentido que Platão falava da [arte] e, por isso, não estabeleceu distinção entre [arte] e ciência. [Arte], para Platão, é a arte do raciocínio [...] como a própria filosofia no seu grau mais alto, isto é, a dialética [...]; [arte] é a poesia, embora lhe seja indispensável a inspiração delirante [...]; A. é a política e a guerra [...]; [arte] é a medicina e [...] [é] respeito e justiça, sem os quais os homens não podem viver juntos nas cidades [...]. (ABBAGNANO, 2007, p. 81) Desse modo, arte seria, ainda, segundo a origem etimológica da palavra, tudo o que é relativo ao engenho humano – incluindo toda forma de destreza, saber, profissão, perícia, habilidade, talento ou ainda gênio. Em outras palavras, arte, para os antigos romanos, referia-se às qualidades que são aprendidas, adquiridas e empregadas no desenvolvimento de alguma atividade realizada segundo determinadas regras, as quais se opõem às qualidades que seriam naturais, denominadas ingenĭum. O termo arte, na antiga civilização romana, nominava o conjunto de habilidades necessárias à realização de alguma atividade regida por regras que podiam ser aprendidas, executadas e repassadas adiante. Sendo assim, a arte como ofício designava, por exemplo, o conjunto de habilidades manifestas na atividade de artesãos, como oleiros, tecelões, ourives, entre outros. História da arte: da pintura rupestre ao Pós-Modernismo12 Figura 2 – Marceneiro desempenhando a arte como ofício gu al tie ro b of fi/ Sh ut te rs to ck O termo grego para ars era tékhne; ele foi empregado pelo filósofo Aristóteles (384-322 a.C.) para caracterizar toda e qualquer atividade humana instituída sobre um saber-fazer regrado e destinado a determinada finalidade prática. A técnica de fazer alguma coisa consistia, portanto, em bem realizar uma tarefa, mediante o seguimento de regras e preceitos, por meio dos quais se atingia um fim. Embora propusesse pequenas distinções de hierarquia, para Aristóteles, a arquitetura, a olaria e a medicina, bem como a música e a pintura, por exemplo, eram consideradas tékhnai (artes). No entanto, Aristóteles diferenciava a arte como tékhnai(saber técnico, regrado e destinado a determinado fim) da arte como mimeses1 (imitação), esta última denominada arte poética pelo filósofo. A palavra poesia tem origem no vocábulo grego poíēsis (criação). O poeta é aquele que, em virtude de seu potencial para a criação, cria/inventa mitos e fábulas que têm por base elementos do comportamento humano, terreno fértil para uma vasta gama de possibilidades para a fabulação, invenção literária. Sendo assim, a criação poética é a arte da imitação que, embora ficcional, tem como base eventos reais e se apresenta como algo plausível e verosímil a essas situações. Propomo-nos tratar da produção poética em si mesma e de seus diversos gêneros, dizer qual a função de cada um deles, como se deve construir a fábula, no intuito de obter o belo poético; qual o número e a natureza de suas diversas partes, e falar igualmente dos demais assuntos relativos a esta produção. Seguindo a ordem natural, começaremos pelos mais importantes. A epopeia e a poesia trágica e também a comédia, a poesia ditirâmbica, a maior parte da aulética e da citarística, consideradas em geral, todas se enquadram nas artes de imitação. (ARISTÓTELES, 2005, p. 239) 1 Segundo Ceia (2010, grifos do original), o termo mimese tem como origens: “Do gr. mímesis, “imitação” (imitatio, em latim), designa a acção ou faculdade de imitar; cópia, reprodução ou representação da natureza, o que constitui, na filosofia aristotélica, o fundamento de toda a arte. Heródoto foi o primeiro a utilizar o conceito e Aristófanes, em Tesmofórias (411), já o aplica. O fenômeno não é um exclusivo do processo artístico, pois toda atividade humana inclui procedimentos miméticos como a dança, a aprendizagem de línguas, os rituais religiosos, a prática desportiva, o domínio das novas tecnologias etc. Por esta razão, Aristóteles defendia que era a mímesis que nos distinguia dos animais. Os conceitos de mímesis e poeisis são nucleares na filosofia de Platão, na poética de Aristóteles e no pensamento teórico posterior sobre estética, referindo-se à criação da obra de arte e à forma como reproduz objectos pré-existentes”. http://edtl.fcsh.unl.pt/encyclopedia/imitacao/ http://edtl.fcsh.unl.pt/encyclopedia/accao/ http://edtl.fcsh.unl.pt/encyclopedia/representacao/ http://edtl.fcsh.unl.pt/encyclopedia/conceito/ http://edtl.fcsh.unl.pt/encyclopedia/poetica/ http://edtl.fcsh.unl.pt/encyclopedia/estetica/ http://edtl.fcsh.unl.pt/encyclopedia/obra/ http://edtl.fcsh.unl.pt/encyclopedia/forma/ Teorizações sobre a arte 13 Para Aristóteles, a função da imitação é o reconhecimento e o estabelecimento da verossimilhança com o real, o que distinguiria as artes poéticas das demais artes. Desse modo, a arte poética representaria não só uma forma de conhecimento, mas propiciaria uma experiência estética, um prazer decorrente do reconhecimento da relação entre a arte mimética e o real. Nesse sentido, a música, a poesia, o teatro e as artes plásticas em geral, por exemplo, seriam manifestações de arte mimética/poética. Essa arte teria origem decorrente da tendência que o ser humano tem em relação à imitação e ao fato de encontrar prazer nesse tipo de atividade, o qual se daria em função de a arte, ao tentar imitar a natureza, produzir sensações agradáveis àquele que a contempla. De acordo com alguns dos primeiros filósofos que se dispuseram a pensar e a escrever sobre a arte, entre eles o próprio Aristóteles, alguns critérios que diferenciariam a arte de qualquer engenho ou criação humana é a fidedignidade em relação à natureza e a propensão para o belo. Sendo assim, foi considerado obra de arte o tipo de criação humana que, ao buscar reproduzir ou imitar algum aspecto ou elemento natural, se propôs a evocar, no espectador, a sensação da beleza. No entanto, seria a verossimilhança o principal objetivo ou a principal função da arte poética? Aristóteles, além de definir a arte como imitação, conferiu à criação poética outra função, à qual damos o nome de Estética. Desse modo, assim como outros filósofos posteriores, o pensador se debruçou sobre o tema relacionado à arte, ao sentido, à função e à maneira como ela nos afeta. 1.2 A Estética e os diferentes conceitos sobre a arte A palavra estética tem origem etimológica no termo grego aisthetiké, cujo significado aproximado para nossa língua seria “aquele que percebe, aquele que nota algo”. No âmbito do pensamento ocidental, mais especificamente do pensamento filosófico, a Estética foi se afirmando enquanto uma filosofia da arte como a “ciência (filosófica) da arte e do belo” (ABBAGNANO, 2007, p. 367). O uso do termo com essa designação foi empregado no século XVIII, em 1750, pelo filósofo alemão Alexander Gottlieb Baumgarten (1714-1762), que, embora não tenha sido o primeiro teórico a abordar o fenômeno artístico, foi o primeiro a sistematizar o uso do termo para sua abordagem filosófica na obra Estética, escrita entre 1750 e 1758. Desde a Antiguidade Clássica grega, filósofos têm se dedicado a “notar” e a “olhar com atenção” para a arte. Segundo Figurelli (2009), as primeiras experiências parecem ter sido realizadas no campo da música, entre os séculos VI e V a.C., pelos pitagóricos, discípulos do filósofo, matemático e místico grego Pitágoras de Samos2. 2 Pitágoras é considerado um dos mais importantes filósofos pré‑socráticos. Suas ideias influenciaram seus seguidores e outros filósofos que vieram depois dele, dentre os quais se destaca Platão. Foi provavelmente no âmbito doméstico, observando o pai lapidar pedras brutas, transformando-as em joias, que Pitágoras pode ter percebido a relação entre as formas geométricas e a beleza. Foi também fortemente influenciado pelo orfismo: “Tradição filosófico‑religiosa originária do século VII a.C., na Grécia Antiga, inspirada na figura mítica de Orfeu, famoso por seus poemas e canções” (JAPIASSÚ; MARCONDES, 1996, p. 202). A filosofia pitagórica girava em torno da ideia de que tudo no universo é número e que há uma relação mística entre o ordenamento (o Cosmos) e a Matemática. Os pitagóricos podem ter chegado a essa conclusão verificando a relação entre as proporções numéricas simples e a harmonia sonora nos instrumentos musicais. O Cosmos seria como uma grande harmonia cuja música poderia auxiliar a compreender o estudo dos números. História da arte: da pintura rupestre ao Pós-Modernismo14 1.2.1 Platão e a arte como mimese Alguns dos primeiros textos relacionados à análise das artes plásticas e da literatura estão atribuídos ao filósofo grego Platão (427/428-348 a.C.), discípulo de Sócrates (470-399 a.C.) e influenciado pelos pitagóricos. Dentre esses escritos, os principais que abordam alusões à Estética são Hípias Maior, O banquete, A República (principalmente os livros II, III e X) e Leis. Segundo destaca Figurelli (2009, p. 544, grifos no original): sabe-se, pela História da Filosofia, que Platão foi influenciado pela doutrina dos pitagóricos. E, em alguns diálogos, é possível detectar a profundidade das relações entre platonismo e pitagorismo. Platão não redigiu Tratado de Estética, no sentido moderno da expressão. Mas coube a ele o mérito de ter escrito o primeiro texto completo da História da Estética: o Hípias Maior, diálogo da mocidade, sobre o belo. E, se percorrermos a vasta obra de Platão, veremos que questões estéticas são discutidas em alguns dos mais conhecidos e importantes diálogos. Assim, no Banquete, o elogio estusiástico do amor e da beleza. A República, da maturidade, nos Livros II, III e X, também é leitura obrigatória. E mesmo nas Leis, obra da velhice, foram deixados traços da doutrina pitagórica acerca da medida e da proporção. Essas indicações, arroladas como exemplos, e muitas outras passagens têm sido sistematizadas por especialistas de sorte a apresentar o que se convencionou chamar de a estética de Platão. Todavia, de acordo com os textos mencionados, qual é o entendimento que Platão manifestava sobre a arte? Para o filósofo ateniense, aarte de um modo geral – e incluindo-se aí a criação de imagens pelo artista – não passava de uma tentativa de criar um simulacro, uma ilusão, uma imitação (mimese) do real sensível, o qual, por sua vez, constituía o aspecto aparente da realidade cuja essência seria inteligível, acessível apenas à razão e manifesta no chamado “mundo das ideias”. Como já dito, para Platão a arte é mimese, ou seja, imitação da cópia. O filósofo concebia como inferior a atividade do artista – a imitação –, uma vez que para ele o real passível de ser imitado pelo artista era o real sensível, aquele que poderia ser percebido com os sentidos e que, por sua vez, consistia no aspecto aparente de um real ideal, essencial, atingível somente pelo intelecto: o mundo das ideias. Sendo o real sensível a aparência material do real real, essencial, o artista seria aquele que, ao imitar a imitação, entreteria os homens os distraindo do verdadeiro sentido da realidade: as essências imutáveis de tudo o que existe em matéria, as ideias ou os modelos eternos, invisíveis, espirituais e perfeitos de todas as coisas, atingíveis somente por intermédio do amor à sabedoria – a Filosofia – conduzido de forma dialética3. 3 Para saber mais a respeito da concepção de arte como mimese em Platão e sobre como se relaciona ao conceito de mundo das ideias, sugerimos os seguintes livros: PLATÃO. A República. Trad. de José Saramago. Lisboa: Estampa, 1978; PLATÃO. Critão, Meão, Hípias Maior e outros. 2. ed. Trad. de Carlos Alberto Nunes. Belém: EDUFPA, 2007; FIGURELLI, R. Platão e os primórdios da Estética. In: MARÇAL, J. (org.). Antologia de textos filosóficos. Curitiba: SEED, 2009. Disponível em: http:// www.educadores.diaadia.pr.gov.br/arquivos/File/cadernos_pedagogicos/caderno_filo.pdf. Acesso em: 24 out. 2019. Teorizações sobre a arte 15 1.2.2 Aristóteles e a arte como catarse Conforme estudamos, Aristóteles, discípulo de Platão, também concebia a arte como mimese, ou seja, como imitação possível do real. Ele empregou o termo arte mimética em sua obra Poética para designar certos tipos de manifestações – entre elas a epopeia, a poesia trágica, a aulética, a comédia, a poesia ditirâmbica e a citarística. No entanto, diferentemente de seu mestre, Aristóteles não considerava a imitação do real como algo negativo, mas como uma maneira de produzir sensações agradáveis àqueles que a contemplam. Além da imitação com vistas à fruição, Aristóteles via na arte mais uma função. No Capítulo VI do livro Poética, o filósofo abordou especificamente um dos gêneros da dramaturgia grega, a tragédia, assim como suas diferentes partes. Segundo o filósofo, a essência da tragédia é ser um tipo de imitação completa, dotada de certa extensão, composta em estilo que se manifesta como agradável por apresentar-se em partes que se harmonizam entre si e cuja ação é apresentada por atores. Desse modo, sua função ao imitar aspectos do comportamento humano é suscitar a catarse, isto é, a purificação, a purgação das emoções: falemos da tragédia em função do que deixamos dito, formulemos a definição de sua essência própria. A tragédia é a imitação de uma ação importante e completa, de certa extensão; deve ser composta em um estilo tornado agradável pelo emprego separado de cada uma de suas formas; na tragédia, a ação é apresentada não com a ajuda de uma narrativa, mas por atores. Suscitando a compaixão e o terror, a tragédia tem por efeito obter a purgação das emoções. Entendo por “um estilo tornado agradável” o que reúne ritmo, harmonia e canto. Entendo por “separação das formas” o fato de estas partes serem umas manifestadas só pelo metro e outras pelo canto. Como é pela ação que as personagens produzem a imitação, daí resulta necessariamente que uma parte da tragédia consiste no belo espetáculo oferecido aos olhos; além deste, há também o da música e, enfim, a própria elocução. (ARISTÓTELES, 2013, p. 27-28, grifo nosso) Para compreendermos melhor o conceito de catarse ou purgação estética em Aristóteles vamos considerar que, para o filósofo, na obra Ética a Nicômaco, a virtude não é algo que nasce conosco. Embora em nossa essência sejamos seres racionais, cuja finalidade existencial é a realização plena dessa racionalidade como obtenção de uma vida boa e feliz, não somos apenas dotados de razão, somos seres dotados de matéria, a qual está sujeita à degradação e tem suas necessidades. A virtude consiste em equilibrar as necessidades do corpo com as vicissitudes da razão, cultivando a moderação e evitando os excessos e, de acordo com Aristóteles, a vida virtuosa é um hábito que atingimos por meio da educação. Sendo assim, a tragédia, ao evocar comportamentos, sentimentos, inclinações humanas pela via da imitação, valendo-se de elementos agradáveis – como o canto, as cores, as palavras em rima – propicia aos expectadores que “vivenciem sem viver” os acontecimentos representados pelas personagens. A audiência acaba vivenciando como que “por procuração” determinadas ações. Essas ações, por vezes, manifestam inclinações viciosas, as quais, se vivenciadas de fato, seriam perniciosas para a vida em sociedade, mas que, experienciadas pela via estética, por intermédio História da arte: da pintura rupestre ao Pós-Modernismo16 da imitação do real, encontram um modo de serem extravasadas e, assim, purificadas, sem que precisem necessariamente serem realizadas de fato. Tomemos como exemplo a peça trágica Édipo Rei, escrita em 427 a.C. pelo dramaturgo grego Sófocles (496-406 a.C.), na qual um jovem rei da cidade de Tebas, sem ter conhecimento sobre a realidade e a totalidade dos fatos, foi vítima de um destino terrível, sendo levado a assassinar seu pai, Laio, e a se apaixonar e se casar com a própria mãe, Jocasta: Laio, rei de Tebas, ouviu de um oráculo – o oráculo de Delfos – que seria assassinado pelo próprio filho, Édipo, o qual também desposaria a própria mãe. Atormentado com a revelação, Laio entregou o filho para um pastor, ordenando que o pendurasse em uma árvore no monte Citerão para que fosse devorado por feras. Condoído diante da situação, o pastor não mata o bebê, mas, sem condições para criá-lo, entrega-o para adoção, que passa a ser criado por Políbio, rei de Corinto. Na juventude, Édipo recebe a notícia de que tinha sido adotado e, perturbado, sai em desvario e passa a perambular pela estrada. Chegando em uma encruzilhada, encontra-se com um grupo de pessoas, entre elas está Laio, que era rei de Tebas e também seu pai, fato que Édipo desconhecia. Em um desentendimento, acaba se lançando contra Laio e o matando. Chegando em Tebas e se depara com uma esfinge, a qual lhe propõe um enigma até então nunca decifrado: qual é a criatura que pela manhã caminha sobre quatro patas, ao meio-dia sobre duas e à tarde sobre três? Édipo responde que essa criatura é o ser humano que, quando bebê, engatinha, quando adulto, anda sobre duas pernas e, na velhice, necessita de bengala para caminhar (como se tivesse três pernas). Por resolver o enigma, é coroado rei de Tebas e desposa a rainha, esposa do falecido Laio (que o próprio Édipo havia assassinado, mas cujo feito não era de conhecimento dele e dos demais tebanos). Édipo e Jocasta se casam e têm quatro filhos: duas meninas e dois meninos. Algum tempo depois, ao consultar um oráculo, descobre a verdade sobre seu destino e, desesperado, fura os olhos e sai em desatino pelo mundo, enquanto sua mãe/esposa Jocasta se suicida. Teorizações sobre a arte 17 Figura 3 – Édipo cega seus próprios olhos Representação teatral da obra Édipo Rei (1896). Al be rt G re in er /W . C om m on s O que acontece com o expectador que assiste à tragédia Édipo Rei, de Sófocles? Ele vivencia, por intermédio das personagens, algumas de suas inclinações mais violentas, sórdidas e sombrias, dando vasão a elas, purgando-as e, ao mesmo tempo, libertando-se da necessidade de vivenciá-las de fato. A tragédia provoca a catarse pela via estética e, assim, manifesta-secomo uma maneira de manter a vida social saudável e harmoniosa. A arte – como representação/imitação não somente do que é belo, mas também sombrio e sórdido no ser humano – pode nos educar para valores melhores, para ações belas e nobres. Desse modo, não somente por produzir coisas belas mas por inspirar ações belas, influenciado pelo conceito aristotélico, o pensamento ocidental concebeu a ideia de belas artes, diferenciando esse tipo de criação humana de outras, mais técnicas. Aristóteles atribui papel ético à arte poética na obra Política. Segundo o filósofo, a educação musical e poética contribui para formar no ser humano o gosto pelas ações nobres e belas. Sendo assim, uma educação estética colaboraria para desenvolver no ser humano o gosto pela ação contemplativa, a mais nobre de todas as ações. Segundo Santoro (2010, p. 47-48), entendemos que a finalidade da obra de arte está na sua própria fruição e que belas são as coisas que desejamos por elas mesmas. Úteis são aquelas que desejamos em vista de um outro bem. Esta diferença para marcar as artes que visam o belo já recebeu também a qualificação de livre (artes liberais) e chegou a inspirar a determinação kantiana para a sua teoria do juízo de belo, como um juízo de valor desinteressado. Esta cisão tem origem na ética e na política de Aristóteles, ainda que não visasse exatamente uma distinção nas artes, mas antes as atividades História da arte: da pintura rupestre ao Pós-Modernismo18 humanas em geral. [...] As coisas belas, para Aristóteles, são menos os objetos produzidos pelas diversas artes do que as melhores e mais felizes ações humanas, principalmente a ação contemplativa. Mas, diz ele, as diversas músicas e a poesia devem educar-nos para os melhores valores, os valores do homem livre e suas ações belas e nobres. De certo modo, Aristóteles propõe uma educação estética, em que não apenas se vão aprender conteúdos éticos importantes, mas em que, por meio da arte, já se vai tomando gosto pela atividade mais nobre e mais divina no homem, a atividade contemplativa. Assim, mais do que produzir coisas belas, é importante aprender e agir de modo belo. Para Aristóteles, as coisas que têm um fim em si mesmas – as coisas belas –, assim como o ócio, é que deveriam direcionar as atividades consideradas necessárias e úteis, uma vez que só aquelas conduzem a vida humana a uma direção livre, desinteressada e, portanto, feliz. E você, o que pensa a respeito dessa concepção? Concorda com o posicionamento aristotélico de que o que é considerado útil e necessário deve ser direcionado pela contemplação da beleza e pelo ócio? Não é exatamente o contrário disso o que fazemos em nossa sociedade atual? Qual foi a última vez em que você se permitiu ficar a sós consigo mesmo, diante de uma paisagem natural ou de uma obra de arte em atitude de silêncio e contemplação? Ainda que pareçam dissonantes em relação ao nosso tempo, as considerações aristotélicas sobre a música, a poesia dramática e a poesia épica exerceram forte influência sobre o que a tradição ocidental convencionou a respeito da arte por muitos séculos. Embora o próprio Aristóteles não tenha se ocupado, na Poética, das artes plásticas propriamente ditas, as categorias e os princípios estéticos desenvolvidos por ele influenciaram escolas de arte europeias durante o Renascimento artístico e cultural dos séculos XIV, XV e XVI, quando, pela primeira vez, a pintura e a escultura passaram a desfrutar do mesmo status antes exclusivo às artes poéticas. No entanto, foi na passagem do século XVII para o XVIII que se efetivou, no Ocidente, a delimitação do campo artístico e, a partir de então, o conceito de Belas Artes passou a demarcar a diferença entre as artes destinadas a evocar a beleza e as artes liberais. A Estética passou a ocupar-se desse campo filosófico e, diferentemente de outras formas de conhecimento, não se interessava pelo verdadeiro (preocupação da ciência) ou pelo bom (campo da ética), sendo que sua única ocupação passou a residir na reflexão do belo em si mesmo. Cabia à Estética avaliar uma obra frente a sua capacidade de evocar a beleza, que só existe de modo puro na natureza, mas, ao mesmo tempo, pelo seu potencial em criar algo distinto da natureza, algo original, sem relação alguma com o que é útil e sem a preocupação com o seguimento de procedimentos regrados. Essa concepção de arte se relacionou à concepção de artista como “gênio criador”, aquele capaz de produzir e suscitar a beleza. 1.2.3 Kant e a relação entre a arte e o sublime Embora a ideia de beleza esteja presente em diferentes épocas e sociedades humanas, o seu conceito está sempre se atualizando. Sendo assim, o que é considerado belo em uma época e cultura pode não ser considerado em outro contexto. Teorizações sobre a arte 19 Todavia, seria a função da arte somente suscitar e evocar o belo? Que critérios podem ser estabelecidos para definir objetivamente o que é belo? Para nos ajudar a pensar sobre isso, vejamos como o termo belo é definido em um dicionário de Filosofia: Belo (lat. bellus: bonito). 1. Diz-se de tudo aquilo que, como tal, suscita um *prazer desinteressado (uma emoção estética) produzido pela contemplação e pela admiração de um objeto ou de um ser. Ex.: um belo castelo, uma mulher bela. 2. Diz-se de tudo aquilo que apresenta um *valor moral digno de admiração. Ex.: uma bela ação. 3. Conceito normativo fundamental da *estética que se aplica ao juízo de apreciação sobre as coisas ou sobre os seres que provocam a emoção ou o sentimento estético, seja em seu estado natural (uma bela paisagem), seja como produto da arte (pintura, música, arquitetura etc.). Todo belo é o resultado de uma apreciação, de um juízo de gosto subjetivo, isto é, pressupõe que não haja nada para ser conhecido [...]. (JAPIASSÚ; MARCONDES, 1996, p. 27) Observe que o conceito de belo está associado ao que é digno de admiração, de contemplação desinteressada ou que tem como interesse a pura fruição, isso tanto em relação a uma paisagem natural quanto a um produto artístico concebido para tal – para suscitar esse tipo de sensação. Note também que todo belo é resultado de uma apreciação, de um juízo de gosto, ou seja, da perspectiva e das impressões que o objeto causa no expectador, naquele que o contempla. Portanto, temos que a ideia de beleza é universal, porém seu conceito se atualiza, de maneira distinta, em diferentes épocas e culturas. Além disso, a percepção da beleza pressupõe sempre um aspecto subjetivo, ou seja, a apreciação de algo como belo ou não depende daquele que o vê, que o ouve e que o sente. Necessariamente, essa concepção visava ao reconhecimento do valor da arte como algo relacionado à livre criação, à inspiração, à originalidade, sem uma relação obrigatória com a produção de conhecimento. Os critérios segundo os quais uma obra era avaliada relacionavam-se, por um lado, à capacidade inventiva do artista e, por outro, à capacidade do expectador em reconhecer a beleza (o bom gosto). No entanto, essa era uma relação bastante subjetiva, que, de certa maneira, dificultava o estabelecimento de bases reflexivas mais sólidas sobre a arte. Dentre os filósofos modernos que buscaram compreender teoricamente como apreciamos ou depreciamos uma obra de arte destaca-se o alemão Immanuel Kant (1724-1804). Em sua obra Crítica da Faculdade do Juízo (1790), o filósofo estabeleceu critérios objetivos para o juízo estético, ou seja, para o desenvolvimento de conceitos relacionados à arte, o qual denominou juízo de gosto4. No mesmo século em que o conceito de Estética foi cunhado, Kant viria a romper com a tradição aristotélica ao propor que a função da arte é provocar o sublime, e não necessariamente o belo. Diferentemente do belo, o sublime pode ser concebido como a capacidade de uma obra linguística, literária ou artística evocar sentimentos nobres e elevados (ABBAGNANO, 2007). 4 Para saber mais, leia: KANT, I. Crítica da faculdade do juízo. Trad.de Valerio Rohden e António Marques. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2005. p. 58. História da arte: da pintura rupestre ao Pós-Modernismo20 Para entendermos o conceito de juízo de gosto é importante primeiramente compreendermos o conceito de juízo da maneira como foi concebido por Kant na obra Crítica da Razão Pura (1781, 1787). Nessa obra, o filósofo definiu juízo como a capacidade de pensar ou discernir, e a manifestação do pensamento cognoscente – desenvolvido pelo sujeito – sobre um objeto qualquer por meio de uma proposição linguística. Os juízos podem ser a priori, ou seja, sem relação com a experiência, o pensamento puro, manifesto por meio de proposições lógicas; ou a posteriori, decorrente de uma constatação empírica. Juízo relaciona-se, portanto, com o modo pelo qual conhecemos e expressamos nosso conhecimento, e o juízo de gosto pressupõe a capacidade de afecção causada no espectador diante da obra de arte. A principal questão posta por Kant caracterizou-se pela problematização do próprio ato de julgar a obra de arte: polemizou que o juízo de gosto não constituía critério seguro para a avaliação da arte, uma vez que era concebido de modo subjetivo, dependendo, por um lado, de critérios individuais do artista e, por outro, de critérios subjetivos do expectador. Se cada um tem um gosto e uma compreensão do que seja a beleza, como definir critérios objetivos de julgamento de gosto? Como a Estética, pensada filosoficamente, pode contribuir para o aprimoramento artístico e para o próprio pensamento filosófico? De acordo com Kant, a obra de arte, ao se comunicar com a sensibilidade das pessoas, instigando opiniões e sentimentos, estabelece vias de reflexão e, por isso, pode ser pensada objetivamente. Ainda que não seja possível pensar no gosto como algo que possa ser debatido, envolvendo uma disputa com vistas à obtenção de evidências – como acontece com a Filosofia –, é possível pensá-lo como algo que pode ser discutido, processo pelo qual se passa do gosto subjetivo para o refinamento do gosto e, portanto, para a reflexão estética. O refinamento da opinião propicia o refinamento do gosto e a possibilidade de um juízo de gosto, um tipo de “acordo sobre a beleza” que possa ser compartilhado por mais de uma pessoa. Isso é possível porque, embora as opiniões sobre a beleza sejam subjetivas e individuais, a ideia de beleza é uma ideia da razão e, por isso, universal. Ainda que variem de acordo com a pessoa, a época e o local, os conceitos sobre a beleza se manifestam como tentativas de atualizar essa ideia, que é sempre presente na razão. Antes de tudo, é preciso convencer-se inteiramente de que pelo juízo de gosto (sobre o belo) imputa-se a qualquer um a complacência no objeto, sem contudo se fundar sobre um conceito (pois então se trataria do bom); e que esta reivindicação de validade universal pertence tão essencialmente a um juízo pelo qual declaramos algo belo, que sem pensar essa universalidade ninguém teria ideia de usar essa expressão, mas tudo o que apraz sem conceito seria computado como agradável, com respeito ao qual deixa-se a cada um seguir sua própria cabeça e nenhum presume do outro adesão a seu juízo de gosto, o que, entretanto, sempre ocorre no juízo de gosto sobre a beleza. (KANT, 2005, p. 58) Se a ideia de beleza é uma ideia da razão, o juízo de gosto pode ser discutido porque o sentimento do belo é comum ao ser humano em virtude de sua condição racional. Assim, se somos Teorizações sobre a arte 21 seres racionais, tendemos a pensar, a buscar e a apreciar a beleza, em qualquer época, local ou cultura, e o que muda é tão somente o conceito de beleza. Como parâmetro para se discutir a beleza, Kant propõe o sublime – conceito que expressa o que podemos perceber externamente, como o que ultrapassa a percepção dos nossos sentidos e a compreensão do nosso intelecto: o ilimitado, o infinito, o absoluto. Enquanto a perspectiva do belo se dirige ao objeto considerado em suas limitações, a busca do sublime o ultrapassa, remetendo o olhar ao que o objeto evoca de ilimitado. A contemplação da natureza evoca o sublime na medida em que alguns dos seus elementos, pela sua grandiosidade, suscitam a noção de infinitude, como mostra a Figura 4 a seguir. Figura 4 – Elementos da natureza An dr ew M ay ov sk yy /S hu tt er st oc k Uma obra de arte, por exemplo, também pode evocar esse sentimento, desde que atinja o ponto em que eleve e transporte o espírito para além dos limites da subjetividade. O infinito não se mostra objetivamente ao entendimento humano – uma vez que não pode ser concebido como objeto da experiência – excedendo todo padrão de sensibilidade e não podendo, por isso, ser conhecido. Pode, no entanto, ser pensado como uma ideia da razão, e, desse modo, ser perseguido pelo entendimento, embora ultrapasse todas as barreiras da sensibilidade. Segundo Kant (2005, p. 101), “a natureza é, portanto, sublime naquele entre os seus fenômenos cuja intuição comporta a ideia de sua infinitude. Isto não pode ocorrer senão pela própria inadequação do máximo esforço de nossa faculdade da imaginação na avaliação da grandeza de um objeto”. Uma obra de arte pode derrubar as barreiras tanto do que é subjetivo quanto do que é sensível, suscitando e remetendo ao que é eterno, o que pode ser definido como “a evocação do sublime”. Podemos observar como exemplo a reprodução da obra The Oxbow, do pintor romântico estadunidense Thomas Cole (1801-1848) que, ao retratar o rio Oxbow, uma extensão do rio Connecticut, nos EUA, instiga o expectador a ir além de si mesmo ao seguir o curso do rio em sua extensão pelo vale. História da arte: da pintura rupestre ao Pós-Modernismo22 Figura 5 – The Oxbow (1836), de Thomas Cole. M et ro po lit an M us eu m o f A rt /W . C om m on s Fonte: COLE, T. The Oxbow. 1836. 1 óleo sobre tela, 130,8 x 193 cm. The Metropolitan Museum of Art, Nova Iorque, Estados Unidos. Para você, a arte também pode instigar em nós, que somos finitos, a sensação e a busca do infinito? Ou você pensa, como Platão, que a arte é mera imitação do real? Se assim fosse, o que dizer de determinadas expressões artísticas que evocam reais impossíveis ou irrealidades? Seria a arte aquilo que, ao evocar a beleza, nos leva a sentir sensações agradáveis, tornando nossa existência mais harmoniosa e feliz? Ou é, ainda, o meio pelo qual, por intermédio da catarse, purgaríamos pensamentos e desejos sórdidos nos tornando mais éticos? Para responder a essas questões, é importante levar em consideração não somente os conteúdos estudados neste capítulo, mas também nossas próprias experiências pessoais com diferentes formas de expressão artística, como música, pintura, escultura, cinema, dança e teatro. Considerações finais Neste capítulo, iniciamos nossos estudos sobre arte, abordando desde a origem etimológica desta palavra e passando pelo conceito de Estética tratado tanto na Antiguidade Clássica, por Aristóteles e Platão, quanto na Modernidade, por Kant. Exploramos possíveis sentidos e funções da obra de arte, como algo que leva à contemplação e à imitação da natureza, que instiga o prazer pela suscitação da beleza, que eleva o caráter mediante a purgação e a catarse de desejos e comportamentos reprovados socialmente ou, ainda, algo que pode evocar a sensação de infinitude mediante a elevação do espírito. Além disso, estudamos que, embora os conceitos e as opiniões sobre a beleza variem ao longo do tempo e em cada sociedade e cultura, ela permanece como algo relativo à razão humana. Teorizações sobre a arte 23 Do mesmo modo, embora mudem os artistas, os estilos, as formas e os materiais pelos quais a obra de arte se expressa, a arte como forma de expressão humana permanece e se mantém como um artefato linguístico, plástico ou pictórico, capaz de nos afetar e despertar sentimentos, ideias e sensações, sendo, por isso, fundamental à nossa existência e sobrevivência. Ampliando seusconhecimentos • HADDOCK-LOBO, R. Os filósofos e a arte. Rio de Janeiro: Rocco, 2010. Esta obra apresenta, de maneira clara e competente, artigos de autores brasileiros sobre a relação entre arte e filosofia para alguns dos maiores expoentes do pensamento filosófico, como Platão, Aristóteles, Schopenhauer, Nietzsche, Kant, Foucault, Derrida etc. A obra – que discorre desde a noção de arte como mimese em Platão até o conceito de enceguecimento em Jacques Derrida – mostra como vários filósofos, desde a Antiguidade até o século XX, abordaram a arte como forma de expressão humana. Trata-se de uma leitura importante para entender como a arte tem sido pensada ao longo de mais de dois mil anos, assim, ter argumentos para se construir o próprio conceito sobre as expressões artísticas e sua relação com o que o é humano por excelência. • CAFÉ Filosófico – A importância da Arte na formação do ser humano. 2016. 1 vídeo (40min16s). Publicado pelo canal Vera Borges. Disponível em: https://youtu.be/0- u1Ba0w3B4. Acesso em: 24 out. 2019. Este é o terceiro vídeo da série “Sarau de todas as tribos”, da filósofa Vera Borges, publicado no canal Café Filosófico. Trata-se de um material importante e acessível – fundamental para complementar o conteúdo estudado neste capítulo –, que aborda as origens da expressão artística e o sentido da manifestação estética no cotidiano do ser humano como forma de interiorização e exteriorização de sentimentos, sensações e ideias. Borges discute como o ser humano se comunica com o absoluto, com o infinito, com o conhecimento, com o belo, com o cotidiano, com o transcendente e com tudo que o ultrapassa. Além disso, a filósofa discorre sobre a arte como forma de afetar, de instigar o autoconhecimento e a sensibilidade para o outro. Atividades 1. Considerando as origens dos termos arte e Estética defina, com suas palavras, em que consiste a expressão artística e de que forma tem sido abordada pela Filosofia ao longo dos séculos. 2. A arte é apenas o que imita o real ou pode ser também aquilo que reinventa, transcende e amplia? Justifique sua resposta com base nas diferentes concepções sobre a arte apresentadas neste capítulo. 3. Explique o conceito de juízo de gosto em Kant e como este pode ser empregado para se pensar a arte. História da arte: da pintura rupestre ao Pós-Modernismo24 Referências ABBAGNANO, N. Dicionário de Filosofia. 5 ed. São Paulo: Martins Fontes, 2007. ARISTÓTELES. Arte retórica e arte poética. 17. ed. Rio de Janeiro: Ediouro, 2005. ARISTÓTELES. Poética e tópicos I, II, III e IV. São Paulo: Hunter Books, 2013. FIGURELLI, R. Platão e os primórdios da Estética. In: MARÇAL, J. (org.). Antologia de textos filosóficos. Curitiba: SEED, 2009. Disponível em: http://www.educadores.diaadia.pr.gov.br/arquivos/File/cadernos_ pedagogicos/caderno_filo.pdf. Acesso em: 24 out. 2019. GOMBRICH, E. A História da arte. Rio de Janeiro: LTC, 2013. HADDOCK-LOBO, R. Os filósofos e a arte. Rio de Janeiro: Rocco, 2010. JAPIASSU, H.; MARCONDES, D. Dicionário Básico de Filosofia. 3. ed. Rio de Janeiro: Zahar, 1996. KANT, I. Crítica da faculdade do juízo. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2005. MÍMESIS ou MIMESI. In: E-dicionário de termos literários de Carlos Ceia. 2010. Disponível em: http://edtl. fcsh.unl.pt/encyclopedia/mimesis-mimese/. Acesso em: 6 set. 2019. PLATÃO. A República. Lisboa: Estampa, 1978. PLATÃO. Critão, Meão, Hípias Maior e outros. 2. ed. Belém: EDUFPA, 2007. SANTORO, F. Aristóteles e a arte poética. In: HADDOCK-LOBO, R. Os filósofos e a arte. Rio de Janeiro: Rocco, 2010. 2 Arte rupestre no Ocidente e nas Américas Andréa Carneiro Lobo Neste capítulo, vamos abordar a origem e o sentido da arte para a humanidade, situando‑os na Pré‑História e problematizando as relações entre expressão artística e evocação de forças sobrenaturais relativas ao sagrado. Com base nessa perspectiva, exploraremos aspectos relativos à história da arte dita primitiva (primeira) no Ocidente e algumas de suas manifestações plásticas, notadamente pinturas e esculturas. Na sequência, vamos apresentar elementos relativos à história da arte pré‑histórica brasileira, anterior à presença dos colonizadores europeus e problematizaremos suas motivações, formas de expressão e possíveis significados. 2.1 A Pré-História e a relação entre arte e magia Seria possível definir com exatidão quando o homem procedeu a primeira intervenção artística sobre seu meio? Quando foi que alguém entalhou pela primeira vez uma pedra ou modelou uma argila tendo como intenção criar algo belo e não somente útil? Quais foram os primeiros artistas da humanidade? O que pensavam quando criavam suas obras? Que finalidade a criação artística tinha para eles? Em que medida suas concepções estéticas se aproximam ou se afastam das nossas? Assim como não é possível definir com precisão quando teve início a linguagem falada, também não é possível localizar com exatidão a época e o local em que se deu o aparecimento da arte como expressão humana. Estudiosos da arte, como Gombrich (2013) e Hauser (2010), embasados em evidências arqueológicas, afirmam que as primeiras manifestações artísticas remontam à chamada Pré‑História. Essa é uma designação controversa, porém, tradicionalmente atribuída pelos historiadores ocidentais à fase do desenvolvimento humano, que é caracterizado: • pelos diferentes estágios de evolução biológica da espécie humana, desde os primeiros hominídeos – chamados de australopithecus, há aproximadamente 4 milhões de anos – passando pelas diferentes espécies do gênero Homo (habilis, erectus, neanderthalensis) até o desenvolvimento do Homo sapiens sapiens (por volta de 100.000 anos atrás); História da arte: da pintura rupestre ao Pós-Modernismo26 • pela formação dos primeiros agrupamentos humanos no planeta Terra e pelas diferentes fases da sua produção material (desde a caça e a coleta, passando pela descoberta da agricultura, pecuária, artesanato e metalurgia); • pela inexistência da escrita como forma de registro; • pela inexistência do estado como fator de ordenamento social. A Pré-História é o período mais longo do desenvolvimento humano na Terra, englobando desde 4 milhões até 10 mil anos atrás. Esse longo período é costumeiramente dividido em três fases: • Paleolítico (do grego palaiós = antigo; lithos = pedra; “pedra velha”): período em que a pedra lascada era utilizada para a produção de armas e ferramentas. Além disso, são marcos desta era a descoberta técnica do fogo e da arte da pintura e escultura. O período paleolítico é subdivido em: • Inferior: aproximadamente 4,5 milhões de anos a 100 mil anos atrás (outros autores consideram 2,5 milhões de anos); • Médio: aproximadamente 100 mil a 40 mil anos atrás; • Superior: aproximadamente 40 mil a 10 mil anos atrás (CRUZ; CUNHA, 2008). • Neolítico (do grego neo = novo; lithos = pedra; “pedra nova”): período em que a pedra polida era utilizada para a produção de armas e ferramentas. Nesta fase, o desenvolvimento tecnológico e cultural humano teve início por volta de 10 mil anos e teria se estendido até 6 mil anos atrás. Além da técnica de polimento das rochas, a era neolítica é caracterizada pela descoberta da agricultura e da pecuária, assim como o desenvolvimento da vida sedentária e o surgimento das primeiras comunidades, fato que atribuiu a este período a designação Revolução neolítica. • Idade dos Metais: período em que metais eram utilizados para a fabricação de armas e ferramentas, sobretudo em algumas regiões como a Ásia Menor e o Oriente Médio. Teve início por volta de 5 mil anos atrás com a descoberta do cobre e do estanho. Da mistura desses dois metais foi desenvolvido o bronze (período chamado de calcolítico). Esse período foi marcado também pela descoberta e disseminação de metais mais “moles”, como o ouro, cujo uso se disseminou no Oriente Médio, Ásia Menor e Sul da Europa entre 4 e 2 mil anos atrás. Por volta de 3,5 mil anos, a metalurgia deum metal mais duro e resistente (o ferro) se disseminou em comunidades da Ásia Menor e posteriormente em regiões da África, Europa e do Oriente Médio. A Idade dos Metais foi caracterizada, dentre outros fatores, pelo surgimento da vida urbana (nascem as primeiras cidades), pelo desenvolvimento da escrita, pela expansão do comércio e pelo florescimento das primeiras civilizações. Arte rupestre no Ocidente e nas Américas 27 2.1.1 Pinturas rupestres A Pré‑História foi conceituada por historiadores nórdicos do século XIX para se referir à fase do desenvolvimento humano anterior à escrita. Ela constituiu um longo período da trajetória humana, caracterizado por descobertas importantes, como o fogo, a lascadura e polimento de rochas, a metalurgia, o artesanato, a agricultura e a pecuária etc. Dentre essas descobertas, também está a expressão artística. Grande parte das mais expressivas manifestações artísticas plásticas remontam aos períodos Paleolítico Médio e Superior – aproximadamente 30 e 11 mil anos a.C.1 – e podem ser encontradas no interior de cavernas e abrigos de pedra (tanto em paredes quanto em tetos) situados na Europa, África e América. Essas são chamadas de pinturas rupestres; já as esculturas de silhuetas femininas com formas arredondadas são chamadas de vênus paleolíticas. Segundo Hauser (2010, p. 2), as pinturas rupestres do Período Paleolítico chamam a atenção pelo naturalismo e pela tentativa de fidedignidade ao meio natural da forma como era concebido pelo artista pré‑histórico: “é uma arte que, a partir de uma fidelidade linear à natureza, na qual as formas individuais ainda são moldadas rígida e laboriosamente, avança para uma técnica ágil e brilhante, quase impressionista”. Segundo o autor, o artista paleolítico pintava aquilo que via e tentava fazê‑lo da forma mais exata possível, considerando materiais e técnicas, isto é, os meios dos quais dispunha. Para Gombrich (2013, p. 38), uma das pistas para se compreender o sentido e a origem da arte entre os povos primitivos – assim designados não por serem mais simples que as sociedades atuais, mas sim por estarem mais próximos da humanidade em suas origens do que nós – é o fato de que, para eles, “a construção e a criação de imagens têm funções idênticas”. Mas de fato, o que isso significa? É possível afirmar que as construções deste período tinham tanto a função de abrigar esses povos das intempéries da natureza quanto de protegê‑los das ações sobrenaturais dos deuses. Já as imagens – manifestadas em pinturas – imitavam elementos da natureza ou sua personificação sobrenatural. As imagens tinham o poder de intervir no real, isto é, tinham funções mágicas. De qualquer maneira, tanto as construções quanto as imagens atendiam a critérios utilitários: serviam para atender às necessidades do mundo material/natural ou do mundo sobrenatural2. Os seres humanos do Período Paleolítico ainda não sabiam produzir e reproduzir o seu alimento – isto é, desconheciam a agricultura e a pecuária –, por isso sobreviviam do que caçavam e coletavam. Na luta constante com as forças da natureza, o sucesso ou o fracasso de uma caçada representava a diferença entre sobreviver ou padecer de fome, portanto, o controle dessas forças era fundamental. Infinitamente inferior à adversidade representada pelo mundo natural, os seres 1 A sigla a.C. identifica as datações anteriores à Era Cristã. O calendário ocidental cristão tem como marco inicial o nascimento de Jesus Cristo, fenômeno que, de acordo com astrônomos cristãos medievais e modernos, teria ocorrido há dois mil anos. Os acontecimentos cronologicamente ocorridos antes de Cristo são datados em ordem decrescente, dos mais distantes (e antigos) aos mais próximos (e contemporâneos) ao nascimento de Jesus Cristo. 