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O que é arte? Por que e para que ela foi criada? O que ela manifesta? Talvez mais importante do que responder a ‘esses questionamentos seria perguntar: como seria a vida humana sem a arte? A arte pode provocar o sublime, o sórdido, o impensável e o inapreensível, pois é próprio dela “embaralhar as metáforas” – como dizia o filósofo alemão Friedrich Nietzsche – e misturar os compartilhamentos dos conceitos. Ela evoca em nós sensações nem sempre possíveis de serem nominadas pela linguagem e pode nos desvencilhar do real quando se torna poética. Esta obra propõe um trajeto possível por alguns dos principais momentos da história da arte no Ocidente, além de uma breve reflexão sobre a Estética e a teoria da arte. Mais do que um guia completo sobre a trajetória das expressões artísticas no tempo, História da arte: da pintura rupestre ao Pós-Modernismo busca ser um roteiro singelo de iniciação dos seus estudos em Estética e história da arte. H ISTÓ R IA DA A RT E: DA PIN T U R A RU PEST R E A O PÓ S-M O D ER N ISM O A ndréa Carneiro Lobo/ Vania M aria A ndrade Andréa Carneiro Lobo Vania Maria Andrade Fundação Biblioteca Nacional ISBN 978-85-387-6555-4 9 7 8 8 5 3 8 7 6 5 5 5 4 Código Logístico 59028 História da arte: da pintura rupestre ao Pós-Modernismo IESDE BRASIL 2019 Andréa Carneiro Lobo Vania Maria Andrade © 2019 – IESDE BRASIL S/A. É proibida a reprodução, mesmo parcial, por qualquer processo, sem autorização por escrito das autoras e do detentor dos direitos autorais. Projeto de capa: IESDE BRASIL S/A. Imagem da capa: Josemar Franco/muratart/Shutterstock Todos os direitos reservados. IESDE BRASIL S/A. Al. Dr. Carlos de Carvalho, 1.482. CEP: 80730-200 Batel – Curitiba – PR 0800 708 88 88 – www.iesde.com.br CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ L782h Lobo, Andréa Carneiro História da arte : da pintura rupestre ao pós-modernismo / Andréa Carneiro Lobo, Vania Maria Andrade. - 1. ed. - Curitiba [PR]: IESDE, 2019 170 p. : il. Inclui bibliografia ISBN 978-85-387-6555-4 1. Artes - História. I. Andrade, Vania Maria. II. Título 19-60897 CDD: 700.9 CDU: 7(09) Andréa Carneiro Lobo Doutora e mestre em História pela Universidade Federal do Paraná (UFPR), especialista em Imagens, Linguagens e Ensino de História e graduada em História (Licenciatura e Bacharelado), também pela UFPR. Possui experiência em ensino de História, Metodologia Científica e Filosofia para alunos de graduação em Direito e História, com ênfase em história do pensamento ocidental, atuando especialmente na análise do pensamento filosófico contemporâneo (Nietzsche, Benjamin, Foucault, Deleuze) e teoria da história. É autora de livros didáticos nas áreas de história, filosofia, política e arte. Vania Maria Andrade Especialista em Psicopedagogia pela Universidade Tuiuti do Paraná (UTP) e em Altas Habilidades/Superdotação pela Faculdade Padre João Bagozzi. Licenciada em Artes Visuais com ênfase em Computação pela UTP e bacharel em Pintura pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Professora de ensino a distância, autora de conteúdos multimídia e objetos digitais em Arte. Sumário Apresentação 7 1 Teorizações sobre a arte 9 1.1 O que é e para que serve a arte? 9 1.2 A Estética e os diferentes conceitos sobre a arte 13 2 Arte rupestre no Ocidente e nas Américas 25 2.1 A Pré-História e a relação entre arte e magia 25 2.2 Expressões da arte pré-histórica no Brasil 33 3 A arte entre as primeiras civilizações 39 3.1 A arte neolítica: o caminho para a abstração 39 3.2 O nascimento da civilização 45 3.3 Aspectos da arte egípcia antiga 48 3.4 A arte entre as civilizações grega e romana 53 4 A arte medieval e a evocação do sagrado 65 4.1 Idade Média ocidental: conceito e contexto 65 4.2 Expressões artísticas do período carolíngio 70 4.3 