2 A palavra magia tem origem etimológica no termo grego mageía. Segundo o filósofo Nicola Abbagnano, trata-se de um tipo de conhecimento que pretende dominar as forças naturais por meio dos mesmos meios empregados para o controle dos seres animados. Esse conhecimento parte do pressuposto de que todos os elementos naturais são seres animados, ou seja, têm vida. História da arte: da pintura rupestre ao Pós-Modernismo28 humanos com suas armas de pedra lascada podem ter descoberto na arte uma forma de tentar ter controle sobre a natureza. Segundo Hauser (2010, p. 4), a arte funcionaria como um instrumento de acesso e controle das forças naturais por vias sobrenaturais, isto é, por meio da magia, pois: nessa época de vida puramente prática, tudo gravitava, como é óbvio, em torno da mera subsistência, e nada justifica, portanto, supormos que a arte servia a qualquer outro propósito que não fosse o de constituir um meio para a obtenção de alimentos. Todas as indicações apontam, mais exatamente, para o fato de que se tratava do instrumento de uma técnica mágica e, como tal, tinha uma função inteiramente pragmática que visava alcançar objetivos econômicos diretos. Para Gombrich (2013), a razão de ser da arte paleolítica pode ser pragmática: os artistas procuravam desenhar com precisão e naturalismo plantas, animais (bisões, cavalos, cervos, touros etc.) e figuras humanas (caçadores e coletores). Segundo o autor, de alguma forma, esses povos acreditavam que as imagens tinham o poder de intervir sobre o meio natural, em uma espécie de atribuição de sentido sobrenatural ao que buscavam representar. A explicação mais provável para essas pinturas rupestres é que se trata das mais antigas relíquias da crença universal no poder das imagens; em outras palavras, ao que parece, esses caçadores primitivos imaginavam que, se fizessem uma imagem de suas presas – e talvez se a golpeassem com suas lanças e machados de pedra –, os animais reais também sucumbiriam ao seu poder. (GOMBRICH, 2013, p. 39) Até mesmo o local em que as pinturas eram realizadas – geralmente no interior de cavernas escuras e íngremes aonde se chega por meio de corredores estreitos e de difícil passagem – e o fato de, muitas vezes, serem feitas sobrepostas umas às outras, denota que a função da arte não era meramente “decorativa” e, sim, que havia alguma atribuição espiritual a elas: é uma estranha experiência adentrar essas cavernas, às vezes por corredores baixos e estreitos, mergulhar no negro ventre da montanha e, de repente, ver a lanterna do guia iluminar a imagem de um touro. Uma coisa é clara: ninguém se esgueiraria por tal distância, penetrando as lúgubres profundezas da terra, apenas para decorar local tão inacessível. Ademais, poucas dessas imagens foram claramente distribuídas pelos tetos ou paredes da caverna, com exceção de algumas pinturas na caverna de Lascaux [...]. Pelo contrário, às vezes encontram‑se pintadas ou gravadas umas sobre as outras, sem nenhuma ordem aparente. (GOMBRICH, 2013, p. 39) Observe que a Figura 1, a seguir, trata‑se da reprodução de uma das pinturas rupestres da caverna de Altamira, norte da Espanha. Os arqueólogos estimam que essas pinturas foram feitas durante o Período Paleolítico Superior, entre 35 e 11 mil anos a.C.: Arte rupestre no Ocidente e nas Américas 29 Figura 1 – Detalhe da sequência de pinturas rupestres da caverna de Altamira, norte da Espanha. EQ Ro y/ Sh ut te rs to ck Arqueólogos estimam que essas pinturas tenham sido realizadas entre 35 e 11 mil anos a.C. A localização das galerias em que estão impressas essas imagens – isoladas de influências climáticas externas – ajuda a entender seu excelente estado de conservação até os dias atuais. Já a Figura 2, a seguir, é uma reprodução de pinturas localizadas na caverna de Lauscaux, sudoeste da França. Descobertas por pesquisadores no ano de 1940, a sequência de pinturas rupestres desse local conta com 600 imagens impressionantes, a maioria representando cavalos, mas há também bisões, veados e até alguns felinos. A datação aproximada situa‑se entre 17 e 15 mil anos a.C., ou seja, no final do Período Paleolítico Superior. No detalhe reproduzido a seguir,é possível observar a sobreposição de imagens de animais, provavelmente pintados em períodos e até mesmo por artistas diferentes: Figura 2 – Detalhe das pinturas rupestres registradas em Lascaux, França. É possível ver desenhos de bisões, cavalos e veados, alguns estão sobrepostos. Pr of . s ax x/ W .C om m on s História da arte: da pintura rupestre ao Pós-Modernismo30 Nas pinturas rupestres manifesta‑se, portanto, a crença ou suposição, bem como o desejo de intervenção sobre aquilo que representavam: não parecia existir a distinção entre o fenômeno representado e sua representação. Dessa forma, pintar/desenhar a imagem de um bisão atingido por uma flecha representaria a garantia do sucesso na caçada. Para historiadores da arte, como Gombrich (2013) e Hauser (2010), a imagem tinha a função de “antecipar” o evento registrado. Nas pinturas em que se destacam animais, a figura humana, ainda que mais raramente, também aparece. Os seres humanos são representados em atividades como caça, dança e, em alguns casos – como em pinturas rupestres localizadas no Brasil –, fazendo sexo. São também representadas palmas de mãos e motivos geométricos ou artísticos abstratos, os quais foram nominados pelo arqueólogo, geólogo e etnólogo francês Henri Breuil como macarrões. As pinturas são policromáticas e as tintas, feitas de matéria orgânica, tinham diferentes origens: sangue, saliva, argila de diferentes tonalidades e excrementos de animais que habitavam as cavernas, como morcegos. Pode parecer estranho para nós, em pleno século XXI, o fato de os artistas paleolíticos considerarem a imagem de um determinado elemento ou fenômeno como a realidade propriamente dita. Mas será que essa prática remete apenas àquele período? Figura 3 – A associação entre a imagem e o que ela representa D ho di S ya ile nd ra /S hu tt er st oc k O costume de alguns fãs de beijar pôsteres com a imagem de ídolos (Figura 3) ou o hábito de “conversar” com a imagem de um contato em redes sociais não seriam também modos de considerar imagens como a representação da realidade? 2.1.2 Vênus paleolíticas Outra expressão significativa da arte pré‑histórica são as esculturas representando formas femininas, designadas por estudiosos e especialistas como vênus paleolíticas. A denominação é uma Arte rupestre no Ocidente e nas Américas 31 alusão à entidade que, entre os antigos romanos, era concebida como a deusa Vênus, atribuição latina para Afrodite, deusa grega do amor, da sexualidade e da beleza feminina. Da civilização grega – que floresceu no primeiro milênio antes de Cristo, atingiu seu apogeu no século V a.C. e teve seu declínio no século II a.C. – sobreviveu uma escultura, feita em mármore e com 202 centímetros, que representa a deusa Afrodite. A obra, datada do Período Helenístico (provavelmente século II a.C.), é atribuída ao escultor Alexandre de Antioquia e foi denominada Vênus de Milo (Figura 4), pois foi descoberta na Ilha de Milo, no Mar Egeu, em 1820. A escultura representa a divindade greco‑romana como uma mulher seminua, com a parte de cima do corpo descoberta e dotada de formas consideradas perfeitas para as concepções estéticas da época. Seus braços quebrados causam controvérsias entre os pesquisadores sobre a época em que isso teria acontecido. Outra controvérsia se dá em relação a sua datação: para muitos, a Vênus de Milo pertence ao Período Helenístico, que é justamente a época de declínio e decadência da civilização helênica; em outras palavras, a obra contrasta com o período em questão. Agora que sabemos a origem da designação vênus para esculturas que representam a figura feminina, bem como o ideal de beleza e sexualidade, podemos nos perguntar: qual a relação de uma estátua do século II a.C. com a Pré‑História? Ocorre que, ao lado das chamadas pinturas rupestres, a estatutária é a uma das mais significativas expressões da arte paleolítica. Dentre as esculturas e estátuas mais antigas produzidas pelo ser humano, destacam‑se aquelas que parecem representar a figura feminina, com especial enfoque às partes do corpo vinculadas à sexualidade e à fertilidade. São formas humanas femininas representadas nuas, com coxas, nádegas, ventre e seios protuberantes e avantajados. Já os membros superiores e a cabeça são desproporcionalmente representados em um tamanho menor. Li vi oa nd ro ni co 20 13 /W .C om m on s Fonte: ALEXANDRE de Antioquia. Vênus de Milo. séc. II a.C. 1 escultura em mármore, 202 cm. Museu do Louvre, Paris, França. Exposta no Museu do Louvre, na França, Vênus de Milo há mais de 2.000 anos é considerada por muitos como um ícone do ideal estético da beleza feminina. Figura 4 – Vênus de Milo (séc. II a.C.), de Alexandre de Antioquia. História da arte: da pintura rupestre ao Pós-Modernismo32 Como exemplo, podemos citar a denominada Vênus de Willendorf (Figura 5), descoberta pelo paleontólogo austríaco Hugo Obermaler, em 1908, na região de Willendorf, baixa Áustria (VELÁZQUEZ, 2017). A estatueta, com 10,45 cm de altura e feita em calcário, é datada do Período Paleolítico Superior. Outro exemplo desse tipo de escultura – pertencente ao Período Paleolítico Superior – é a chamada Vênus de Lespugue (Figura 6). Datada aproximadamente de 26 e 24 mil anos atrás, foi descoberta em 1922 em uma caverna chamada Rideaux de Lespugue (na França, região dos Pirineus) pelo arqueólogo e naturalista René de Saint‑Périer, que a danificou acidentalmente durante a escavação, sendo depois reconstituída. Talhada em marfim de mamute (animal pré‑histórico extinto, parecido com os elefantes atuais), a estatueta tem 14,7 cm de altura. Dentre todas as Vênus paleolíticas descobertas, a de Lespugue é a que tem as características sexuais (seios, vulva, nádegas) mais acentuadas e proeminentes3. Seriam as vênus paleolíticas representações do ideal de beleza feminina na Pré‑História? Segundo estudiosos, esta hipótese parece pouco provável. Ainda que as formas das estátuas pudessem ser também associadas à beleza, sua função estética estava submetida a uma possível função religiosa. Segundo Sheldon Cheney (1995, p. 34), essas “estatuetas podem ter sido figuras votivas ligadas aos ritos destinados a manter e incrementar a fertilidade das mulheres”. A hipótese explicaria a protuberância das partes do corpo feminino associadas à sexualidade e à fertilidade. Há, entretanto, estudiosos que defendem outra hipótese: as estatuetas manifestariam, por intermédio de figuras votivas femininas, a sacralização da fertilidade da própria natureza, associada ao feminino. Dentre esses, destaca‑se os estudos da filósofa francesa Elisabeth Badinter em sua obra intitulada Um é o outro4 (1986). 3 Para conhecer mais sobre as vênus paleolíticas, acesse: ROSSETTI, V. As deusas Vênus do Paleolítico. NetNature, 7 dez. 2016. Disponível em: https://netnature.wordpress.com/2016/12/07/as-deusas-venus-do-paleolitico. Acesso em: 28 set. 2019. 4 A obra em questão é a primeira parte de uma coletânea composta dos títulos Um e o outro, Um sem ou outro e Um é o outro. Nela, a autora discute a sexualidade humana através dos tempos. M at th ia sK ab el /W .C om m on s Figura 5 – Vênus de Willendorf Fonte: VÊNUS de Willendorf. 24000- -22000 a.C. 1 escultura de calcário oolítico, 10,45 cm. Museu de História Natural, Viena, Áustria. Figura 6 – Vênus de Lespugue Fonte: VÊNUS de Lespugue. 26000- -24000 a.C. 1 escultura de marfim de mamute, 14,7 cm. Museu do Homem, Paris, França. Jo sé -M an ue l B en ito /W .C om m on s Arte rupestre no Ocidente e nas Américas 33 No Período Neolítico – em que a maioria dos seres humanos ainda não conhecia o uso da metalurgia e passava de um estágio de caçador‑coletor para agricultor‑pastor –, os agrupamentos humanos viviam uma relação de total dependência da natureza para garantia da sobrevivência. É possível que tenha existido uma divinização feminina da natureza e essas manifestações artísticas sejamexpressões de uma religiosidade ancestral em que se cultuavam deusas – e não deuses. Até o início da idade do bronze e o surgimento das primeiras civilizações, estatuetas representando essas imagens femininas do sagrado predominaram entre grupos humanos que iam da Europa até o Oriente Médio, vindo a ser paulatinamente substituídas por esculturas representando deuses masculinos. Isso nos leva a pensar que no princípio podem ter sido as deusas, e não os deuses, a primeira forma de representação do sagrado entre os seres humanos. De qualquer modo, em relação à forma como o homem pré‑histórico concebia o real e como essa concepção se manifestava em sua arte, nós podemos tecer apenas especulações, afinal, são tempos anteriores à escrita. 2.2 Expressões da arte pré-histórica no Brasil Como vimos anteriormente, o termo Pré-História foi criado para designar uma forma de sobrevivência, característica dos primeiros grupos humanos. Seus períodos são divisões criadas para caracterizar aspectos da vida material desses grupos, contudo, esses estágios não aconteceram da mesma forma e na mesma época em todas as regiões do globo. As datações mencionadas no início deste capítulo referem‑se a estágios de desenvolvimento técnico de seres humanos que viveram em regiões da Europa, África e Ásia há milhares e até mesmo milhões de anos. Na América, esses estágios ocorreram em períodos diferentes, até porque, como veremos a seguir, o povoamento humano das Américas é posterior à ocupação humana na África (mais antiga), na Ásia e na Europa. As expressões artístico‑culturais – isto é, representações de cenas de caça, de dança e de acasalamento humano por meio de pinturas rupestres, estatuetas, vasos e objetos decorativos – ocorreram em diversos lugares e em épocas diferentes, todavia, não deixam de apresentar entre si algumas características comuns. Vamos analisar mais detalhadamente, a partir de agora, algumas das manifestações artísticas relativas à Pré‑História brasileira. 2.2.1. A origem do homem e da mulher das Américas No Brasil, assim como nas Américas, os primórdios do povoamento humano se deram com as espécies Homo sapiens sapiens durante o Pleistoceno, período geológico que durou de 2 milhões até 10 mil anos, e que antecedeu o período geológico atual, chamado Holoceno. A origem do Homo sapiens sapiens é africana, foi na África que nossa espécie surgiu, por volta de 100 mil anos atrás e foi de lá que ela partiu para povoar praticamente todo o globo. Entretanto, os arqueólogos ainda se perguntam: quando e como os nossos antepassados chegaram ao continente americano? História da arte: da pintura rupestre ao Pós-Modernismo34 Até a década 1970 a tese mais aceita entre os estudiosos era a de que as primeiras populações humanas da América descendiam de grupos vindos do Sudeste Asiático. Esses grupos teriam migrado para a América através da Beríngia – um estreito de mar entre a Sibéria Oriental (Ásia) e o Alasca (América do Norte) – que, em função da oscilação climática característica da última era glacial, teria ficado emersa durante aproximadamente 18 mil anos, fato que possibilitou a travessia por grupos nômades sobre ela. A travessia (Figura 7) teria ocorrido há aproximadamente 12 mil anos. Figura 7 – Hipótese da travessia humana da Beríngia e o povoamento humano da América Ro bl es pe pe /W .C om m on s Placa de gelo Laurentina; Placa de gelo da Cordilheira; corredor livre de gelo (tradução livre). Essa tese se amparava, sobretudo, em descobertas realizadas nos sítios arqueológicos de Clóvis (Figura 8) e Folsom, localizados na América do Norte, datados aproximadamente entre 13.500 e 8 mil anos atrás. Figura 8 – Instrumentos líticos (cultura Clóvis), Novo México, Estados Unidos. U SD A- ph ot o/ W ik im ed ia C om m on s Arte rupestre no Ocidente e nas Américas 35 Porém, nas últimas décadas do século XX, importantes descobertas derrubaram essa teoria. Fósseis humanos, descobertos no sítio arqueológico de Lagoa Santa, em Minas Gerais, foram datados em aproximadamente 12 mil anos atrás. O caso mais conhecido é o do esqueleto de uma mulher, a quem os arqueólogos batizaram de Luzia. A conformação craniana de Luzia, tal qual se pode perceber na reconstituição5 da Figura 9, ao lado, é diferente do aspecto anatômico das populações indígenas atuais – o qual lembra o aspecto dos grupos de origem mongol, na Ásia – assemelhando‑se às populações da Oceania (Austrália, principalmente) e da África. Na América do Norte, pesquisadores constataram, nos últimos anos, que a presença humana mais antiga – encontrada em sítios como o de Cactus Hill (Estados Unidos) – pode chegar a até 25 mil anos. Além disso, pesquisas arqueológicas realizadas nos últimos 30 anos detectaram vestígios de populações humanas na América do Sul – Minas Gerais, Mato Grosso, parte do Nordeste e da Amazônia (no Brasil), e Monte Verde (no Chile) – cuja datação chega a 13 mil anos. Ainda sobre a origem do homem e da mulher das Américas, desde a década de 1970, um grupo de estudiosos, comandados pela arqueóloga Niède Guidon, tem defendido que certos vestígios de fogueiras e de pedras lascadas, encontrados no sítio do abrigo de Pedra Furada, no Parque Nacional da Serra da Capivara, município de São Raimundo Nonato (Piauí), chegam à datações que oscilam entre 20 e 40 mil anos. Embora as descobertas arqueológicas mais recentes ainda apresentem com prudência o resultado de suas pesquisas, é praticamente consenso entre os arqueólogos que a presença do Homo sapiens sapiens, em nosso continente, remonta há pelo menos 13 mil anos. Essa tese, no entanto, vem sendo discutida em razão da existência de evidências arqueológicas anteriores a 15 mil anos, algo que não pode ser explicado pela teoria da Beríngia. As manifestações artísticas mais antigas das Américas se localizam – segundo estudiosos que compõem o grupo coordenado por Guidon – na região Nordeste do Brasil, no estado do Piauí. Elas fazem parte da chamada Tradição Nordeste, forma como foram batizados os grupos humanos autores de pinturas rupestres cuja datação pode chegar a mais de 13 mil anos. Além desta, a chamada Tradição Amazônia seria uma das mais antigas manifestações da arte estatuária brasileira, conforme veremos a seguir. 5 Essa reconstituição estava exposta no acervo do Museu Nacional do Rio de Janeiro, que, infelizmente, teve a maior parte do seu acervo destruída por um incêndio em 2018. O fóssil de Luzia, no entanto, “sobreviveu” ao incêndio e sua face poderá ser novamente reconstituída por artistas e cientistas especializados. Figura 9 – Reconstituição do provável rosto de Luzia Fonte: RECONSTITUIÇÃO de indivíduo humano de sexo feminino (Luzia) com base nos remanescentes do crânio achado em Lapa Vermelha IV, Lagoa Santa, Minas Gerais. Acervo de Antropologia Biológica do Museu Nacional/UFRJ, Rio de Janeiro, Brasil. D or ni ck e/ W .C om m on s História da arte: da pintura rupestre ao Pós-Modernismo36 2.3.1.1 Tradição Nordeste e Tradição Amazônia A Tradição Nordeste é uma cultura pré‑histórica brasileira, a qual é estudada há quatro décadas. Iniciada pela pesquisadora francesa Niède Guidon, a pesquisa traz fortes indícios empíricos de que as manifestações artísticas mais antigas das Américas podem estar no Brasil. O principal sítio arqueológico encontra‑se no estado do Piauí, no município de São Raimundo Nonato, chamado Serra da Capivara. É um sítio rico em pinturas rupestres, sendo que as mais antigas podem remontar há mais de 9 mil anos. Elas normalmente se caracterizam pela representação de figuras humanas, isoladas ou em grupos, às vezes usando cocares. Pintadas com um único pigmento, as representações contrastam com a cor da rocha sobre a qual estão (Figura 10). Acredita‑se que as pinturas mais antigas estejam relacionadas à afirmação dos grupos em determinados territórios ou a crenças religiosas. Os abrigos sob rocha eram usados para sepultamentos e pinturas rupestres: vestígiosde ocupação indicam que a maioria das populações pertencentes a essa tradição habitavam a céu aberto. Figura 10 – Pintura rupestre no sítio arqueológico da Serra da Capivara, Piauí. Py 4n f/ W .C om m on s Já a Tradição Amazônia refere‑se aos sítios arqueológicos situados no Norte do Brasil (principalmente no Pará), na região da Pedra Pintada do Monte Alegre. Os vestígios nessa região apontam que, pelo menos desde 11 mil anos atrás, já existiam, naquela região, bandos de caçadores‑coletores. Esses indícios são ainda mais acentuados a partir de 3 mil anos. Esses bandos utilizavam diferentes artefatos líticos, elaborados com técnicas de lascamento e polimento da pedra, dos quais se destacam as pontas de dardos e as lâminas de machado. Eles se alimentavam de vegetais, castanhas e pequenos animais. É possível que cultivassem a mandioca, desde pelo menos 3 mil anos. Arte rupestre no Ocidente e nas Américas 37 A cerâmica parece ter existido na região desde 5 mil anos, podendo os exemplares mais antigos chegar a datas ainda mais remotas (7 mil anos atrás). A produção de artefatos de cerâmica parece ter sido rica e variada, sobretudo a partir do século IV da nossa era. Dentre as tradições ceramistas, duas merecem destaque: a subtradição marajoara, oriunda da Ilha de Marajó, e a tradição Santarém, da região do baixo Rio Tapajós. É característica dessas tradições a decoração com figuras antropomorfas (com características humanas) na confecção de vasilhames (Figura 11). Figura 11 – Cerâmica produzida por grupos humanos que habitavam a região de Santarém, no Pará. Ap ox ym en os /W .C om m on s Fonte: VASILHAME decorado com motivos antropomorfos e zoomorfos. 500 d.C. Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade de São Paulo, São Paulo, Brasil. Essas cerâmicas provavelmente eram utilizadas como urnas funerárias, recipientes para substâncias usadas em cerimônias rituais e para o armazenamento e transporte de alimentos sólidos e líquidos. Considerações finais Abordamos, neste capítulo, conteúdos relativos às primeiras manifestações artísticas humanas, ocorridas na Pré‑História, tanto geral quanto brasileira. Além disso, elencamos as periodizações tradicionais referentes a esse período, destacamos aspectos relativos à arte rupestre e à estatuária do Período Paleolítico Superior e de algumas tradições da Pré‑História brasileira, principalmente do Nordeste e da Amazônia. Apresentamos, também, algumas das principais teorias sobre a origem do homem e da mulher das Américas, bem como as hipóteses sobre o sentido da arte entre os seres humanos pré‑históricos, que tem provável significação mágico‑religiosa. Ampliando seus conhecimentos • FUNARI, P. P.; NOELLI, F. S. Pré-História do Brasil: as origens do homem brasileiro; o Brasil antes de Cabral; descobertas arqueológicas recentes. São Paulo: Contexto, 2002. (Coleção Repensando a História). História da arte: da pintura rupestre ao Pós-Modernismo38 Essa obra – pertencente à coleção “Repensando a História” – aborda de maneira clara e didática, porém com rigor documental, desde as ondas migratórias que povoaram as Américas até aspectos relativos à vida dos primeiros americanos, com ênfase no território brasileiro e da América do Sul. Os autores exploram as principais formas de expressão artística da Pré‑História brasileira e os modos que essas representações estéticas estão sendo discutidas por pesquisadores. • JANSEN, R. A arqueóloga que batalha para preservar os vestígios dos primeiros homens das Américas. BBC Brasil, Rio de Janeiro, 12 mar. 2016. Disponível em: https://www.bbc. com/portuguese/noticias/2016/03/160312_perfil_niede_guidon_rj_ab. Acesso em: 28 out. 2019. Nessa reportagem – disponível no portal da BBC Brasil – você poderá conhecer um pouco mais sobre a vida e o trabalho da arqueóloga franco‑brasileira Niède Guidon, que há quatro décadas se dedica ao estudo da Pré‑História brasileira. Atividades 1. É possível afirmar que a arte pré‑histórica tinha uma finalidade estritamente estética? Justifique. 2. Aponte algumas das principais características da pintura rupestre pré‑histórica e da estatuária paleolítica. 3. Em relação à arte pré‑histórica brasileira, quais semelhanças e diferenças podem ser elencadas em relação às manifestações artísticas da Pré‑História geral? Referências ABBAGNANO, N. Dicionário de Filosofia. Trad. de Alfredo Bosi. 5 ed. São Paulo: Martins Fontes, 2007. BADINTER, E. Um é o outro: relações entre homens e mulheres. Trad. de Carlota Gomes. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986. CRUZ, C. B.; CUNHA, E. Os vestígios osteológicos humanos do Paleolítico Português: revisão bibliográfica e análise dos dados. Antropologia Portuguesa, Coimbra, n. 24‑25, p. 75‑93, 2007‑2008. Disponível em: http:// www.uc.pt/en/cia/publica/AP24‑25/AP_artigos/AP24.25.05_Barroso_Cruz.pdf. Acesso em: 28 out. 2019. CHENEY, S. História da arte. Trad. de Sérgio Millet. São Paulo: Rideel, 1995. GOMBRICH, E. A História da arte. Trad. de Cristiana de Assis Serra. Rio de Janeiro: LTC, 2013. HAUSER, A. História social da arte e da literatura. Trad. de Álvaro Cabral. São Paulo: Martins Fontes, 1998. VELÁZQUEZ, C. Confissões da Madonna: a história da Vênus feita arte em Willendorf. In: SIMPÓSIO NACIONAL DE HISTÓRIA, 24 jul. 2017, Brasília, Anais [...]. Brasília: Anpuh, 2017. Disponível em: https:// www.snh2017.anpuh.org/resources/anais/54/1501619461_ARQUIVO_AVenusdeWillendorf.pdf. Acesso em: 28 out. 2019. 3 A arte entre as primeiras civilizações Andréa Carneiro Lobo Neste capítulo, vamos nos lançar aos primórdios da civilização e conhecer algumas das primeiras sociedades complexas e a forma como concebiam a arte. Para tanto, iniciamos abordando conteúdos relativos à arte no Período Neolítico e as diferenças com as expressões artísticas do período anterior: o Paleolítico. Na sequência, discutimos o conceito de civilização, buscando identificar historicamente aspectos sociais e materiais que tornaram possível o desenvolvimento dessas sociedades, tendo início esse processo na região denominada Crescente Fértil, situada entre o norte da África e o Oriente Médio. Vamos perceber que nessas primeiras civilizações – sobretudo no Egito – as expressões artísticas estiveram intrinsecamente relacionadas aos aspectos religiosos. Depois, vamos explorar algumas das manifestações artísticas das primeiras civilizações ocidentais – Grécia e Roma –, buscando perceber semelhanças e diferenças entre elas, bem como as especificidades do sentido da expressão artística e da concepção sobre o belo no Ocidente em relação às civilizações do Crescente Fértil. 3.1 A arte neolítica: o caminho para a abstração No capítulo anterior, vimos que as primeiras manifestações artísticas entre os seres humanos remontam ao período da Pré-História conhecido como Paleolítico, especialmente o Paleolítico Médio e o Superior. Vimos também que essas manifestações eram, sobretudo, expressas por meio de pinturas rupestres e estatuetas com formas humanas femininas. Segundo Hauser (2010), no Período Paleolítico, a arte tinha uma estreita ligação com a magia e esta manifestava a concepção de mundo monista do artista/homem daqueles tempos. O mundo natural e o sobrenatural eram parte de um mesmo e contínuo todo, coerente e sequencial, de modo que a intervenção em um dos aspectos desse mundo o afetaria como um todo. A percepção monista de mundo foi, aos poucos, cedendo lugar à visão dualista, que teria origem no Neolítico, afirmaria-se durante a Idade dos Metais e constituiria os primórdios das religiões (HAUSER, 2010). Antes, porém, de iniciarmos nossa exploração sobre as manifestações artísticas no Período Neolítico, é importante conhecer um pouco mais sobre ele. 3.1.1 A Revolução Neolítica A expressão revolução neolítica é usada para caracterizar as grandes mudanças pelas quais passaram os grupos humanos que desenvolveram a capacidade de multiplicar o alimento em diferentes partes do mundo. Esse movimento teriaocorrido a partir da descoberta da agricultura História da arte: da pintura rupestre ao Pós-Modernismo40 e da pecuária – entre 11.000 e 8.000 anos a.C. – em diferentes pontos da Terra, iniciando pela chamada região do Crescente Fértil (Figura 1), situada entre o norte da África e o Oriente Médio. A região do Crescente Fértil foi assim denominada em razão de sua fertilidade para agricultura hidráulica – aquela que se dá na dependência do solo fertilizado pela cheia periódica de grandes rios (no caso, Nilo, Tigre e Eufrates) – em meio às regiões desérticas. Além disso, o desenho formado pela área fertilizada se assemelha ao formato de uma lua crescente, o que também justifica o nome. Figura 1 – Região do Crescente Fértil na Antiguidade Ja vi P9 6/ W . C om m on s Baixo Egito Sinai Deserto Núbio Quilômetros NORTE Deserto Sírio 0 250 500 1.000 Mesopotâmia SÍRIA ASSÍRIA MÉDIA Mar Mediterrâneo PALESTINA ANATÓLIA Mar Cáspio Mar Negro M ar Verm elho Oceano Índico Golfo Pérsico ELAM Alto Egito Tigre Ni lo Eufrates O processo de descoberta da agricultura e da domesticação de animais teria ocorrido após o fim da última glaciação – fenômeno que se deu entre 100 mil e 12 mil anos atrás –, em que, após um longo período no qual grande parte da superfície terrestre ficou coberta de gelo, o clima voltou a ser quente e úmido. Animais de grande porte, caçados no Paleolítico, tornaram-se extintos. Bosques e gramíneas começaram a se expandir, enquanto grandes desertos se formavam na África e no Oriente Médio. A arte entre as primeiras civilizações 41 Nessa mesma época, grupos humanos passaram a se fixar no vale de grandes rios, como o Nilo, na África, e o Tigre e Eufrates, no Oriente Médio, em virtude da fertilidade das cheias periódicas, as quais tornavam possível a presença de cereais selvagens1 (Figura 2), atraindo também animais de pequeno porte como cabras. A observação do ciclo de germinação e crescimento desses vegetais, bem como a proximidade com esses animais, pode estar na origem do processo de domesticação de plantas e animais por alguns grupos humanos. Se antes eram os humanos que iam em busca dos animais, com a descoberta da agricultura, os animais herbívoros passaram a ser atraídos até os agrupamentos humanos, os quais se tornam fixos. Figura 2 – Plantação de trigo no norte de Israel, na atualidade. em ily z2 1/ Sh ut te rs to ck A descoberta da agricultura teve início com a observação do ciclo de germinação e crescimento de cereais selvagens em regiões fertilizadas pelas cheias de grandes rios, como Nilo, Tigre, Eufrates e Jordão. O trigo e a cevada silvestre estão entre os primeiros cereais a serem cultivados pelos seres humanos por volta de 10.000 anos a.C. nas regiões que correspondem atualmente à Síria e a Israel, no Oriente Médio. As ferramentas, agora não mais exclusivamente destinadas à caça, mas também e sobretudo ao cultivo de alimentos, tornam-se mais afiadas e diversificadas, feitas de pedra polida (Figura 3). Esse movimento deu origem à expressão pedra nova, ou Neolítico, pelos estudiosos. 1 Cereais, como o trigo e a cevada, que cresciam espontaneamente, sem terem sido cultivados. História da arte: da pintura rupestre ao Pós-Modernismo42 Figura 3 – Artefatos do Período Neolítico H oh um /W . C om m on s Pode-se reconhecer nessa figura cabeças de machado, formões, ferramentas de polimento e até braceletes. Nesse tipo de técnica, as ferramentas – salvo raras e especiais exceções – não eram lascadas, mas somente polidas. O polimento de pedras foi uma das características principais dessa fase. A necessidade de armazenar as sementes para a próxima semeadura, e mesmo de guardar os cereais para o consumo, pode ser a explicação para o desenvolvimento da cerâmica – primeiramente crua e depois cozida – e dos primeiros potes e utensílios para armazenamento interno de grãos. A domesticação de plantas e animais, o desenvolvimento da pedra polida e da cerâmica (em alguns lugares, como o Japão, por volta do nono milênio a.C., e em outros por volta do segundo milênio a.C.), bem como a sedentarização (Figura 4), isto é, fixação dos agrupamentos humanos em um mesmo local por um período longo de tempo, são alguns dos fatores que explicam o uso da expressão revolução neolítica. Esse período é situado entre 11 e 9 mil anos a.C. e o quinto milênio a.C., quando é descoberto o bronze e tem início a chamada Idade dos Metais, que se completaria com a fundição do ferro por volta do segundo milênio a.C. A Idade dos Metais coincide também com o desenvolvimento das primeiras civilizações da Terra, sendo, ao mesmo tempo, em alguns lugares, a última fase da Pré-História e, em outros, a primeira fase da História. A arte entre as primeiras civilizações 43 Figura 4 – Foto das ruínas do assentamento neolítico de Skara Brae, situado na Baía de Skaill, a maior ilha da Escócia. D r. Jo hn F . B ur ka /W . C om m on s Originalmente, esse assentamento continha oito casas agrupadas, feitas de pedra entre 3180 a.C. e 2500 a.C. Essa espécie de “vila” não marca apenas o fortalecimento do processo de sedentarização na Europa, mas também as origens da sociedade organizada na forma de cidades. 3.1.2 A arte no Período Neolítico Segundo Gombrich (2013), as pinturas rupestres aumentaram em quantidade e qualidade no Período Neolítico, nas regiões em que foram primeiramente localizadas2. Uma das prováveis razões para isso seria a mudança nos hábitos sociais e alimentares dos grupos humanos. As estatuetas com formas femininas, ao contrário, passaram a aparecer em outras regiões da Europa e Ásia durante o Período Neolítico e diminuíram paulatinamente na Idade dos Metais. Nas manifestações artísticas do Neolítico, a visão dualista de mundo – característica desse período – se coaduna ao animismo, isto é, à tendência do pensamento primitivo de considerar que as coisas todas são animadas, têm vida. Por isso, os movimentos da natureza e dos cosmos são também influenciados por forças anímicas ou princípios animados (ABBAGNANO, 2007). A magia foi uma espécie de pré-animismo característica do Período Paleolítico, já o animismo – que se desenvolve ao longo do Período Neolítico – pode ser considerado um dos princípios da religião como forma de explicação do mundo. 2 Essas produções não foram mais encontradas em períodos posteriores. História da arte: da pintura rupestre ao Pós-Modernismo44 A arte mágica do Paleolítico era sensualista, no sentido de que os homens buscavam manifestar a interdependência entre o desenho e o mundo sensível como partes de uma mesma realidade e que se afetam mutuamente. Por essa razão, havia sua preocupação com o realismo naturalista. Em contrapartida, a arte animista do Neolítico era espiritualista e tendia para a abstração. Dominada por uma concepção dualista de mundo, manifesta também nos rituais funerários que começam a se difundir entre as sociedades neolíticas, a Arte Neolítica manifesta uma preocupação com o “outro mundo”, opondo-se ao mundo concreto e sensível como uma arte estilizada e idealizada, que busca manifestar uma espécie de “supermundo”. Talvez essa seja a razão de encontrarmos vestígios nas inscrições, texturas e construções de complexos mortuários gigantes dispostos sob a forma de monumentos megalíticos3 (Figura 5). Figura 5 – Círculo de pedras verticais de Stonehenge, monumento localizado na planície de Salisbury, sudoeste da Inglaterra. Sv ne ya rd /S hu tt er st oc k Erguido ao longo de centenas de anos, esse monumento teve sua construção finalizada por volta de 2.000 anos a.C. As grandes pedras que compõem o círculo podem ter sido trazidas de regiões situadas a 400 km de distância, em uma época na qual essa região não conhecia a roda. Alguns blocos chegam a pesar 50 toneladas e ter até 5 metros de altura. Arqueólogos acreditam que se tratava de um lugar de culto religioso. A forma abstrata, estilizada e quase não pictórica dessa arte manifesta, de algumaforma, também a tendência do pensamento humano para a abstração, afastando-o do mundo natural. Hauser (2010, p. 13) destaca que isso constitui o começo do processo de intelectualização e racionalização em arte: a substituição das representações e formas concretas por sinais e símbolos, abstrações e abreviações, tipos gerais e signos convencionais; a supressão de fenômenos e experiências diretamente vivenciadas por pensamento e interpretação, acentuação e exagero, distorção e desnaturalização. A obra de arte deixa de ser puramente a representação de um objeto material para tornar-se a de uma ideia, não meramente uma reminiscência, mas também uma visão; por 3 A palavra megalítico significa pedra grande. Um monumento megalítico é aquele construído com pedras grandes ao ar livre. A arte entre as primeiras civilizações 45 outras palavras, os elementos não sensoriais e conceptuais da imaginação do artista substituem os elementos sensíveis e irracionais. E desse modo a pintura é gradualmente convertida numa linguagem simbólica pictográfica, a profusão pictórica é reduzida a uma espécie de taquigrafia não pictórica ou quase não pictórica. A Figura 6, a seguir, é uma réplica de parte de um monumento megalítico conhecido como Passagem de Gavrinis, situado na pequena ilha de Gavrinis, região da Bretanha, França. Construído provavelmente por volta de 4.500 a 3.500 anos a.C., o monumento é um complexo funerário sob a forma de túmulo-passagem contendo 50 placas cuidadosamente colocadas verticalmente uma ao lado da outra, sendo a maior a laje, que serve como teto e pesa em torno de 17 toneladas. Dessas placas, 23 apresentam símbolos esculpidos com motivos abstratos, como linhas em ziguezague, linhas imitando cobras e semicírculos. Figura 6 – A Passagem de Gavrinis At hi na io s/ W . C om m on s A estruturação e institucionalização da religiosidade é apenas um dos pilares que constituíram a base de um tipo mais complexo de sociedade humana: a civilização. Nesse modo de organização social, que remonta ao fim da Pré-História e institui, com a escrita, a origem da história, a arte era vinculada ao religioso e à visão dualista de mundo manifesta nas primeiras religiões. Esses aspectos encontrariam na arte sua forma mais expressiva de manifestação, como veremos a seguir. 3.2 O nascimento da civilização Empregado por antropólogos, estudiosos e historiadores desde a segunda metade do século XIX, o termo civilização remete ao francês civilization, escrito da mesma forma na língua inglesa. Deriva do latim civilis, palavra relativa a civis, ou a viver na cidade (civitas). Temos, assim, que civil e civilizado, em suas origens, é o indivíduo que vive na cidade. Isso nos leva a crer que um dos aspectos que diferenciam uma sociedade civilizada de uma não civilizada é a presença da cidade, do meio urbano como espaço de convivência e de trocas, tanto de bens quanto de ideias. História da arte: da pintura rupestre ao Pós-Modernismo46 O desenvolvimento histórico das primeiras cidades se vincula à geração de excedentes (sobras) oriundos da agricultura e à possibilidade de um agrupamento social trocar parte desses excedentes com outra sociedade por outros produtos – ferramentas agrícolas, utensílios de cerâmica, adornos corporais, tecidos e produtos de origem primária. Nos locais em que eram realizadas essas trocas, desenvolveram-se os primeiros centros urbanos da Terra. O sítio de Çatal Hüyük é considerado pré-urbano em razão de vestígios de atividades agrícolas, artesanais e pastoris de subsistência, aliados à aquisição de bens mediante trocas com outros povos mais distantes. A evidência dessas trocas se dá em vestígios de artefatos, armas e joias, cujos materiais não existiam na região. Segundo especulações de arqueólogos e historiadores, a maioria dos moradores de Çatal Hüyük vivia em casas pequenas (simples e quadradas), que tinham em média 25 metros quadrados. Nelas havia espécies de buracos ou portas baixas que davam acesso a um tipo de depósito, comprido e estreito, onde ficavam os alimentos. Entre as casas havia espaços livres, com restos de casas demolidas, onde os moradores depositavam o lixo. Em algumas partes do povoado, os terraços das casas eram ascendentes e continham escadas, pelas quais se poderia passar de uma para outra até chegar ao centro da cidade, no ponto mais alto. Em outras partes havia pátios externos para a realização de trocas, atividades artesanais etc.; havia também muitos santuários. Os habitantes consumiam carne de animais domesticados, entre eles o gado bovino, mas apreciavam também a carne de animais selvagens (como cervos e javalis) e de ovelhas, das quais, além da carne, aproveitavam a lã. Há também evidências de que tenham domesticado cães. Cultivavam cereais, entre eles espécies antigas de trigo e cevada. Sepultavam os mortos e, em alguns casos, costumavam colocar, junto às sepulturas, objetos de uso pessoal do falecido – armas para os homens e joias para as mulheres. Fabricavam utensílios de cerâmica, madeira, cobre frio e fundido e de obsidiana (um tipo de mineral), oriundos de regiões situadas a mais de 100 quilômetros do povoado. Em Çatal Hüyük, foram encontradas pequenas estatuetas de pedra/argila de figuras femininas obesas, algumas dando à luz, o que pode representar deusas da fertilidade. Há também pequenas figuras de animais selvagens – como leopardos e javalis – representados com punhaladas. É possível que tivessem um caráter simbólico em rituais associados à caça. A idade média entre os homens poderia chegar a 34 anos e entre as mulheres a 30 anos. A altura podia chegar a 1,70 m entre os homens e 1,58 entre as mulheres. Entre as doenças que mais assolavam essa comunidade, os arqueólogos identificaram artrite e anemia. A arte entre as primeiras civilizações 47 Agrupamentos protourbanos surgiram ainda no Período Neolítico, por volta de 7 mil anos a.C., mas foi somente na chamada Idade dos Metais – entre o quinto e o quarto milênio antes de Cristo – que algumas cidades se desenvolveram como centros de poder de uma complexa organização social, a civilização. Essa forma de estruturação evoluiu pautada em alguns elementos específicos, como vemos a seguir. • Centralização do poder político: Estado. • Diferenciação social relacionada a critérios como nascimento e renda (sociedade dividida em classes, estamentos ou castas). • Institucionalização do sagrado, que passa a ser organizado em ritos, preceitos e crenças escritas em livros específicos cujos conteúdo e interpretação se tornam propriedade de sacerdotes na intermediação entre natural (humano) e sobrenatural (divino). • Estruturação militar para defesa interna e externa. • Organização de um aparato administrativo-burocrático e jurídico-legal para administração de finanças (impostos e obras públicas), leis e punições. Essas tarefas, fundamentais para a coesão e ordem interna, passam a ser exercidas por membros de uma casta de letrados (escribas) a serviço do Estado. O surgimento das primeiras civilizações da Terra coincide, portanto, com o fim das chamadas sociedades neolíticas – mais simples, mais igualitárias e agrícolas – e o surgimento de sociedades mais complexas, urbanas, comerciais, belicosas e desiguais. Essa desigualdade se manifestava, por exemplo, no aspecto e na arte sepulcral: os túmulos passam a ser diferentes para pessoas ricas e pessoas pobres. Manifestava-se também nos templos, nos palácios e no interior das habitações. É nesses agrupamentos mais complexos, diferenciados social e politicamente, que se observa o desenvolvimento dos primeiros códigos escritos do mundo e, por isso, o período em que surgiram – quarto milênio a.C. – foi escolhido pela historiografia tradicional como marco de transição e de passagem da Pré-História para a História. Entre essas civilizações destacam-se como as primeiras aquelas surgidas na região do Crescente Fértil, notadamente Mesopotâmia e Egito, nas quais as expressõesartísticas, por um lado, manifestam uma compreensão e uma justificativa sobrenatural, religiosa dos fenômenos sociais e naturais, e, por outro, expressam e afirmam o Estado como centro de poder. A arte – que no Período Paleolítico expressava a visão monista do homem em relação ao mundo natural, manifesta no Período Neolítico com uma visão dualista de mundo (ainda comunitário) –, a partir da Idade dos Metais, e com o desenvolvimento das primeiras civilizações, passa a ser uma forma de expressão e reafirmação do poder político e religioso das castas mais abastadas. Veremos essa questão a seguir, ao abordarmos aspectos referentes à arte na civilização egípcia antiga. História da arte: da pintura rupestre ao Pós-Modernismo48 3.3 Aspectos da arte egípcia antiga Observe atentamente o mapa presente no início deste capítulo. Nele está representada a região do Crescente Fértil, berço das primeiras civilizações da Terra. Note que elas se desenvolveram próximo a grandes rios, os quais cortam regiões desérticas. Perceba também que Egito, Mesopotâmia e o território que corresponde atualmente ao país de Israel foram os primeiros agrupamentos complexos considerados civilizados. Além dessas civilizações, em outras partes do mundo floresceram sociedades igualmente (ou mais) complexas: Índia, China, Japão e Pérsia, no Oriente; a civilização Olmeca, na América Central; e a Núbia, na África, são alguns exemplos. No entanto, em virtude de serem as mais antigas, classicamente as mais estudadas e aquelas em que se desenvolveram códigos escritos por primeiro, iremos explorar aspectos relativos à arte nas civilizações do Egito e da Mesopotâmia. 3.3.1 A formação do Egito Antigo Observe a imagem a seguir. Nela é retratada uma parte do vale de Assuã, no sul do Egito. Note o Rio Nilo e seu entorno; perceba que ele percorre uma região desértica e que, apesar disso, suas margens são férteis e verdejantes. Esse fenômeno é possível graças às cheias periódicas desse imenso rio, as quais ocorrem entre os meses de junho e novembro em suas nascentes, no coração da África, e elevam o nível do rio até seu deságue, no Mar Mediterrâneo. Em sua longa trajetória, o Rio Nilo deixa as regiões no entorno de suas margens impregnadas de lodo fértil e propício à germinação e ao cultivo de vegetais. Foi aprendendo a prever e controlar esse fenômeno que grupos humanos do Vale do Nilo descobriram a agricultura ainda no Neolítico. Figura 7 – Vale do Rio Nilo na altura de Assuã, sul do Egito, na atualidade. W itR /S hu tt er st oc k A arte entre as primeiras civilizações 49 A necessidade de organizar a produção e as obras para o melhor aproveitamento das cheias – diques, canais de irrigação e barreiras de contenção – pode ter motivado o desenvolvimento de formas mais complexas e estruturadas de sociabilidade. As comunidades – chamadas nomos – eram lideradas por chefes locais (nomarcas) e estão no princípio de algumas das primeiras e mais antigas cidades do Vale do Nilo: Abidos (com cerca de 7 mil anos), Mênfis, Tebas, entre outras. Da junção dessas cidades formaram-se dois reinos: o Baixo Egito, ao norte, e o Alto Egito, ao sul (Figura 8). Figura 8 – Mapa do Egito Antigo: divisão em Alto e Baixo Egito. Je ff D ah l/ W . C om m on s Por volta de 3200 a.C., o Rei Narmer do Alto Egito teria unificado os dois reinos, dando início à primeira das 30 dinastias que, apesar das interrupções, tentativas de conquista por povos estrangeiros e períodos de turbulência interna, governariam a região até sua conquista definitiva pelos romanos em 30 a.C. História da arte: da pintura rupestre ao Pós-Modernismo50 A Figura 10 refere-se à face posterior do monumento votivo sob a forma de uma paleta, conhecido como Paleta de Narmer. Ela representa a vitória de Narmer, soberano do Alto Egito, sobre o Baixo Egito. Narmer pode ser o lendário Rei Menés, a quem os egípcios atribuíram a unificação do Egito e o começo da dinastia dos faraós. Esse evento, que marca o início da história do Egito Imperial, teria ocorrido por volta de 3200-3000 a.C. Os relevos representando a unificação foram confeccionados sobre uma única placa de ardósia de 64 cm de altura, decorada com motivos diferentes dos dois lados. Sua forma lembra a de um escudo. Figura 9 – Paleta de Narmer, exposta no Royal Ontario Museum (Canadá). W . C om m on s 3.3.2 A relação entre arte, poder e religião A civilização egípcia foi não apenas uma das mais antigas da Terra, mas também uma das mais estáveis e duradouras. A longevidade de sua monarquia se deveu, em parte, pelo seu isolamento natural (uma civilização cercada por desertos) e pela estabilidade política, conseguida e mantida graças ao caráter teocrático do governo. Compreendia-se que o poder dos faraós4 tinha origem divina e que eles poderiam alcançar a imortalidade. Bastante estratificada socialmente, essa civilização tinha na base de sua sociedade trabalhadores escravizados e camponeses que trabalhavam tanto na agricultura – basicamente no cultivo de cereais como o trigo e a cevada – quanto em obras e ofícios relativos ao melhor aproveitamento das cheias do Nilo. Nos tempos de seca, trabalhavam como servos do Estado, na construção de grandes monumentos religiosos e funerários destinados aos faraós, suas famílias, bem como aos membros da nobreza e aos sacerdotes. 4 Documentos antigos, como o livro “Êxodo”, que faz parte do Antigo Testamento bíblico, oferecem pistas para o significado do termo faraó. Ele deriva de duas palavras: per e ao. Juntas, elas significavam “grande casa”. Em grego, traduziu-se como faraó. A expressão “grande casa” demonstra a importância que os reis egípcios tinham no imaginário da população. Eles eram associados a uma espécie de força protetora, uma grande casa que a tudo abrangia e tudo protegia. teocrático: do grego teo = deus; cratos = poder. Governo que se justifica por sua origem divina. A arte entre as primeiras civilizações 51 No Egito, a crença na vida após a morte e na imortalidade da alma alimentava e dava sentido às práticas de sobrevivência cotidianas, sustentava o poder dos faraós, bem como da casta dos príncipes e dos sacerdotes. Vivia-se a vida terrena com vistas e em função da vida após a morte (eterna), inclusive porque na Antiguidade a média de tempo de vida girava em torno dos 30/40 anos. O aspecto religioso constituía a principal motivação da expressão artística, manifesta principalmente em pinturas e relevos murais que adornavam as paredes internas e externas de templos, palácios e complexos funerários. Quem eram os artistas? Voluntários ou escravos que trabalhavam compulsoriamente a serviço de nobres e sacerdotes, como destaca Hauser (2010, p. 29): Os primeiros e, por muito tempo, os únicos empregadores de artistas foram sacerdotes e príncipes, e suas mais importantes oficinas durante todo o período da cultura oriental estavam nos templos e palácios. Nas oficinas dos palácios, os artistas trabalhavam como empregados voluntários ou compulsórios, em outras palavras, como trabalhadores que dispunham de liberdade de movimentos ou como escravos pela vida inteira. A arte egípcia antiga manifestava-se na arquitetura monumental, precisa e muitas vezes emblemática, em grandes monumentos funerários – como as pirâmides de Gizé –, templos e palácios, em esculturas que representavam deuses e faraós (considerados também entidades divinas) e em pinturas e relevos murais, que retratavam cenas do cotidiano e elementos do imaginário religioso, por vezes seguidos de inscrições hieroglíficas. Essa arte expressava-se também nas estatuetas e placas criadas para oferendas aos deuses (arte votiva), em monumentos de exaltação de façanhas régias – como a Paleta de Narmer –, adornos corporais ou objetos de propaganda governamental. Essa constatação advém de pesquisas arqueológicas e indica uma relação entre arte e poder na Antiguidade, conforme atesta Hauser (2010, p. 29): O primeiro acúmulo de terras caiu nas mãosde guerreiros e salteadores, conquistadores e opressores, chefes militares e príncipes: a primeira propriedade racionalmente administrada pode muito bem ter sido a constituída pelos domínios do templo, isto é, a propriedade dos deuses fundadas pelos príncipes e gerida pelos sacerdotes. Por conseguinte, é sumamente provável que os sacerdotes tenham sido os primeiros empregadores regulares de artistas, os primeiros a dar-lhes encomendas; os reis limitaram-se a seguir-lhes o exemplo. A arte [...] limitava-se inicialmente, com a exceção da indústria doméstica, à execução das tarefas impostas por esses patronos. A Figura 10 refere-se ao Templo de Karnak, situado em Luxor, Egito. Considerado o mais espetacular e colossal templo egípcio, tem um perímetro de 2.400 metros e, no passado, era cercado por uma muralha de adobe com 8 metros de espessura. Sua construção foi ordenada por diferentes faraós entre os anos de 2200 e 360 a.C. No detalhe, é possível perceber os relevos contendo figuras humanas, hieróglifos e outros símbolos entalhados em seus monumentais pilares. História da arte: da pintura rupestre ao Pós-Modernismo52 Figura 10 – Templo de Karnak, em Luxor, Egito. Bi st /S hu tt er st oc k A pintura mural conhecida como Caçando nos Pântanos ou Caça entre Papiros (Figura 11) mostra a representação do faraó egípcio Nebamun, que reinou provavelmente durante a XVIII Dinastia. A cena é parte de um mural que contém uma série de pinturas feitas possivelmente entre 1400 e 1350 a.C. Embora não existam referências históricas precisas sobre quando ele reinou, os traços, as cores, formas e o estilo dessa pintura se assemelham a outras realizadas entre os reinados dos faraós Tutmés IV e Amenhotep III, ambos no século XIV a.C., o que levou estudiosos a supor que tenham sido pintadas pelo mesmo artista ou grupo. Os artistas antigos, ainda que anônimos, deixaram registrado seu estilo e marcaram sua época. Figura 11 – Caçando nos Pântanos ou Caça entre Papiros M ar cu s Cy ro n/ W . C om m on s A arte entre as primeiras civilizações 53 Pode parecer estranho o fato de o faraó estar representado em um tamanho tão desproporcionalmente maior que as demais figuras humanas. Isso não significa que o artista não tivesse noções de proporção das figuras representadas ou que o faraó fosse um gigante. Na verdade, trata-se de uma das características da arte egípcia. Em linhas gerais, as pessoas eram representadas de acordo com a posição que ocupavam na sociedade; assim, aqueles com maior poder eram representados em maior tamanho. Observe também as cores predominantes nessa e em outras pinturas murais egípcias: branco, azul, ocre, marrom e, em menor quantidade, o preto. O pigmento branco, extraído do gesso e do cal, representava a pureza da alma; a eternidade era expressa pela cor amarela, extraída do óxido de ferro. O preto, extraído do carvão, representava a noite e a morte. O vermelho, obtido por meio de materiais ocres, simbolizava a energia, a sexualidade e o poder. O tom da pele de homens e mulheres também trazia cores diferentes: nos homens, a pele era representada com um tom avermelhado e, nas mulheres, com uma tonalidade mais amarelada. Um outro aspecto que costuma chamar atenção na pintura egípcia antiga é a forma pela qual são representadas as figuras humanas: as divindades, principalmente, têm a cabeça, as pernas e os braços de perfil, enquanto o tronco, os olhos e os ombros ficam de frente5. É importante salientar que, entre as primeiras e mais antigas civilizações, os artistas não assinavam suas obras. Desconhecemos seus nomes, mas reconhecemos a força, a beleza e a complexidade dos estilos por eles criados/adotados. A arte servia aos interesses dos poderosos, para os quais esses artistas – de maneira voluntária, compulsória e poucas vezes remunerada – trabalhavam. A arte atuava como estratégia de evocação de um sagrado que edificava, justificava e legitimava o poder das castas que se afirmavam como superiores (nobres, reis e sacerdotes). Nos dias de hoje, de que maneira as expressões artísticas podem servir para edificar ou contestar estruturas hegemônicas? Que tal pensar a respeito? 3.4 A arte entre as civilizações grega e romana Se a civilização egípcia ocupa ao lado da Mesopotâmia (atual Iraque) o lugar de uma das mais antigas sociedades complexas, as civilizações grega e romana podem ser consideradas entre as mais influentes de uma tradição conhecida como ocidental. É importante ressaltar que Grécia e Roma não são as civilizações mais antigas do Ocidente: elas mesmas foram influenciadas, respectivamente, por civilizações mais antigas, como a minoica, na Península Balcânica, e a etrusca, na Itália. Vamos, a seguir, conhecer um pouco mais sobre essas civilizações e os aspectos que fizeram do seu entendimento do mundo e da arte marcos fundantes da cultura ocidental. 5 Conhecida entre os estudiosos como lei da frontalidade, esse é um traço característico da arte egípcia. Alguns estudiosos cogitam uma possível inabilidade dos artistas antigos para representar pessoas com o corpo e o rosto voltados para frente; outros supõem que essa fosse uma estratégia para representar de maneira mais expressiva cada elemento do corpo humano. História da arte: da pintura rupestre ao Pós-Modernismo54 3.4.1 Aspectos da expressão artística grega Para conhecer aspectos relativos à arte da forma como era concebida, realizada e manifesta entre os gregos, vamos primeiramente conhecer a localização da civilização grega antiga – conhecida como civilização helênica – e a extensão do território ocupado pelas inúmeras colônias fundadas pelas chamadas cidades-Estados gregas entre os séculos IX e VIII a.C. (Figura 12). Figura 12 – Mapa da expansão da colonização grega na Antiguidade Zonas de assentamento grego PENÍNSULA IBÉRICA ÁFRICA ÁSIA MENOR Malásia Alalia Neápolis Síbaris Crotona Tarento Cálcis Foceia Bizâncio Sinope Trapezunte Quersoneso Tánais Tarso Éfeso Mileto Mégara Atenas Tera Rodes Tiro Náucratis Corinto Esparta Cirene Epidamno GRÉCIA CRETA CHIPRE Zancle Siracusa Hímera CÓRCEGA Empório SARDENHA Cartago Metrópoles Hemeroscópio Principais colônias milhas quilômetros ro w an w in dw hi st le r/ W . C om m on s A extensão do povoamento grego na Antiguidade abrangia, a partir da Península Balcânica, onde teve início a civilização helênica, vários pontos ao redor do Mar Mediterrâneo, passando pela Ásia Menor, sul da Itália, parte da Península Ibérica (Espanha) e parte do norte da África. Esse processo de expansão ocorreu em concomitância com o reaparecimento do comércio entre os gregos e outros povos, a cunhagem e a circulação de moedas e o desenvolvimento de uma escrita alfabética. Ao final do processo de expansão, no século VIII a.C., teve início uma nova etapa da civilização grega, em que houve o desenvolvimento da pólis como forma de organização política, econômica, administrativa e social, processo que se consolidou no século VI a.C. A essa época do desenvolvimento histórico grego, marcado pelo florescimento da pólis e pela expansão colonial, historiadores denominaram Período Arcaico6. 6 A história da Grécia Antiga é tradicionalmente dividida em quatro fases principais: (i.) Período Pré-homérico (do terceiro milênio a 1200 a.C.), caracterizado pelo florescimento das civilizações palacianas de Creta e Micenas; (ii.) Período Homérico ou Idade das Trevas (1200 a 800 a.C.), conhecido pelas invasões dórias e pelo recrudescimento da vida urbana e do comércio; (iii.) Período Arcaico (800 a 600 a.C.), impregnado pela expansão colonial grega e pela formação das cidades-Estados; e (iv.). Período Clássico (600 a 400 a.C.), caracterizado principalmente pelo apogeu da democracia ateniense. A arte entre as primeiras civilizações 55 As poleis (plural de pólis) gregas funcionavam como cidades-Estados, isto é, eram autarquias independentes entre si. Socialmente estratificadas, cada uma tinha seu governo,suas leis e seu exército próprio. Apesar disso, tinham língua, costumes e tradições religiosas comuns. Entre essas, destacam-se Esparta – fortemente militarizada, oligárquica e com economia direcionada para a agricultura – e Atenas – de orientação mais mercantil e que foi o berço da democracia. O apogeu econômico, político e cultural das poleis gregas se deu no século V a.C. No entanto, guerras internas protagonizadas pelas rivalidades entre Atenas e Esparta, no final do século V a.C., desestabilizaram a vida econômica e política das poleis, levando à sua decadência e à sua posterior conquista pelo Império Macedônico no século IV a.C., período conhecido como Helenístico. No tocante às manifestações artísticas, desde a época anterior à formação das poleis durante o chamado Período Pré-homérico, destacam-se, entre as antigas civilizações da Era do Bronze – que na Europa se deu por volta de 3000 a.C. –, a Minoica e a Micênica. Tanto na primeira, nascida na Ilha de Creta, quanto na segunda, originada na Península Balcânica, destacavam-se os palácios e a arte dos afrescos que adornavam as suas paredes interiores. Parte desses afrescos, assim como o interior de algumas salas do palácio, foram restaurados pelo arqueólogo britânico Arthur Evans, descobridor das ruínas relativas a essa antiga civilização e criador da expressão civilização minoica. As dependências internas de Cnossos se assemelham ao labirinto da lenda do Minotauro. Figura 13 – Interior da “Sala do Trono”, Palácio de Cnossos, em Creta, Grécia. D zi ew ul /S hu tt er st oc k Figura 14 – Príncipe dos Lírios, corredor das procissões, Palácio de Cnossos, em Creta, Grécia. Le on ar d G ./ W . C om m on s História da arte: da pintura rupestre ao Pós-Modernismo56 Após o desaparecimento dessas civilizações, provocado por desastres naturais (erupções vulcânicas) e por guerras (invasão dos dórios à Península Balcânica), resplandece no chamado Período Homérico, por volta do séc. IX a.C., uma das mais expressivas manifestações da arte grega: a estatuária. Datam dessa época as primeiras representações de figuras humanas em tamanho natural – compostas sobretudo de cera, argila e, em alguns casos, de marfim. No período seguinte, denominado Arcaico, época em que se formam as poleis gregas, as esculturas passam a ser feitas de pedras. Os escultores gregos buscavam representar, na maioria das vezes, figuras de homens e mulheres jovens, com formas arredondadas e lisas, expressando a busca por uma concepção idealizada de beleza, influenciada por padrões orientais. Exemplos desse padrão estético são as estátuas conhecidas como Kouros, que representavam jovens nus do sexo masculino em posições rígidas e estáticas. Mas foi no Período Clássico, no século V a.C., que a arte grega atingiu seu maior esplendor, distanciando-se de padrões estéticos orientais, voltando-se para a busca da beleza e da perfeição e explorando as possibilidades de uma representação mais realista da figura humana, com especial atenção à expressividade dos rostos e dos corpos. Entre as inovações técnicas que permitiram essa expressividade, destaca-se o desenvolvimento do conceito de contraposto, princípio a partir do qual o personagem representado apoiava- -se totalmente em uma perna, deixando livre a outra. Esse princípio imprimiu dinamismo, por exemplo, à representação de atletas e deuses em ação. Figura 15 – Kouros Kroisos, Museu Arqueológico Nacional de Atenas (c. 530 a.C.), Grécia. Te tr ak ty s/ W . C om m on s O poeta Homero usava o termo Kouros. Historiadores da arte do século XIX passam a usar essa designação para se referirem a um tipo de estatuária comum na Grécia do Período Arcaico. Figura 16 – Estátua de bronze conhecida como O Deus Posídon, localizada na região do Cabo Artemísio, em Eubeia (c. 460-450 a.C.), Museu Arqueológico de Atenas, Grécia. An dr on os H ar is /S hu tt er st oc k Essa estátua simula os movimentos humanos empregados, por exemplo, no arremesso de dardos. Há também o cuidado com a representação da musculatura, revelando um olhar apurado sobre a anatomia humana. A preocupação com o realismo é característica das obras artísticas do Período Clássico e se manifesta, sobretudo, nas esculturas desse período. A arte entre as primeiras civilizações 57 Uma das características centrais da expressão artística grega desse período era a de representar com o maior realismo possível – considerando aqui o conceito de realismo da época – a natureza, e para isso contribuíram os estudos sobre as proporções que tinham do corpo humano, uma de suas maiores inspirações, isso porque, segundo a máxima atribuída ao sofista7 Protágoras de Abdera, “o homem é a medida de todas as coisas, daquelas que são como são e daquelas que não são como são”. Escultores como Fídias (480-430 a.C.) e Policleto (460-420/10 a.C.) foram os maiores mestres dessa arte e chegaram mesmo a assinar suas obras. Eles costumavam representar, sobretudo, divindades e atletas. Policleto chegou a escrever um tratado intitulado Cânone, no qual discorre sobre as regras para se conhecer e aplicar as proporções do corpo humano em obras harmônicas e naturalistas. A arte do Período Clássico foi além da tentativa de representar os homens e os demais seres da natureza de modo realista: no estilo clássico, havia a busca por uma representação idealizada do real, um idealismo estético que, de certa forma, manifestava a valorização da busca constante pelo belo e pelo bom, ideais perseguidos também pela filosofia socrática e platônica. Essa característica esteve presente na arte grega de maneira geral e, em especial, na estatuária e na dramaturgia – nesse caso, com destaque para o gênero tragédia8. 7 Do grego sophós (sábio), designação dada aos sábios de Atenas, responsáveis, sobretudo, pela educação dos jovens. 8 Segundo Nietzsche, os primórdios do gênero dramático conhecido como tragédia remontam aos Ditirambos de Dionísio: festivais de cunho religioso em honra ao deus do vinho. Nesses festivais, destacam-se os cantos e as danças. Para saber mais: NIETZSCHE, F. O nascimento da tragédia: ou helenismo e pessimismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2007. Figura 17 – Doríforo, réplica em mármore da escultura original feita em bronze por Policleto no séc. V a.C., Museu Arqueológico Nacional de Nápoles, Nápoles, Itália. Te tr ak ty s/ W . C om m on s Estudiosos cogitam que a estátua em bronze esculpida por Policleto em tamanho natural, no século V a.C., tenha representado a concretização dos seus ensinamentos teóricos sobre a proporção do corpo humano contidos no Cânone. A obra original, feita em bronze, perdeu-se ao longo do tempo, mas várias cópias em mármore foram feitas durante o Período Helenístico, na Grécia e em Roma. História da arte: da pintura rupestre ao Pós-Modernismo58 Desenvolvida ao longo do século V a.C., a tragédia manifesta, para além da criatividade dos seus idealizadores, os conflitos e as tessituras da sociedade ateniense da época, tanto em sua forma quanto em seu conteúdo: enquanto os elementos externos de sua apresentação eram direcionados ao público em geral, seu conteúdo e os personagens tinham uma conotação aristocrática. Os principais dramaturgos trágicos foram Ésquilo (525-456 a.C.), Sófocles (496-406 a.C.) e Eurípedes (485-406 a.C.). Valendo-se de uma linguagem poética manifesta em tom sério e elevado, a tragédia contava a trajetória de personagens, quase sempre de origem aristocrática, em conflito com uma situação adversa e maior que suas forças: o destino, as imposições da sociedade ou a vontade dos deuses. A comédia, cuja principal característica era levar o público ao riso, foi outro gênero dramatúrgico grego desenvolvido no Período Clássico. Na comédia, diferentemente da tragédia, em que os personagens encenavam pessoas oriundas da aristocracia, eles encarnavam pessoas que satirizavam costumes da sua época e criticavam questões vinculadasà moral, à política e às imposições sociais. Aristófanes (448-380 a.C.), um dos maiores comediógrafos gregos, ficou famoso por ridicularizar, em sua peça As Nuvens, o filósofo ateniense Sócrates (470-399 a.C.). Tanto as comédias quanto as tragédias eram encenadas ao ar livre, em anfiteatros construídos em pedra e que chegavam a receber centenas, milhares de pessoas. Alguns recursos eram utilizados para que o público compreendesse o conteúdo da trama, entre eles máscaras (chamadas de personas), com expressões representando uma variada gama de estados de humor (assombro, cólera, tristeza, alegria), e variados tipos de personagens (jovens, mulheres, homens, crianças, idosos). Entre 431 a.C. e 404 a.C., as cidades-Estados gregas envolveram-se em uma série de conflitos internos polarizados por Atenas e Esparta e que ficaram conhecidos como Guerras do Peloponeso. Fragilizadas, acabaram sendo conquistadas pelo reino da Macedônia, governado pelo Rei Filipe II (382-336 a.C.). Aproveitando-se da desestabilidade política, econômica e social que fragilizou as cidades gregas, Filipe inicia, em 359 a.C., um processo de expansão e conquista do mundo grego, continuado por seu filho Alexandre (356-323 a.C.) – posteriormente conhecido como Alexandre, o Grande. A esse processo caracterizado pelo expansionismo cultural grego os historiadores denominam helenismo. O contexto conceituado como helenismo se prolonga até o apogeu da civilização romana, no século II da nossa era, e entra em decadência somente com a expansão dos valores cristãos, que começaram a atingir maior expressividade a partir dos séculos III e IV. Na arte, o helenismo é caracterizado pela sofisticação dos princípios que norteavam o classicismo: nota-se a preocupação acentuada de representar não somente os personagens de acordo com sua condição social, idade ou gênero, mas também por seu estado de espírito. O resultado são esculturas dotadas de movimento e expressividade, como a chamada Vênus de Milo, analisada no capítulo anterior. A arte entre as primeiras civilizações 59 Nota-se também o interesse em representar mais de um personagem em um contexto e o uso de técnicas que permitissem que todos os elementos de um conjunto fossem, sob qualquer ângulo, percebidos como belos pelo expectador. É o que se nota no conjunto a seguir, conhecido como Laocoonte e seus filhos, datado do século I a.C. Figura 18 – Laocoonte e seus filhos, escultura em mármore datada do Período Helenístico. Ju an M a/ W . C om m on s A autoria dessa escultura foi atribuída a três escultores: Agesandro, Atenodoro e Polidoro. Exposta atualmente no Museu do Vaticano (Itália), de acordo com a obra Ilíada, de Homero, o troiano Laocoonte, seguidor do deus Apolo, foi o único que desconfiou das reais intenções dos gregos quando estes ofereceram um cavalo de madeira como presente para os troianos. Ele tentou impedir que as muralhas da cidade fossem abertas para receber o presente, mas foi atacado por duas serpentes enviadas por Poseidon (ou Posídon), deus “aliado” dos gregos. À morte precoce de Alexandre, em 323 a.C., seguiu-se a divisão do Império Macedônico entre alguns dos seus principais comandantes militares e seu posterior enfraquecimento. A cultura helenística, de origem grega, entrou em um período de decadência, mas seu legado exerceu forte influência sobre a cultura romana, uma das mais expressivas da Antiguidade Ocidental, como veremos a seguir. História da arte: da pintura rupestre ao Pós-Modernismo60 3.4.2 Aspectos da arte romana Observe com atenção o mapa a seguir. Ele representa a extensão máxima do Império Romano no século II da nossa era. Figura 19 – O Império Romano na Antiguidade An dr ei n ac u/ W . C om m on s Esse império não começou grandioso: suas origens remontam à instituição de uma cidadela nas proximidades do Rio Tibre, no começo do primeiro milênio a.C., pelos latinos, uma tribo da Itália. Por volta do século VIII a.C., desenvolve-se uma monarquia de origem sabina em Roma (os sabinos eram uma tribo próxima dos latinos). No entanto, foi sob a influência de uma civilização localizada ao norte da Península Itálica, na região da atual Toscana – os Etruscos –, que os romanos desenvolveram a vida urbana e os princípios da civilização, com uma religião institucionalizada, segmentação social, centralização política e burocratização da administração econômica. No século VI, o último rei etrusco foi deposto por grandes proprietários de terra de origem latina (patrícios) que instituíram uma nova forma de governo: a República. Foi ainda durante a República (509-27 a.C.) que os romanos iniciaram seu processo de expansionismo territorial, conquistando, inicialmente, toda a Itália e submetendo as demais tribos. A arte entre as primeiras civilizações 61 No século II a.C., conquistam aos cartagineses territórios situados no norte da África, Península Ibérica e Ásia Menor. Nos séculos seguintes, ampliam ainda mais seu território, submetendo e conquistando os resquícios de antigos impérios, como o persa, o macedônico e o egípcio. Com a ascensão do general Otávio Augusto ao poder, em 27 a.C., e sua aclamação como imperador, teve início a última fase política da civilização romana antiga, o Império (27 a.C.-476 d.C.). Foi durante o apogeu do Império, entre os séculos I a.C. e II d.C., que a arte romana, influenciada tanto pelos padrões etruscos quanto gregos, atingiu seu maior apogeu, manifestando-se, sobretudo, na estatuária e nas técnicas do afresco e do mosaico. A civilização romana sofreu forte influência da arte etrusca e da pintura mural. A civilização etrusca controlava a região norte e central da Península Itálica (antiga Etrúria e atual Toscana) em meados do primeiro milênio antes de Cristo. Os etruscos dominaram a cidade de Roma por mais de um século (entre 650 e 509 a.C.) e exerceram forte influência sobre a sua cultura. Na arte etrusca, que foi influenciada por padrões gregos e orientais, destacam-se as pinturas murais (frescos), os sarcófagos em alto-relevo e a arquitetura de seus templos e palácios. Figura 20 – Tumba dos Leopardos, Necrópole dos Monterozzi, Tarquínia, Itália. Ya nn F or ge t/ W . C om m on s Em virtude da necessidade de otimizar e padronizar a administração urbana das suas províncias, os romanos desenvolveram uma arquitetura complexa e monumental, mas, ao mesmo tempo, funcional na edificação de seus anfiteatros, estádios, termas (banhos públicos), aquedutos, templos, palácios e jardins. A arquitetura, portanto, representava um dos mais expressivos domínios romanos na arte antiga, unindo praticidade, funcionalidade e beleza. Entre as maiores e mais impactantes expressões da arte arquitetônica romana clássica destaca-se o Anfiteatro Flaviano, datado de 70 d.C. e mais conhecido como Coliseu (Figura 21). História da arte: da pintura rupestre ao Pós-Modernismo62 Figura 21 – Anfiteatro Flaviano (século I d.C.), Roma, Itália. Yo up ro du ct io n/ Sh ut te rs to ck A construção da mais monumental obra da arquitetura romana foi ordenada pelo Imperador Vespasiano (9-79 d.C.) e finalizada em 70 d.C. O Coliseu era um estádio de 187,5 m de comprimento, 155,5 m de largura e 48,5 m de altura, com capacidade para até 55 mil espectadores. Posteriormente, foi ampliado e teve um quarto andar acrescentado, aumentando sua capacidade para algo em torno de 90 mil espectadores. Seus assentos eram divididos em três categorias sociais: o podium, conjunto de assentos destinado ao Imperador, aos senadores e magistrados; a maenania, destinada aos expectadores de classe média; e os portici, assentos em madeira destinados às camadas mais pobres. As mulheres sentavam, separadas, acima, em uma parte mais alta do anfiteatro. O Coliseu foi palco dos mais diferentes espetáculos: lutas entre gladiadores, combates entre homens e animais selvagens, suplícios de prisioneiros e até simulação de combates navais, algo que só era possível graças a um sofisticado sistemaque desviava a água de aquedutos subterrâneos para a arena, inundando-a artificialmente por algum tempo. A água era escoada após o término da encenação. Apesar da influência grego-helenística, a arte romana desenvolveu características próprias, que podem ser percebidas em elementos da sua arquitetura, estatuária e pintura. Entre essas, vale destacar: • realismo prático nas esculturas, que quase sempre representavam homens de destaque na sociedade (diferentemente do idealismo grego); • grandeza material e predomínio da força sobre a beleza na arquitetura, buscando combinar o funcional e o útil ao imediato. A arte entre as primeiras civilizações 63 Entre as principais manifestações da arquitetura romana, destacam-se prédios públicos, entre eles termas, templos, anfiteatros (como o Coliseu), teatros (similares aos teatros gregos), circos, basílicas (destinadas a operações envolvendo negócios públicos e atos judiciários) e monumentos decorativos (como o Arco do Triunfo). Na arte romana, também são notáveis os trabalhos artísticos envolvendo a pintura mural (frescos), tipo de pintura realizada sobre paredes e que tem como base argamassa ou gesso. Já o mosaico (Figura 22) é uma composição pictórica composta de pedras coloridas fixadas, preferencialmente, sobre pisos ou murais. Figura 22 – Mosaico Epifania de Dionísio (século II d.C.), Villa de Dionísio, Grécia. W . C om m on s A origem da palavra mosaico deriva de musa, entidade mitológica de origem grega associada à inspiração nas artes e na literatura. Os romanos compunham seus mosaicos sobre peças cúbicas chamadas de tesselas, termo derivado do latim tessellae, oriundo de vocábulo grego cujo significado era quatro. Assim, os mosaicos romanos, também chamados de opus tesselatum, eram compostos sobre bases quadradas em pisos e paredes, com pedacinhos de vidro corado, cerâmica e rocha calcária. Os temas preferenciais das tesselas romanas eram, além de composições geométricas, cenas do cotidiano e mitológicas, de batalhas, banquetes, festivais, entre outras. Considerações finais Tratamos neste capítulo de aspectos relativos à arte no Período Neolítico e na Idade dos Metais, passando pela exploração de expressões artísticas presentes entre os egípcios e gregos antigos e, finalmente, abordando elementos das manifestações artísticas entre os romanos. Buscamos demonstrar que, de uma associação direta com o mundo natural, a arte passou a ser a representação de uma compreensão dualista desse mesmo mundo, ainda no Neolítico, e uma evocação do sagrado, bem como uma exaltação do poder político entre as primeiras civilizações. Entre os gregos e romanos, a expressão artística começa a adquirir certa independência diante do poder político e religioso e manifestar a preocupação dos artistas em fazer de suas criações cópias perfeitas do real. História da arte: da pintura rupestre ao Pós-Modernismo64 Ampliando seus conhecimentos • ARIÈS, P.; DUBY, G. História da vida privada: do Império Romano ao ano mil. São Paulo: Companhia da Letras, 1989. v. 1. Esta obra é o primeiro livro de uma coleção de cinco volumes, organizada pelos historiadores franceses Philippe Ariès e Georges Duby. Ela aborda aspectos da história da vida privada relativos à Antiguidade Ocidental, notadamente romana, e à Idade Média. Contém textos e fontes históricas que exploram temas como o cotidiano, relações sociais, imaginário, religiosidade e economia no alvorecer da civilização ocidental, apresentando inúmeras expressões artísticas exploradas como fontes históricas. Atividades 1. Elenque os principais aspectos da arte egípcia – conteúdo, técnica e formas de expressão – e discorra sobre o modo com que esses elementos estão relacionados à religiosidade e à política dessa civilização. 2. Em relação à arte, quais mudanças podem ser percebidas na transição do Período Paleolítico para o Neolítico? 3. Aponte duas semelhanças e ao menos uma diferença em relação às manifestações artísticas presentes na arte grega e romana do Período Clássico. Referências ABBAGNANO, N. Dicionário de filosofia. 5. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2007. ANDERSON, P. Passagens da Antiguidade ao feudalismo. 5. ed. São Paulo: Brasiliense, 1998. GOMBRICH, E. A história da arte. Rio de Janeiro: LTC, 2013. HAUSER, A. História social da arte e da literatura. São Paulo: Martins Fontes, 2010. 4 A arte medieval e a evocação do sagrado Andréa Carneiro Lobo Neste capítulo, vamos explorar a expressão artística ocidental em um contexto histórico que abrange pelo menos 1.000 anos, conceituado pelos historiadores como Idade Média. Esse complexo período – situado entre os séculos V e XV da nossa era – apresentou, ao longo de toda a sua duração, entendimentos, técnicas e formas de expressão diferenciados sobre a arte. Nesse sentido, a expressão arte medieval é muitas vezes reducionista, ainda que didaticamente possa ser considerada a mais viável. Inicialmente, pretendemos situar teoricamente o conceito Idade Média e historicamente o período Idade Média, buscando entender como essa noção foi construída por eruditos europeus modernos e suas implicações ideológicas. Em seguida, vamos partir para a identificação da arte considerada medieval e diferenciá-la das artes antiga e moderna. Finalmente, vamos situar e conhecer os estilos da arte medieval e suas características, tentando compreender a relação entre a arte e o pensamento clerical cristão medieval e suas implicações ideológicas e estéticas. 