Estilos da arte medieval: bizantino, românico e gótico 77 5 O Renascimento e o desenvolvimento da autonomia artística 89 5.1 O conceito de Renascimento e seus fundamentos estéticos 89 5.2 O Humanismo e as origens do pensamento renascentista 95 5.3 Fases do Renascimento italiano 96 5.4 A expansão do Renascimento na Europa 103 6 Barroco: a estética do rebuscamento e do exagero 109 6.1 Maneirismo e Barroco: contexto 109 6.2 A arte do rebuscamento e do exagero 114 6.3 O estilo barroco no Brasil 122 7 Do Neoclassicismo ao Modernismo 129 7.1 Neoclassicismo: conceito, contexto e características 129 7.2 Romantismo 132 7.3 Os principais movimentos dentro do Modernismo 136 8 Expressões pós-modernas 145 8.1 Conceito de Pós-Modernismo 145 8.2 O mundo pós-guerra e os movimentos de contracultura 155 8.3 Expressões pós-modernas 157 Gabarito 163 Apresentação O que é arte? Por que e para que ela foi criada? O que ela manifesta? Talvez mais importante do que responder a esses questionamentos seria perguntar: como seria a vida humana sem a arte? Imagine, por alguns instantes, como seria a vida sem a música, sem o teatro, sem os filmes, sem as telenovelas, sem o grafite, sem as histórias em quadrinhos, sem a dança, sem as esculturas, sem o design diferenciado dos móveis e sem as imagens publicitárias. O mundo certamente continuaria a ter cores, formas, sons e ritmos, mas estes passariam por nós desapercebidos. Contemplamos o mundo e tentamos imitá-lo, por isso, desenvolvemos a arte como uma forma de imitação do real e do natural, como já dizia Aristóteles. Mas ao longo da trajetória humana, a arte nem sempre foi tentativa de imitação nem de evocação do belo: ela já se manifestou como idealização, abstração e desconstrução do “real”, chegando ao ponto de criar ela mesma sua própria realidade, composta da irrealidade da ficção para provocar em nós o estranhamento com aquilo que convencionamos chamar de real. A arte pode provocar o sublime, o sórdido, o impensável e o inapreensível, pois é próprio dela “embaralhar as metáforas” – como dizia o filósofo alemão Friedrich Nietzsche – e misturar os compartilhamentos dos conceitos. Ela evoca em nós sensações nem sempre possíveis de serem nominadas pela linguagem e pode nos desvencilhar do real quando se torna poética. Nesse sentido, propomos nesta obra um trajeto possível por alguns dos principais momentos da história da arte no Ocidente, além de uma breve reflexão sobre a Estética e a teoria da arte. Partindo das expressões artísticas na Pré-História, passamos pela arte medieval, buscando desconstruir o conceito de que a Idade Média foi uma “Idade das Trevas”. Chegamos, assim, na arte luminosa e colorida do Renascimento, em que a crença na razão e no aspecto positivo de tudo o que é humano levou os artistas a associarem a beleza ao bem. Passamos pela arte retorcida do Barroco e, por fim, atingimos a arte moderna e a desconstrução pós-moderna. Mais do que um guia completo sobre a trajetória das expressões artísticas no tempo, História da arte: da pintura rupestre ao Pós-Modernismo busca ser um roteiro singelo de iniciação dos seus estudos em Estética e história da arte. Esperamos que você se sinta instigado a contemplar, a olhar com atenção para as expressões artísticas à sua volta e, quem sabe, inspire-se a fazer da sua vida uma verdadeira obra de arte: algo único e inconfundível no tempo e no espaço. Boa leitura! 1 Teorizações sobre a arte Andréa Carneiro Lobo Para você, o que é a arte? Como ela se manifesta? O que define uma obra como artística? Quais características a diferenciam de outra não considerada como tal? Você percebe manifestações artísticas em seu dia a dia? Se sim, quais? Já se questionou sobre a origem e o sentido da arte para a existência humana? Sendo uma das mais antigas formas da manifestação humana, qual é a finalidade da expressão artística? Ela muda ao longo do tempo ou permanece a mesma? Qual é a intenção do ser humano ao criar sons, cores e formas? Neste capítulo, vamos iniciar nossos estudos sobre a história e o sentido da arte, analisando comoela foi pensada por diferentes teóricos de diversas épocas. 