4.1 Idade Média ocidental: conceito e contexto 4.1.1 Conceito Imagine se, em um futuro não muito distante, daqui a dois séculos, um estudioso se referir à nossa época atual como uma “época de trevas”, uma “época de intervalo” entre duas grandes eras de esplendor ou, ainda, uma “época do meio”, apenas. O que você pensaria a respeito? A tentativa de organizar o fluxo intermitente da ação humana no tempo tem incitado estudiosos, eruditos e historiadores, desde a Antiguidade grega e romana, a organizar acontecimentos humanos no tempo em periodizações, marcações temporais e cronológicas que teriam como balizas acontecimentos considerados impactantes. Segundo Koselleck (2006), essas marcações também são históricas, isto é, revelam a forma como uma época concebe e percebe a si mesma e como olha para outras épocas, tanto para o passado quanto para o futuro. Assim, cada época tem uma noção de si mesma, assim como de passado e de futuro, e delimita as temporalidades por meio dessa compreensão. Foi assim, por exemplo, no século XVII, que eruditos olharam para sua própria época e a classificaram como moderna, avaliando e delimitando, com base nela, épocas anteriores e dando a elas certas características, periodizações e nomes. Um exemplo é a obra Historia universalis (Figura 1), escrita pelo alemão Christoph Cellarius (1638-1707). História da arte: da pintura rupestre ao Pós-Modernismo66 Nessa suposta “história universal” – que abordava, de fato, aspectos relativos à história do Ocidente, mais precisamente da Europa –, Cellarius periodizou a temporalidade histórica em três fases: Antiguidade, Idade Média e Novo Período. O Novo Período seria a sua própria época, concebida como moderna, em oposição a uma época anterior, considerada intermediária, isto é, uma “época do meio”, de trevas, uma época ou idade média. Posteriormente, historiadores do século XIX definiram em termos cronológicos essa divisão temporal, afirmando que a Idade Média seria o intervalo de tempo (1.000 anos) situado entre a queda do Império Romano do Ocidente, no ano de 476, e a tomada da sede do Império Bizantino pelos turcos, no ano de 1453. A designação trevas se deve, em parte, ao fato de os germânicos – povos estrangeiros, de cultura diferente da greco-romana – terem invadido o Império Romano e à ascensão do cristianismo por meio do catolicismo, considerado a ideologia predominante. Nesse período, o pensamento crítico experimentou, supostamente, um período de retrocesso.Em nosso entendimento, essa designação contrasta com as próprias fontes históricas do período, nas quais se pode perceber um estilo próprio de expressão artística imagética (a iluminura) e o surgimento de uma corrente filosófica complexa (a Escolástica). Com o surgimento das primeiras universidades (a partir do século XI), notamos a continuidade da pesquisa, do estudo, da escrita e da reprodução de ideias manifestas em grandes livros escritos à mão – os chamados códices1 – pelos monges copistas, além da eclosão de pelo menos três estilos artísticos diferenciados: o estilo bizantino, o estilo românico e o estilo gótico, conforme veremos a seguir. 4.1.2 Contexto Para problematizarmos o suposto retrocesso do pensamento crítico e criativo ao longo da chamada Idade Média, que ocorre em virtude do predomínio de uma vida rural e de um imaginário permeado pelos ditames da ideologia católica, é importante entendermos melhor como 1 Também conhecidos como Liber Quadratus, os códices eram livros manuscritos; sua origem remonta ao século I da nossa era. Até o século IV, eram feitos de papiro; a partir de então, passaram a ser feitos de pergaminho. Eram de formato retangular e eram constituídos de várias folhas organizadas em cadernos; são os antepassados dos atuais livros. Os códices continham textos que iam de registros contábeis a instruções religiosas, textos considerados sagrados e lições escolares. Eram feitos à mão por monges cristãos (religiosos que viviam em mosteiros, isolados da comunidade) e ricamente ilustrados. No título e subtítulo, escritos em latim, lê-se que a obra traz uma breve exposição de sua divisão em Antiga, Média e Nova. A imagem mostra uma edição datada de 1753. W . C om m on s Figura 1 – Frontispício da obra Historia universalis (1685), de Christoph Cellarius. frontispício: ilustração colocada na folha de rosto de uma obra. A arte medieval e a evocação do sagrado 67 se configurou o contexto de ruptura do mundo antigo e o surgimento de uma nova estrutura econômica, política e social. Comece observando o mapa a seguir. Relembre a extensão do Império Romano e perceba o avanço das tribos germânicas – que viviam para além das fronteiras do Império –, “empurradas” pelo avanço dos hunos, tribo asiática de origem tártaro-mongólica, conhecida pela violência dos seus ataques. Note que o avanço de algumas dessas tribos (francos, saxões, anglos, jutos, vândalos, ostrogodos, godos, suevos, visigodos etc.) se dá em direção à Roma, sede do Império Romano do Ocidente, enquanto outras se dirigem a Constantinopla (atual Istambul, na Turquia), que na época era a sede do Império Romano do Oriente. Enquanto o Império do Ocidente sucumbiu (entre 450 e 476), ficando em seu lugar vários reinos bárbaros2, o do Oriente sobreviveu por mais 1.000 anos, como Império Bizantino, que sucumbiu diante da sua conquista pelos turcos somente em 1453. Figura 2 – O avanço das tribos germânicas sobre o Império Romano Invasões ao Império Romano 100-500 (Era Cristã) Godos Vândalos Capital Huna, dos Hunos Hu nos Hunos Cartago Roma Vândalos Vi sig od os Visigodos Adrianópolis Constantinopla Império Romano do Oriente Império Romano do Ocidente Ostrogodos Os tro go do s Chalons – atual região de Châlons-en-Champagne na França. Fra nco s Sax ões Ang los Jut os Anglos, Saxões Francos Godos Visigodos Ostrogodos Hunos Vândalos M ap M as te r/ W . C om m on s Após a queda do Império Romano do Ocidente, desenvolveram-se reinos germânicos, sendo que alguns tiveram duração efêmera, como os reinos dos vândalos, no norte da África. Outros, graças à aliança com as lideranças da já existente e influente Igreja Católica, tiveram extensão 2 Essa era uma designação pejorativa dada pelos romanos aos povos que viviam além de suas fronteiras e não compartilhavam da sua cultura – greco-latina – nem da sua língua, o latim. O termo é de origem grega e significava, originalmente, “aquele que não sabe falar” ou, ainda, “gago, balbuciante”. História da arte: da pintura rupestre ao Pós-Modernismo68 territorial e temporal maior. Foi o caso, por exemplo, do reino instituído pelos francos no território que corresponde, atualmente, a Alemanha, França e parte da Bélgica e da Itália. Ao longo da chamada Alta Idade Média (séculos V ao X), percebemos, além da formação e, por vezes, destruição de efêmeros reinos bárbaros, algumas importantes mudanças econômicas, sociais e políticas no Ocidente Europeu. Podemos destacar essas mudanças no Quadro 1. Quadro 1 – Transição Antiguidade-Idade Média A invasão e ocupação árabe da Península Ibérica no século VIII e a instituição de um califado com sede na Espanha, o qual durou até o século XV de nossa era. O fortalecimento e a expansão do Império Romano do Oriente, agora Império Bizantino, afastado do mundo ocidental tanto em relação à língua oficial – que passou a ser o grego – quanto à compreensão da religião católica, que passou a ser ortodoxa. A ruralização da sociedade com o êxodo urbano e a migração em massa dos pobres das então províncias do Império Romano do Ocidente para as regiões fortificadas da nobreza rural, de origem latino-germânica. A decadência do comércio, da vida urbana e do uso da moeda. Em lugar disso, difunde-se a economia de subsistência e o comércio baseado na troca de produtos. O crescimento do poder ideológico, político, territorial e social da Igreja Católica – por meio da institucionalização e universalização da religião cristã por imperadores romanos e chefes eclesiásticos no final do século IV –, especialmente junto a determinados reis germânicos que aceitaram a conversão. O desenvolvimento de relações sociais e políticas feudo-vassálicas, isto é, estabelecidas com base na troca de serviço militar por terra ou algum outro benefício (feudo) entre chefes guerreiros, chamados de suseranos (senhores feudais), e seus militares, chamados de vassalos. Transição do trabalho escravo para o trabalho servil, no qual – em troca de proteção militar e terra para plantar e garantir sua subsistência – camponeses passaram a trabalhar nas terras de senhores feudais sem nenhum tipo de remuneração e sujeitos a várias obrigações. Fonte: Elaborado pela autora com base em Anderson, 1998. Antes de invadirem o Império Romano, quando ainda habitavam em suas regiões de origem, os germânicos viviam em comunidades guerreiras livres. Após a invasão, desenvolveram um Estado centralizado e unitário com uma sociedade estratificada3. Os reinos germânicos, surgidos na sequência das invasões, eram, em sua maioria, monarquias pouco elaboradas, de sucessão um tanto confusa. A hierarquia tinha como seu ponto alto os reis, que eram chefes militares cujo poder se sustentava em uma corte composta de guardas reais, seguidos de soldados e camponeses. Com as invasões, as tribos que não conheciam um modelo de Estado centralizado, aprenderam a desenvolvê-lo com base na convivência com instituições político-administrativas remanescentes do Império Romano, pois as províncias mantiveram, enquanto puderam, sua própria estrutura político-administrativa, com seu corpo de burocratas, legisladores e juristas. A administração jurídica e legal dos reinos bárbaros era entregue a pessoas de origem latina, dentre elas muitos religiosos cristãos. Isso ocorria porque, naqueles tempos conturbados, os religiosos cristãos compunham o seleto grupo das pessoas letradas e educadas segundo a tradição 3 Tipo de sociedade que apresenta divisões e diferenças internas surgidas da desigual distribuição de riqueza e poder. A arte medieval e a evocação do sagrado 69 greco-latina, que ainda exercia um grande fascínio entre os reis bárbaros, conforme destaca Barbosa (1997, p. 15): Imperadores incapazes e seus débeis exércitos não conseguiam assegurar a paz. Funcionários públicos ineficientes e corruptos foram substituídos por padres, até porque estes eram, cada vez mais, os únicos habilitados a ler e escrever (daía palavra clérigo significar letrado, e leigo ou laico, ignorante. Essa aliança entre o poder espiritual da Igreja Católica, instituição nascida ainda no Império Romano, e o poder temporal dos reis de origem germânica foi especialmente efetiva entre os reis do Reino Franco, que chegaram no século V. Os francos, estabelecidos inicialmente na atual Bélgica, conquistaram a antiga Gália (atual França) e parte da atual Alemanha, estendendo, depois, seu domínio sobre a Itália. Os dois reis mais importantes das duas dinastias da Alta Idade Média – o Rei Clóvis, da dinastia merovíngia (séc. V ao IX), e o Rei Carlos Magno, da dinastia carolíngia (séc. IX ao X) – foram convertidos ao catolicismo e construíram as bases de uma forte aliança com a Igreja Católica. A Figura 3, a seguir, retrata o batismo do Rei Clóvis I. A ilustração pertence ao manuscrito francês La vie de Saint Denis (A Vida de São Denis), datado de 1317 e conservado na Biblioteca Nacional da França. Figura 3 – O Batismo de Clóvis (1317) (detalhe) W . C om m on s Nessa aliança, clérigos católicos eram empregados na administração do reino Franco em troca de terras e títulos, e camponeses, convertidos em massa e compulsoriamente ao cristianismo oficial, tornavam-se mais dóceis e fáceis de serem controlados por seus senhores. História da arte: da pintura rupestre ao Pós-Modernismo70 O reino Franco dominou, durante a Alta Idade Média, grande parte do Antigo Império Romano do Ocidente, transformando seus despojos em uma espécie de Império da Cristandade Franco-Católica. Observe no mapa a seguir a evolução da extensão do Reino Franco, desde o século V – com a dinastia merovíngia – até o século IX – com as conquistas de Carlos Magno (742-814), da dinastia carolíngia: Figura 4 – Extensão e expansão do Império Franco: de Clóvis a Carlos Magno. Sé m hu r/ W . C om m on s Em sua extensão, senhores feudais, vassalos e camponeses tinham a obrigatoriedade de serem católicos e seguirem os dogmas e sacramentos da Igreja Cristã oficial. Agora que entendemos o contexto em que se desenvolveu o período da Idade Média, vamos explorar algumas das mais expressivas formas de manifestação artística situadas entre a época da dinastia merovíngia (século V) e o período em que o feudalismo, como forma de organização política, econômica e social, entra em crise (séculos XIII e XIV) e, no bojo dessa crise, desenvolve-se um novo paradigma artístico, o Renascimento, tema do nosso próximo capítulo. 4.2 Expressões artísticas do período carolíngio Ao longo da Alta Idade Média, o acesso ao conhecimento e à erudição, no interior do Império Franco, foi incentivado especialmente pelos reis da dinastia carolíngia, principalmente no reinado de Carlos Magno – no qual ocorreu um movimento que historiadores medievalistas denominam A arte medieval e a evocação do sagrado 71 renascimento carolíngio (MATTHEW, 2006) – e de seus sucessores, até o final do século IX, quando tem início o chamado período otoniano. Esse renascimento, ocorrido entre os séculos VIII e IX, deu-se devido aos esforços de Carlos Magno em tornar a capital do seu reino, Aix-la-Chapelle (atualmente uma cidade independente da Alemanha), um centro difusor de cultura. Para isso, Magno investiu na formação intelectual do clero e na reforma do ensino ministrado nos mosteiros e paróquias. Ele fomentou o desenvolvimento das artes e a reprodução de grandes obras literárias, filosóficas e científicas da Antiguidade pelos chamados monges copistas, sobre os quais falaremos mais adiante. Com isso, Magno esperava restabelecer o esplendor intelectual de origem greco-latina, sem perder de vista a contribuição trazida pelo clero e pela cultura germânica, conforme destaca Matthew (2006, p. 56): O domínio dos francos sobre o Ocidente, a sua presença na Itália e a confiança que tinham nas suas possibilidades de negociar com o Império do Oriente os levaram a querer reivindicar para si tudo o que fosse possível do legado romano. Isso significava levar para Aix-la-Chapelle a arquitetura de Ravena, onde a corte imperial deixara a sua marca ainda mais deslumbrante do que na própria Roma. Significava principalmente copiar livros, nos quais os membros do clero (e, a longo prazo, os seus alunos) podiam adquirir imediatamente o conhecimento da Antiguidade. Estudavam “ciência” e literatura profana, bem como os padres da Igreja, como, por exemplo, Santo Agostinho. Melhoravam o seu estilo de caligrafia copiando textos antigos e executavam imitações fiéis de desenhos antigos, procurando autenticidade. Os textos copiados nessa época garantiram a sobrevivência da literatura latina até os séculos seguintes, já que alguns autores são agora conhecidos por manuscritos que não são mais antigos do que o século IX. Datam desse período alguns belos códices iluminados, isto é, manuscritos ilustrados, encadernados com capas incrustadas de pedras preciosas e detalhes feitos com diferentes tipos de metais. Esses códices continham, especialmente, textos religiosos, como os evangelhos do Novo Testamento. Além da cuidadosa caligrafia e das belas e trabalhadas capas e contracapas, merecem destaque também as ilustrações, composições muito coloridas que representavam santos, anjos, passagens bíblicas e outros símbolos religiosos, além de pictogramas abstratos, figuras mitológicas e/ou cenas do cotidiano medieval. Ao longo desse período, em assentamentos de missionários católicos na Grã-Bretanha – na Irlanda celta e na Inglaterra saxã –, há uma profusão de códices criados por missionários cristãos, cujo estilo artístico específico denotou uma forma de expressão própria no interior do período carolíngio e conceituada por estudiosos (MATTHEW, 2006; GOMBRICH, 2013) como arte insular. Segundo Gombrich (2013), a arte insular, realizada pelos monges cristãos na Irlanda, manifestava a tentativa desses religiosos-artistas em adaptar a arte das culturas locais, de origem celta e saxônica, às necessidades e especificidades da difusão dos preceitos da fé cristã. História da arte: da pintura rupestre ao Pós-Modernismo72 Os monges e missionários da Irlanda celta e da Inglaterra saxã procuravam aplicar as tradições desses artesãos às necessidades da arte cristã. Erigiram igrejas e campanários em pedra imitando as estruturas em madeira usadas pelos construtores locais [...], porém os mais impressionantes monumentos ao seu sucesso são alguns dos manuscritos feitos na Inglaterra e Irlanda nos séculos VII e VIII. (GOMBRICH, 2013, p. 120-121) Dentre os códices produzidos entre os séculos VII e IX no estilo da arte insular, merecem destaque os códices conhecidos como Livro de Lindau (ou Lindau Gospel) (Figura 5) e Livro de Kells (Figura 6). Figura 5 – Contracapa do Livro de Lindau ou Lindau Gospel (século VIII) W . C om m on s Trabalhado por artistas e escritores diferentes em épocas diferentes, a parte mais antiga desse códice é a sua contracapa, criada na região da Áustria no final do século VIII. Seu estilo situa-se na chamada arte insular, associada ao contexto dos assentamentos missionários na Irlanda. À época carolíngia, difundiu-se o costume de adornar com pedras e metais preciosos a capa de evangelhos e bíblias. Fonte: EVANGELHO de Lindau. Século VIII. Livraria Morgan, Nova Iorque, Estados Unidos. Figura 6 – Folha 292 do Manuscrito de Kells (século VIII) W . C om m on s Produzido por monges do mosteiro de Kells, na Irlanda, no final do século VIII, a página ilustra a introdução ao Evangelho de São João. Os códices da arte insular eram ilustrados com imagens que representavam símbolos cristãos e figuras humanas, além de composições geométricas complexas e abstratas. Quanto às cores, notamos o predomínio do vermelho, do marrom, do azul, do preto e do verde e, por vezes, a presença do branco e do preto, além do dourado. No tocante à forma como eram representadas as figuras humanas, Gombrich (2013) chama a atenção para o fato de que nessas imagens a figura humanaé idealizada. Esse padrão manifesta o esforço dos monges cristãos em criar algo em que se percebe a influência tanto da arte nativa quanto da representação da arte clássica greco-romana. O resultado desse esforço são figuras como a que veremos a seguir, na qual o ilustrador procurou representar São Mateus escrevendo o Evangelho (Figura 7). A arte medieval e a evocação do sagrado 73 Observe que o evangelista é representado envolto em sua toga, tal qual a vestimenta dos antigos romanos clássicos. Note a riqueza dos detalhes para representar as dobras de sua vestimenta, os cachos de seus cabelos e os laços de sua sandália. A figura traz, em uma de suas mãos, um chifre – recipiente para a tinta – e, na outra, uma pena, com a qual, muito concentradamente, escreve. A riqueza dos detalhes presentes nos objetos e nas roupas contrasta com o fundo, pintado com poucas cores, com formas difusas e não acabadas. Nesse fundo desproporcional, pouco realista, é possível perceber, na parte posterior, à direita, um ser alado (um anjo) a inspirar o evangelista Mateus. Nas ilustrações dos códices desse período, a figura do evangelista escrevendo de maneira concentrada e séria um texto sagrado evoca a própria figura do monge copista em seu scriptorium. Os monges copistas eram do chamado clero regular, isto é, eram religiosos que viviam isolados do contato com os fiéis, fechados em abadias e mosteiros localizados junto a montanhas, abismos ou florestas. Esse tipo de religioso tem suas origens em São Bento da Núrsia, o qual, no século VI, fundou o primeiro mosteiro, conforme destaca Barbosa (1997, p. 22, grifos do original): Desde as origens do cristianismo, existiam homens e mulheres que buscavam o isolamento da vida mundana como forma de viver os ensinamentos de humildade, penitência, celibato e asceticismo, isto é, o desapego aos valores materiais. Foram chamados monges por viverem sós – do grego monakhos, solitário. No século VI, no Ocidente, um monge chamado Bento de Núrsia (58-547), depois santificado, criou a Regra, em 534, para disciplinar a vida desses solitários, baseando-a no princípio ora et labora – reza e trabalha. Nascia a Ordem Beneditina e, com ela, a divisão do clero [católico] em dois tipos: os reguladores, assim chamados por seguirem a Regra e viverem nos monastérios, isolados dos fiéis; e os seculares, aqueles que viviam em contato com os fiéis e a vida mundana, como os padres e bispos. A busca pelo isolamento acabou levando-os para lugares desabitados como florestas, pântanos e altas montanhas, onde desempenharam o importante papel de ampliar as fronteiras da Cristandade, pois funcionavam como centros de atração para novos povoamentos e, ao mesmo tempo, convertiam as populações rurais mais próximas (daí o sentido original da palavra latina paganus – pagão – significar camponês). G ira ud on /A rt R es ou rc e/ W . C om m on s Fonte: MATEUS escrevendo o Evangelho. c. 830. 1 iluminura, 26 x 20,8 cm. Biblioteca Municipal de Épernay, Épernay, França. Figura 7 – Mateus escrevendo o Evangelho, Evangelho de Ebbo (c. século IX). História da arte: da pintura rupestre ao Pós-Modernismo74 Distantes da vida mundana, os monges se dedicavam a uma vida de orações, penitências e desapego das pessoas e dos bens. Eles também se dedicavam de maneira obstinada ao estudo: em seus pequenos gabinetes de trabalho – o chamado scriptorium (Figura 8) –, passavam horas lendo, compilando, criando e ilustrando páginas de pergaminhos que, encadernadas, compunham os códices. É possível afirmar que a arte medieval se construiu por meio dessas ilustrações – chamadas de iluminuras, criadas pelos iluminadores – que ilustravam os códices. A iluminura é uma forma de expressão que se originou a partir da conquista bárbara da Europa e se difundiu durante toda a Idade Média, tornando-se mais sofisticada a partir dos séculos XII e XIII, quando atingiu seu apogeu, no estilo chamado gótico, conforme veremos mais adiante. Normalmente, as iluminuras eram feitas no interior e ao redor das letras capitulares (Figura 9), isto é, as primeiras letras de um capítulo. Elas também podiam aparecer na página de abertura de um manuscrito ou no interior de um texto. Eram fundamentais para repassar os conteúdos e mensagens que a Igreja pretendia que fossem assimiladas pelos fiéis, em sua maioria camponeses iletrados. Serviam, portanto, não apenas para “iluminar” o texto, mas para evangelizar e doutrinar as pessoas, conforme destaca Gombrich (2013, p. 125): “Lembremos a tese do Papa Gregório Magno [séc. VI – VII] de que ‘a pintura pode fazer pelo analfabeto o que a escrita faz pelos que sabem ler’ [...]”. Figura 8 – O scriptorium Torre de Tábara (c. 1220) Ilustração que representa o scriptorium do Monastério de San Salvador de Tábara, na Espanha. Datada de 1220 (aproximadamente), porém copiada de um manuscrito concluído no ano de 970, trata-se de uma das primeiras imagens em que um scriptorium medieval é representado em um manuscrito. À direita, temos o escriba e o iluminador (que fazia as ilustrações) estendendo as folhas do futuro manuscrito, enquanto um jovem apara, com uma tesoura, um pergaminho. À esquerda, três homens são representados tocando o sino do mosteiro de Tábara. W . C om m on s Fonte: O SCRIPTORIUM Torre de Tábara. c. 1220. The Morgan Libary & Museum, Nova Iorque, Estados Unidos. A arte medieval e a evocação do sagrado 75 É em torno desse propósito – repassar uma mensagem por meio de imagens – que se pode analisar também esculturas e relevos de um período posterior, chamado de Arte Otoniana. Essa tendência floresceu na Alemanha entre o final do século IX e meados do século X, durante o reinado de Otto I (912- -973). Esse período foi caracterizado pela tentativa de reestruturação do antigo Império Franco pelos reis germânicos em aliança com a Igreja Católica – aliança da qual resultou a instituição do Sacro Império Romano-Germânico, localizando na Europa Central. Tanto na arte insular quanto nas demais formas de manifestação artística do período carolíngio e otoniano, prevaleceram temas religiosos, diferentemente da arte clássica greco-romana, em que o ideal que permeava a criação artística era puramente estético. Isso se deu, segundo Hauser (2010, p. 129), porque: para a mentalidade medieval, a religião não podia continuar tolerando uma arte com existência independente, sem consideração de credo, tal como não se aceitava uma ciência autônoma. Como instrumento de educação eclesiástica, a arte era a mais valiosa das duas, pelo menos quando a máxima difusão era o objetivo a alcançar. Mas nem toda a manifestação artística desse período, que vai do final do século X ao comecinho do século XI da nossa era, consistiu na expressão de valores e temas religiosos ou se manifestou somente por meio de iluminuras. Na verdade, uma das mais impressionantes expressões da arte situada entre o fim da Alta Idade Média e o início da Baixa Idade Média4 é uma tapeçaria, conhecida como Tapeçaria de Bayeux. 4 A Idade Média é um período extenso, que abrange 1.000 anos de História do Ocidente e que, por razões óbvias, não foi homogêneo em toda a sua extensão. Assim, historiadores costumam dividir esse período em Alta Idade Média – período correspondente à queda do Império Romano, no século V, e à afirmação do feudalismo, no século X – e Baixa Idade Média – século X ao século XV –, caracterizado, entre outras coisas, pelas Cruzadas, pelo auge e pela decadência do feudalismo e pelo renascimento comercial e urbano. No entanto, historiadores contemporâneos, como Hilário Franco Júnior, na obra A Idade Média: nascimento do Ocidente (2000), subdividem esse período em quatro fases (e não duas). Segundo Franco Júnior, teríamos a Primeira Idade Média ou Antiguidade Tardia (séculos V ao VIII); a Alta Idade Média (séculos VIII ao X); a Idade Média Central (séculos XI, XII e XIII); e a Baixa Idade Média (séculos XIV e XV). Parasaber mais a respeito, sugerimos a leitura de FRANCO JÚNIOR, H. A Idade Média: nascimento do Ocidente. São Paulo: Brasiliense, 2000. Figura 9 – Iluminura em uma letra capitular Iluminura da letra “B”, capitular que abre uma das partes do livro de salmos conhecido como Saltério de São Luís. Esse tipo de capitular era comum na abertura do Salmo 1, em latim Beatus vir. W . C om m on s Fonte: SALTÉRIO DE SÃO LUIS. Verso 30. 1190-1200. 1 pergaminho, 24,5 x 17,7 cm. University Libary, Leiden, Holanda. História da arte: da pintura rupestre ao Pós-Modernismo76 A tapeçaria é, na verdade, um fantástico bordado em linho, com 50 cm de largura e 69 m de comprimento, feito a pedido do Bispo Odo de Bayeux (1030-1097), meio-irmão do líder dos normandos5 conhecido como Guilherme, o Conquistador. A tapeçaria foi confeccionada entre as décadas de 1070 e 1080 e narra, por meio de 58 cenas, o ponto de vista normando sobre a conquista viking da Inglaterra. Além de feitos militares, como a representação da derrota militar sofrida pelas tropas do rei da Inglaterra, Haroldo II, em 1066 (Figura 10), a tapeçaria traz vários desenhos que mostram detalhes do cotidiano e do imaginário medieval. Figura 10 – Extrato da Tapeçaria de Bayeux (1070-1080) Le nu sh /S hu tt er st oc k Fonte: TAPEÇARIA de Bayeux. 1070-1080. 1 bordado em linho, 69 x 50 cm. Musée de la Tapisserie de Bayeux, Bayeux, França. Entre os séculos VIII e IX, à medida em que os normandos avançavam pelo norte, os húngaros seguiam pelo leste e os árabes, a partir do Norte da África, chegavam até a Espanha, no oeste da Europa. O feudalismo se fortalece entre os séculos X e XI no centro-ocidente europeu. Nesse período, a cristandade se afirma e tenta se expandir para além do Mar Mediterrâneo, por meio de uma intervenção armada na Terra Santa, conhecida como Cruzadas (séculos XI e XIII). Nela, envolveram-se nobres, reis e comerciantes europeus na tentativa frustrada de conquistar territórios no Oriente Médio. É nesse período, já na Baixa Idade Média, que outro estilo se afirma na arte medieval, tanto na arquitetura das catedrais quanto nos relevos e nas ilustrações dos manuscritos: o estilo românico. Além desse estilo, o período foi caracterizado também pela forte presença do estilo bizantino, originado no leste europeu, manifesto em imagens de figuras sacras (ícones)6. Mas o esplendor da 5 Os normandos (também chamados de vikings) eram originários do extremo norte da Europa, onde, atualmente, fica a Península Escandinava. Desembarcaram em levas sucessivas pelo Oceano Atlântico e passaram a fazer incursões na Europa Ocidental ao longo dos séculos IX e X. O ataque dos vikings à Europa Central foi inesperado e devastador. Eles vinham de onde menos se esperava: o mar. Antes de se estabelecerem definitivamente e instituírem uma monarquia onde, atualmente, é a Grã-Bretanha, causaram pânico e terror entre os reinos europeus. 6 A palavra ícone vem da língua grega e está associada à imagem. Os ícones eram quadros portáteis que representavam figuras associadas ao universo religioso cristão: Maria (sozinha ou com o Menino Jesus) e Cristo em Majestade, principalmente. Esse tipo de tradição artística teve origem na antiga Grécia, na qual a cultura teve forte influência sobre o Império Bizantino. A arte medieval e a evocação do sagrado 77 arte medieval é atingido com o estilo gótico, o qual, originado no século XII, atinge seu apogeu nos séculos XIV e XV na arquitetura das catedrais e nas iluminuras. É sobre essas três fortes tendências da arte medieval – bizantina, românica e gótica – que trataremos a seguir. 4.3 Estilos da arte medieval: bizantino, românico e gótico 4.3.1 O estilo bizantino No lado oriental da Europa sobrevivia o que havia restado do Império Romano do Oriente, o qual, desde o século VI da nossa era, constituía-se como um império autônomo, independente e forte. O Império Bizantino ficava na antiga cidade de Constantinopla, atual Istambul, Turquia; nele, por volta do século V (HAUSER, 2010), conviviam em torno de 1 milhão de habitantes, das mais diversas etnias (gregos, latinos, persas, judeus) e credos. Apesar dessa diversidade, o Império vivia sob um regime autocrático denominado cesaropapismo, um tipo de governo em que o poder secular e religioso – um catolicismo ortodoxo que rompeu com o romano em 1054 – estava concentrado nas mãos do imperador (HAUSER, 2010). Havia o domínio do imperador sobre a Igreja, sustentado pela teoria do direito divino, cunhada por patriarcas da igreja católica grega. Esse império viveu períodos de ascensão e crise desde as invasões bárbaras, atingindo, sob a época de Justiniano (482-565), que governou entre os anos 527 e 565, sua maior extensão territorial e seu maior esplendor econômico, tendo sido abalado, no entanto, por uma forte crise social interna. Figura 11 – Império Bizantino e sua expansão no reinado de Justiniano N eu ce u/ W . C om m on s A intensa vida econômica e social do Império manifestava-se com toda a sua força na capital, Constantinopla, assim como o poder autocrático dos seus governantes se afirmava junto a uma suntuosa corte, centro político de todas as atenções. É em torno dessa corte e de seu poder História da arte: da pintura rupestre ao Pós-Modernismo78 político-religioso que se manifestam as expressões mais vívidas da arte bizantina, a qual acabaria por influenciar também o Ocidente. As expressões da arte bizantina se mostram presentes, principalmente, na arquitetura das catedrais – como a de Santa Sofia, em Constantinopla, e a de San Vitale, em Ravena, Itália –, nos mosaicos vitrificados que adornam essas catedrais e nas imagens pintadas em painéis de madeira (trípticos) representando figuras sacras (ícones). As pinturas e os mosaicos tinham caráter decorativo, porém evocavam também, de maneira suntuosa, séria e imponente, os ideais do cristianismo, da forma como eram interpretados pelo centro de poder político-religioso do Império, a corte dos reis bizantinos. Os primeiros ícones pintados em madeira, que remontam aos séculos V e VI, tinham como tema central a representação de Teótoco, designação grega para a figura da Virgem Maria com o Menino Jesus, cuja tradução literal seria “portadora de Deus”. Esses primeiros ícones, no entanto, não sobreviveram até o nosso tempo. Versões e reproduções datadas dos séculos XI ao XIV, de origem russa, resistiram aos séculos e nos permitem vislumbrar detalhes interessantes da arte de influência bizantina, tal qual o ícone reproduzido ao lado, intitulado Teótoco de Vladimir (Figura 12). Nos mosaicos bizantinos, figuras religiosas e políticas eram representadas de maneira imponente e hierárquica, dispostas segundo a sua ordem de importância: espaços maiores e centrais eram concedidos às figuras consideradas mais sagradas e/ou importantes politicamente, já os espaços menores eram concedidos às figuras consideradas menos sagradas e/ou menos importantes política e socialmente. As pessoas eram representadas de maneira iconizada, apenas de frente e com posturas rígidas. Um aspecto curioso da arte bizantina, tanto nas pinturas quanto nos mosaicos, é o fato de que os dedos das mãos dos personagens são representados todos do mesmo tamanho, assim como o tamanho de todas as cabeças é o mesmo. Os fundos contra os quais as imagens eram dispostas eram idealizados, figurativos e sem relação com espaços reais, sendo pintados ou elaborados em tom dourado. As paisagens, quando representadas, apresentavam pouca relação com paisagens reais. Nota-se a predominância de três cores: o azul, o ocre e o dourado. Figura 12 – Teótoco de Vladimir (século XI) Fonte: TEÓTOCO de Vladimir. 1100. 1 têmpera sobre madeira, 104 x 69 cm. Galeria Tretyakov, Moscou, Rússia. Tr et ya ko v G al le ry /W . C om m on s https://pt.wikipedia.org/wiki/Galeria_Tretiakov A arte medieval e a evocação do sagrado 79 A opulência do Império Bizantino à época de Justiniano manifesta-setambém na arquitetura e na decoração interna de igrejas como a de Santa Sofia, construída entre os anos de 532 e 537 para ser a catedral de Constantinopla. O estilo único de sua construção integra as várias tendências das construções romanas clássicas com uma estrutura de basílica de base retangular. Projetada pelo arquiteto grego Isidoro de Mileto (442-537) e pelo matemático, também grego, Antêmio de Tales (474-534), a catedral de Santa Sofia (Figura 13) é uma obra colossal na qual se destaca seu domo central. Esse tipo de domo foi projetado pela primeira vez na arquitetura de origem greco-romana. Nele, o quadrado que sustenta as abóbadas esféricas (que apoiam o domo) é formado por quatro arcos, e em sua base estão dispostas quarenta janelas pelas quais a luz penetra. Algumas de suas colunas são de granito e chegam a 20 metros de altura com 1,5 metros de diâmetro, sendo que as maiores pesam em torno de 70 toneladas. Figura 13 – Catedral de Santa Sofia em Istambul, Turquia. Ro be rt R ad er sc ha tt /W . C om m on s A forma como foi projetada a catedral de Santa Sofia, especialmente no que diz respeito à sua divisão interna, ostenta a forte hierarquização social característica do Império Bizantino, como destaca Hauser (2010, p. 137): A planta da basílica, que a primitiva igreja cristã adota do edifício público dos romanos, com sua divisão do interior em seções de diferente categoria e valor, e especialmente a separação do coro, reservado ao clero, do resto do edifício, está mais de acordo com uma concepção aristocrática do que democrática. A arquitetura bizantina, porém, que completa o modelo formal da primitiva basílica cristã acrescentando-lhe a cúpula, leva a uma intensificação adicional da relação hierárquica na qual as diferentes seções do edifício são nitidamente separadas umas das outras. A cúpula, que constituiu por assim dizer a coroa de toda a estrutura, acentua a ruptura entre as diferentes partes do interior. História da arte: da pintura rupestre ao Pós-Modernismo80 Essa hierarquização é manifesta nos mosaicos que adornam o interior de Santa Sofia e também de outras igrejas do período justiniano, como a igreja de San Vitale, construída entre os anos de 526 e 547. Mosaico (Figura 14) é uma palavra de origem grega, mousaikón, cuja significação seria “arte das musas”. É uma forma de expressão artística fortemente presente na cultura romana clássica, que adquiriu um aspecto único na arte bizantina, diferenciando-se do estilo romano e empregando técnicas, inclusive, similares às utilizadas na pintura em afrescos. Composto com pedrinhas de cores diferentes colocadas lado a lado sobre uma superfície (uma parede, por exemplo) feita de argamassa ou gesso, o mosaico é montado de modo que as pedrinhas sejam dispostas para preencher um desenho prévio. Após a colocação das pedrinhas, os espaços entre elas são preenchidos com uma mistura composta de óleo, areia e cal, a qual permite melhor aderência e acabamento. Figura 14 – Justiniano e sua corte (século VI) Jo sé L ui z/ W . C om m on s Fonte: JUSTINIANO I. Século VI. 1 mosaico. Igreja de São Vital, Ravena, Itália. As cenas e personagens são representados de maneira solene e sofisticada. Os mosaicos que adornam as igrejas retratam cenas da vida de Cristo e dos profetas, bem como dos imperadores bizantinos e sua corte, mesclando e entrecruzando rituais estatais e eclesiásticos bem à maneira do cesaropapismo. Tinham, para além de uma função decorativa, um aspecto pedagógico: serviam como guia espiritual e doutrinário para os fiéis ao mesmo tempo em que reforçavam o lugar de cada um dos segmentos sociais, denotando o aspecto fortemente hierárquico da civilização bizantina, inclusive na postura rígida dos personagens representados, em cores puras, simples, nítidas e sem nuances, conforme destaca Hauser (2010, p. 137): A arte medieval e a evocação do sagrado 81 Esse ritual encontrou expressão paradigmática nos mosaicos votivos de São Vitale, os quais, a esse respeito, nunca foram suplantados em épocas subsequentes. Nenhum movimento clássico ou classicizante, nenhuma arte idealista e não abstrata, jamais conseguiu expressar formas e ritmos de modo tão direto e tão puro. Tudo o que seja complicado, tudo o que seja dissolvido em meios-tons ou penumbras está excluído; tudo é simples, claro e óbvio, tudo está contido em contornos bem marcados e nítidos, e expresso sem sombras nem jogos de claro e escuro. A história foi completamente transformada em fausto e ostentação. Justiniano e Teodora, com seus respectivos séquitos, apresentam oferendas votivas – um tema incomum para o coro de uma igreja. Mas, assim como cenas sagradas adquirem o caráter de cerimônias palacianas nessa arte cesaropapista, também as festividades da corte se ajustam sem dificuldade ao quadro do ritual eclesiástico. Na Europa Ocidental, feudal e basicamente rural, na qual a economia era voltada à subsistência, diferentemente da arte bizantina e sua sofisticação, desenvolvia-se, já no final do século X, uma forma de expressão artística caracterizada pela sobriedade: o estilo românico, o qual estudaremos a seguir. 4.3.2 O estilo românico Em decorrência da nova onda de invasões ocorridas entre os séculos VIII e IX e do crescimento do poder ideológico da Igreja Católica, a Europa Centro-Ocidental experienciou um período de isolamento geopolítico e cultural em relação a outros povos, fato que seria quebrado somente com o término das Cruzadas, no século XIII, e a reaproximação com o Oriente. Essa conjuntura intensificou o estabelecimento de vínculos de fidelidade mútua entre reis, seus comandantes militares e subordinados, isto é, fortaleceu as relações feudo-vassálicas, cuja base era a posse de terra, em grande parte concentrada nas mãos da nobreza e do clero. Entre os séculos XI e XIII, a vida social, cultural, econômica e política situava-se ao redor das catedrais, dos mosteiros e dos castelos – fortalezas militares que serviam também como morada para os nobres –, que se concentravam nas regiões mais afastadas dos antigos centros urbanos dos tempos romanos. No seu entorno, ocorriam feiras periódicas, que funcionavam, primeiramente, à base de trocas e nas quais, a partir do século XIII, voltariam a ser usadas moedas. Os séculos XI e XIII representaram a afirmação do feudalismo como estrutura socioeconômica dominante no Ocidente e o predomínio da mentalidade católica como ideologia central, levando em consideração o fato de essa época ser, também, caracterizada pelo crescimento das chamadas heresias, ou seja, compreensões e manifestações não canônicas dos preceitos do cristianismo e que eram combatidas severamente pelos tribunais eclesiásticos. Esse ambiente de vida austera, autossuficiente, reclusa e permeada por uma forte, intensa e, por vezes, opressora religiosidade manifesta-se em uma tendência artística surgida no período, o estilo românico, que contrasta, em sua sobriedade, com a arte colorida e viva do período anterior, marcado pela arte carolíngia (sobretudo pela arte insular) e otoniana, conforme destaca Hauser (2010, p. 183): História da arte: da pintura rupestre ao Pós-Modernismo82 Em conformidade com o espírito não dinâmico da economia e a estrutura estática da sociedade, um conservadorismo severo, inamovível, obstinado domina também o saber, a arte e a literatura do período. A mesma inflexibilidade que vincula a economia e a própria sociedade à tradição também retarda o desenvolvimento de novas ideias na ciência e no saber e embaraça o surgimento de novos modos de experiência em arte. Introduz, no desenvolvimento da arte românica, aquela tendência estabilizadora e paralisante que impede por quase dois séculos qualquer mudança mais profunda de estilo. O estilo românico surgiu na região da Normandia, França, por volta do século X como uma interpretação religiosa de inspiração romana, se expandindo pela Europa Central e predominando entre o final do século X e oinício do século XIII. Manifestou-se, principalmente, na arquitetura e nas pinturas murais das catedrais construídas nessa época na Europa Ocidental. Nas catedrais românicas (Figura 15), que se assemelhavam a fortalezas militares, a fachada era constituída de uma nave central em forma de cubo, ladeada por duas torres cilíndricas ou cúbicas que terminavam em coifas. Essa nave central era atravessada por fachadas laterais, formando, por vezes, o desenho de uma cruz. As colunas que sustentavam a estrutura das catedrais eram quase sempre cilíndricas e terminavam em capitéis de maneira cúbica, nos quais eram entalhadas figuras representando animais e plantas. Nas pinturas murais que decoravam essas catedrais, os artistas misturavam tinta com água de cola ou com cera, para que ela melhor se fixasse no revestimento das paredes. As pinturas eram feitas com o uso de cores variadas. Seus desenhos, inspirados na antiga tradição mural romana e na iconografia bizantina, quase sempre buscavam trazer ao público representações de passagens bíblicas ou da história da vida de santos e mártires, para que servissem de exemplos morais a serem seguidos. Vermelho escuro, laranja, azul, verde e, por vezes, marrom e branco eram cores predominantes. Uma imagem emblemática das pinturas românicas, fossem elas iluminuras ou afrescos no interior das catedrais, era a imagem do Cristo em Majestade (Figura 16), também conhecida como Cristo pantocrator. Ícone do cristianismo medieval, esse tipo de imagem apresenta Jesus Cristo sentado com a mão direita levantada como se ele estivesse dando uma benção ao expectador/fiel. A forma como estão dispostos os seus dedos é repleta de simbolismo religioso: os dedos formam a abreviatura “IC XC”, quatros letras que comporiam o nome Jesus Cristo (IHCOYC XPICTOC). A junção dos três dedos indicaria não somente as letras “I” e “X”, mas também a Ar ac ua do /W . C om m on s Figura 15 – Igreja Sé Velha de Coimbra, Portugal (século XII) A arte medieval e a evocação do sagrado 83 indissolubilidade da Santíssima Trindade (Pai, Filho e Espírito Santo), enquanto o encontro do polegar e do indicador, além de formar a letra “C”, simbolizaria o encontro da natureza humana e divina na pessoa de Cristo. Figura 16 – Abside de Sant Climent de Taüll (c. 1123), Cristo em Majestade de Mestre de Taüll. Th e Yo rc k Pr oj ec t/ W . C om m on s Fonte: MESTRE DE TAÜL. Abside de Sant Climent de Taüll. c. 1123. 1 pintura, 620 x 360 cm. Museu Nacional de Arte da Catalunha, Barcelona, Espanha. Entre os séculos XII e XIII, o estilo românico convive com a eclosão da terceira tendência marcante na arte medieval: o chamado estilo gótico. Esse estilo atinge seu apogeu nos séculos XIV e XV, já caracterizados pelo desenvolvimento de novos padrões estéticos e ideológicos que desembocariam em um movimento de renovação artística (o Renascimento), o qual vamos estudar no próximo capítulo. 4.3.3 O estilo gótico Dentre os povos denominados pelos romanos como bárbaros, destacam-se as tribos godas, predominantes no norte da Europa. O termo gótico vem do estilo de arte influenciada justamente por esse povo e que se difundiu na Europa setentrional entre os séculos XII e XV. O estilo gótico marcou o período das grandes catedrais, sendo que a construção, muitas vezes, era financiada pela burguesia, como forma de exibir seu poder nas cidades. O gótico teve início em meados do século XII na França, onde foi predominante até a metade do século XIV. https://pt.wikipedia.org/wiki/Abside https://pt.wikipedia.org/wiki/Abside História da arte: da pintura rupestre ao Pós-Modernismo84 Em outras regiões europeias, esse estilo se iniciou mais tarde, no século XIII, e se estendeu até meados do século XV. São características desse estilo as linhas puras e a virtualidade das formas, alinhadas a uma moderação ornamental, que, combinadas, buscavam evocar os sentimentos de uma religiosidade moderada, porém profunda. Manifestou-se na arquitetura das catedrais (Figura 17) com seus vitrais coloridos, por onde a luz penetrava suave e era filtrada na forma pontiaguda das torres e abóbodas que se cruzavam. Os arcos, em forma de ogivas, eram contornados por nervuras, as quais, de alguma maneira, refletiam também o caminho tortuoso de uma espiritualidade profunda que elevava a alma. Figura 17 – Catedral da cidade de Reims, França. G . G ar ita n/ W . C om m on s Construída entre 1211 e 1345, essa catedral de estilo gótico mostra, de certa forma, o aspecto tortuoso, porém sublime, de uma espiritualidade profunda, associada a um espírito religioso moderado. A ornamentação, típica tanto da arquitetura quanto da pintura gótica, é resultante do contato entre comerciantes italianos e franceses com o norte da Europa, região em que predominava a arte alegre, colorida e popular de origem bárbara. A vividez e alegria transbordavam tanto nas pinturas (afrescos e iluminuras) quanto nos desenhos dos vitrais, bem como nas formas das esculturas góticas, nas quais as figuras humanas parecem cheias de vida e movimento. Tanto o iluminador quanto o escultor gótico parecem motivados a transmitir vida, movimento e sentimento por meio de sua técnica, conforme destaca Gombrich (2013, p. 145): No decorrer do século XIII, certos artistas foram ainda mais longe em suas tentativas de insuflar vida à pedra. O escultor incumbido de representar os fundadores da catedral germânica de Naumburg, na Alemanha, por volta de 1260, quase nos convence de ter retratado cavaleiros reais do seu tempo [...]. Não é muito provável que fosse isso mesmo: aquelas pessoas haviam morrido muitos anos antes, e não passavam de nomes para ele. Ainda assim, suas estátuas parecem prontas a descer dos pedestais a qualquer momento e juntar-se àqueles vigorosos cavaleiros e damas graciosas cujos feitos e desventuras enchem as páginas de nossos livros de história. A arte medieval e a evocação do sagrado 85 Observe, na Figura 18 a seguir, as esculturas que representam o casal Ekkehard e Uta, que viveram entre os séculos X e XI e foram uns dos fundadores da catedral em estilo romano-gótico de Naumburg, Alemanha, finalizada em 1044. Essas esculturas, assim como as de outros fundadores, adornam o interior da catedral. Quando o escultor as projetou, o casal já havia falecido. Note a expressividade no olhar, os movimentos diferenciados de um e de outro personagem, os detalhes das vestimentas e acessórios: parecem pessoas reais; um casal de posses do século do século XI que a qualquer momento pode se voltar para nós e iniciar uma conversa. Figura 18 – Ekkeard e Uta (século XI), Catedral de Naumburg, Alemanha. Li ns en ge ric ht /W . C om m on s Ao longo do século XIII, o comércio e as feiras renascem na região norte da Europa, assim como na França e na Itália. A vida nas cidades floresce e, com ela, surgem comerciantes, artesãos, banqueiros, artistas etc. As primeiras universidades, surgidas no século XI, expandem-se e, nelas, é gestada uma nova forma de compreensão de mundo: a escolástica, movimento do pensamento filosófico-cristão que procura conciliar, por intermédio da filosofia aristotélica clássica, as exigências da fé com os questionamentos da razão. É nesse ambiente urbano, e em franca ebulição, que são erguidas muitas catedrais em estilo gótico, financiadas por ricos homens de negócios, ansiosos por espiar suas faltas junto a Deus por intermédio de uma Igreja que, ao mesmo tempo em que condenava o lucro, via com bons olhos as doações vindas desses fiéis caridosos. O mercado de trabalho para escultores e arquitetos se amplia à medida que essas catedrais suntuosas são erguidas. Por outro lado, o principal meio de trabalho para os desenhistas e pintores ainda eram as iluminuras dos códices (GOMBRICH, 2013). Entre os séculos XIII e XV, esse tipo de arte atinge seu apogeu, vindo a declinar posteriormente. As pinturas murais se intensificam, sobretudo, na Itália do século XIV, onde o apogeudo estilo gótico coincidiria com o início de um período de renascimento artístico e cultural. Na pintura das iluminuras e dos murais, as cenas representadas ainda têm forte influência do ideário religioso, porém é mais colorida e alegre, contrastando com a rigidez do estilo românico. Nas bíblias e livros de salmos do período (saltérios), nas imagens que supostamente representariam História da arte: da pintura rupestre ao Pós-Modernismo86 passagens bíblicas, vemos homens e mulheres vestidos como pessoas dos séculos XIII e XIV, e não como pessoas da época do Antigo Testamento. Diferentemente da forma rígida das figuras humanas das iluminuras românicas, as pessoas representadas nas iluminuras góticas apresentam expressividade, movimento, sentimento e originalidade. As cores são mais vivas, mais intensas, indo do amarelo e do vermelho para o azul, o roxo e o lilás; é possível perceber também a profusão de meios-tons e a preocupação do artista gótico em tentar retratar o fundo com um maior realismo e alguma profundidade. Observe, por exemplo, a iluminura a seguir (Figura 19), que ilustra a chamada Bíblia Morgan, manuscrito do século XIII. A cena representada seria um fato bíblico: a expulsão dos israelitas. No entanto, os povos em batalha são representados com armaduras, elmos, lanças e escudos do século XIII. Perceba o esforço do artista em atribuir a ilusão de intenso movimento à cena em um espaço tão pequeno no meio do texto: há cavalos caídos, homens mortos, cavaleiros em posição de ataque e um arqueiro pronto para atirar do alto da torre. Figura 19 – Expulsão dos Israelitas, Bíblia Morgan (século XIII). W . C om m on s Fonte: EXPULSÃO dos israelitas. In: Bíblia Morgan. c. 1240. 1 iluminura. Biblioteca Pierpont Morgan, Nova Iorque, Estados Unidos. Ainda, é importante destacar que o ideário franciscano de vida – difundido por Francisco de Assis e pelos religiosos da ordem por ele fundada no século XIII – representa aspectos de uma vida simples e religiosa, em harmonia com a natureza. Esses aspectos marcam o reencontro do ser humano com o mundo natural, revalorizado como um aspecto importante do sagrado. Considerações finais Estudamos neste capítulo a constituição da temporalidade Idade Média tanto em seus aspectos históricos (econômicos, políticos e sociais) quanto conceituais e teóricos. Na sequência, abordamos alguns dos movimentos da expressão artística medieval, com destaque para: a arte A arte medieval e a evocação do sagrado 87 insular, no período carolíngio; o estilo bizantino, na Alta Idade Média; e os estilos românico e gótico, na Baixa Idade Média. O objetivo foi problematizar e, quem sabe, desconstruir a percepção segundo a qual a Idade Média foi uma “Idade das Trevas”, demonstrando o esforço dos artistas medievais, em consonância com seu tempo e possibilidades técnicas, em conciliar as exigências da fé cristã católica – como ideologia predominante – com a liberdade criativa que a expressão artística propicia. Ampliando seus conhecimentos • O NOME da Rosa. Direção: Jean-Jacques Annaud. Produção: Bernd Eichinger et al. Intérpretes: Sean Connery, Christian Slater, F. Murray Abraham, Michael Lonsdale, Valentina Vargas. Roteiro: Andrew Birkin et al. Alemanha: 20th Century Fox Film Corporation, 1986. (130 min). Esse filme é baseado na obra homônima do escritor italiano Umberto Ecco (1932-2016), um romance policial publicado em 1980. Ambientado na Baixa Idade Média, no ano de 1327, conta a história de um monge franciscano, William de Baskerville (Sean Connery), e de um noviço, Adso von Melk (Christian Slater), que chegam para um conclave religioso em um mosteiro isolado no norte da Itália. A atenção para com o conclave é desviada para uma série de assassinatos que começam a acontecer no mosteiro e para os quais os monges lá residentes dão uma explicação sobrenatural. Baskerville tenta desvendar o mistério com a ajuda de Adso pautando sua investigação em critérios empíricos e científicos. No filme, é retratada a rotina dos monges copistas medievais e há uma referência interessante à influência do pensamento aristotélico sobre a filosofia da época, a escolástica. • THE ANIMATED Bayeux Tapestry. 2009. 1 vídeo (4 min). Publicado pelo canal Potion Pictures. Disponível em: https://youtu.be/LtGoBZ4D4_E. Acesso em: 8 nov. 2019. Você quer se sentir em meio a uma das maiores conquistas e aventuras ocorridas durante a Idade Média? Quer conhecer mais sobre a chegada dos normandos (vikings) e a conquista da Inglaterra? Esse vídeo mostra com detalhes as imagens que ilustram a Tapeçaria de Bayeux, obra que narra diversos acontecimentos importantes; confira nesse vídeo uma versão animada desse importante registro da arte medieval. Atividades 1. Discorra sobre a construção teórica do conceito Idade Média e suas implicações históricas. 2. Explique a relação entre a expressão artística e o ideal religioso-político relativos ao modelo cesaropapista à época de Justiniano no Império Bizantino. 3. Analise as pinturas, construções e esculturas reproduzidas neste capítulo e estabeleça uma relação comparativa entre os estilos românico e gótico, apontando pelo menos duas diferenças entre eles. http://www.adorocinema.com/personalidades/personalidade-2331/ História da arte: da pintura rupestre ao Pós-Modernismo88 Referências ANDERSON, P. Passagens da Antiguidade ao feudalismo. 5. ed. São Paulo: Brasiliense, 1998. BARBOSA, E. S. Origem e formação da Igreja Católica. In: BARBOSA, E. S. A encruzilhada das civilizações: católicos, ortodoxos e muçulmanos no velho mundo. São Paulo: Moderna, 1997. GOMBRICH, E. H. A História da arte. Rio de Janeiro: LTC, 2013. HAUSER, A. História social da arte e da literatura. Trad. de A. Cabral. São Paulo: Martins Fontes, 2010. KOSELLECK, R. Futuro passado: contribuição à semântica dos tempos históricos. Rio de Janeiro: Contraponto, 2006. MATTHEW, D. Europa medieval. Barcelona: Ediciones Folio, 2006. (Coleção Grandes Civilizações do Passado). 5 O Renascimento e o desenvolvimento da autonomia artística Vania Maria Andrade Se no século XIII a religião era o foco da representação artística, o início do século XIV presencia, na Itália, um período de mudanças significativas no modo de fazer arte, originando o “primeiro período da história a ser consciente de sua própria existência e também a cunhar um termo para se autodesignar” (JANSON; JANSON, 2001, p. 168). Esta transição foi gradual, visto que não se tratou de um rompimento repentino com a forma de expressão da Idade Média, mas, aos poucos, foi surgindo a consciência de uma nova forma de pensar e se expressar. É justamente esse momento que vamos estudar neste capítulo, isto é, o período renascentista e os principais artistas desse movimento. 5.1 O conceito de Renascimento e seus fundamentos estéticos A transição do século XIII para o século XIV foi repleta de transformações. Segundo Gombrich (2012), para os italianos, a Idade Média representou a interrupção de uma época de glória, já que Roma era considerada o centro do mundo civilizado e vivia seu apogeu cultural. A invasão de povos bárbaros – como os godos – ocasionou a queda do Império. A arte produzida nesse período foi chamada de gótica, tendo conotação pejorativa, assim como o termo bárbaro. Desse modo, havia, por meio da arte, da ciência e do saber, o anseio pela retomada do período clássico, isto é, anterior à invasão bárbara. Essa retomada aconteceu gradualmente, com uma nova forma de representação do espaço nas pinturas, presentes em produções artísticas de expoentes como Giotto di Bondone (1266/76-1337), Duccio di Buoninsegna (1278-1318) e Simone Martini (1284-1344), que criaram obras que mudaram a arte ocidental. Giotto nasceu em Florença, grande centro comercial da época. Suas pinturas foram revolucionárias, pois foi ele quem começou a retratar as figuras com volume, sem o aspecto estilizado típico da arte gótica. O espaço pictórico nas suas obras passa a transmitir asensação da profundidade, trazendo a cena para um mundo real e saindo do mundo meramente plano. Como destacam Janson e Janson (2001, p. 150), “para aqueles que viram pela primeira vez esse tipo de pintura, o efeito deve ter sido tão espetacular quanto os primeiros filmes em Cinerama”. O artista inovou a linguagem pictórica e é considerado o pai da pintura europeia moderna. godos: “povo germânico [...] que se espalhou pela Europa nos primeiros séculos de nossa era” (HOUAISS, 2009). pictórica: linguagem que destaca as características da pintura de cada artista ou de um determinado período. História da arte: da pintura rupestre ao Pós-Modernismo90 Figura 1a – A entrada em Jerusalém (c. 1305), de Giotto di Bondone W ik iA rt Fonte: DI BONDONE, G. A entrada em Jerusalém. c. 1305. 1 afresco, color., 200 x 185 cm. Capela de Scrovegni (Arena), Pádua, Itália. O afresco A entrada em Jerusalém (Figura 1a) encontra-se na Capela de Scrovegni, popularmente conhecida como Capela Arena (pois fica ao lado de uma arena romana), na cidade de Pádua, Itália. A capela foi construída a mando de Enrico Scrovegni com o objetivo de amenizar seus pecados, já que ele era um cobrador de impostos. Em um dos afrescos, Scrovegni é retratado entregando a capela para a Virgem Maria. A pintura da capela foi realizada por Giotto, que a cobriu de afrescos em todas as paredes e no teto. O artista representou histórias bíblicas em uma narrativa contínua, iniciando-a com o nascimento de Maria e os avós de Cristo (CAPELLA..., 2013). Embora ainda não existisse, nesse período, a perspectiva linear1, Giotto constrói espaços arquitetônicos e desenvolve a sensação de perspectiva para as figuras sagradas, que anteriormente eram retratadas apenas sobre fundos dourados. Nessa obra, a cena se desenvolve em primeiro plano, como se fosse uma continuação do espaço em que estamos. O artista consegue conferir tridimensionalidade na representação do espaço e volume nas figuras. Observe a pintura mais uma vez na Figura 1b: 1 “Quando empregamos as ferramentas da perspectiva geométrica (algumas vezes chamada de perspectiva linear), é possível criar um desenho que transmita aos espectadores como seria visualizar uma determinada cena de um ponto de vista específico” (COMBS; HODDINOTT, 2016, p. 206, grifo do original). perspectiva: “técnica de representação tridimensional que possibilita a ilusão de espessura e profundidade das figuras” (HOUAISS, 2009). O Renascimento e o desenvolvimento da autonomia artística 91 Figura 1b – Detalhes da pintura A entrada em Jerusalém W ik iA rt III I IV II • Em I são retratados alguns apóstolos. Os halos dourados indicam os demais que não estão retratados, uma forma de representação mais simbólica e medieval. • Em II é possível perceber que – nesta e em muitas das cenas retratadas nas paredes da capela – Cristo é mostrado de perfil, modo tradicional de os romanos representarem figuras célebres (nas moedas, as autoridades eram impressas de perfil). • Do lado oposto (III), em uma sequência quase cinematográfica, uma pessoa começa a tirar uma peça de roupa puxando-a pela manga; outra tira pela cabeça; e, por fim, outra pessoa deposita a vestimenta aos pés do burro como um ato de respeito. • Por fim, na vestimenta de Cristo (IV), existem manchas azuis de tinta descascada. Isso ocorre em razão de o pigmento azul ultramarino ser um dos mais caros da época, proveniente da pedra semipreciosa lápis-lázuli. Scrovegni, então, não quis que o brilho do azul fosse ofuscado pelo gesso. Como a capela é toda pintada na técnica do afresco, um processo no qual o pigmento é diluído na água e pintado sobre a camada de gesso úmido, Giotto teve que utilizar a técnica do afresco seco, isto é, o pintor precisou esperar a camada de gesso secar, e, desse modo, a tinta não aderiu com tanta eficácia como no afresco tradicional (HARRIS; ZUCKER, 2015). História da arte: da pintura rupestre ao Pós-Modernismo92 É na cidade rival de Florença, Siena, que surgem outros artistas importantes desse período. Duccio di Buoninsegna não rompeu radicalmente com a representação gótica, mas lhe conferiu nova expressão. A Figura 2a, a seguir, é parte da obra Maestà (Figura 2b) (MAC FARLAND, 2015): Figura 2a – Detalhe de Maestà (1308-1311), de Duccio di Buoninsegna W ik iA rt A Virgem Maria ocupa grande parte do painel central desse políptico, que é formado por muitos pequenos painéis, pintados nas partes da frente e de trás. No século XIV, o principal suporte para pintura eram painéis de madeira. Maria é representada dos dois lados do políptico: na frente, em cenas da sua vida, e na parte de trás, na qual é mostrada a vida de Cristo. É importante ressaltar que, no período medieval, a Virgem Maria era considerada um elemento de comunicação entre as pessoas comuns e Cristo. No século XIII, a cidade de Siena venceu Florença na Batalha de Montaperti (1260)2, e a vitória foi creditada a uma graça de Maria. Mais tarde, Duccio di Buoninsegna ficou encarregado de criar uma pintura para o altar da catedral em homenagem à Virgem, como forma de agradecimento. Como as cidades eram competitivas, essa obra foi também uma resposta à pintura da Capela de Scrovegni (decorada por Giotto). A Virgem é a maior figura do painel, e o azul do seu manto é intenso, o que demonstra também o valor da obra, pois provavelmente foi necessário utilizar uma grande quantidade de lápis-lázuli para produzir o pigmento azul ultramarino. Além disso, muitas áreas são cobertas com ouro. Duccio criou uma maneira de conferir massa e volume às figuras e trabalhou com áreas de luz e sombra, que podem ser observadas no pescoço e nas dobras das roupas. Os santos, profetas e anjos encontram-se alinhados em três fileiras da seguinte maneira: 2 Mencionada na obra A divina comédia (1304), de Dante Alighieri (1265-1321), foi uma batalha sangrenta travada entre Florença e Siena. políptico: quadro que era pintado em vários painéis. O Renascimento e o desenvolvimento da autonomia artística 93 Figura 2b – Políptico Maestá (1308-1311), de Duccio di Buoninsegna I II III IV Fonte: DI BUONINSEGNA, D. Maestá ou Virgem Maria em majestade (frente do políptico). 1308-1311. 1 têmpera sobre madeira. Museu da Ópera Metropolitana del Duomo, Siena, Siena, Itália. • Em I estão quatro santos. • Em II encontramos santos e anjos. • A fileira III parece uma continuidade de anjos. Os olhares dos anjos dão uma atmosfera informal ao se dividirem entre olhar ao longe a figura de Maria, a criança e o espectador da obra. • Predela (IV) é nome que se dá à faixa de painéis menores no inferior de um retábulo. Ela retrata figuras adicionais ou episódios da vida de Cristo, de Maria ou de santos (MEAGHER, 2010). História da arte: da pintura rupestre ao Pós-Modernismo94 Simone Martini foi discípulo de Duccio, e em suas produções podemos ver influências de seu mestre e de Giotto. O uso de elementos decorativos e delicados – como uma miniatura detalhada, presentes nas obras de Duccio e de Martini – é uma característica da pintura da região de Siena. A técnica refinada de Martini para detalhes narrativos o transformou em um dos artistas mais famosos de sua época. Observe a obra Anunciação e os Santos Ansano e Maxima (Figura 3): Figura 3 – Anunciação e os Santos Ansano e Maxima (1333), de Simone Martini e Lippo Memmi. W ik iA rt Fonte: MARTINI, S.; MEMMI, L. Anunciação e os Santos Ansano e Maxima. 1333. 1 têmpera sobre madeira, 184 x 210 cm. Galeria Uffizi, Florença, Itália. Os elementos retratados no cenário – o piso de mármore, a cadeira alta ricamente esculpida, os tecidos preciosos e o livro que Maria tem nas mãos – indicam o estilo de vida da classe alta do século XIV. Na representação desse famoso tema bíblico, Martini e seu cunhado Memmi colocam o anúncio saindo literalmente da boca do arcanjo Gabriel, com a inscrição em relevo no fundo dourado: Ave gratia plena Dominus tecum3.O manto ainda em agitação e as asas abertas (que se encaixam dentro do arco ogival) indicam que sua aparição foi repentina, causando surpresa, o que faz Maria segurar o manto e se esquivar (para se emoldurar em outro arco). No centro, ao alto, o Espírito Santo, que está retratado em forma de pomba, está rodeado de anjos, e na mesma direção, no chão, está um vaso com lírios, símbolo da pureza da Virgem. Quatro profetas são representados ao alto: Jeremias, Ezequiel, Isaías e Daniel. Na lateral, o mártir Ansano – santo padroeiro de Siena – traz a bandeira com as cores da cidade. No outro lado, há a representação de Maxima (mãe de Ansano) ou Margherita (ANNUNCIAZIONE..., 2019). Esses artistas representam a transição da arte sacra da Idade Média para a arte humana do Renascimento. O nome Renascimento encaixou-se adequadamente a esse momento em que principalmente os italianos pretendiam fazer renascer a glória da Antiguidade Clássica. 3 Em português, “Ave cheia de graça” (tradução nossa). O Renascimento e o desenvolvimento da autonomia artística 95 Por meio do conhecimento geométrico, o Renascimento trouxe uma nova forma de enxergar e representar o mundo, fato que conferiu às produções artísticas a impressão de profundidade e volume. Os artistas aprenderam a utilizar a perspectiva nas representações planas – bidimensionais – como a pintura e o desenho, dando-lhes a ilusão de tridimensionalidade. 5.2 O Humanismo e as origens do pensamento renascentista Os afrescos produzidos por Giotto na Capela da Arena, em Pádua, impressionaram poetas humanistas como Dante Alighieri (1265-1321), Giovanni Boccaccio (1313-1375) e Francesco Petrarca (1304-1374), além de provocarem elogios por sua forma inovadora de trabalhar com naturalismo e clareza de composição e pela presença volumétrica e escultural de suas figuras (MEAGHER, 2010). De acordo com Gombrich (2012), Giotto é mencionado no poema A divina comédia, de Dante, e Simone Martini era amigo Petrarca. Essas relações estão na base do movimento renascentista. Para Janson e Janson (2001, p. 168), Petrarca “corporifica duas características proeminentes do Renascimento: o individualismo e o humanismo”. Em linhas gerais, o Humanismo foi um “movimento intelectual difundido na Europa durante a Renascença e inspirado na civilização greco-romana, que valorizava um saber crítico voltado para um maior conhecimento do homem e uma cultura capaz de desenvolver as potencialidades da condição humana” (HOUAISS, 2009). Petrarca (Figura 4) é considerado o primeiro humanista da história e tornou-se referência do movimento, difundindo seus ideários em países como a Itália e a França. Enquanto na Idade Média a figura divina era o centro do universo (teocentrismo), no Renascimento, o homem é considerado o centro desse mesmo universo, o que chamamos de antropocentrismo. Nos séculos XIV e XV, a cidade de Florença, na Itália, destaca-se como centro de aprendizado humanista e palco dos florescimentos artístico, humanístico, tecnológico e científico. A cultura renascentista pesquisa e inspira-se nos feitos da Antiguidade Clássica para promover novos estudos e desenvolver o potencial intelectual dos indivíduos. Os humanistas não tinham a intenção de repetir as obras do período clássico, mas sim estudá-las e superá-las. O resultado desse movimento foi uma série de inovações e descobertas em diversas áreas do conhecimento, como matemática, medicina, engenharia, arquitetura, artes visuais e literatura. Grande parte desses feitos se deve ao financiamento da família Médici, bem como de comerciantes e banqueiros, que exerciam o poder em Florença (FLORENCE..., 2002). W ik iA rt Figura 4 – Petrarca (c. 1450), retratado por Andrea del Castagno. Fonte: DEL CASTAGNO, Andrea. Petrarca. c. 1450. 1 afresco, 153 cm x 247 cm. Galeria Uffizi, Florença, Itália. História da arte: da pintura rupestre ao Pós-Modernismo96 5.3 Fases do Renascimento italiano Considera-se Renascimento, geralmente, o período compreendido entre meados do século XIV até o século XVI. Contudo, as definições de períodos históricos em arte não devem ser consideradas rigidamente, uma vez que existem fases de transição e um período não termina para que o seguinte se inicie. Essas divisões e designações contribuem para um melhor entendimento sobre o tema. Como o Renascimento abrange três séculos, convencionou-se dividi-lo em trecento (século XIV), quattrocento (século XV) e cinquecento (século XVI). A nomenclatura italiana refere-se ao berço renascentista, embora o movimento tenha se espalhado pelo continente europeu. 5.3.1 Trecento O trecento (em português, trezentos) é o período que se segue à Idade Média (1300-1399). Frequentemente considerado o pré-Renascimento, alguns historiadores não consideram essa terminologia adequada, pois parece diminuir a importância de artistas – como Giotto, que, na verdade, foi um dos primeiros artistas a produzir inovações com suas obras. Na arte desse período de transição ainda aparecem elementos medievais, como o uso da folha de ouro e a representação religiosa em trípticos ou polípticos. É possível observar que as figuras começam a ganhar volume e acontece o início da representação tridimensional. As maiores manifestações se passam nas cidades italianas de Florença e Siena, grandes centros culturais e comerciais da época. Além de artistas como Giotto, Duccio e Simone Martini, podemos mencionar os irmãos Pietro (1280/25-1348) e Ambrogio Lorenzetti (1290-1348), nascidos em Siena e fortemente influenciados pela produção de Martini. A Figura 5, a seguir, integra o conjunto de afrescos Alegoria do Mau Governo (c. 1337-1340), Alegoria do Bom Governo (1340) e Alegoria do Bom Governo e seus efeitos na Cidade e no Campo (c. 1337-1340). Trata-se de obras de relevância histórica, que mostram uma visão utópica e alegórica dos irmãos que faleceram (acredita-se) em razão da peste bubônica. Figura 5 – Efeitos do Bom Governo na cidade (c. 1338-1339), de Ambrogio Lorenzetti. W ik iA rt Fonte: LORENZETTI, A. Efeitos do Bom Governo na cidade. c. 1338-1339. 1 afresco. Palazzo Pubblico de Siena, Siena, Itália. R. M .N ./ R. -G . O jé da /W . C om m on s Figura 6 – Iluminura em estilo internacional Fonte: LIMBOURGH Paul; LIMBOURGH Jean. Agosto. In: As riquíssimas horas do Duque de Berry. 1412-1416. Pintura em pergaminho, 22,5 cm x 13,6 cm. Museu Condé, Chantily, França. O Renascimento e o desenvolvimento da autonomia artística 97 5.3 Fases do Renascimento italiano Considera-se Renascimento, geralmente, o período compreendido entre meados do século XIV até o século XVI. Contudo, as definições de períodos históricos em arte não devem ser consideradas rigidamente, uma vez que existem fases de transição e um período não termina para que o seguinte se inicie. Essas divisões e designações contribuem para um melhor entendimento sobre o tema. Como o Renascimento abrange três séculos, convencionou-se dividi-lo em trecento (século XIV), quattrocento (século XV) e cinquecento (século XVI). A nomenclatura italiana refere-se ao berço renascentista, embora o movimento tenha se espalhado pelo continente europeu. 5.3.1 Trecento O trecento (em português, trezentos) é o período que se segue à Idade Média (1300-1399). Frequentemente considerado o pré-Renascimento, alguns historiadores não consideram essa terminologia adequada, pois parece diminuir a importância de artistas – como Giotto, que, na verdade, foi um dos primeiros artistas a produzir inovações com suas obras. Na arte desse período de transição ainda aparecem elementos medievais, como o uso da folha de ouro e a representação religiosa em trípticos ou polípticos. É possível observar que as figuras começam a ganhar volume e acontece o início da representação tridimensional. As maiores manifestações se passam nas cidades italianas de Florença e Siena, grandes centros culturais e comerciais da época. Além de artistas como Giotto, Duccio e Simone Martini, podemosmencionar os irmãos Pietro (1280/25-1348) e Ambrogio Lorenzetti (1290-1348), nascidos em Siena e fortemente influenciados pela produção de Martini. A Figura 5, a seguir, integra o conjunto de afrescos Alegoria do Mau Governo (c. 1337-1340), Alegoria do Bom Governo (1340) e Alegoria do Bom Governo e seus efeitos na Cidade e no Campo (c. 1337-1340). Trata-se de obras de relevância histórica, que mostram uma visão utópica e alegórica dos irmãos que faleceram (acredita-se) em razão da peste bubônica. Figura 5 – Efeitos do Bom Governo na cidade (c. 1338-1339), de Ambrogio Lorenzetti. W ik iA rt Fonte: LORENZETTI, A. Efeitos do Bom Governo na cidade. c. 1338-1339. 1 afresco. Palazzo Pubblico de Siena, Siena, Itália. R. M .N ./ R. -G . O jé da /W . C om m on s Figura 6 – Iluminura em estilo internacional Fonte: LIMBOURGH Paul; LIMBOURGH Jean. Agosto. In: As riquíssimas horas do Duque de Berry. 1412-1416. Pintura em pergaminho, 22,5 cm x 13,6 cm. Museu Condé, Chantily, França. A Peste Negra foi um acontecimento devastador que atingiu o crescimento dessa região entre 1347 e 1349 e matou mais da metade da população. Transmitida pelos ratos, é citada pelo humanista florentino Giovanni Boccaccio na obra Decamerão (1353). Muitos acreditavam que a ira divina tinha assolado a população, pois a influência religiosa ainda era muito forte (AMBROGIO LORENZETTI, 2019). Por volta de 1390, o pintor italiano Cennino Cennini (c. 1370-1440) escreve um dos mais antigos documentos sobre arte: um tratado sobre pintura chamado Il Libro dell’arte (MEAGHER, 2010). Surge, ainda nesse século, o estilo internacional de pintura, resultante da fusão das tradições italianas com toda a Europa Ocidental. Destaca-se a delicadeza e um realismo de detalhes que podem ser observados em iluminuras dos irmãos Limbourgh (Figura 6) (JANSON; JANSON, 2001). 5.3.2 Quattrocento É o período que engloba todo o século XV. A cidade de Florença, centro cultural e comercial da época, era chamada de Nova Atenas, e os artistas florentinos se propuseram a explorar uma nova forma de ver a arte (JANSON; JANSON, 2001). Considerado o primeiro arquiteto renascentista, Filippo Brunelleschi (1377-1446), também escultor, estudou a arquitetura clássica e transformou-a de maneira inovadora. Segundo Janson e Janson (2001), Brunelleschi registrou as medidas exatas dos monumentos antigos, racionalizando-as com base em círculos e quadrados, trabalhando, a partir delas, com a repetição de uma medida, obtendo harmonia e proporção. Gombrich (2012) destaca que seus passos foram seguidos por arquitetos de períodos posteriores por pelo menos 500 anos. O artista adquiriu fama ao projetar a cúpula da catedral de Florença, conseguindo preencher um imenso espaço entre pilares, algo completamente novo para a época. História da arte: da pintura rupestre ao Pós-Modernismo98 Figura 7 – Arquitetura renascentista W ik iA rt Fonte: BRUNELLESCHI, F. Cúpula da Catedral de Santa Maria del Fiore. 1420-1436. Florença, Itália. Foi também Brunelleschi quem desenvolveu os conceitos de perspectiva e proporção linear e revolucionou o campo da arte por meio de experimentos sobre o espaço ilusionista. O pintor Masaccio4 foi um dos primeiros artistas a utilizar os conhecimentos de perspectiva linear no afresco A Trindade (Figura 8). Masaccio, que significa desajeitado, foi o principal pintor desse século, mesmo tendo vivido apenas 28 anos incompletos. No afresco A Trindade (Figura 8), o pintor retrata – com base na arquitetura de Brunelleschi – a santíssima trindade: Pai Eterno, Filho (Jesus Cristo crucificado) e Espírito Santo (na forma de uma pomba); mais abaixo na imagem estão a Virgem Maria e São João Evangelista. O artista se representa na figura de São João. Nos dois lados, abaixo, estão os doadores, ou seja, quem encomendou a obra. Eles estão representados na mesma proporção humana, o que não aconteceria anteriormente; os doadores eram representados em tamanho menor do que as imagens sagradas. Esse detalhe revela o teor humanístico da obra. Após a morte de Brunelleschi, o artista humanista Leon Battista Alberti (1404-1472) começa a se destacar na arquitetura, conseguindo adaptar as formas clássicas em construções mais residenciais. Alberti escreveu uma série de tratados: Sobre Pintura (1435-1436), Sobre Arquitetura (c.1450) e Sobre Escultura (c. 1464), dedicando-os a Brunelleschi (FLORENCE..., 2002). 4 Forma popular pela qual era conhecido o pintor Tommaso di Ser Giovanni di Simone (1401-1428). W ik iA rt Figura 8 – Perspectiva linear na pintura Fonte: MASACCIO. A Trindade. 1427-1428. 1 afresco, 667 x 317 cm. Santa Maria Novella, Florença, Itália. W ik iA rt Figura 9 – Quattrocento na escultura Fonte: DONATELLO. São Jorge. 1416. Orsanmichele, Florença, Itália. O Renascimento e o desenvolvimento da autonomia artística 99 Figura 7 – Arquitetura renascentista W ik iA rt Fonte: BRUNELLESCHI, F. Cúpula da Catedral de Santa Maria del Fiore. 1420-1436. Florença, Itália. Foi também Brunelleschi quem desenvolveu os conceitos de perspectiva e proporção linear e revolucionou o campo da arte por meio de experimentos sobre o espaço ilusionista. O pintor Masaccio4 foi um dos primeiros artistas a utilizar os conhecimentos de perspectiva linear no afresco A Trindade (Figura 8). Masaccio, que significa desajeitado, foi o principal pintor desse século, mesmo tendo vivido apenas 28 anos incompletos. No afresco A Trindade (Figura 8), o pintor retrata – com base na arquitetura de Brunelleschi – a santíssima trindade: Pai Eterno, Filho (Jesus Cristo crucificado) e Espírito Santo (na forma de uma pomba); mais abaixo na imagem estão a Virgem Maria e São João Evangelista. O artista se representa na figura de São João. Nos dois lados, abaixo, estão os doadores, ou seja, quem encomendou a obra. Eles estão representados na mesma proporção humana, o que não aconteceria anteriormente; os doadores eram representados em tamanho menor do que as imagens sagradas. Esse detalhe revela o teor humanístico da obra. Após a morte de Brunelleschi, o artista humanista Leon Battista Alberti (1404-1472) começa a se destacar na arquitetura, conseguindo adaptar as formas clássicas em construções mais residenciais. Alberti escreveu uma série de tratados: Sobre Pintura (1435-1436), Sobre Arquitetura (c.1450) e Sobre Escultura (c. 1464), dedicando-os a Brunelleschi (FLORENCE..., 2002). 4 Forma popular pela qual era conhecido o pintor Tommaso di Ser Giovanni di Simone (1401-1428). W ik iA rt Figura 8 – Perspectiva linear na pintura Fonte: MASACCIO. A Trindade. 1427-1428. 1 afresco, 667 x 317 cm. Santa Maria Novella, Florença, Itália. W ik iA rt Figura 9 – Quattrocento na escultura Fonte: DONATELLO. São Jorge. 1416. Orsanmichele, Florença, Itália. A escultura também reflete a nova forma de representação da figura humana, como podemos observar na estátua de São Jorge esculpida por Donatello5 (Figura 9). A obra mostra a preocupação do artista nos estudos da figura humana, observada pela articulação do corpo, pela possibilidade de movimento e pela postura com o peso sobre uma das pernas (JANSON; JANSON, 2001). Donatello trabalhou com o escultor florentino Lorenzo Ghiberti (1381-1455), que venceu Brunelleschi em uma competição para realizar as portas de bronze do Batistério de Florença. A produção artística de Ghiberti revela uma arte em transição do gótico internacional para as inovações renascentistas. Dessa mesma forma é a produção do pintor florentino e frade dominicano Fra Angelico6, que, ao adaptar as inovações de Masaccio, tornou-se um pintor muito requisitado após a morte deste (FLORENCE..., 2002). Na segunda metade do século XV, o pintor Sandro Botticelli (1445-1510) produziu obras que demonstram a sua maturidade profissional. Dentre elas estão as alegorias mitológicas Primavera (1482) e O nascimento de Vênus (1485-1486) (Figura 10). Figura 10 – O nascimento de Vênus (1485),de Sandro Botticelli. W ik iA rt Fonte: BOTICELLI, S. O nascimento de Vênus. 1485. Têmpera sobre tela, 280 x 180 cm. Galeria Uffizi, Florença, Itália. 5 Forma popular pela qual era conhecido o escultor Donato di Niccoló di Betto Bardi (1386-1466). 6 Nome pelo qual era popularmente conhecido Giovanni da Fiesole, nascido Guido di Pietro Trosini (1395-1455). História da arte: da pintura rupestre ao Pós-Modernismo100 É possível observar, na obra da Figura 10, a ênfase dada aos contornos e a despreocupação com profundidade e tridimensionalidade. Vênus nasce da espuma do mar – em um sopro dos deuses eólicos –, e a ninfa se prepara para vesti-la com um manto florido. De acordo com Gombrich (2012, p. 264), “a Vênus de Botticelli é tão bela que não nos apercebemos do comprimento incomum de seu pescoço, ou o acentuado caimento dos seus ombros e o modo singular como o braço esquerdo se articula ao tronco”. Muitos outros artistas se destacaram ainda no quattrocento, como Luca della Robbia (1400-1482), Piero della Francesca (1416-1492), Paolo Ucello (1397-1475), Andrea Mantegna (1431-1506) e Antonio Pollaiuolo (1429-1498). 5.3.3 Cinquecento Segundo Gombrich (2012, p. 287), o “início do século XVI, il cinquecento, constitui o mais famoso período da arte italiana e um dos maiores de todos os tempos”. O século anterior marca o nascimento daqueles que seriam considerados os verdadeiros gênios renascentistas. É, portanto, no século XVI que eles adquirem fama, concluindo suas maiores produções, consolidando a arte como ofício valorizado. Leonardo da Vinci (1452-1519), sem dúvida o maior dos gênios, obteve êxito nos mais diferentes campos do conhecimento. Na oficina de Andrea del Verrocchio (1435-1488), em Florença, iniciou seu aprendizado como pintor e escultor. “Considerava ele que a função do artista era explorar o mundo visível, tal como seus predecessores tinham feito, só que de maneira mais abrangente e com maior intensidade e precisão” (GOMBRICH, 2012, p. 293). Seus estudos serviram de base para pesquisas posteriores durante muitos séculos, pois suas anotações foram bem-preservadas. Dentre seus desenhos anatômicos, botânicos e arquitetônicos, anotações científicas e demais trabalhos, destacamos duas obras-primas: A última ceia (1495) e Mona Lisa (1503-1519). O afresco A última ceia (Figura 11) começou a se deteriorar antes da morte de Da Vinci, pois o artista experimentou diferentes materiais (óleo e têmpera) e não utilizou a técnica tradicional. A narrativa dramática captura o momento em que Cristo diz aos apóstolos que um deles o trairá, causando o “reboliço” que é demonstrado pela reação na expressão de cada apóstolo. Os apóstolos se distribuem em quatro grupos, estando Cristo no centro da composição com a arquitetura emoldurando-o, havendo inclusive um halo sobre sua cabeça. O ponto de fuga encontra-se na cabeça de Cristo, para a qual convergem todas as linhas da perspectiva (GOMBRICH, 2012). O Renascimento e o desenvolvimento da autonomia artística 101 Figura 11 – A última ceia (1495), de Leonardo da Vinci. W ik iA rt Fonte: DA VINCI, L. A última ceia. 1495. 1 afresco, 880 x 460 cm. Igreja Santa Maria delle Grazie, Milão, Itália. O retrato mais famoso do mundo é envolto em uma atmosfera misteriosa: não conseguimos identificar com precisão se transmite tristeza, se zomba de seus espectadores ou se apenas os observa. Na obra Mona Lisa (Figura 12) – também conhecida como A Gioconda ou ainda Retrato de Lisa Gherardini, esposa de Francesco Giocondo –, não há linhas ou contornos rígidos, eles são esfumaçados, com tons claros transitando vagarosamente para os escuros. Da Vinci utiliza uma técnica desenvolvida por ele próprio: o sfumato, deixando o canto dos olhos e da boca esfumaçados. Segundo Janson e Janson (2001, p. 209), “as formas são construídas a partir de camadas tão finas de velatura que todo o painel parece exalar uma luz suave, que vem do seu interior”. Figura 12 – Mona Lisa (1503-1519), de Leonardo da Vinci. W ik iA rt Fonte: DA VINCI, L. Mona Lisa (La Gioconda). 1503-1519. 1 óleo sobre madeira, 77 x 53 cm. Museu do Louvre, Paris, França. História da arte: da pintura rupestre ao Pós-Modernismo102 a Assim como Leonardo da Vinci, Michelangelo Buonarroti (1475-1564) obteve reconhecimento em vida por suas produções. Quando jovem, foi aprendiz do pintor Domenico Ghirlandaio (1449-1494). Michelangelo era também um pesquisador e realizou dissecações de cadáveres para estudar o corpo humano. O artista passou quatro anos dedicado a pintar os afrescos da Capela Sistina (Figura 13), na Cidade do Vaticano, ficando muitas vezes em posições físicas desgastantes. O resultado é impressionante para quem adentra a capela e observa a harmoniosa pintura que narra cenas bíblicas escolhidas e distribuídas de maneira elaborada (GOMBRICH, 2012). Michelangelo relutou em aceitar o projeto, dizendo ser escultor e não pintor, retornando à escultura tão logo terminou a decoração da capela. Dentre suas famosas esculturas está Pietà (Figura 14), em que a Virgem Maria, feita em tamanho real, tem em seu colo o Cristo morto. Essa obra rendeu ao artista a admiração de seus contemporâneos pela intensidade emotiva e pela representação da roupa da Virgem. Após a Pietà, o artista esculpiu o monumental Davi, de quatro metros, que foi colocado na entrada do Palazzo Vechio, em Florença. A obra expõe as características humanistas de valorização das formas humanas. Figura 14 – Pietà (1499), de Michelangelo. W ik iA rt Fonte: BUONARROTI, M. Pietà. 1499. 1 escultura, mármore, 174 x 195 cm. Basílica de São Pedro, Cidade do Vaticano, Itália. Oposto ao temperamento de Michelangelo e Leonardo, o jovem dócil e sociável Rafael Sanzio (1483-1520) também produziu obras para o Vaticano. Dentre suas principais pinturas encontra-se a célebre A Escola de Atenas (Figura 15), afresco que retrata famosos filósofos gregos, como Platão, Aristóteles, Pitágoras, Diógenes, Heráclito, Euclides, Zoroastro e Ptolomeu. Figura 13 – Teto da Capela Sistina (1508-1512), Cidade do Vaticano, Itália W ik iA rt Você pode ver o teto da Capela Sistina em detalhes, acessando este QR Code: O Renascimento e o desenvolvimento da autonomia artística 103 Michelangelo também é retratado na obra, bem como o próprio Rafael, e é clara a influência de Michelangelo e Da Vinci na elaboração do espaço e das figuras retratadas. Figura 15 – A Escola de Atenas (1510-1511), de Rafael Sanzio. W ik iA rt Fonte: SANZIO, R. Escola de Atenas. 1510-1511. 1 afresco, 500 x 7,7 cm. Museu do Vaticano, Vaticano, Itália. As pessoas retratadas na obra Escola de Atenas encontram-se em um espaço pictórico típico do arquiteto renascentista Donato Bramante (1444-1514). O grupo está sob uma construção arquitetônica com colunas, arcos e decoração característicos do Renascimento. Bramante foi o responsável pelo projeto da Basílica de São Pedro, em Roma. A partir da segunda metade do século XIV, é possível observar novas formas de expressão, como o maneirismo, movimento posterior ao Renascimento. Alguns artistas apresentaram este momento de transição em suas obras. Além das personalidades mencionadas, Pietro Perugino (1446-1523), Paolo Veronese (1528-1588), Corregio7, Giorgione8 e Ticiano Vecellio (1490-1576) estão entre os principais nomes do cinquecento. 5.4 A expansão do Renascimento na Europa No século XV, fora da Itália, mais precisamente na Bélgica, os irmãos Jan (1390-1441) e Hubert (1366-1426) van Eyck apresentaram uma pintura renascentista detalhada por meio de um olhar preciso e minucioso, como o famoso Retábulo de Gante (Figura 16), considerado por Janson e Janson (2001, p. 173) “o monumento supremo da pintura flamenga”. Acredita-se que Jan tenha terminado a obra após a morte do irmão Hubert, mas é difícil diferenciar a produção de cada um. 7 Nome pelo qual era popularmente conhecido Antônio Allegri (1489-1534). 8 Nome pelo qual era popularmente conhecido Giorgio Barbarelli da Castelfranco(1478-1510). História da arte: da pintura rupestre ao Pós-Modernismo104 Figura 16 – Retábulo de Gante (1432), de Jan e Hubert van Eyck. W ik iA rt Fonte: VAN EYCK, J.; VAN EYCK, H. Retábulo de Gante. 1432. 1 óleo sobre maneira, 350 x 223 cm. Catedral de St. Bavo, Gante, Bélgica. O retábulo, que é parte de diversas imagens que completam 20 quadros no total, geralmente era aberto em dias de festas. A parte frontal do retábulo fechado apresenta a cena da Anunciação na figura do anjo Gabriel, à esquerda, e da Virgem, à direita. Entre elas, há duas imagens: uma paisagem com detalhes de realismo impressionante, com pássaros e edifícios; e uma natureza morta. Na parte inferior, nos quadros das extremidades, está o casal de doadores ajoelhados (assim como na pintura de Masaccio), e, ao centro, a pintura de duas esculturas de São João Batista (o primeiro a chamar Jesus Cristo de cordeiro de Deus) e São João Evangelista. O fato de essa pintura ter sido produzida com tinta a óleo amplia a sua importância, já que a técnica havia sido descoberta recentemente, tendo sido por muito tempo atribuída a Jan Van Eyck. Sendo quase do mesmo período dos irmãos Van Eyck, o pintor belga Rogier van der Weyden (1399-1464) destacou-se como um artista influente na produção de seu seguidor, Hugo van der Goes (1440-1482). O alemão Hans Memling (1465-1494) e o neerlandês Hieronymus Bosch, pseudônimo de Jeroen Bosch Hertogenbosch (c. 1453-1516), também são artistas importantes dessa época. O surgimento da gravura no Ocidente é outro fato de grande importância do século XV. Destacam-se as obras dos alemães Martin Schongauer (1445-1491) e Albrecht Dürer (1471-1528), que foi pintor, gravador e teórico. Dürer mostrou seu talento em diversas técnicas artísticas, além de ser o maior impressor de sua época. A gravura Natividade (Figura 17) demonstra o requinte com que o autor trabalha detalhes, o que pode ser observado nas superfícies do reboco da parede e das telhas. O Renascimento e o desenvolvimento da autonomia artística 105 Figura 17 – Natividade (1504), gravura de Dürer. Br iti sh M us eu m /W . C om m on s Fonte: DÜRER, A. Natividade. 1504. 1 gravura. British Museum, Londres, Inglaterra. O artista também explorou a própria imagem por meio de autorretratos em todas as técnicas que dominava: desenhos, pinturas e gravuras, o que mostrava a sua busca infindável pela perfeição. Considerações finais Neste capítulo, vimos praticamente três séculos de mudanças profundas no modo de pensar e viver da sociedade. Essas transformações foram registradas por meio das produções de inúmeros artistas que buscavam constantemente a superação de seus conhecimentos. Este período, conhecido como Renascimento, surgiu em berço italiano, mas seus ideários se disseminaram de tal modo que se torna difícil registrar todas as importantes personalidades desse movimento e suas formas de expressão, de acordo com as influências diretas e a localidade em que viviam. A lista de artistas renascentistas é vasta, dos mais célebres gênios da humanidade até aqueles que tiveram reconhecimento tardio; o que importa é o fato de que todos contribuíram para a evolução da arte, em busca de maior reconhecimento para essa área. É importante ressaltar que um período artístico não tem data certa de início e fim, ele pode mesclar diferentes caminhos e mudanças. Por isso, muitos artistas que viveram antes do Renascimento já estavam “preparando o terreno” para o surgimento dessa corrente. O mesmo ocorreu com os artistas renascentistas, que pavimentaram os caminhos para as vertentes que surgiriam posteriormente. História da arte: da pintura rupestre ao Pós-Modernismo106 Ampliando seus conhecimentos • CAPPELLA Sistina – Sistine Chapel. 29 ago. 2019. 1 vídeo (1 min). Publicado pelo canal Musei Vaticani. Disponível em: https://youtu.be/E75woOZJuNg. Acesso em: 31 out. 2019. Esse vídeo faz parte do site oficial dos Museus do Vaticano e mostra uma breve tour virtual pela Capela Sistina, mostrando detalhes das pinturas de Michelangelo. Nele, é possível observar como estão distribuídas as imagens nas paredes e no teto da capela. • TOUR virtuale “Cappella Sistina”. Mvsei Vaticani. Disponível em: http://www. museivaticani.va/content/museivaticani/it/collezioni/musei/cappella-sistina/tour- virtuale.html. Acesso em: 31 out. 2019. Você mesmo pode fazer uma tour virtual pela Capela Sistina. O site oficial do Museu do Vaticano conta com uma interessante ferramenta para conhecer a capela. É possível observar detalhes por meio do superzoom. • CLÁSSICOS da pintura: tudo sobre a Mona Lisa. 19 jun. 2018. 1 vídeo (4 min.). Publicado pelo site DW Brasil. Disponível em: https://www.dw.com/pt-br/cl%C3%A1ssicos-da- pintura-tudo-sobre-a-mona-lisa/av-44106652. Acesso em: 31 out. 2019. Esse vídeo trata-se de uma reportagem que aborda diversas releituras produzidas sobre a Mona Lisa, o retrato mais famoso do mundo. A reportagem apresenta também detalhes e características da obra. Atividades 1. Descreva os períodos do Renascimento, destacando suas principais características e seus expressivos expoentes. 2. Qual era a base do pensamento renascentista e quais preceitos essa vertente seguia? Justifique. 3. Quais são as duas principais cidades italianas ligadas ao surgimento do Renascimento e a relação existente entre elas? Referências AMBROGIO Lorenzetti: Biography. In: Virtual Uffizi Gallery. Disponível em: https://www.virtualuffizi.com/ ambrogio-lorenzetti.html. Acesso em: 31 out. 2019. ANNUNCIAZIONE e i santi Ansano e Massima. In: Le Gallerie degli Uffizi. Florença. Disponível em: https:// www.uffizi.it/opere/annunciazione-e-i-santi-ansano-e-massima. Acesso em: 31 out. 2019. COMBS, J.; HODDINOTT, B. Desenho para leigos. Rio de Janeiro: Alta Books, 2016. MAC FARLAND, J. M. Siena in the Late Gothic, an introduction. Smarthistory, Nova Iorque, 30 dez. 2015. Disponível em: https://smarthistory.org/siena-in-the-late-gothic-an-introduction/. Acesso em: 31 out. 2019. O Renascimento e o desenvolvimento da autonomia artística 107 FLORENCE and Central Italy, 1400-1600 A. D. In: Heilbrunn Timeline of Art History. Nova Iorque: The Metropolitan Museum of Art, out. 2002. Disponível em: http://www.metmuseum.org/toah/ ht/?period=08®ion=eustc. Acesso em: 31 out. 2019. GOMBRICH, E. H. A história da arte. Rio de Janeiro: LTC, 2012. HARRIS, B.; ZUCKER, S. Giotto, Arena (Scrovegni) Chapel. Smarthistory, Nova Iorque, 30 dez. 2015. Disponível em: https://smarthistory.org/giotto-arena-scrovegni-chapel/. Acesso em: 31 out. 2019. HOUAISS, A. (org.). Houaiss eletrônico. Rio de Janeiro: Objetiva, 2009. 1 CD-ROM. JANSON, H. W.; JANSON, A. F. Iniciação à História da Arte. São Paulo: Martins Fontes, 2001. MEAGHER, J. Italian Painting of the Later Middle Ages. In: Heilbrunn Timeline of Art History. Nova Iorque: The Metropolitan Museum of Art, set. 2010. Disponível em: http://www.metmuseum.org/toah/hd/iptg/hd_ iptg.htm. Acesso em: 31 out. 2019. 6 Barroco: a estética do rebuscamento e do exagero Vania Maria Andrade Seguido do esplendor do movimento renascentista, em que a arte foi capaz de expressar tanto equilíbrio quanto beleza, surgiu um questionamento: o que mais poderia ser feito? Os artistas renascentistas tinham alcançado o objetivo de superar a Antiguidade Clássica, como destaca Gombrich (2012, p. 361): “nenhum problema de desenho parecia ser demasiado difícil para eles, nenhum tema demasiado complexo. Eles mostraram como combinar beleza e harmonia com inexcedível correção, e – conforme se dizia – tinham até superado as mais célebres estátuas da Antiguidade grega e romana”. Desse modo, o que mais restava fazer? O Renascimento manteve-se até o início do cinquecento, mais precisamente por volta de 1520, a partir daí, um período de crise se inicia. Até que se estabeleça o período artístico seguinte, o Barroco, uma outra tendência artística se manifestou de formas diversas, de acordo com cada localidade, e ficou conhecidacomo Maneirismo. Desse modo, vamos conhecer neste capítulo esses dois movimentos. 6.1 Maneirismo e Barroco: contexto O decorrer do cinquecento – de 1520 até o final do século – é caracterizado por transformações dos valores religiosos e políticos, provocando uma série de revoltas em diversas localidades. No início do século XVI, o abuso do poder da Igreja católica romana foi questionado por um movimento cristão que ficou conhecido como Reforma Protestante. Esse movimento teve início na Alemanha, com o monge Martinho Lutero (1483-1546), e se espalhou pela Europa (WISSE, 2002). A Figura 1 mostra um retrato de Lutero como monge da Ordem Agostiniana (à qual ele se juntou em 1506) produzido pelo amigo e artista alemão Lucas Cranach (1472-1553). Lutero publicou, em 1517, uma lista de 95 argumentos contra o abuso de indulgências, que eram os perdões (dos pecados) oficiais concedidos após o perdão da culpa pela penitência. Ele questionava também os W . C om m on s Fonte: CRANACH, L. Martinho Lutero como um monge agostiniano. 1520. 1 gravura, 15,8 x 10,7 cm. Museu Metropolitano de Arte, Nova Iorque, Estados Unidos. Figura 1 – Martinho Lutero, retrato pelo amigo e artista Cranach, o Velho. História da arte: da pintura rupestre ao Pós-Modernismo110 princípios da Igreja Católica romana e seu materialismo, defendendo uma prática religiosa mais voltada para a simplicidade, tendo a Bíblia como a fonte única do cristianismo. Em 1520, Lutero foi excomungado, contudo o movimento reformista cresceu consideravelmente e teve reações diversas em países como Suíça, França, Países Baixos e Inglaterra. Esse panorama influenciou a arte de diferentes formas (WISSE, 2002). Lucas Cranach é da mesma geração do artista Albrecht Dürer (1471-1528) e começou a carreira como pintor. Amigo íntimo de Lutero e defensor de suas ideias, tentou transmiti-las por meio de suas pinturas e gravuras. O próprio artista supervisionou a impressão de panfletos publicados por Lutero com os questionamentos sobre a Igreja. Nesse sentido, é importante ressaltar o advento dos métodos de impressão para a divulgação dessas ideias, uma vez que antes desses, as notícias demoravam muito tempo para se difundir. Os métodos de impressão foram fundamentais para a divulgação das ideias protestantes. 6.1.1 Maneirismo O nome maneirismo surgiu com base no termo maniera, palavra de origem italiana citada pelo artista e biógrafo Giorgio Vasari (1511-1574) para explicar como os artistas do século XVI passaram a pintar. Eles observavam as obras dos grandes renascentistas, principalmente Michelangelo e Rafael, para inspirar as próprias produções. Muitos estudavam e imitavam esses artistas – do mesmo modo que os artistas renascentistas faziam com obras da Antiguidade Clássica – e repetiam suas figuras nas próprias produções, contudo, o resultado era distinto das formas renascentistas. O Maneirismo muitas vezes enfatizava a complexidade e o virtuosismo, a distorção da figura humana, um achatamento do espaço pictórico e a necessidade de interpretação intelectual da obra (FINOCCHIO, 2003). Esse período vai do final do Renascimento (por volta de 1520-1530) ao início do Barroco (1600), originando-se na Itália, e tornando-se internacional apesar das características específicas de acordo com cada região. A cidade italiana de Parma, apesar de pequena, apresentava grande expressividade artística, principalmente na figura de dois pintores muito importantes para o século XVI: Correggio, estudado no capítulo anterior, e Parmigianino1. Correggio, ao viver em Parma, desenvolveu um estilo de pintura que foi considerado como precursor do Barroco, também chamado de protobarroco. O artista influenciou a produção artística da cidade e de gerações posteriores; seus afrescos estão presentes até hoje nas igrejas de Parma. Na Figura 2, vemos uma obra de Correggio dotada de grande dimensão em perspectiva ilusionista. O espaço é repleto de figuras que estão levitando, contudo, demonstram serem de “carne e osso” e nada fluidas, isto é, não parecem leves, mas sim pesadas, como eram representadas no período anterior (JANSON; JANSON, 2001). 1 Nome pelo qual Girolamo Francesco Maria Mazzola (1503-1540) era popularmente conhecido. Barroco: a estética do rebuscamento e do exagero 111 Figura 2 – A Assunção da Virgem (1526-1530), de Correggio. W ik iA rt Fonte: CORREGGIO. A Assunção da Virgem. 1526-1530. 1 afresco, 1093 x 1195 cm. Catedral de Parma, Parma , Itália. Parmigianino nasceu na cidade Parma e era grande admirador de Rafael Sanzio. Sua pintura mais famosa destaca características maneiristas, como formas alongadas e frias, além de efeitos espaciais distorcidos. Observe, na Figura 3, a coluna gigantesca atrás da pequena imagem de um profeta e, no lado oposto, no canto esquerdo, diversos anjos agrupados (GOMBRICH, 2012). Um dos maiores artistas da segunda metade desse século foi o pintor Jacopo Robusti (1519-1594), mais conhecido como Tintoretto, que viveu em Veneza. Seguidor de Ticiano e Michelangelo, foi criticado por alguns de seus contemporâneos e por Vasari, que achava que seus trabalhos não eram bem acabados. Sua obra A última ceia (Figura 4) mostra características maneiristas nada clássicas. A composição apresenta uma atmosfera sobrenatural com vários anjos sobrevoando a mesa, em posição inusitada, e muitas pessoas no ambiente. Tudo isso transforma a cena sagrada em realidade: muita coisa ocorre ao mesmo tempo em que Cristo distribui o pão. W ik iA rt Figura 3 – Madonna com longo pescoço (1534-1540), de Parmigianino. Fonte: PARMIGIANINO. Madonna com longo pescoço. 1534-1540. 1 óleo sobre painel, 132 x 216 cm. Galeria Uffizi, Florença, Itália. História da arte: da pintura rupestre ao Pós-Modernismo112 Figura 4 – A última ceia (1592-1594), de Tintoretto. W ik iA rt Fonte: TINTORETTO. A última ceia. 1592-1594. 1 óleo sobre tela, 365 x 568 cm. San Giorgio Maggiore, Veneza, Itália. El Greco2 foi um admirador da arte de Tintoretto. Ele saiu da ilha grega de Creta com destino a Veneza, onde estudou a arte renascentista de Ticiano, contudo, sua produção era mais próxima da de Tintoretto, sobretudo em relação à dramaticidade e à emoção. Segundo Gombrich (2012, p. 372), “a arte de El Greco supera até a de Tintoretto no audacioso descaso por formas e cores naturais, e em sua visão dramática e emocional”. Figura 5 – Enterro do Conde de Orgaz (1586-1588), de El Greco. W . C om m on s Fonte: EL GRECO. Enterro do Conde de Orgaz. 1586-1588. 1 óleo sobre tela, 480 x 360 cm. Santo Tomé, Toledo, Espanha. 2 Nome pelo qual Doménikos Theotokópoulos (1541-1614) era popularmente conhecido. Barroco: a estética do rebuscamento e do exagero 113 A pintura Enterro do Conde de Orgaz (Figura 5) é uma obra monumental que se divide em duas cenas: a primeira, o céu com a Virgem Maria e Jesus Cristo, e a segunda, que representa a terra com o enterro do conde. Para representar o reino celestial, o artista escolheu cores frias, em tons de azuis, com mais brilho e luz. Para o reino terreno, o cenário é mais dramático, com tons mais escuros e menos luz, com exceção das roupas das figuras que seguram o corpo, Santo Estêvão e Santo Agostinho, vestidos de dourado e vermelho. A armadura que veste o corpo do conde também é cuidadosamente trabalhada em ornatos e texturas. O Barroco – período artístico que vamos estudar a seguir – começava a surgir nesse momento, trazendo novos elementos para a produção artística, especialmente para as representações religiosas. 6.1.2 Barroco Em 1600, a Igreja Católica já havia promovido a Contrarreforma, isto é, o movimento de renovação em resposta à Reforma Protestante. Com isso, o caráter religioso voltou a atuar e o papado demonstrou interesse em espalhar por Roma obras que valorizassem a Igreja, incentivando arquitetos e artistas barrocos. Alvo de depredações durante os protestos reformistas, Roma ganhou novos incentivos para sua reconstrução, com o apoiode um papado rico e poderoso a fim de patrocinar grandes projetos. Desse modo, diversos artistas foram convidados, como Gian Lorenzo Bernini (1598- 1680), Francesco Borromini (1599-1667) e Pietro de Cortona (1596-1669), com o objetivo de unir arquitetura e pintura. A intenção era embelezar e reformular toda a cidade, que foi replanejada em estilo barroco (ROME..., 2003). As novas formas de pensamento que surgiram a partir do Renascimento geraram novos comportamentos, questionadores e não tão passivos, que consequentemente influenciaram o modo de viver das sociedades. Essas modificações fizeram com que o indivíduo tomasse consciência de coisas que antes não lhe competiam, fato que instaurou uma crise característica desse período. Maravall (1997, p. 66) destaca que: desde que surge o tipo que nos ocorreu chamar homem moderno – cheio de conquistas sobre a natureza e de novidades em relação à sociedade –, desenvolve-se nele a capacidade de compreender que as coisas não andam bem, principalmente no âmbito da economia, mas também em outros setores da vida coletiva, e, o que é mais importante, começa a imaginar que poderiam ser melhores. O auge do Absolutismo na França, em fins do século XVII, também influenciou o desenvolvimento do Barroco, tornando-a uma rival de Roma como centro cultural. Isso se deve principalmente ao monarca Luís XIV (1638-1715), que sustentou uma equipe de artistas para usufruir do esplendor barroco em suas construções (FRANCE..., 2003). A partir do século XVII, Roma volta a atuar como polo das inovações artísticas da Europa, espaço anteriormente ocupado por Florença durante muito tempo. Nesse sentido, o Barroco ganha espaço com a capital italiana, sua difusão para o restante da Itália se deve também à rica família Médici, que, no poder, financiava grandes artistas barrocos. História da arte: da pintura rupestre ao Pós-Modernismo114 Figura 6 – Igreja de San Carlo de Quattro Fontane (1638-1641), projeto de Francesco Borromini, Roma, Itália. Er in S ilv er sm ith /W . C om m on s Bernini e Borromini eram arquitetos rivais e competiam pelas glórias da construção em Roma. Ambos tinham personalidades opostas: enquanto Bernini era comunicativo e seguro de si, Borromini era reservado e emocionalmente instável, vindo a tirar própria vida aos 67 anos (JANSON; JANSON, 2001). 6.2 A arte do rebuscamento e do exagero Com o incentivo financeiro e desafiador, novos artistas foram atraídos para Roma em busca de reconhecimento por seus trabalhos. A cidade se tornou referência de um estilo de representação diferente dos maneiristas. O termo barroco passou a ser utilizado pejorativamente significando “modo empolado, bombástico, extravagante de escrever, compor, pintar, decorar etc.” (HOUAISS, 2009). As representações barrocas se caracterizam pela valorização do conhecimento adquirido no Renascimento – sobre o corpo humano, proporções e demais conceitos –, porém carregados de emoção. Por essa razão, a arte barroca ficou conhecida como “a arte do rebuscamento e do exagero”. O Quadro 1 estabelece um comparativo entre esses períodos: Quadro 1 – Arte renascentista e barroca: comparativo Renascimento Barroco Serenidade Emoção exagerada Estabilidade Instabilidade/dinamismo Horizontais e verticais Diagonais Calma, tranquilidade Energia e movimento (Continua) Barroco: a estética do rebuscamento e do exagero 115 Renascimento Barroco Eternidade Momento da ação Beleza idealizada Realidade não idealizada Distância Proximidade/envolvimento Contornos fluidos Contornos interrompidos Claridade, luz Contraste entre claro e escuro Fonte: Elaborado pela autora com base em HOW..., 2016. Essas características – referentes ao Barroco – estão presentes na obra de Caravaggio3, o que fez com que o artista passasse a ser considerado um dos mais notáveis do período. Na obra Chamado de S. Mateus (Figura 7), um tema religioso, o artista representa o momento exato do despertar espiritual de Mateus, cobrador de impostos, que posteriormente se torna apóstolo de Cristo. Cristo adentra em uma espécie de taberna, onde estão trabalhadores vestidos com roupas comuns, estende a mão e chama Mateus (que aponta para si mesmo interrogativamente). Sobre a figura de Cristo, só há a sugestão de um halo em sua cabeça, além disso, ele está quase escondido atrás de São Pedro; sua face e mãos são iluminadas pela luz diagonal que dá o contraste na obra, entrando acima dele e incidindo em Mateus. O desenho das mãos nos remete à obra A criação de Adão (1512), de Michelangelo. A obra de Michelangelo apresenta dois polos, representados pela figura de Deus e a figura do homem; esses são unidos pelas mãos das duas figuras. A proximidade é dada pelo espaço que há na mesa e pode ser ocupado pelo espectador (JANSON; JANSON, 2001). Figura 7 – Chamado de São Mateus (c. 1600), de Caravaggio. W ik iA rt Fonte: CARAVAGGIO. Chamado de São Mateus. c. 1600. 1 óleo sobre tela, 323 x 343 cm. San Luigi dei Francesi, Roma, Itália. 3 Nome pelo qual Michelangelo Merisi (1571-1610) era popularmente conhecido. História da arte: da pintura rupestre ao Pós-Modernismo116 Até a Idade Média não havia reconhecimento de autores das obras, além disso, muitos fatores impediam uma carreira de sucesso, como a proibição das aulas de modelo vivo. Segundo Janson e Janson (2001), apesar de apenas homens terem obtido maior destaque no decorrer da história da arte, muitas mulheres desempenharam papéis importantes como artistas. Dentre os grandes nomes do Barroco, está a pintora Artemisia Gentileschi (1593-1653). Na obra Autorretrato como alegoria da pintura (Figura 8), provável autorretrato da autora, os cabelos irregulares e a composição inusitada – “jogada” para a direita – chamam a atenção. A obra não é um retrato centrado, o que denota muito ritmo à composição. A diagonal traçada pelo braço confere aspecto mais teatral à cena: parece que o braço se mexerá na nossa direção a qualquer instante. O contraste luminoso é oriundo da luz no rosto e no peito; o escuro repentino, por sua vez, típico do Barroco, ocorre sobre os ombros, como se fosse um holofote teatral. Para Janson e Janson (2001), Gian Lorenzo Bernini foi o maior escultor e arquiteto barroco. Grande admirador do teatro, Bernini conseguiu unir diversas linguagens da arte em suas produções, resultando em cenários arquitetônicos com pinturas e esculturas, como o célebre altar O Êxtase de Santa Tereza (Figura 9). Esta obra relata “um momento de êxtase celeste, quando um anjo do Senhor trespassou-lhe o coração com uma candente flecha de ouro, enchendo-a de dor e, ao mesmo tempo,de incomensurável bem- -aventurança” (GOMBRICH, 2012, p. 438). A escultura parece levitar no espaço a ela destinado, pois abaixo dela há apenas sombra, enquanto a luz vem de uma janela não visível, do alto. O artista utilizou mármore colorido para compor o cenário, além de afrescos ilusionistas na abóboda e vitrais. Raios dourados descem sobre as duas figuras, que foram esculpidas com o mesmo tipo de mármore, porém o efeito da representação das roupas do anjo é diferente do da freira. O tecido que ele usa parece ser mais leve – W ik iA rt Figura 8 – Autorretrato como alegoria da pintura (1638-1639), de Artemisia Gentileschi. Fonte: GENTILESCHI, A. Autorretrato como alegoria da pintura. 1639. 1 óleo sobre tela, 98,6 x 75,2 cm. Royal Collection, Londres, Reino Unido. W ik iA rt Figura 9 – O êxtase de Santa Teresa (1647-1652), de Gian Lorenzo Bernini. Fonte: BERNINI, Gian Lorenzo. O êxtase de Santa Teresa. 1647-1652. 1 escultura. Basílica de Santa Maria della Vittoria, Roma, Itália. Barroco: a estética do rebuscamento e do exagero 117 causando um efeito torcido pela ação de vento – e contrasta com o tecido da vestimenta dela, que cai mais de maneira pesada e volumosa. O pintor flamengo Peter Paul Rubens (1577-1640) chegou a Roma em 1600, onde estudou obras renascentistas e barrocas. Ao retornar para Antuérpia, sua terranatal, pintou um de seus mais importantes retábulos, que remonta à arte medieval, mas refere-se também ao período da Contrarreforma. No tríptico A elevação da cruz (Figura 10), os corpos musculosos lembram as figuras de Michelangelo, porém com mais exagero, para dar essa ideia de força física necessária para levantar uma cruz. As características flamengas da arte de Rubens podem ser verificadas no detalhamento que o artista dá às folhagens, ao pelo do cachorro, à armadura do soldado, o que mostra a influência de pintores com o Rogier van der Weyden e Jan van Eyck (vistos no Capítulo 5). A diagonal barroca é traçada pelo corpo do Cristo, destacando o momento da ação do levantamento, em que todos fazem força, dando o ritmo dramático da composição (JANSON; JANSON, 2001). Figura 10 – A elevação da Cruz (1610), de Peter Paul Rubens. W ik iA rt Fonte: RUBENS, P. P. A elevação da cruz. 1610. 1 óleo sobre painel, 460 x 640 cm. Catedral de Nossa Senhora, Antuérpia, Bélgica. Rubens teve como discípulo o pintor Anthony van Dyck (1599-1641), e em Madrid ficou amigo de Diego Rodríguez de Silva e Velázquez (1599-1660). Velázquez foi um dos mais célebres pintores espanhóis, suas obras mostram a influência de Ticiano e Caravaggio. Sua pintura mais famosa, As meninas (Figura 11), foi produzida quando a Espanha era um país poderoso. O artista conseguiu fama e reconhecimento pintando para a Corte espanhola. Este imenso quadro seria destinado para o escritório do rei. Velázquez produziu um imenso jogo de significados retratando o Rei Filipe IV e Mariana da Áustria, refletidos em um espelho no fundo do quadro, como se ambos estivessem observando a cena, como espectadores; História da arte: da pintura rupestre ao Pós-Modernismo118 a atenção e a maioria dos olhares dos retratados dirigem-se pra o espectador. Trata-se de um retrato real produzido de uma forma nada convencional, parecendo mais uma pintura de gênero e um autorretrato, já que o pintor se reproduziu à esquerda da tela. A Infanta Margarita, filha do rei, está com duas damas de honra, dois anões e a dama de honra da rainha, próximo ao guardadamas4. O camareiro aparece ao fundo (PORTUS, 2013). Figura 11 – As meninas (1656), de Diego Rodríguez de Silva e Velázquez. W ik iA rt Fonte: VELÁZQUEZ, D. As meninas. 1656. 1 óleo sobre tela, 318 x 276 cm. Museu do Prado, Madri, Espanha. A influência de Rubens é destacada também na produção artística holandesa, como a de Frans Hals (1582-1666) e a do pintor, desenhista e gravador Rembrandt5, este considerado o maior pintor da “Era de Ouro” da Holanda. Rembrandt produziu inúmeros autorretratos e cenas bíblicas ao longo de sua vida. Em ambos os gêneros, podemos observar a ausência de preocupação em retratar a beleza, o autor dava destaque à verdade e à sinceridade (uma das características de sua arte), assim como Caravaggio. Na gravura Pregação de Cristo (Figura 12), o artista representa Cristo pregando em destaque, em uma composição circular que mostra a preocupação com o equilíbrio e a distribuição das massas, de acordo com as regras da arte italiana. Os rostos não exprimem beleza, pelo contrário, alguns se mostram abrutalhados. As vestes foram estudadas para representar os judeus, povo com o qual o artista simpatizava (GOMBRICH, 2012). 4 Guardadamas: “Antigo trabalho da Casa Real, cujo principal ministério era andar a cavalo para os estribos do carro das senhoras para que ninguém lhes falasse. Mais tarde, suas atribuições limitaram-se à acusação de limpar a sala da sala da rainha nas funções públicas” (GUARDA..., 2019). 5 Forma que era conhecido Rembrant Harmenszoon van Rijn (1606-1669). Barroco: a estética do rebuscamento e do exagero 119 Figura 12 – Pregação de Cristo (c. 1647), de Rembrandt. Re m br an dt /W ik ia rt Fonte: REMBRANDT. Pregação de Cristo. c. 1657. 1 gravura ponta seca, 15,8 x 21 cm. Rijksmuseum, Amsterdã, Holanda. Johannes Vermeer (1632-1675) é outro importante pintor holandês. Da geração seguinte a Rembrandt, teve uma produção menor, pois só obteve maior reconhecimento muito tempo depois da sua morte, aos 43 anos; as informações sobre esse pintor também são poucas. Suas obras representam cenas domésticas (Figura 13), geralmente com figuras femininas, e demonstram sua preocupação com a luz e os efeitos ópticos. Especula-se a possibilidade de Vermeer ter estudado e utilizado uma câmara escura para a produção de suas pinturas, é notório o meticuloso cuidado que o artista confere a texturas e cores (LIEDTKE, 2003). Figura 13 – Jovem mulher com um jarro de água (c. 1662), de Johannes Vermeer. M et ro po lit an M us eu m o f A rt / W . C om m on s Fonte: VERMEER, J. Jovem mulher com um jarro de água. c. 1662. 1 óleo sobre tela, 45 x 40,6 cm. Museu Metropolitano de Arte, Nova Iorque, Estados Unidos. História da arte: da pintura rupestre ao Pós-Modernismo120 A segunda metade do século XVII presenciou a construção de uma obra que se tornou símbolo do Barroco e colocou a França como referência das artes: o Palácio de Versalhes (Figura 14). Figura 14 – Palácio de Versalhes (1668), de Pierre Patel. M us eu d e H is tó ria d a Fr an ça / W . C om m on s Fonte: PATEL, P. Palácio de Versalhes. 1668. 1 óleo sobre tela. Museu de História da França, Paris, França. Quando Luís XIV assume o poder na França, um novo estilo artístico, mais clássico, começa a se difundir – popularmente conhecido como Estilo Luís XIV. Com o conselheiro-chefe Jean-Baptiste Colbert (1619-1683) e o artista da corte Charles Le Brun (1619-1690), o rei inicia uma fase de projetos em que a arte e a arquitetura ocupam lugar de destaque com o objetivo de promover o monarca (FRANCE..., 2003). Esse estilo se apresenta na arte francesa de 1600 até 1685. Um dos artistas responsáveis pelo novo estilo é Nicolas Poussin (1594-1665), que apesar de viver muito tempo em Roma não era um adepto do barroco romano. Na obra O rapto das mulheres sabinas (Figura 15), as figuras foram modeladas como corpos renascentistas, idealizados e ordenados. Barroco: a estética do rebuscamento e do exagero 121 Figura 15 – O rapto das mulheres sabinas (1633-1634), de Nicolas Poussin. M et ro po lit an M us eu m o f A rt / W . C om m on s Fonte: POUSSIN, N. O rapto das mulheres sabinas. 1633-1634. 1 óleo sobre tela, 154,6 x 209,9 cm. Museu Metropolitano de Arte, Nova Iorque, Estados Unidos. Outro artista expressivo deste momento é Claude Lorrain (1600-1682) – ou Claude Gellée – que viveu grande parte de sua carreira em Roma, por isso é possível notar a influência direta das composições renascentistas em suas obras. O artista estudou avidamente as paisagens romanas (Figura 16). Figura 16 – The ford (1636), de Claude Lorrain. M us eu M et ro po lit an o de A rt e/ W . C om m on s Fonte: LORRAIN, C. The ford. 1636. 1 óleo sobre tela, 74,3 x 101 cm. Museu Metropolitano de Arte, Nova Iorque, Estados Unidos. História da arte: da pintura rupestre ao Pós-Modernismo122 O início do século XVIII trouxe novas mudanças nas representações artísticas com o estilo rococó, que teve Antoine Watteau (1684-1721) como um de seus artistas mais influentes. O rococó propunha temas mais leves, com maior sensualidade e delicadeza. Além de Watteau, outros artistas se destacam nesse período, como Jean-Honoré Fragonard (1732-1806), François Boucher (1703- 1770) e Jean-Baptiste-Siméon Chardin (1699-1779). 6.3 O estilo barroco no Brasil O Barroco chega ao Brasil um século depois de ter se difundido na Europa. Esse estilo é trazido pelos colonizadores portugueses e se manifesta como arte religiosa, na construção e decoração de igrejas. As primeiras manifestações estão em fachadas, frontões e decoração interna, como a talha dourada em ouro, do interior do Mosteiro de São Bento, no Rio de Janeiro (Figura 17). Figura 17 – Interior do Mosteiro de São Bento (1633-1691), Rio de Janeiro, Rio de Janeiro. Ed m un d G al l/ W . C om m on s O grandenome do barroco brasileiro é o mineiro Antônio Francisco Lisboa (1730-1814), mais conhecido como Aleijadinho. Escultor, entalhador e arquiteto, Aleijadinho produziu inúmeras obras e conseguiu reconhecimento em vida. Embora fosse portador de uma doença que afetou seus membros – daí a origem de seu apelido – a partir de 1777, o escultor continuou trabalhando com o auxílio de ajudantes. Barroco: a estética do rebuscamento e do exagero 123 Figura 18 – Cristo no Horto das Oliveiras (1799), de Aleijadinho. Te tr ak ty s/ W . C om m on s Fonte: ALEIJADINHO. Cristo no Horto das Oliveiras. 1799. 1 escultura. Via Sacra de Congonhas, Congonhas, Minas Gerais. Por volta de 1796, Aleijadinho produziu 64 esculturas em madeira reproduzindo as cenas da Paixão de Cristo em tamanho natural (Figura 18). Seu maior e último projeto foram os Doze Profetas (Figura 19), conjunto de esculturas em pedra-sabão para o Santuário do Bom Jesus de Matosinhos, na cidade de Congonhas: o conjunto de 12 profetas de Congonhas configura-se como uma das séries mais completas, da arte cristã ocidental, representando profetas. Estão presentes os quatro principais profetas do Antigo Testamento – Isaías, Jeremias, Ezequiel e Daniel, em posição de destaque na ala central da escadaria – e oito profetas menores, escolhidos por um clérigo segundo a importância estabelecida na ordem do cânon bíblico. Nos três planos do átrio, esculturas ordenam seus gestos simetricamente em relação ao eixo principal da composição. (PROFETAS..., 2019) A posição de cada escultura foi planejada para causar um efeito conjunto, como se fosse um teatro ou um balé, de acordo com o gesto de cada profeta. Todos os profetas vestem túnicas e a maioria apresenta os mesmos traços das maçãs do rosto, barbas e bigodes. História da arte: da pintura rupestre ao Pós-Modernismo124 Figura 19 – Profeta Ezequiel (1800-1805), parte do conjunto de esculturas Doze profetas. Lu is R iz o/ W . C om m on s Fonte: ALEIJADINHO. Profeta Ezequiel. 1800-1805. 1 escultura em pedra-sabão. Santuário de Bom Jesus de Matosinhos, Congonhas, Minas Gerais. No mesmo período de produção artística de Aleijadinho, temos Mestre Valentim – Valentim da Fonseca e Silva (1745- 1813) –, artista mineiro que atuava no Rio de Janeiro e veio da Europa após a morte do pai. Valentim era filho de uma negra com um fidalgo português, foi levado para a Europa pelo pai. Assim como Aleijadinho, também era escultor, entalhador e arquiteto, foi reconhecido por seu trabalho e considerado pioneiro na fundição de estátuas em bronze no Brasil. Trouxe o conhecimento da arte europeia, mas na sua produção substituiu elementos tradicionais por símbolos da fauna e flora brasileira (MESTRE..., 2019). A Igreja de São Francisco de Assis (Figura 20) em Ouro Preto, Minas Gerais, apresenta traços do barroco e do estilo rococó. Projetada por Aleijadinho, a igreja conta com Sa ra h an d la in /W . C om m on s Figura 20 – Fachada da Igreja de São Francisco de Assis (1766), em Ouro Preto, Minas Gerais. W ik iA rt Fonte: MESTRE ATAÍDE. Nossa Senhora da Porciúncula. 1812. Teto da Igreja de São Francisco de Assis, Ouro Preto, Brasil. Figura 21 – Nossa Senhora com traços mulatos, de Mestre Ataíde Barroco: a estética do rebuscamento e do exagero 125 Figura 19 – Profeta Ezequiel (1800-1805), parte do conjunto de esculturas Doze profetas. Lu is R iz o/ W . C om m on s Fonte: ALEIJADINHO. Profeta Ezequiel. 1800-1805. 1 escultura em pedra-sabão. Santuário de Bom Jesus de Matosinhos, Congonhas, Minas Gerais. No mesmo período de produção artística de Aleijadinho, temos Mestre Valentim – Valentim da Fonseca e Silva (1745- 1813) –, artista mineiro que atuava no Rio de Janeiro e veio da Europa após a morte do pai. Valentim era filho de uma negra com um fidalgo português, foi levado para a Europa pelo pai. Assim como Aleijadinho, também era escultor, entalhador e arquiteto, foi reconhecido por seu trabalho e considerado pioneiro na fundição de estátuas em bronze no Brasil. Trouxe o conhecimento da arte europeia, mas na sua produção substituiu elementos tradicionais por símbolos da fauna e flora brasileira (MESTRE..., 2019). A Igreja de São Francisco de Assis (Figura 20) em Ouro Preto, Minas Gerais, apresenta traços do barroco e do estilo rococó. Projetada por Aleijadinho, a igreja conta com Sa ra h an d la in /W . C om m on s Figura 20 – Fachada da Igreja de São Francisco de Assis (1766), em Ouro Preto, Minas Gerais. W ik iA rt Fonte: MESTRE ATAÍDE. Nossa Senhora da Porciúncula. 1812. Teto da Igreja de São Francisco de Assis, Ouro Preto, Brasil. Figura 21 – Nossa Senhora com traços mulatos, de Mestre Ataíde diversas pinturas de outro importante artista: Mestre Ataíde, ou Manoel da Costa Athaide (1762-1830). Pintor, dourador e entalhador, Mestre Ataíde inspirava-se em imagens bíblicas e livros de catecismo europeu. Uma de suas principais características é representar anjos e outras figuras com traços mulatos (Figura 21), provavelmente tendo seus filhos e esposa como modelos (BARROCO..., 2018). As pinturas de perspectiva do teto demonstram características do estilo rococó, com anjos, flores e folhagens (Figura 22). Também em parceria com o trabalho de Aleijadinho, Ataíde dourou imagens do Santuário do Bom Jesus de Matosinhos. Figura 22 – Pintura em perspectiva W ik iA rt Fonte: MESTRE ATAÍDE. Ascensão de Cristo. 1801-1812. Teto da Igreja de São Francisco de Assis, Ouro Preto, Brasil. História da arte: da pintura rupestre ao Pós-Modernismo126 O barroco brasileiro apresenta influências de estilos variados, como o maneirismo, o rococó e a introdução de aspectos referentes ao neoclassicismo – período posterior ao barroco –, principalmente na cidade do Rio de Janeiro. Considerações finais Vimos neste capítulo que o período Barroco é precedido por um estilo artístico, o maneirismo, e seguido por outro, o rococó. Estas transições foram graduais e possibilitaram novas formas de expressão, até que se sedimentassem como representações artísticas. O rococó é originário da França, surgido entre os anos de 1700 e de 1760. Seu início coincide com os anos finais do reinado de Luís XIV, que morreu em 1715; portanto, podemos dizer que o rococó surgiu em um momento de transição de poderes. O estilo correspondia aos anseios da aristocracia e ao luxo da alta burguesia; utilizava-se nas pinturas paletas de tons rosas e azuis e as temáticas abordadas eram relacionadas à intimidade, ao feminino e ao erotismo. São grandes nomes deste período Jean Honoré Fragonard (1732-1806), Antoine Watteau (1684- 1721) – considerado um dos artistas mais originais do século XVIII – e François Boucher (1703- 1770), que representa a fase mais madura do rococó, com trabalhos em variadas técnicas de desenho, pintura, tapeçaria e porcelana. Contudo, novas e radicais mudanças estavam por vir: em 1789 explodiria a Revolução Francesa, fato que interferiu diretamente nas produções artísticas do próximo período, o Neoclassicismo. Ampliando seus conhecimentos • MOÇA com brinco de pérola. Direção: Peter Webber. Elenco: Scarlett Johansson, Colin Firth, Tom Wilkinson. Roteiro: Olivia Hetreed. São Paulo: Imagem filmes, 2003. (100 min). O filme mostra por meio da narrativa de Griet (Scarlet Johansson) – criada que trabalha na casa de Johannes Vermeer (Colin Firth) – o cotidiano da casa em que o pintor vivia com a família e sua relação com o trabalho do artista. As famosas pinturas de Vermeer aparecem no filme, além disso, mostra-se o uso da câmara escura (método para copiar imagens por meio de uma caixa) e a produção da tinta por meio da moagem de pigmentos. • UATARTI, Solange. Universo barroco de Aleijadinho. São Paulo: Instituto Arte na Escola, 2006 (DVDteca Arte na Escola – Material educativo para professor-propositor; 78). Disponível em: http://artenaescola.org.br/uploads/dvdteca/pdf/arq_pdf_58.pdf. Acesso em: 15 out. 2019. O InstitutoArte na Escola disponibiliza em sua plataforma o livro Universo barroco de Aleijadinho, material em PDF sobre o artista brasileiro Antônio Francisco Lisboa, o contexto histórico do período em que o artista viveu, bem como sugestões de conteúdo/ atividades para trabalhar em sala de aula com alunos do ensino fundamental – anos finais e ensino médio. Barroco: a estética do rebuscamento e do exagero 127 Atividades 1. Descreva as características da tendência artística que se originou após o Renascimento e antes do período Barroco. 2. Observe a escultura de Bernini, Apollo e Daphne, e descreva as características barrocas que podem ser destacadas na obra: Ar ch ita s/ W .C om m on s Fonte: BERNINI, G. L. Apollo e Daphne. 1624-1625. 1 escultura em mármore, 243 cm. Galeria Borghese, Roma, Itália. 3. Escolha uma obra de um dos artistas do período Barroco e descreva de qual(is) maneira(s) esse estilo pode ser identificado nela. Referências BARROCO Brasileiro. Enciclopédia Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileiras. São Paulo: Itaú Cultural, 2018. Disponível em: http://enciclopedia.itaucultural.org.br/termo63/barroco-brasileiro. Acesso em: 15 out. 2019. FINOCCHIO, R. Mannerism: Bronzino (1503-1572) and his Contemporaries. Heilbrunn Timeline of Art History. Nova Iorque: The Metropolitan Museum of Art, 2000. Disponível em: http://www.metmuseum.org/ toah/hd/zino/hd_zino.htm. Acesso em 8 out. 2019. FRANCE, 1600-1800 A.D. Heilbrunn Timeline of Art History. Nova Iorque: The Metropolitan Museum of Art, 2000. Disponível em: https://www.metmuseum.org/toah/ht/09/euwf.html. Acesso em: 9 out. 2019. GOMBRICH, E. A história da arte. Rio de Janeiro: LTC, 2012. História da arte: da pintura rupestre ao Pós-Modernismo128 GUARDADAMAS. Educalingo. Disponível em: https://educalingo.com/pt/dic-es/guardadamas. Acesso em: 21 out. 2019. HOUAISS, A. (org.). Houaiss Eletrônico. Rio de Janeiro: Objetiva, 2009. 1 CD-ROM. HOW to recognize Baroque art. 2016. 1 vídeo (9 min). Publicado pelo canal Smarthistory. Disponível em: https://youtu.be/EFHPAbHaoqk. Acesso em 9 out. 2019. JANSON, H. W.; JANSON, A. F. Iniciação à História da Arte. São Paulo: Martins Fontes, 2001. LIEDTKE, W. Johannes Vermeer (1632-1675). Heilbrunn Timeline of Art History. Nova Iorque: The Metropolitan Museum of Art, 2000. Disponível em: http://www.metmuseum.org/toah/hd/verm/hd_verm. htm. Acesso em: 12 out. 2019. MARAVALL, J. A. 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A liberdade de pensamento adquirida no decorrer dos últimos séculos, mais precisamente a partir do Renascimento, fez com que os indivíduos refletissem a respeito do mundo em que viviam – comparando a Antiguidade e a modernidade –, reivindicando mais direitos. Os períodos artísticos abordados neste capítulo mostrarão como a arte se manifestou em relação a essas mudanças históricas e quais foram os principais artistas do Neoclassicismo, do Romantismo e do Modernismo. 7.1 Neoclassicismo: conceito, contexto e características Os principais acontecimentos do século XVIII iniciam com o Iluminismo, movimento que surgiu em Paris e defendia a importância da razão humana, liderado por escritores, cientistas, filósofos e teóricos como Jean-Jacques Rousseau (1712-1778), Voltaire1, Montesquieu2 e Denis Diderot (1713-1784). O advento do Iluminismo coincide, também, com o avanço da arqueologia e a descoberta das ruínas de Pompeia e Herculano – cidades antigas italianas –, o que fez com que surgisse um interesse renovado pela Antiguidade Clássica (FRANCE..., 2003). Sobre o Iluminismo, Janson e Janson (2001, p. 303) destacam que nas “artes, assim como na economia, na política e na religião, esse movimento racionalista voltou-se contra a prática dominante: o Barroco-Rococó, enfeitado e aristocrático”. Começa a surgir nesse período a arte neoclássica, que valorizava aspectos como harmonia, simplicidade e proporção. A cópia de grandes obras da Antiguidade torna-se uma prática frequente dos neoclássicos, sobretudo artistas viajantes, que partiam em busca da observação e reprodução dessas obras. Nesse momento, a arte passa a ser uma disciplina ensinada nas academias, com fundamentos teóricos. O escultor Jean Antoine Houdon (1741-1828) foi um dos maiores retratistas do Iluminismo – ele produziu bustos de diversos pensadores do movimento, como Voltaire. A Figura 1, a seguir, é uma escultura que retrata a filha de um amigo de Houdon, o arquiteto neoclássico Alexandre-Théodore Brongniart (1739-1813). 1 Pseudônimo pelo qual François-Marie Arouet (1694-1778) era conhecido. 2 Nome pelo qual Charles-Louis de Secondat (1689-1755), Barão de La Bréde e de Montesquieu, era conhecido. História da arte: da pintura rupestre ao Pós-Modernismo130 Figura 1 – Busto de Louise Brongniart (1777), de Jean Antoine Houdon. M et ro po lit an M us eu m o f A rt /W . C om m on s Fonte: HOUDON, J. A. Louise Brongniart. 1777. 1 escultura em mármore, 50,8 cm. Museu Metropolitano de Arte, Nova Iorque, Estados Unidos. O artista que melhor representa o movimento neoclássico é Jacques-Louis David (1748-1825). David liderou o direcionamento das atividades artísticas na França e instituiu seus ideais artísticos, com contornos rigorosos, formas esculpidas com base em ideais clássicos e superfícies polidas, sem marcas de pinceladas. O interesse em temáticas históricas e clássicas tinha prevalência para o artista, que retratou o filósofo Sócrates discursando sobre a imortalidade da alma antes de beber do copo de cicuta que o mataria, por se recusar a renunciar suas crenças. A obra A morte de Sócrates (Figura 2) representou a resistência à injustiça e é um dos símbolos do neoclassicismo. Nela, é possível observar os objetivos artísticos e políticos do momento (GALITZ, 2004a). Figura 2 – A morte de Sócrates (1787), de Jacques-Louis David. M et ro po lit am M us eu m o f A rt Fonte: DAVID, J. L. A morte de Sócrates. 1787. 1 óleo sobre tela, 129,5 x 196,2 cm. Museu Metropolitano de Arte, Nova Iorque, Estados Unidos. Do Neoclassicismo ao Modernismo 131 Sobre essa pintura, Janson e Janson (2001, p. 304) destacam: a composição desenvolve-se como um relevo, paralela ao plano da pintura, e as figuras são tãosólidas – e tão imóveis – quanto estátuas. Ainda assim existe um elemento inesperado: a luminosidade, com suas sombras matizadas com precisão, é derivada de Caravaggio, do mesmo modo que o realismo acentuado dos detalhes. David foi atuante na Revolução Francesa e retratou o líder revolucionário Jean-Paul Marat (1743-1793), que foi assassinado em uma banheira. Para aliviar o sofrimento de sua doença de pele, Marat trabalhava em uma mesa improvisada em uma banheira quando foi assassinado por uma mulher (JANSON; JANSON, 2001). Na Figura 3, ao lado, vemos nas mãos de Marat uma petição que fora entregue por sua assassina. A faca está jogada no chão e a posição do corpo – anatomicamente bem trabalhado – lembra a arte clássica. O mártir, nessa pintura, não é cristão, é político. No canto direito, abaixo, está a dedicatória: “A Marat”. David foi obrigado a se exilar durante a Revolução, mas quando Napoleão Bonaparte (1769- -1821) toma o poder, ele o nomeia o primeiro pintor do Imperador, empregando também diversos de seus discípulos (GALITZ, 2004a). Jean-Auguste Dominique Ingres (1780-1867), um dos discípulos de David, manteve os conhecimentos neoclássicos aprendidos com seu mestre, principalmente no que se refere à representação da figura humana com base no estudo do modelo vivo, contudo, é com ele que começa a surgir a pintura romântica. Os estudos dos retratos produzidos por Ingres apresentam traços muito precisos, mas quando ele os representa na técnica da pintura, demonstram certa estilização da forma humana, mais alongada e sinuosa, lembrando a pintura de Parmigianino (JANSON; JANSON, 2001). A próxima obra (Figura 4) foi uma encomenda da irmã de Napoleão Bonaparte e rainha de Nápoles, Caroline Murat (1782-1839), e tornou-se um dos nus mais famosos de Ingres. As linhas do corpo, longas e sinuosas, não são anatomicamente reais, pois o corpo parece ter pelo menos duas vértebras a mais. Além disso, o braço é longo demais em relação ao tamanho da figura, contudo, os detalhes e a textura dos tecidos são retratados com grande precisão (DE VERGNETTE, 2019). W ik ia rt Figura 3 – A morte de Marat (1793), de Jacques- -Louis David. Fonte: DAVID, J. A morte de Marat. 1793. 1 óleo sobre tela, 165 x 128 cm. Museus Reais de Belas Artes da Bélgica, Bruxelas, Bélgica. História da arte: da pintura rupestre ao Pós-Modernismo132 Figura 4 – A grande odalisca (1814), de Jean-Auguste Dominique Ingres. W ik ia rt Fonte: INGRES, J. D. A grande odalisca. 1814. 1 óleo sobre tela, 91 x 162 cm. Museu do Louvre, Paris, França. Em 1819, quando foi exposta, a obra recebeu críticas severas, pois além de não apresentar medidas humanas proporcionais, tratava-se de um nu que valorizava a beleza e sensualidade de uma figura não mitológica (era comum, por exemplo, retratar figuras como a deusa Vênus). A obra retrata uma odalisca – mulher que faz parte de um harém –, mas como o artista nunca esteve em um harém, ele o retratou com base em uma ideia fantasiosa ocidental. Para valorizar a sensualidade, Ingres alongou as costas da odalisca, colocou uma de suas pernas em uma posição fisicamente impossível e retratou um olhar “frio”, direcionado para o espectador. A riqueza de detalhes e texturas é outra característica da pintura de Ingres, como o drapeado do tecido azul, a pulseira dourada e o leque de penas. A partir de Ingres, no início do século XIX, as principais características da arte neoclássica – cores sóbrias, temas clássicos e contornos marcados – começam a se modificar e abrem caminho para o próximo período, conhecido como Romantismo. 7.2 Romantismo O movimento romântico teve início nas artes por volta do início do século XIX. O Romantismo rompeu com o idealismo clássico de David e Ingres, valorizando a emoção humana e a natureza. Argan (2008, p. 33) destaca que A pintura romântica quer ser expressão do sentimento; o sentimento é um estado de espírito frente à realidade; sendo individual, é a única ligação possível entre o indivíduo e a natureza, o particular e o universal; assim, sendo o sentimento o que há de mais natural no homem, não existe sentimento que não seja sentimento da natureza. Na Espanha, o pintor e gravurista Francisco de Goya y Lucientes (1746-1828) era simpatizante do Iluminismo. Competente retratista, também serviu ao rei, porém não deixou de conferir às suas produções um caráter prévio do Romantismo. Do Neoclassicismo ao Modernismo 133 O retrato que Goya produziu da família real espanhola (Figura 5, a seguir) faz referência à pintura As meninas (1656)3, de Diego Velázquez. Figura 5 – A família de Carlos IV (c. 1800), de Francisco de Goya y Lucientes. W ik ia rt Fonte: GOYA, F. A família de Carlos IV. c. 1800. 1 óleo sobre tela, 280 x 336 cm. Museu Nacional do Prado, Madri, Espanha. Dentre as semelhanças, podemos citar o fato de o artista também ter feito um autorretrato, colocando-se à esquerda, de frente para uma grande tela. Assim como todos que são retratados por Velázquez, são muitos os membros da família real que comparecem para a pintura. A postura da rainha, com o rosto parcialmente de lado, lembra a mesma postura da Infanta Margarita, presente na obra de Velázquez. Ao retratar algumas faces, o artista quebra paradigmas e não se preocupa em disfarçar defeitos ou traços de velhice, como é possível perceber em figuras como o rei e a rainha. Já as crianças apresentam mais beleza, apesar de demonstrarem certo ar de medo. A forma que os integrantes são retratados mostra a modernidade da obra. As roupas, repletas de ornamentos, medalhas e joias que brilham muito, dão um ar barroco para a pintura (JANSON; JANSON, 2001). As gravuras de Goya apresentam a peculiaridade de uma nova técnica: a água-tinta, que permite explorar efeitos de luz e sombra. Além disso, sua temática foge dos assuntos comuns, envolvendo seres fantasiosos (GOMBRICH, 2012). 3 Discutimos essa pintura no Capítulo 6 (Barroco: a estética do rebuscamento e do exagero). História da arte: da pintura rupestre ao Pós-Modernismo134 Com a queda de Napoleão após a Batalha de Waterloo (1815), o Romantismo começa a tomar espaço no campo artístico, na literatura e na música. Uma obra que descreve esse momento de mudanças é A Jangada da Medusa (Figura 6), obra mais famosa de Théodore Géricault (1791- -1824). Nela, o pintor representa um naufrágio ocorrido em 1816, quando 150 tripulantes de uma fragata são abandonados em alto-mar em uma jangada. Figura 6 – A Jangada da Medusa (1818-1819), de Théodore Géricault. W ik ia rt Fonte: GÉRICAULT, T. A Jangada da Medusa. 1818-1819. 1 óleo sobre tela, 491 x 716 cm. Museu do Louvre, Paris, França. A pintura de Géricault se distancia completamente da noção de belo idealizada por David, destacando momentos de horror, angústia e a força da natureza. Segundo Argan (2008, p. 52), o artista “retoma Michelangelo e Caravaggio” ao retratar corpos empalidecidos destacados pelo contraste entre claro e escuro. O tema, atual e histórico, representa um fato que abalou a população na época, uma tragédia. Géricault – e particularmente sua obra A Jangada da Medusa – influenciará o líder romântico Eugène Delacroix (1798-1863) na produção da obra A Liberdade Guiando o Povo (Figura 7). Assim como na obra de Géricault, essa obra de Delacroix apresenta uma cena de caos, porém bem pensada em todos os aspectos de sua composição. Do Neoclassicismo ao Modernismo 135 Figura 7 – A Liberdade guiando o Povo (1830), de Eugène Delacroix. W ik ia rt Fonte: DELACROIX, E. A Liberdade guiando o Povo. 1830. 1 óleo sobre tela, 260 x 325 cm. Museu do Louvre, Paris, França. O tema abordado na obra também era atual: a revolução das ruas de Paris em julho de 1830. Diferentes tipos de pessoas fazem parte da composição, mostrando que a revolução é para todos e está unindo o povo. O homem ao alto, à esquerda, deve ser um operário, como mostra as suas roupas. Em contrapartida, as roupas do homem com cartola mostram que ele deve pertencer auma classe econômica superior. À direita, do lado da alegoria da liberdade, está um menino, que, pelas roupas, bolsa e boina, deve ser um estudante. Em primeiro plano estão os caídos (os mortos), em posições muito semelhantes àquelas retratadas nas obras de Géricault (ARGAN, 2008). A imagem da Catedral de Notre Dame ao fundo destaca o fato de estar acontecendo um conflito urbano, pois a igreja era o símbolo arquitetônico da cidade (ainda não existia a Torre Eiffel). No Romantismo, o poder e a imprevisibilidade da natureza eram o argumento contra as ideias racionais do Iluminismo, característica que pode ser observada nas produções artísticas de Joseph Mallord William Turner (1775-1851) e John Constable (1776-1837). A arte romântica reflete a ênfase dada pela imaginação e emoção (GALITZ, 2004b). História da arte: da pintura rupestre ao Pós-Modernismo136 7.3 Os principais movimentos dentro do Modernismo A segunda metade do século XIX é marcada pela Revolução Industrial, que acaba por definir o início da Era Moderna. Os questionamentos a respeito da modernidade já povoavam as discussões de artistas e pensadores, como Charles Baudelaire (1821-1867). O ano de 1848 caracterizou-se pelo lançamento do Manifesto do Partido Comunista, de Karl Marx (1818-1883) e Friedrich Engels (1820-1895), e pelas lutas das classes operárias. É nesse século também que se desenvolveu o início da história da fotografia, com a criação do daguerreótipo, de Louis Jacques Mandé Daguerre (1787-1851), e as primeiras imagens reproduzidas por meio desse equipamento. É nesse cenário que se define um novo período na arte: o Realismo (FRANCE..., 2003). 7.3.1 Realismo Em 1855, o pintor Gustave Courbet (1819-1877) tomou a iniciativa de organizar sua própria exposição de arte, denominando-a de Pavilhão do realismo. Nela, Coubert declarou sua indignação às restrições da Academia de Belas Artes, que rejeitara uma obra sua para a Exposição Universal daquele ano. Segundo Argan (2008, p. 75), a produção artística de Courbet pregava um “realismo integral, [a] abordagem direta da realidade, independente de qualquer poética previamente constituída. Era a superação simultânea do ‘clássico’ e do ‘romântico’ enquanto poéticas destinadas a mediar, condicionar e orientar a relação do artista com a realidade”. Figura 8 – O Encontro (Bonjour Monsieur Courbet) (1854), de Gustave Courbet. W ik ia rt Fonte: COURBET, G. O Encontro (Bonjour Monsieur Courbet). 1854. 1 óleo sobre tela, 129 x 149 cm. Museu Fabre, Montpellier, França. daguerreótipo: aparelho fotográfico “que fixava as imagens obtidas na câmara escura numa folha de prata sobre uma placa de cobre” (HOUAISS, 2009). Do Neoclassicismo ao Modernismo 137 Na pintura O Encontro (Bonjour Monsieur Courbet) (Figura 8), a figura do lado direito é um autorretrato. Vestido despojadamente como um andarilho, Coubert tinha o objetivo de chocar e rejeitar as convenções, retratando a vida tal como a enxergava (GOMBRICH, 2012). A pessoa bem vestida com um paletó verde – destacando a desigualdade com a vestimenta do artista – representa um dos patronos de Courbet, que tira a luva para cumprimentá-lo. Provavelmente, a carruagem representada ao fundo pertencia a eles. Courbet era muito envolvido com o engajamento político, ao contrário de Jean-François Millet (1814-1875) e Édouard Manet (1832-1883), também realistas franceses. A obra de Courbet exerceu influência na produção de Manet, que também era amigo de Baudelaire, e chocou os espectadores com a obra Almoço na relva (Figura 9). Figura 9 – Almoço na relva (1863), de Édouard Manet. W ik ia rt Fonte: MANET, É. Almoço na relva. 1863. 1 óleo sobre tela, 208 x 265,5 cm. Museu de Orsay, Paris, França. O fato de colocar a representação de um nu feminino completamente fora de um contexto mitológico ou alegórico e no meio de duas figuras masculinas vestidas à moda parisiense causou indignação ao público. Entretanto, Manet, que havia estudado as grandes obras do Museu do Louvre, faz alusão nesta obra às pinturas de antigos mestres, como Giorgione e Ticiano4. Observe, na Figura 10, a composição de Giorgione, em que as duas figuras femininas são iluminadas em primeiro plano e as duas figuras masculinas, ao fundo, ficam em segundo plano. 4 Ambos foram mencionados no Capítulo 5, intitulado “O renascimento e o desenvolvimento da autonomia artística”. História da arte: da pintura rupestre ao Pós-Modernismo138 Figura 10 – Concerto campestre (1508-1509), de Giorgione. W ik ia rt Fonte: GIORGIONE. Concerto campestre. 1508-1509. 110 x 138 cm. Museu do Louvre, Paris. A princípio, parece que Manet desprezou o caráter narrativo nesta obra, provocando o espectador e buscando pintar aquilo que via. Contudo, a narrativa existe se considerarmos que a posição das figuras remete a obras antigas. Desse modo, Manet traz antigas composições e as retrata com outras preocupações, sem o uso de chiaroscuro, por exemplo. O pintor destaca o jogo de cores entre o claro do corpo feminino e o preto das roupas masculinas. A produção artística de Manet abriu caminhos para outros artistas que o consideravam como seu mestre: os impressionistas (ARGAN, 2008). 7.3.2. Impressionismo Em 1874, um grupo de artistas – indignados com as frequentes recusas do Salão Parisiense para a exibição de suas obras nas exposições anuais – se uniu e montou a própria exposição no estúdio do fotógrafo Gaspard-Félix Tournachon (1820-1910), conhecido pelo pseudônimo Nadar. O grupo era formado pelos artistas Claude Monet (1840-1926), Edgar Degas (1834-1917), Pierre- -Auguste Renoir (1841-1919), Berthe Morisot (1841-1895), Alfred Sisley (1839-1899) e Camille Pissarro (1830-1903). Uma das obras expostas, Impressão, nascer do sol (Figura 11), de Claude Monet, tornou-se o foco da ironia de um jurado, mas o grupo, que tem Manet como inspiração, acaba por adotar o termo impressionismo para se identificar. Os críticos consideravam um ultraje exibir pinturas que não eram “acabadas”, que pareciam meras impressões. Todavia, foi o movimento impressionista que rompeu completamente com as formas anteriores de representação, abrindo os caminhos da arte moderna. chiaroscuro: do italiano “claro- escuro”. Técnica de pintura desenvolvida durante o período do Renascimento. Do Neoclassicismo ao Modernismo 139 Figura 11 – Impressão, nascer do sol (1873), de Claude Monet. W ik ia rt Fonte: MONET, C. Impressão, nascer do sol. 1873. 1 óleo sobre tela, 48 x 63 cm. Museu Marmottan, Paris, França. Os impressionistas, tal como os realistas Coubert e Manet, consideravam a pintura de paisagem e a de gênero tão importantes como a pintura histórica, apesar de apenas a última ser valorizada pela Academia. Representando esses temas, os impressionistas passaram a explorar os efeitos de luz nas superfícies, utilizando cores puras aplicadas lado a lado na tela, de modo que a mistura fosse observada. Segundo Argan (2008), dentre as principais preferências dos impressionistas estão a valorização da pintura ao ar livre ou plain air (em pleno ar), desprezo pela arte acadêmica, pelo uso de contornos e do chiaroscuro. Para captar o ritmo acelerado com que a luz natural se modifica, eles costumavam reproduzir pinturas de um mesmo local em diversos momentos do dia ou em diferentes estações do ano. Figura 12 – Estação Saint-Lazare ou Vista Interior da Gare Saint-Lazare, Linha Auteuil (1877), de Claude Monet. Fo gg M us eu m / W . C om m on s Fonte: MONET, C. Estação Saint-Lazare ou Vista Interior da Gare Saint-Lazare, Linha Auteui. 1877. 1 óleo sobre tela, 75 x 104 cm. Museu de Orsay, Paris, França. História da arte: da pintura rupestre ao Pós-Modernismo140 Outra pintura que representa a “impressão” do artista é a da estação de trem Saint-Lazare (Figura 12), uma das mais movimentadas da cidade, obra que tem um amplo significado de representação da realidade. O ideal de realismo nesse período (fins do século XIX) significava a modernidade,o uso da máquina e uma nova arquitetura para explorar essa invenção. Monet utilizou várias cores para representar a luz, o vapor e a fumaça que invade o ambiente, sendo precisamente esse seu objetivo. E, por trás disso, é possível distinguir uma arquitetura urbana, a própria locomotiva e algumas figuras humanas, apenas com algumas pinceladas rápidas. Como em diversos outros trabalhos, Monet produziu mais algumas pinturas com essa mesma temática. Essa obra de Monet foi muito elogiada por Gustave Caillebotte (1848-1894), outro integrante do grupo dos impressionistas, cuja pintura era completamente diferente da de Monet. A Figura 13, ao lado, representa a parte superior da mesma estação retratada na obra Estação Saint-Lazare, de Monet. A pintura de Caillebotte agradava aos críticos, diferentemente das obras de Monet. A obra O baile no moulin de la Galette (Figura 14), de Renoir, também segue o mandamento de Baudelaire de que os pintores devem retratar a vida moderna. Esse momento fugaz mostra um mosaico de situações de um local de entretenimento, um baile popular. Há casais dançando, pessoas conversando, um homem escrevendo, outro sussurrando no ouvido de uma jovem e muitos vestidos de tecidos variados. Nesse ambiente festivo, o que sobressai é o modo como a luz do sol passa através das folhas das árvores e cai sobre os elementos, além da combinação de cores – azul, rosa, amarelo, verde – que Renoir usou. Figura 13 – A Ponte da Europa (c. 1876), de Gustave Caillebotte. or dr up ga ar d. dk /W . C om m on s Fonte: CAILLEBOTTE, G. A Ponte da Europa. c. 1876. 1 óleo sobre tela, 124,7 x 180,6 cm. Museu do Petit Palais, Genebra, Suíça. Figura 14 – O baile no mouliwn de la Galette (1876), de Pierre-Auguste Renoir. W ik ia rt Fonte: RENOIR, P. O baile no moulin de la Galette. 1876. 1 óleo sobre tela, 131 x 175 cm. Museu de Orsay, Paris, França. Do Neoclassicismo ao Modernismo 141 Tanto Renoir quanto Degas também produziram esculturas. A única escultura de Degas que chegou a ser exposta foi A pequena dançarina de quatorze anos (Figura 15), cujo caráter naturalista não agradou ao público, que a achou com traços grosseiros, além do material inusitado do tule no saiote e da crina de cavalo como cabelo. Após a morte de Degas, foram descobertas quase 150 esculturas em seu ateliê (FRANCE..., 2003). Figura 15 – A pequena dançarina de quatorze anos (1922), de Edgar Degas. Th e M et ro po lit an M us eu m o f A rt Fonte: DEGAS, E. A pequena dançarina de quatorze anos. 1922. 1 escultura em bronze, 7,8 x 43,8 x 36,5 cm. Museu Metropolitano de Arte, Nova Iorque, Estados Unidos. Degas retratou bailarinas em inúmeras pinturas, além das mulheres no banho. Em todos os temas, o artista sabia captar o momento certo de representar um movimento. Na obra O absinto (Figura 16), Degas faz a captura de um momento de dois personagens frios e inexpressivos, sem nenhuma beleza, porém reais. O enquadramento propõe em primeiro plano as mesas de um café, como se tivéssemos que desviar delas para chegar ao objetivo do quadro. Degas explorou também técnicas e materiais diversos em suas produções, sendo considerado um inovador do uso de lápis pastéis em desenhos e pinturas (ARGAN, 2008). Figura 16 – O absinto (1876), de Edgar Degas. W ik ia rt Fonte: DEGAS, E. O absinto. 1876. 1 óleo sobre tela, 92 x 68 cm. Museu de Orsay, Paris, França. História da arte: da pintura rupestre ao Pós-Modernismo142 A artista americana Mary Cassatt (1844-1926) passou a morar em Paris a partir de 1874 e se juntou ao grupo de impressionistas em 1877. Suas composições de cenas de gênero – principalmente retratando a maternidade – apresentam perspectivas oblíquas e influências da arte japonesa. Observe, na Figura 17 ao lado, o ângulo em que são representadas a mulher e a menina, em conjunto com a visão da bacia, e a posição dos rostos que se direcionam ao mesmo ponto (JANSON; JANSON, 2001). Em 1880, Auguste Rodin (1840-1917) recebeu um convite para realizar a decoração de uma porta, em que ele escolheu como temática o Inferno de Dante. O projeto não se efetivou, mas Rodin continuou a trabalhar nele. Após sua morte, diversas peças desse projeto foram encontradas em seu ateliê – muitas partes são reconhecíveis em esculturas famosas de Rodin, como O pensador (Figura 18), que está localizado no alto da obra Porta do inferno (Figura 19). A porta constitui-se de inúmeras pequenas esculturas que emergem dela, os corpos são modelados e contorcidos, lembrando a obra O Juízo final (1535-1541), de Michelangelo. Figura 18 – O pensador (1880-1882), de Auguste Rodin. W . C om m on s Fonte: RODIN, A. O pensador (detalhe da Porta do Inferno). 1880-1917. 1 escultura em bronze, 635 x 400 x 85 cm. Museu Rodin, Paris, França. Figura 19 – Porta do inferno (1880-1917), de Auguste Rodin. Ro la nd z h/ W . C om m on s Fonte: RODIN, A. Porta do inferno. 1880-1917. Bronze, 635x 400 x 85 cm. Museu Rodin, Paris, França. Figura 17 – O banho (1893), de Mary Cassatt. W ik ia rt Fonte: CASSATT, M. O banho. 1893. 1 óleo sobre tela, 100,3 x 66,1 cm. Instituto de Arte de Chicago, Chicago, Estados Unidos. Do Neoclassicismo ao Modernismo 143 Rodin desenhou diversos projetos de pequenas cenas com base na obra A Divina Comédia (1304-1321), de Dante Alighieri, na qual o autor italiano descreve uma trajetória que passa pelo inferno, pelo purgatório e pelo paraíso. O primeiro modelo que Rodin fez da porta, em cera, mostra a inspiração na Porta do Paraíso, que Lorenzo Ghiberti (artista que vimos no Capítulo 5) produziu para o Batistério de Florença, em 1452. Rodin morreu sem ver a obra concretizada, mas inspirou-se nela para produzir diversos outros trabalhos ao longo dos últimos anos de vida. Considerações finais O final do século XIX trouxe a modernidade efetivamente para a expressão artística. Os caminhos trilhados até então não podiam mais representar o retorno às formas de representação antigas, pois os impressionistas quebraram diversos paradigmas. As pinceladas curtas e sobrepostas, que enfatizavam os efeitos de luz, e a fotografia já eram uma realidade. O início do século XX trouxe muitas novidades, com maior velocidade de mudanças, muito maior do que as observadas nos últimos períodos. O Neoclassicismo, o Romantismo, o Realismo e o Impressionismo tiveram duração menor do que os períodos anteriores, como o Renascimento. Daí em diante, a velocidade das mudanças aumentou, visto que o Pós- Impressionismo apresentava diferentes manifestações artísticas. Isso também não quer dizer que não existiam representações com características dos períodos anteriores, porém, por mais que um artista da modernidade utilize formas clássicas em suas produções, seu contexto é outro, é moderno, assim como sua história. Ampliando seus conhecimentos • O ÚNICO registro em vídeo de Claude Monet pintando suas Ninfeias, em Giverny, em 1915. 2017. 1 vídeo (2 min). Publicado pelo canal Paris sempre Paris. Disponível em: https://youtu.be/Mt17zgixo78. Acesso em: 23 out. 2019. Esse raro e breve vídeo mostra cenas do pintor Claude Monet trabalhando em uma de suas célebres obras impressionistas, no jardim que ele cultivava para retratar em quadros. A propriedade está atualmente aberta à visitação do público, que pode passear pelo jardim e entrar na casa onde o artista viveu. • ART Institute of Chicago: Exploring Impressionism. Google Arts & Culture. Disponível em: https://artsandculture.google.com/usergallery/art-institute-of-chicago-exploring- impressionism/IAKi3qmI-jTfKA. Acesso em: 23 out. 2019. Essa publicação – disponível no portal Google Arts & Culture – mostra uma série de importantes obras impressionistas de artistas como Claude Monet, Gustave Caillebotte e Edgar Degas. História da arte: da pintura rupestre ao Pós-Modernismo144 • BJORK, C.; ANDERSON, L. Linéia no jardim de Monet. 2 ed. São Paulo: Salamandra, 2017. Essa obra é uma ótima pedida para realizarum trabalho com alunos do primeiro segmento do ensino fundamental e abordar a arte impressionista. Ela conta a história de uma menina que viaja a fim de conhecer a casa e os jardins onde viveu o pintor Claude Monet, conhecendo aspectos de sua obra e vida. Atividades 1. Em quais ideias estão pautadas o movimento neoclassicista? 2. Quais fatores impulsionavam as produções artísticas do período romântico? Cite um artista que representa esse movimento em suas produções. 3. Qual elemento era objeto de estudo dos artistas impressionistas? Por que esses artistas representavam esse mesmo elemento em momentos diferentes do dia? Justifique. Referências ARGAN, G. C. Arte moderna: do iluminismo aos movimentos contemporâneos. São Paulo: Companhia das Letras, 2008. FRANCE 1600-1800 A.D. In: Heilbrunn Timeline of Art History. Nova Iorque: The Metropolitan Museum of Art, out. 2003. Disponível em: https://www.metmuseum.org/toah/ht/09/euwf.html. Acesso em: 16 out. 2019. GALITZ, K. C. The Legacy of Jacques Louis David (1748–1825). Heilbrunn Timeline of Art History. Nova Iorque: The Metropolitan Museum of Art, out. 2004a. Disponível em: http://www.metmuseum.org/toah/hd/ jldv/hd_jldv.htm. Acesso em: 16 out. 2019. GALITZ, K. C. Romanticism. Heilbrunn Timeline of Art History. Nova Iorque: The Metropolitan Museum of Art, 2004b. Disponível em: http://www.metmuseum.org/toah/hd/roma/hd_roma.htm. Acesso em: 20 out. 2019. GOMBRICH, E. H. A história da arte. 16 ed. Rio de Janeiro: LTC, 2012. HOUAISS, A. (org.). Houaiss Eletrônico. Rio de Janeiro: Objetiva, 2009. 1 CD-ROM. JANSON, H. W.; JANSON, A. Iniciação à História da Arte. 4 ed. São Paulo: Martins Fontes, 2001. DE VERGNETTE, F. Une Odalisque. Louvre Museum, 2019. Disponível em: https://www.louvre.fr/en/ oeuvre-notices/une-odalisque. Acesso em: 16 out. 2019. 8 Expressões pós-modernas Vania Maria Andrade A partir do final do século XIX, os movimentos e expressões artísticas passam a se modificar com muito mais velocidade do que nos períodos anteriores. A transição entre o Modernismo e o Pós-Modernismo é muito variada em estilos e acontecimentos históricos, visto que o século XX presencia duas grandes guerras e uma série de mudanças sociais que tem reflexos no mundo todo praticamente ao mesmo tempo. Antes de abordarmos o Pós-Modernismo, vamos destacar alguns dos principais referenciais artísticos que se destacaram entre o fim do século XIX e o início do século XX, trilhando um caminho de transição entre o Modernismo e o Pós-Modernismo. Como o assunto é muito vasto e permeado de diferentes estilos, vamos abordar, neste capítulo, as vertentes surgidas a partir do Pós-Impressionismo, em seguida vamos discutir algumas das principais vanguardas do início do século XX para depois chegarmos às expressões pós-modernas. 8.1 Conceito de Pós-Modernismo Na primeira metade do século XX, uma série de mudanças propiciou o surgimento do Pós- -Modernismo por volta dos anos de 1960. Contudo, essas modificações começaram a aparecer na forma de pensar e de se expressar desde os anos finais do século XIX, quando surge a fotografia e a pintura se liberta das representações figurativas, permitindo que os artistas se aprofundassem em outras questões. Vejamos, a seguir, como essa trajetória foi construída gradativamente. 8.1.1 Pós-Impressionismo Alguns artistas pós-impressionistas eram contemporâneos aos impressionistas e desfrutavam desse convívio, porém tinham outros anseios. Esses artistas apresentaram uma produção artística diferente, sobretudo em relação ao estudo de luz e cor, que se tornou um traço característico desse grupo. Deste modo, os pintores Paul Gauguin (1848-1903), Georges Seurat (1859-1891), Vincent van Gogh (1853-1890) e Paul Cézanne (1839-1906) partiram em direção a outras pesquisas sobre a expressão pictórica, apresentando uma produção artística específica, por isso, esses pintores são considerados pós-impressionistas. Paul Cézanne participava do círculo de amigos dos pintores impressionistas, entretanto, as suas preocupações na pintura iam além das do grupo, que pesquisava a respeito dos efeitos da luz na pintura ao ar livre. Amigo de infância do escritor Émile Zola (1840-1902), acabou por viver uma vida mais isolada na região da Provença, na França, e desenvolveu uma produção artística que o fez ser considerado um dos mais influentes da pintura moderna. História da arte: da pintura rupestre ao Pós-Modernismo146 Os primeiros trabalhos de Cézanne demonstram a herança do pintor romântico Eugène Delacroix (artista que vimos no Capítulo 7). Com o passar do tempo, o artista passou a pintar ao ar livre na companhia do pintor impressionista Camille Pissarro (1830-1903) e começou a apresentar em suas pinturas a preocupação em utilizar a cor criando formas. É a partir desse momento que Cézanne começa a desenvolver a sua teoria de que devemos enxergar a paisagem transformando-a em formas geométricas. Argan (2008, p. 112) destaca que: numa carta de 1904, ele escreve que é preciso “tratar a natureza conforme o cilindro, a esfera, o cone, o conjunto posto em perspectiva”, e pretendeu-se ver nessa fase uma antecipação teórica do Cubismo, movimento que inquestionavelmente descende de sua pintura, mas interpreta-a em sentido racionalista. Na Figura 1, a seguir, é possível observar como Cézanne trabalha intercalando camadas de cores quentes e frias para dar a sensação de profundidade, colocando o monte mais distante. As camadas de cor e direção das pinceladas sugerem as formas, sem precisar utilizar linhas de contornos. Figura 1 – Monte Sainte-Victoire (c. 1895), de Paul Cézanne. W ik iA rt Fonte: CÉZANNE, P. Monte Sainte-Victoire. c. 1895. 1 óleo sobre tela, color., 73 x 92 cm. Fundação Barnes, Filadélfia, Estados Unidos. O artista pintou o Monte Sainte-Victoire exaustivamente, de diferentes ângulos, sempre na busca por conseguir representar as formas a partir do uso mais adequado da cor. Observe, na Figura 2, uma das últimas de suas pinturas, como o pintor consegue chegar a uma quase abstração, fato que explica ele ser considerado um dos precursores do Cubismo. Compare as duas pinturas e veja aspectos da trajetória da produção artística de Cézanne (GOMBRICH, 2012). Expressões pós-modernas 147 Figura 2 – Monte Sainte-Victoire (c. 1906), um dos últimos trabalhos de Paul Cézanne. W ik iA rt Fonte: CÉZANNE, P. Monte Sainte-Victoire. c. 1906. 1 óleo sobre tela, color., 63,5 x 83 cm. Museu Kunsthaus, Zurique, Suíça. As pesquisas do pintor Georges Seurat também tinham a cor como objetivo, mas com outro enfoque, seguindo mais as ideias impressionistas. Ele se fundamentou nos estudos sobre óptica e a teoria das cores, acreditando que caso as cores fossem aplicadas puras na tela, em pontos aproximados ou se sobrepondo, a mistura entre elas ocorreria no olho do espectador. Desta forma, Seurat desenvolveu a técnica do divisionismo, que também ficou conhecida como pontilhismo. Argan (2008, p. 117) descreve essa técnica: Um problema central é a divisão dos tons: como a luz é a resultante da combinação de diversas cores (a luz branca, de todas), o equivalente da luz na pintura não deve ser um tom unido, nem ser obtido com a mistura das tintas, e sim resultar da aproximação de vários pontinhos coloridos que, a certa distância, recompõe a unidade do tom e tornam a vibração luminosa. A temática da obra Um domingo na Grande Jatte (Figura 3) é típica dos artistas impressionistas, mas a forma de representá-la é mais elaborada, com base em teorias científicas. As figuras são geometrizadas (cilindros e cones) e posicionadas de maneira calculada, construindo a composição por meio de linhas verticais e horizontais. Figura 3 – Um domingo na Grande Jatte (1884-1886), de Georges Seurat W ik iA rt Fonte: SEURAT, G. Um domingo na Grande Jatte. 1884-1886. Óleo sobre tela, color., 207,5 x 308,1 cm. Instituto de Artes de Chicago, Chicago, Estados Unidos. História da arte: da pintura rupestre ao Pós-Modernismo148Seurat tornou-se o líder de um grupo de artistas que passaram a desenvolver suas ideias, denominados de neo-impressionistas, envolvendo a relação de arte e ciência em suas obras. Tanto Cézanne quanto Seurat tinham afinidade com o Impressionismo, mas a arte do autodidata Van Gogh tomou uma direção diferente, como destaca Gombrich (2012, p. 546): De fato, Van Gogh também absorvera as lições do Impressionismo e do pontilhismo de Seurat. Gostava da técnica de pintar em pontos e pinceladas de cor pura, mas nas suas mãos tal técnica tornou-se algo diferente em relação ao que os artistas de Paris pretendiam realizar com ela. Van Gogh usou cada pincelada não só para dispersar a cor, mas também para externar a sua própria excitação. Em razão da intensidade dessa expressividade, Van Gogh chegou a ser considerado um precursor do Expressionismo, movimento que surgiria posteriormente. Na Figura 4, a seguir, podemos destacar essa expressiva característica nas pinceladas ondulantes que colocam todos os elementos da composição em movimento, como labaredas. Além disso, o artista carregava o pincel com certa quantidade de tinta, fazendo uso da cor empastada em camadas grossas de tinta. Figura 4 – Um campo de trigo com ciprestes (1889), de Vincent van Gogh. W ik iA rt Fonte: VAN GOGH, V. Um campo de trigo com ciprestes. 1889. 1 óleo sobre tela, color., 73 x 92 cm. Galeria Nacional, Londres, Reino Unido. A temática de Van Gogh é muito variada, partindo de problemas sociais – por exemplo, quando retrata a vida de carvoeiros –, passa por simples objetos ou ambientes – como um par de botas velhas ou o seu quarto – e chega a paisagens diversas. O artista pintava compulsivamente e escrevia muitas cartas para Theo (1857-1891), seu irmão e protetor. Nessas cartas, descrevia muitas de suas produções detalhadamente, cores, soluções para composições e ideias para pintar. Além disso, relatava suas angústias, seus sofrimentos e tudo que se passava pela sua mente. Na pintura em que descreve seu próprio quarto (Figura 5) quando viveu na cidade de Arles, na França, o artista escreveu para o irmão: “desta vez trata-se simplesmente de meu quarto, só que aqui a cor é que tem que fazer a coisa e, emprestando através de sua simplificação um estilo maior Expressões pós-modernas 149 às coisas, sugerir o descanso ou o sono em geral. Enfim, a visão do quadro deve descansar a cabeça, ou melhor, a imaginação” (VAN GOGH, 1991, p. 221). Figura 5 – O quarto (1888), de Vincent van Gogh. W ik iA rt Fonte: VAN GOGH, V. O quarto. 1888. 1 óleo sobre tela, color., 72 x 90 cm. Museu Van Gogh, Amsterdã, Holanda. O quarto retratado nessa obra pertence à Casa Amarela, local onde o artista conviveu com Paul Gauguin por um breve e conturbado período, no final de 1888. Com a vida e o temperamento completamente diferente de Van Gogh, Gauguin era um colecionador de arte e renunciou à vida estável de negociador financeiro para se dedicar exclusivamente à pintura. Participou de exposições impressionistas e viajou para diversos lugares na busca de uma vida mais nativa (JANSON; JANSON, 2001). A pintura De onde nós viemos? O que nós somos? Onde estamos indo? (Figura 6), uma das mais conhecidas de Gauguin, foi feita durante o período em que ele morou no Taiti, na Polinésia Francesa. Esse é o seu maior trabalho, em que o artista representa a paisagem da ilha com o mar e as montanhas vulcânicas ao fundo. Figura 6 – De onde nós viemos? O que nós somos? Onde estamos indo? (1897), de Paul Gauguin. W ik iA rt Fonte: GAUGUIN, P. De onde nós viemos? O que nós somos? Onde estamos indo?. 1897. 1 óleo sobre tela, color., 139,1 x 374,6 cm. Museu de Belas Artes, Boston, Estados Unidos. História da arte: da pintura rupestre ao Pós-Modernismo150 Além desses, outros artistas pós-impressionistas, como o francês Henri de Toulouse Lautrec (1864-1901) e o austríaco Gustave Klimt (1862-1918), desejavam fazer algo a mais. Para esses, a arte impressionista não satisfazia mais seus anseios, por isso eles partiram em direção a caminhos por vezes solitários, mas que abriram espaço para as vanguardas do século XX. 8.1.2 O início do século XX Na França dos primeiros anos do século XX, um grupo de artistas, dentre eles André Derain (1880-1954) e Maurice Vlaminck (1876-1958), liderados por Henri Matisse (1869-1954), foi chamado de fauves (feras) por utilizarem em suas pinturas pinceladas de cores vívidas. Na obra Alegria da Vida (Figura 7), de Matisse, podemos observar o uso que o artista faz das cores aplicadas em uma expressão puramente emocional, não correspondendo ao que enxergamos na realidade da natureza. A temática também não segue a da observação de pessoas em um parque ou praça, como fariam os impressionistas. Matisse faz uma representação teatral, como seriam as pinturas clássicas de Ticiano, com as figuras femininas em poses lânguidas. Essa pintura lembra a obra As grandes banhistas (1900-1906), de Cézanne, em que a composição também é pensada do mesmo modo, com as figuras femininas e a vegetação envolvendo a cena como uma cortina. Além de todas essas características, a obra de Matisse mostra a simplicidade da composição onde tudo ocupa um lugar bem planejado (inclusive os espaços vazios) e a expressividade na cor. O pintor começa também a romper com as regras da representação em escala; é possível observar que o tamanho das figuras não obedece a uma proporção de representação (JANSON; JANSON, 2001). Figura 7 – Alegria da Vida (1905-1906), de Henri Matisse. W ik iA rt Fonte: MATISSE, H. Alegria da Vida. 1905-1906. 1 óleo sobre tela, color., 176,5 x 240,7 cm. Fundação Barnes, Filadélfia, Estados Unidos. Quando Pablo Picasso (1881-1973) viu essa pintura de Matisse, sentiu-se desafiado a criar algo inovador e grandioso. Em 1907, o pintor produziu As senhoritas de Avignon, uma de suas obras mais famosas. Com essa obra, Picasso deu os primeiros passos no que viria a ser o movimento cubista. Argan (2008, p. 302) destaca as principais características desse movimento: lânguido: que evoca ou engendra ternura, doçura, suavidade; voluptuoso, sensual. Expressões pós-modernas 151 1. a não distinção entre imagem e fundo, a eliminação da sucessão dos planos numa profundidade ilusória; 2. a decomposição dos objetos e do espaço segundo um único critério estrutural; a concepção da estrutura não mais como esqueleto ou armação fixa, e sim como processo de agregação formal; 3. a sobreposição e justaposição de múltiplas visões, a partir de diferentes ângulos, com o propósito de apresentar os objetos não só como se mostram, mas também como são. Além disso, novas técnicas e materiais começaram a ser utilizados, rompendo os limites do que pode ser uma pintura, agregando objetos, colando e escrevendo no suporte (tela, madeira etc.). Nesse mesmo período, enquanto o Fauvismo surgia na França, o Expressionismo se destacava na Alemanha. O termo só foi definido por volta de 1911, mas desde 1905 artistas alemães iniciaram uma produção em oposição ao Impressionismo, com as mesmas características dos fauves, mas com outras especificidades. Os expressionistas representavam a vida cotidiana, porém, com certa rudeza; tinham como inspiração a arte de povos primitivos, a mesma que também inspirou Picasso na produção de As senhoritas de Avignon (ARGAN, 2008). Essa obra pode ser visualizada acessando o QR code ao lado. Dois grupos expressionistas se destacaram: Die Brücke (A ponte) e Der Blaue Reiter (O cavaleiro azul). O grupo A ponte foi criado em 1905 e dissolveu-se antes da Primeira Guerra Mundial (1914-1918). Entre os principais artistas que o formavam estão: Ernst Ludwig Kirchner (1880-1938), Emil Nolde1 e Otto Mueller (1874-1930). Do grupo O cavaleiro azul se destaca Wassily Kandinsky (1866-1944), que propõe que a arte pode se comunicar apenas por meio de linhas e cores, fazendo surgir, desta forma, a arte abstrata. Segundo Janson e Janson (2001, p. 363), “seu objetivo era dotar a formae a cor de um significado puramente espiritual (conforme dizia ele), eliminando toda semelhança com o mundo físico”. Kandinsky (Figura 8) era muito místico e gostava de relacionar a pintura com a música, dando nomes musicais a muitas de suas obras. Muitas de suas pesquisas sobre a arte estão em livros que escreveu e até hoje são referências para artistas, como as obras Do espiritual na arte (1912) e Ponto, linha, plano (1926). 1 Forma pela qual Hans Emil Hansen (1867-1956) era conhecido. Figura 8 – Sons contrastantes (1924), de Wassily Kandinsky. Fonte: KANDINSKY, W. Sons contrastantes. 1924. 1 óleo sobre papelão, color., 70 x 49,5 cm. W ik iA rt História da arte: da pintura rupestre ao Pós-Modernismo152 De acordo com Argan (2008), foi em 1909 que surgiu o que se pode considerar realmente o primeiro movimento de vanguarda: o Futurismo, que propôs um rompimento radical com tudo o que foi feito anteriormente. O líder do movimento literário foi o italiano Filippo Tommaso Marinetti (1876-1944), que lançou o Manifesto Futurista (1909). No ano seguinte é lançado o Manifesto da pintura futurista (1910), assinado pelos artistas Umberto Boccioni (1882- 1916), Carlo Carrà (1881-1966), Luigi Russolo (1885-1947), Gino Severini (1883-1966) e Giacomo Balla (1871-1958). O objetivo dos artistas futuristas era capturar a ideia de modernidade, as sensações de velocidade, movimento e valorização do desenvolvimento industrial. Boccioni, artista de referência do Futurismo, consegue sintetizar a ideia do movimento na escultura Formas únicas de continuidade no espaço (Figura 9), que lembra a escultura grega antiga Vitória de Samotrácia (Figura 10) em sua estrutura. Em 1917, Marcel Duchamp (1887-1968) causou indignação ao tentar expor um mictório produzido em fábrica que ele virou ao contrário e assinou um pseudônimo com tinta preta (Figura 11). O artista havia criado dessa forma os ready-mades, isto é, o ato de nomear qualquer objeto como arte. Esta provocação de Duchamp desencadeou a reflexão sobre questionamentos que até hoje são discutidos a respeito do que é arte. As expressões artísticas provocativas eram a marca registrada do movimento dadaísta que se manteve entre 1914 e 1918, em diversas partes do mundo. W ik iA rt Figura 9 – Formas únicas de continuidade no espaço (1913), de Umberto Boccioni. Fonte: BOCCIONI, U. Formas únicas de continuidade no espaço. 1913. 1 escultura em bronze, 111,2 x 88,5 x 40 cm. Museu de Arte Moderna, Nova Iorque, Estados Unidos. W . C om m on s Figura 10 – Vitória de Samotrácia (c. 190 a.C.). Fonte: VITÓRIA de Samotrácia, c. 190 a.C. 1 escultura em mármore, 3,28m. Museu do Louvre, Paris, França. Expressões pós-modernas 153 Figura 11 – Fonte (1917), de Marcel Duchamp (reprodução). W ik iA rt Fonte: DUCHAMP, M. Fonte (reprodução). 1917. Cerâmica vidrada com tinta preta, 38.1 x 48.9 x 62.55 cm. Tate Modern, Londres, Reino Unido. Sucedendo ao Dadaísmo, no final de 1922, surge o Surrealismo, quando os estudos sobre o inconsciente e a psicanálise de Sigmund Freud começam a influenciar os grupos intelectuais. Em 1924, é publicado o Manifesto do Surrealismo, de André Breton (1896-1966). Artistas como Yves Tanguy (1900-1955), Max Ernst (1891-1976) e René Magritte (1898-1967) apresentam produções que misturam motivos estranhos como se fossem narrativas surgidas em sonhos, explorando o subconsciente. Max Ernst (Figura 12), por exemplo, explorava a colagem de objetos. Figura 12 – Mon ami Pierrot (1970), de Max Ernst. al ex an dr e zv ei ge /S hu tt er st oc k Fonte: ERNST, M. Mon ami Pierrot. 1970. Coleção particular. História da arte: da pintura rupestre ao Pós-Modernismo154 Ernst, conhecido por sua criatividade, começou a utilizar novas técnicas na produção de seus trabalhos, além do desenho, pintura e escultura. Ele desenvolveu uma técnica de decalcomania, que consistia em um aperfeiçoamento do ato de decalcar, isto é, esfregar o lápis ou tinta sobre superfícies diferentes. Com essa técnica, o artista conseguia imagens manchadas para produzir formas. Suas produções mesclavam diferentes técnicas para expressar as ideias do Surrealismo. 8.1.3 Pós-Modernismo Com a invasão dos nazistas na Europa durante a Segunda Guerra Mundial (1939-1945), muitos artistas migraram para os Estados Unidos – mais especificamente para a cidade de Nova Iorque –, fato que promoveu uma grande mudança de centro de referência cultural mundial. Até então, a Europa era considerada o centro intelectual e artístico. Com a Europa dilacerada pela guerra, os Estados Unidos se fortaleceram mundialmente como potência econômica e política; o direcionamento da arte também refletiu essa mudança de rumos. Os caminhos abertos pelas vanguardas artísticas do início do século e o interesse crescente pela abstração geométrica permitiram que os artistas experimentassem novas possibilidades de se expressar e de experimentar, descobrindo novas linguagens (THE UNITED..., 2004) É nesse contexto pós-guerra do final da década de 1940 que surgiu uma vanguarda americana que ficou conhecida como Expressionismo abstrato e que se revela nas produções de artistas como Jackson Pollock (1912-1956), Willem de Kooning (1904-1997), Franz Kline (1910- 1962), Lee Krasner (1908-1984) e Mark Rothko (1903-1970). Esses artistas romperam com as convenções e inovaram trabalhando com a improvisação e a espontaneidade, tendo o abstracionismo como base e enfatizando um gestual dinâmico. Associado ao Expressionismo abstrato está a action painting, ou seja, pintura de ação, estilo em que o movimento físico está envolvido diretamente no gestual (PAUL, 2004). Com base na action painting, Jackson Pollock desenvolveu uma técnica de pintura chamada dripping, que consiste em gotejar ou borrifar a tinta mais fluida sobre a tela estendida no chão, produzindo marcas espontâneas. Para conhecer essa técnica, acesse o QR code ao lado. O mesmo vigor das pinceladas da action painting podem ser identificadas nas obras da pintora Lee Krasner – que se casou com Pollock – e Willem de Kooning. Já Mark Rothko desenvolveu um trabalho diferente; seus trabalhos mostram um novo estilo, que é a pintura por campos de cor, que consiste em cobrir a tela com manchas coloridas com uma aquarela. Acesse o QR code ao lado para conhecer um dos trabalho desse artista. Expressões pós-modernas 155 Com base nessas novas possibilidades de expressão e do contexto social em que o mundo se inseria nesse período, veremos a seguir os principais acontecimentos e expressões artísticas decorrentes do Pós-Modernismo, como a arte conceitual. 8.2 O mundo pós-guerra e os movimentos de contracultura O mundo mal se recuperava das duas grandes guerras e já presenciava mudanças no foco artístico intelectual de continente. Muitos artistas migraram da Europa para os Estados Unidos para fugir desses conflitos e o centro intelectual e artístico mundial se transferiu para Nova Iorque. Além disso, novos episódios políticos e sociais mobilizavam movimentos a favor de mudanças. Essas mudanças alteraram em um curto espaço de tempo o modo de pensar da sociedade, que acabou reagindo de modo radical. Os movimentos da contracultura reagiam ao conservadorismo e repressão das gerações anteriores, ansiando por maior liberdade de comportamentos por meio da revolução sexual e do uso da pílula anticoncepcional. Além disso, a participação dos Estados Unidos na Guerra do Vietnã, em 1960, suscitou revolta e protestos; em seguida, o escândalo de Watergate favoreceu a queda de credibilidade da política americana (WINTHER et al., 2019). Todos esses fatores influenciaram a nova maneira de ver o mundo na segunda metade do século XX, influenciando também os modos de se expressar. O uso da imagem também começa a ser visto por um novo ângulo, permitindo maior conscientização, como produtores e consumidores influenciados por essas imagens. O consumo de imagens aumentou significativamente com o avanço tecnológicoe o conceito de cultura de massa, como destaca Argan (2008, p. 509): O aparato tecnológico-organizativo da economia industrial não limita, e sim potencia a função da imagem. Existem grandes indústrias que produzem e vendem apenas imagens: o cinema, a radiotelevisão, a publicidade etc. Sem a informação por meio da imagem, não existiria uma cultura de massa, e a cultura de uma sociedade industrial não pode ser senão uma cultura de massa. A partir de 1970, novas mídias começam a ser utilizadas como linguagem de arte, os computadores passam a fazer parte da vida dos indivíduos, tornando-se cada vez menores e mais baratos. Os americanos Andy Warhol (1928-1987), Roy Lichtenstein (1923-1997) e James Rosenquist (1933-2017) desenvolveram suas produções trazendo a técnica da serigrafia para o campo de arte. Antes deles, a técnica da serigrafia era utilizada apenas para fins de impressão comercial adequados para a larga escala e justamente apropriados para a cultura de massa. Essa forma de expressão artística ficou conhecida como Pop art, a qual parece enaltecer a cultura de massa e, ao mesmo, tempo questioná-la. História da arte: da pintura rupestre ao Pós-Modernismo156 Warhol (Figura 13) tornou-se um dos artistas mais famosos de seu tempo, reproduzindo sua própria imagem e a imagem de celebridades, como Marilyn Monroe (1926-1962), Elizabeth Taylor (1932-2011), Jacqueline Kennedy Onassis (1929-1994), entre outros. São famosas também as obras em que reproduz latas de sopa Campbell e o refrigerante Coca-Cola. Figura 13 – Painel no Andy Warhol, Museu de Arte Moderna, em Medzilaborce, Eslováquia. In g. M gr . J oz ef K ot ul ič /W . C om m on s Lichtenstein (Figura 14) explorou a linguagem das histórias em quadrinhos. Suas obras são grandes quadrinhos, para destacar exatamente o que o caracteriza: escrita em balões, imagens pontilhadas imitando a técnica de impressão industrial etc. Figura 14 – El Cap de Barcelona (1991-1992), de Roy Lichtenstein M ut ar i/ W . C om m on s Fonte: LICHTENSTEIN, Roy. El Cap de Barcelona. 1991-1992. 1 escultura em cerâmica, Barcelona, Espanha. Expressões pós-modernas 157 8.3 Expressões pós-modernas Por volta das décadas de 1960 e 1970, surgiu o termo arte conceitual para definir as novas expressões artísticas que valorizam mais a ideia ou o conceito da obra do que o objeto finalizado. As origens da arte conceitual remetem aos ready-mades de Marcel Duchamp. Com a possibilidade de fazer arte a partir de qualquer coisa, os artistas conceituais buscam novos desafios para expressar suas ideias, pois não estão mais presos a técnicas e materiais de pintura ou escultura, podendo extrapolar esses limites. O trabalho de Sol LeWitt (1928-2007) é um exemplo de arte conceitual, uma vez que não era ele quem executava a obra, mas sim descrevia como ela deve ser produzida. Para a obra Uma parede dividida verticalmente em quinze partes iguais, cada uma com uma direção e cor diferentes da linha e todas as combinações (1970), que pode ser acessada no QR code ao lado, o artista descreveu todas as instruções para que assistentes executassem o trabalho na parede. Nesse trabalho, as linhas foram traçadas em grafite colorido de acordo com as coordenadas, e para cada cor corresponde um tipo diferente de linha: amarelo para horizontal, preto para vertical, vermelho para diagonal da esquerda para a direita e azul para diagonal da direita para a esquerda (CONCEPTUAL..., 2019). Na obra de Joseph Kosuth (1945-), Uma e três cadeiras (1965), o artista colocou lado a lado uma cadeira dobrável de madeira, uma fotografia de uma cadeira e a definição do dicionário da palavra cadeira escrita na parede. Para conhecer essa obra, acesse o QR code ao lado. A performance, ou arte performática, é a expressão artística que envolve uma ação do próprio artista, do espectador ou outro participante, podendo acontecer ao vivo ou ser gravada para ser apresentada em vídeo. Os dadaístas trabalhavam com esse tipo de arte em suas reuniões. Ewa Partum (1945-) fez uso da performance na obra Poesia ativa (1971), em que espalhou pelo chão da cidade e pelo campo letras do alfabeto recortadas em papel. O artista Joseph Beuys (1921-1986) chama suas performances de ações. Na ação Gosto da América e a América gosta de mim (1974), o artista se envolveu em um cobertor e passou três dias em uma sala com um coiote, destacando um posicionamento político contra a Guerra do Vietnã. História da arte: da pintura rupestre ao Pós-Modernismo158 Marina Abramović (1946-) é uma das pioneiras da arte performática. Sua performance mais longa foi A artista está presente (Figura 15), que aconteceu no Museu de Arte Moderna em Nova Iorque. O espectador era convidado a sentar na cadeira vazia que estava em frente a uma mesa. Do outro lado, em outra cadeira, Abramović permanecia sentada em silêncio olhando para o espectador. A instrução na entrada do espaço limitado por uma fita no chão era para que se sentasse em silêncio na frente da artista pelo tempo que quisesse; o registro foi feito em fotos e vídeos. Figura 15 – A artista está presente (2010), performance de Marina Abramović. Sh el by L es si g/ W . C om m on s A união da performance com a natureza pode ser vista na obra Uma linha feita ao andar (1967), de Richard Long (1945-). O artista andou para frente e para trás até que a grama sofresse o impacto e a reação da luz solar, produzindo uma linha. Ele fez um registro fotográfico do processo. Seguindo essa expressão entre arte e natureza, temos a land art, ou “arte da terra” que consiste na interferência do artista na paisagem, como a obra de Robert Smithson (1938-1973), Spiral Jetty (Figura 16), em que ele produziu uma gigantesca espiral sobre um lago em Utah, nos Estados Unidos. Figura 16 – Spiral Jetty (1970), de Robert Smithson. So re n. ha rw ar d/ W . C om m on s Fonte: SMITHSON, R. Spiral Jetty. 1970. Great Salt Lake, Utah, Estados Unidos. Expressões pós-modernas 159 A land art se caracteriza não só pela interferência na paisagem urbana ou rural, nela deve haver uma interação da obra com a natureza, ou seja, não basta expor uma escultura em um bosque. A obra deve dialogar com a natureza na qual está interferindo. Dentro desse conceito, o artista Christo2 “embalou” toda a Ponte Neuf, sobre o Rio Sena (Paris, França) em um tecido bege (Figura 17), além de ter embalado também diversos outros monumentos e árvores. Figura 17 – Ponte Neuf embalada (1985), de Christo. Ai ai r/ W . C om m on s Fonte: CHRISTO. Ponte Neuf embalada. 1985. Paris, França. A arte conceitual não apresenta limites para sua expressão. Pode ser expressa por meio de outras formas de linguagem, como a body art, em que o artista utiliza o corpo como suporte da arte. Mas as linguagens podem se mesclar e utilizar de diversas ferramentas para que se transmita a mensagem do artista. Considerações finais A história da arte é uma história sem fim. Ela continua sendo construída a cada dia e, por mais que a gente tente, é impossível abordar todos os artistas que apresentam obras significativas e que representam determinados períodos históricos. Traçamos neste capítulo um panorama geral da trajetória complexa e variada de estilos, movimentos e expressões que a linguagem da arte moderna e pós-moderna vem nos mostrando desde os últimos anos do século XIX, ao longo do século XX e em algumas produções do século XXI, em ritmo cada vez mais frenético de mudanças e mobilizações. Muitos dos estilos e movimentos apresentados continuam a ser abordados por inúmeros artistas, com as devidas contextualizações atualizadas. Por isso, é sempre bom lembrar que a 2 Forma popular pela qual é conhecido o artista búlgaro Christo Vladimirov Javacheff (1935-). História da arte: da pintura rupestre ao Pós-Modernismo160 nomenclatura e as datas dos períodos artísticos são apenas referências para facilitar a orientação e compreensão histórica. Os artistas de geraçõesanteriores influenciaram a produção dos artistas das gerações seguintes, pois fazem parte da história, da trajetória que foi trilhada pela linguagem da arte para se chegar aonde chegou. Se hoje é possível criar do modo que os artistas estão produzindo, é porque todos os artistas anteriores abriram esses caminhos. Ampliando seus conhecimentos • O SORRISO de Mona Lisa. Direção: Mike Newell. Produção: Fredward Johnanson. Intérpretes: Julia Roberts, Kirsten Dunst, Julia Stiles, Maggie Gyllenhaal, Ginnifer Goodwin, Dominic West. Roteiro: Lawrence Konner, Mark Rosenthal. Columbia Pictures do Brasil, 2003. (114 min). O filme destaca a experiência da professora Katharine Watson (Julia Roberts), de história da arte, ao lecionar em uma famosa escola tradicional e o impacto que traz para a comunidade escolar a abordagem da arte contemporânea. Alguns artistas importantes, como Jackson Pollock, são abordados quando a professora lança algumas propostas de reflexão a respeito da expressão artística. • POLLOCK. Direção: Ed Harris. Intérpretes: Amy Madigan, Bud Cort, Ed Harris, Jeffrey Tambor, Jennifer Connelly, John Heard, Marcia Gay Harden, Val Kilmer. Roteiro: Barbara Turner, Susan J. Emshwiller. Columbia Pictures do Brasil, 2001. (117 min). O filme narra a biografia do pintor Jackson Pollock desde o início da sua carreira – com a insistência da esposa em ajudar a torná-lo conhecido –, passando pelo período da fama até a sua morte trágica e prematura. Muitas cenas mostram o processo de criação do artista e a sua técnica do dripping. • CEZANNE e eu. Direção: Danièle Thompson. Intérpretes: Guillaume Gallienne, Guillaume Canet, Alice Pol. Roteiro: Danièle Thompson. 2019. Media Bridge, 2019. (114 min). O filme conta a história da amizade entre Paul Cézanne (Guillaume Gallienne) e Émile Zola (Guillaume Canet), que viriam a se tornar, respectivamente, pintor e escritor. Desde o início da amizade, quando eram colegiais, os amigos precisam superar a diferença social, pois Cézanne é rico e Zola é pobre. Ao longo dos anos os amigos superam outras diferenças, de acordo com as escolhas que vão fazendo. Atividades 1. Escolha três artistas pós-impressionistas, descreva as características de suas produções e as razões que os fazem ser considerados como tal. Expressões pós-modernas 161 2. Destaque alguns dos principais acontecimentos históricos e sociais do século XX e o modo que estes influenciaram os rumos da arte. 3. Contextualize e descreva o que é a arte conceitual e cite algumas de suas mais conhecidas expressões. Referências ARGAN, G. C. Arte moderna. São Paulo: Companhia das Letras, 2008. CONCEPTUAL-ART. Tate. Disponível em: https://www.tate.org.uk/art/art-terms/c/conceptual-art#. Acesso em: 26 out. 2019. GOMBRICH. E. H. A história da arte. Rio de Janeiro: LTC, 2012. JANSON, H. W.; JANSON, A. F. Iniciação à História da Arte. São Paulo: Martins Fontes, 2001. PAUL, S. Abstract Expressionism. Heilbrunn Timeline of Art History. Nova Iorque: Museu Metropolitano de Arte, out. 2004. Disponível em: https://www.metmuseum.org/toah/hd/abex/hd_abex.htm. Acesso em: 25 out. 2019. THE UNITED States and Canada, 1900 A.D.–present. Heilbrunn Timeline of Art History. Nova Iorque: The Metropolitan Museum of Art, out. 2004. Disponível em: http://www.metmuseum.org/toah/ ht/?period=11®ion=na. Acesso em: 25 out. 2019. VAN GOGH, V. Cartas a Theo. Porto alegre: LPM, 1991. WINTHER, O. O. et al. The civil rights movement. Britannica.com. Disponível em: https://www.britannica. com/place/United-States/The-civil-rights-movement. Acesso em: 25 out. 2019. Gabarito 1 Teorizações sobre a arte 1. Enquanto a palavra arte é de origem latina e designava, na Antiguidade romana, o conjunto das regras e habilidades necessárias à realização de um ofício qualquer, o termo tékhne é de origem grega e era empregado, inclusive por Aristóteles, para designar as habilidades necessárias à realização de uma atividade regrada cujo conhecimento poderia ser repassado adiante. Aristóteles estabeleceu uma diferença entre a arte com técnica e a arte como criação ou imitação, nominando essa segunda forma como arte poética. Segundo o filósofo, a função da arte poética é atingir uma verossimilhança com o real para atingir no expectador um prazer contemplativo, decorrente do reconhecimento da relação entre a arte mimética e o real. A palavra estética tem suas origens etimológicas no termo grego aisthetiké, que pode ser compreendido como “aquele que percebe, aquele que nota algo”. Ao longo do pensamento ocidental, a Estética se afirmou como uma ciência filosófica do belo. O uso do termo com essa designação foi empregado pela primeira vez no século XVIII, em 1750, pelo filósofo alemão Alexander Gottlieb Baumgarten. 2. Segundo Gombrich, o que permanece são os artistas e o que se designa por “arte” muda de uma época para outra, de um contexto para outro e de uma cultura para outra, portanto, sendo assim tão intermitente, a arte não pode ser concebida como uma continuidade. Há a necessidade da criação e da expressão artística em diferentes épocas e lugares, há contextos em que essa criação busca uma verossimilhança com determinada concepção de real, noutros há busca por evocar o que transcende esse real, o sobrenatural, ou o que o ultrapassa, podendo elevar até sentimentos, ideias e valores nobres, suscitando o sublime, ou chocando pela alusão ao que há de mais sombrio e sórdido no ser humano. Diferentes criações e expressões estéticas – que nos levam a contemplar e a olhar com atenção uma obra criada sem uma função técnica – podem ser consideradas artísticas em diferentes contextos, porém em todas elas há algo que permanece: o fato de serem artefatos humanos, feitos de palavras, imagens, texturas ou formas, que trazem em si a capacidade de nos afetar, de nos tirar do cotidiano e do lugar comum, de nos elevar ao conceito mais abstrato de absoluto, de sagrado ou de nos interiorizar até o ponto de atingir o mais íntimo de nós. A arte pode tudo isso, fato que a torna tão antiga e tão importante. 3. O conceito de juízo de gosto em Kant pressupõe a tentativa do estabelecimento de parâmetros objetivos para a apreciação da obra de arte. De acordo com Kant, a obra de arte, ao se comunicar com a sensibilidade das pessoas, instigando opiniões e sentimentos, estabelece vias a partir das quais pode instigar a reflexão e ser pensada objetivamente. É possível pensar no gosto como algo que pode ser discutido, passando-se do gosto subjetivo para o refinamento do gosto e, portanto, para a reflexão estética, que tem por base uma espécie de acordo sobre a beleza – que é uma ideia universal e, portanto, uma ideia da razão. 164 História da arte: da pintura rupestre ao Pós-Modernismo Como parâmetro para se discutir a beleza, Kant propõe o sublime – conceito que expressa o que podemos perceber externamente, como o que ultrapassa a percepção dos nossos sentidos e a compreensão do nosso intelecto: o ilimitado, o infinito, o absoluto. 2 Arte rupestre no Ocidente e nas Américas 1. As manifestações da arte pré-histórica – notadamente pinturas rupestres e estatuária paleolítica – embora impressionem pela riqueza de detalhes, naturalismo e perfeição (mesmo dispondo de materiais e técnicas escassos) parecem estar mais relacionadas à evocação de uma concepção sobrenatural das imagens (magia) do que a uma preocupação estética. A riqueza de detalhes e a atenção com o naturalismo podem se vincular à necessidade de imitar com a maior precisão o real natural, ao qual os homens e mulheres primitivos precisavam se relacionar e de alguma forma controlar para assegurar sua sobrevivência. Para eles, talvez não existisse a diferença entre o real natural, sua representação e o que se fazia nela. Por exemplo, um bisão atingido por uma lança representada por uma pintura aconteceria também no real natural. 2. A pintura rupestre pré-histórica (paleolítica) se expressa, sobretudo, na Europa, mas também em regiões da Áfricae América. Elas eram feitas com materiais naturais (alguns de origem orgânica), por meio dos quais os artistas paleolíticos obtinham vários tons, atingindo quase um efeito policromático. As pinturas retratavam animais de grande porte – especialmente touros, bisões e cavalos – atingidos por lanças, correndo ou ainda em posição de ataque. Esses animais constituíam a base de alimentação desses grupos, que viviam basicamente da caça; a forma naturalista de sua representação não manifestava apenas o quanto esses grupos conviviam com esses animais e os conheciam, como também ressaltava a necessidade de controle sobrenatural sobre eles. Já na estatuária paleolítica, especialmente em relação às estatuetas localizadas na região da Eurásia, predominam figuras femininas, com partes do corpo associadas à sexualidade e à fertilidade representadas de maneira proeminente, considerados por alguns estudiosos elementos votivos relativos à fertilidade feminina e à evocação do sagrado presente na fertilidade da natureza. 3. As manifestações artísticas pré-históricas, no Brasil, ocorreram entre 10 mil anos e o primeiro milênio da nossa era. No caso brasileiro e americano, em que a presença do Homo sapiens sapiens se deu, segundo as teorias mais aceitas, a partir de 15 a 12 mil anos a.C., as periodizações são diferentes em relação à pré-história geral, contudo, há algumas ressonâncias entre elas, como pinturas rupestres que representam animais e cenas de caça. A diferença está na fauna local, observamos nas pinturas brasileiras, por exemplo, animais como capivaras. Outra diferença é o fato de que nas pinturas rupestres da tradição Nordeste, por exemplo, há cenas de dança e de sexo. Essas manifestações não aparecem, pelo menos não com a mesma intensidade, em pinturas não brasileiras. 3 A arte entre as primeiras civilizações 1. A arte egípcia, desde as primeiras dinastias do Antigo Império, manifestava-se em diferentes formas de expressão: na arquitetura, como grandes monumentos funerários (como as pirâmides de Gizé), em templos (como o situado nas ruínas da antiga cidade de Luxor) e em pinturas/relevos murais. Em todas essas manifestações percebemos a crença na vida após a morte e no mundo sobrenatural. Esses elementos regiam a vida natural e social e estavam presentes no imaginário egípcio, refletindo-se na Gabarito 165 arte, que se expressava também nas estatuetas e placas criadas para oferendas aos deuses (arte votiva), em monumentos de exaltação de façanhas régias (como a Paleta de Narmer) e em adornos corporais ou objetos de propaganda governamental. Além da crença no mundo sobrenatural, notamos na arte egípcia o caráter teocrático do poder político, atribuído aos faraós por uma casta sacerdotal poderosa. 2. No Período Paleolítico, as expressões artísticas expressavam uma visão monista do homem em relação ao mundo natural e se manifestavam permeadas pelo aspecto mágico atribuído às imagens. São presentes as pinturas rupestres e as esculturas, sobretudo das chamadas deusas da fertilidade. Já no Período Neolítico, as manifestações artísticas – pinturas, esculturas, monumentos funerários e religiosos – expressam uma visão dualista de mundo (com a separação entre aspectos naturais e sobrenaturais) e a substituição da magia pelo animismo. 3. Tanto os gregos quanto os romanos desenvolveram a pintura mural e a estatuária como forma mais proeminente de escultura. Entre os gregos, temos o teatro com encenações de tragédias e comédias; entre os romanos, as apresentações de espetáculos são destinadas ao grande público. Há ainda que se observar que a arte dos mosaicos é uma forte característica da civilização romana e esteve mais presente do que na civilização grega. No entanto, em ambas as civilizações, houve a relação entre a expressão artística e a evocação do belo. 4 A arte medieval e a evocação do sagrado 1. O conceito Idade Média foi formulado por eruditos do século XVII e aparece, por exemplo, na obra História Universal (1685), de Christoph Cellarius. Segundo o autor, a Idade Média seria uma idade do meio e de trevas, situada entre dois períodos de grande esplendor: a Idade Antiga e a Idade Nova (ou Moderna). A designação trevas se deve, em parte, ao fato de ser um período no qual o pensamento crítico, supostamente, experimentou um período de retrocesso; o pensamento filosófico e artístico se deu dentro dos parâmetros permitidos pela Igreja Católica. No entanto, essa definição merece ser problematizada, pois contrasta com as próprias fontes históricas do período, nas quais se pode perceber um estilo próprio de expressão artística imagética (a iluminura) e a eclosão de uma corrente filosófica complexa (a escolástica). Observamos também nesse período o surgimento das primeiras universidades, a continuidade da pesquisa e do estudo, a escrita e a reprodução de ideias manifestas em grandes livros escritos à mão (chamados códices), bem como três estilos artísticos diferenciados: bizantino, românico e gótico. 2. À época de Justiniano, o Império Bizantino vivia sob um regime autocrático conhecido como cesaropapismo, um tipo de governo em que o poder secular e religioso estava concentrado nas mãos do imperador, isto é, em que havia o domínio do imperador sobre a Igreja. A ortodoxia religiosa e a extrema hierarquização social e política manifestavam-se na arte bizantina, financiada pelo imperador e sua corte. Nos mosaicos e na arquitetura interna das catedrais, assim como nos ícones retratando figuras sacras, estão presentes elementos como a rigidez das figuras humanas, o aspecto chapado das cores (sem meio-tom) e a hierarquização social, além de uma devoção religiosa intensa. 3. Nas pinturas (iluminuras e afrescos) do estilo românico não há muita variação de cores nem a preocupação com proporção de volumes e formas das coisas representadas. O corpo humano é representado de maneira pouco realista, com poucos detalhes. Suas formas somente podem ser presumidas, pois, quase sempre, aparecem ocultas sob dobras de roupas que cobrem o corpo por 166 História da arte: da pintura rupestre ao Pós-Modernismo inteiro. As pessoas são representadas de maneira estática, sem movimento, com semblantes pouco expressivos, com uma postura rígida, austera e sem plasticidade. Nas catedrais românicas, que se assemelhavam a fortalezas militares, a fachada era constituída de uma nave central em forma de cubo, ladeada por duas torres cilíndricas ou cúbicas que terminavam em coifas. Essa nave central era atravessada por fachadas laterais, formando, por vezes, o desenho de uma cruz. Diferentemente da forma rígida das figuras humanas da iluminura românica, no estilo gótico, as pessoas representadas nas iluminuras apresentam expressividade, movimento, sentimento e originalidade. As cores são mais vivas, mais intensas, indo do amarelo e do vermelho para o azul, o roxo e o lilás. É possível perceber também a profusão de meios-tons e a preocupação do artista em tentar retratar o fundo com um maior realismo e alguma profundidade. As catedrais góticas tinham vitrais coloridos por onde a luz penetrava suave e filtrada. Suas torres tinham forma pontiaguda, assim como suas abóbodas, que se cruzavam. Os arcos, em formas de ogivas, eram contornados por nervuras. 5 O Renascimento e o desenvolvimento da autonomia artística 1. São três as fases do Renascimento italiano: • Trecento: compreende o século XIV e caracteriza-se pela transição da arte gótica em arte renascentista. As principais mudanças ocorrem na forma de representar figuras com mais volume e o início da ilusão de tridimensionalidade. Os principais artistas desse período são Giotto, Duccio e Simone Martini. • Quattrocento: compreende o século XV e caracteriza-se pelo estabelecimento das ideias renascentistas, como o foco na representação do homem e não mais na religião. Principais artistas: Masaccio, Botticelli, Brunelleschi e Donatello. • Cinquecento: compreende o início do século XVI e caracteriza-se pelo augedas expressões renascentistas nas obras de expoentes como Leonardo da Vinci, Michelangelo, Rafael Sanzio e Donato Bramante. 2. O Renascimento propunha o retorno à Antiguidade Clássica, pois considerava que este havia sido um período em que a sociedade tinha alcançado avanços significativos no que se refere aos conhecimentos e valorização do ser humano. O Humanismo era a base do pensamento renascentista, no qual a igreja não era mais o centro do universo como no teocentrismo; os renascentistas eram antropocentristas. 3. As cidades italianas de Siena e Florença eram importantes centros culturais e comerciais do século XIV. Eram cidades rivais e competiam entre si. Siena venceu Florença na Batalha de Montaperti (1260) e ambas foram berço de artistas importantes para o Renascimento, como Giotto, Duccio, Simone Martini, Masaccio, entre outros. 6 Barroco: a estética do rebuscamento e do exagero 1. O maneirismo, tendência artística que se origina após o Renascimento e antes do período Barroco, surge por volta de 1520-1530 e segue até, aproximadamente, o ano de 1600, na Itália. Esse é um período caracterizado por crises políticas e religiosas, em que ocorre a Reforma Protestante e, em Gabarito 167 seguida, a Contrarreforma. O maneirismo caracteriza-se pela forma de produzir arte à maneira dos artistas renascentistas – principalmente Michelangelo e Rafael –, muitas vezes até os copiando. Eram características maneiristas a complexidade e o virtuosismo, a distorção da figura humana, o achatamento do espaço pictórico e a necessidade de interpretação intelectual da obra. 2. A obra de Bernini retrata o momento em que Apolo toca Daphne e ela tenta fugir, expressando facialmente sua repulsa. O movimento é destacado pelos cabelos dela voando e pelos tecidos que pairam flutuando. Os dois corpos produzem linhas diagonais e curvas com a posição dos braços. O pé fora do chão dá a sensação de instabilidade. Podemos observar nessa obra características do período Barroco, como instabilidade, linhas diagonais e curvas, movimento e ação acontecendo em tempo real. 3. Esta é uma resposta pessoal, contudo, sua análise deve contemplar o exame da obra escolhida. Veja o exemplo a seguir: • Obra escolhida: GENTILESCHI, A. Judite decapitando Holofernes. 1620. 1 óleo sobre tela, 125,5 x 158,8 cm. Galeria Uffizi, Florença, Itália. W . C om m on s A pintura da artista barroca Artemísia Gentileschi retrata um tema bíblico, com as figuras iluminadas em primeiro plano, trazendo proximidade com o acontecimento. O fundo está em sombras, criando o contraste dramático com as figuras iluminadas. Os braços e pernas fazem linhas diagonais. O momento da ação mostra a força que Judite e a criada fazem para segurá-lo e decapitá-lo. A tensão está presente nas expressões faciais. As mangas das roupas parecem que foram arregaçadas para facilitar a execução do trabalho. A temática religiosa, o destaque luminoso em figuras contrastando com fundo sombrio, os elementos em diagonais e a sensação de que a ação ocorre naquele exato momento são características da arte barroca. 168 História da arte: da pintura rupestre ao Pós-Modernismo 7 Do Neoclassicismo ao Modernismo 1. O Neoclassicismo tem como base as ideias do Iluminismo – movimento do século XVIII que valorizava o homem como um ser racional –, o que fez com que a arte se voltasse contra o Barroco e o Rococó e renovasse o interesse pela Antiguidade Clássica. Jacques Louis David foi o líder do movimento artístico neoclássico e, durante este período, conduziu o direcionamento das atividades artísticas na França, que deviam seguir – com base nos ideais clássicos – contornos rigorosos, formas esculpidas e superfícies polidas sem marcas de pinceladas, além da valorização de temas históricos. 2. O Romantismo valorizava as emoções humanas e a natureza, contrapondo-se ao racionalismo radical, expressando na arte todos os sentimentos, como medo, paixão e alegria. Um artista que exemplifica este movimento é Théodore Géricault, que na obra A Jangada da Medusa, sua obra mais famosa, retrata a fúria da natureza e a expressão de medo, horror e angústia no momento de um naufrágio. 3. Os impressionistas estudavam os efeitos da luz nas superfícies, captando as mudanças aceleradas de acordo com as diferentes horas do dia ou as estações do ano. Por essa razão, os artistas impressionistas representavam um mesmo elemento em diferentes momentos. O pintor Claude Monet, por exemplo, reproduziu o mesmo tema em diferentes momentos do dia. Sua obra A estação de Saint-Lazare é uma delas; a estação foi pintada várias vezes em diversos momentos. O objetivo era captar as cores que se mostravam diferentes de acordo com o momento do dia ou as estações do ano. 8 Expressões pós-modernas 1. Esta é uma resposta pessoal, porém ela deve contemplar aspectos relacionados às obras dos pintores pós-impressionistas. Veja os exemplos a seguir: • Paul Cézanne: iniciou seu processo artístico desenvolvendo uma produção próxima dos impressionistas, com quem simpatizava. Entretanto, começou a preocupar-se com questões de cor e forma, sugerindo que a natureza pode ser representada com base em formas geométricas como o cone, a esfera e o cilindro. Suas últimas obras sugerem uma arte precursora do Cubismo. • Georges Seurat: desenvolveu uma pesquisa a respeito da teoria da cor e dos estudos sobre óptica, produzindo obras na técnica que inventou, denominada divisionismo, mais conhecida como pontilhismo. O divisionismo consistia na aplicação de pontos de tinta pura aproximados ou sobrepostos para que a mistura entre as cores fosse finalizada com o olhar do espectador. Seurat liderou o estilo denominado de neoimpressionismo. • Vincent van Gogh: trabalhava com pinceladas curtas de cor pura, como os impressionistas, mas carregadas de tinta e de expressividade, produzindo uma pintura empastada e cheia de ritmo. 2. São alguns dos principais acontecimentos históricos e sociais do século XX que influenciaram os rumos da arte: as duas grandes guerras, a revolução sexual, o uso da pílula anticoncepcional, a participação dos Estados Unidos na Guerra do Vietnã (suscitando revolta e protestos), o escândalo de Watergate, a mudança do centro cultural mundial da Europa para os Estados Unidos e o avanço tecnológico. 3. A arte conceitual surge na segunda metade do século XX, quando o artista não tem limites de técnicas ou materiais para se expressar, valorizando mais a ideia, o conceito de uma obra de arte Gabarito 169 no lugar de sua própria produção ou do objeto em si. Em outras palavras, o artista conceitual preocupa-se mais com a ideia da obra, podendo, até mesmo, solicitar que assistentes a produzam. Dentre suas formas de expressão estão: • performance ou arte performática: a expressão artística que envolve uma ação do próprio artista ou outro participante; • land art ou arte da terra: caracterizada pela interferência na paisagem urbana ou rural, com uma interação da obra com a natureza na qual está inserida. O que é arte? Por que e para que ela foi criada? O que ela manifesta? Talvez mais importante do que responder a ‘esses questionamentos seria perguntar: como seria a vida humana sem a arte? A arte pode provocar o sublime, o sórdido, o impensável e o inapreensível, pois é próprio dela “embaralhar as metáforas” – como dizia o filósofo alemão Friedrich Nietzsche – e misturar os compartilhamentos dos conceitos. Ela evoca em nós sensações nem sempre possíveis de serem nominadas pela linguagem e pode nos desvencilhar do real quando se torna poética. Esta obra propõe um trajeto possível por alguns dos principais momentos da história da arte no Ocidente, além de uma breve reflexão sobre a Estética e a teoria da arte. Mais do que um guia completo sobre a trajetória das expressões artísticas no tempo, História da arte: da pintura rupestre ao Pós-Modernismo busca ser um roteiro singelo de iniciação dos seus estudos em Estética e história daarte. H ISTÓ R IA DA A RT E: DA PIN T U R A RU PEST R E A O PÓ S-M O D ER N ISM O A ndréa Carneiro Lobo/ Vania M aria A ndrade Andréa Carneiro Lobo Vania Maria Andrade Fundação Biblioteca Nacional ISBN 978-85-387-6555-4 9 7 8 8 5 3 8 7 6 5 5 5 4 Código Logístico 59028 Página em branco Página em branco