1.1 O que é e para que serve a arte? Em tempos como os nossos, em que quase tudo que é relacionado ao fazer humano parece necessariamente ter utilidade prática e imediata, muito se questiona sobre a função da arte. Mas, afinal, é necessário que a arte tenha uma função? Se a arte não tem algum sentido ou alguma função, por que ela foi a primeira forma de manifestação do entendimento humano sobre o mundo, anterior à religião e à escrita? Uma das primeiras formas de manifestação artística é a pintura rupestre, que nada mais é do que pinturas e desenhos geralmente realizados em cavernas ou em superfícies rochosas. Considerada a mais antiga manifestação artística humana, alguns registros têm aproximadamente 73 mil anos. É o caso, por exemplo, das pinturas localizadas na caverna de Blombos, na África do Sul. Antes da escrita, os seres humanos utilizavam imagens como maneira de expressão e imitação do real ou do próprio pensamento em relação ao mundo. Desse modo, os primeiros códigos escritos, surgidos há aproximadamente 6 mil anos, também eram formados por imagens. Embora tenha sido criada há milhares de anos como a manifestação do que é humano, a arte é um modo de expressão que permanece sempre se atualizando e constantemente nos instiga a refletirmos sobre nós mesmos. No entanto, à medida que o tempo passa, mudam-se o conteúdo, o significado, o sentido, bem como os artistas; é por meio deles que a arte se manifesta. Quando estudamos a arte, estamos tratando do que é humano por excelência, do ser humano e da maneira como ele compreende a própria existência e manifesta essa compreensão de modo a afetar os semelhantes. História da arte: da pintura rupestre ao Pós-Modernismo10 Diferentemente de outras formas de expressão humana, um elemento fundamental da arte é o poder de nos sensibilizar, de suscitar sensações, de provocar emoções e instigar o belo, o absurdo, o impensado e o sublime, muitas vezes sem o uso de palavras ou relacionando-as com aquilo que supostamente nomeamos. Para continuarmos nossas especulações sobre a importância e o sentido da arte, bem como ela foi pensada por alguns filósofos antigos e modernos, observe a imagem a seguir (Figura 1), que trata de uma obra criada pelo artista holandês Vincent van Gogh (1853-1890). Enquanto a observa, procure sentir-se em meio à composição, deixe-se “flutuar” entre as formas e permita ter seus sentidos invadidos pela explosão de cores, tão vibrantes que parecem querer escapar à nossa percepção. Figura 1 – Memória do Jardim em Etten (Dama de Arles) (1888), de Vicent van Gogh. H er m ita ge T or re nt /W . C om m on s Fonte: VAN GOGH, V. Memória do Jardim em Etten (Dama de Arles). 1888. 1 óleo sobre tela, 73,5 x 92,5 cm. Museu Hermitage, São Petersburgo, Rússia. Como expressar o impacto e estremecimento que uma obra de arte pode causar em cada expectador? Como entender o porquê e onde nos afeta? Não temos conhecimento certo de quando e por que o ser humano inventou a arte – talvez tenha sido a partir do momento em que houve a tomada de consciência de si, da natureza, da imensidão do mundo e da complexidade do pensamento. Sabemos somente das pinturas nas cavernas, dos poemas épicos, das esculturas, dos romances, das telas, dos filmes e de tantos outros tipos de expressão artística. Apesar disso, cada um de nós se relaciona com a arte. Alguns se identificam com filmes, outros preferem poemas, uns ficam extasiados diante de esculturas, há quem se interesse por música e quem seja fascinado por teatro, já outros preferem embarcar nos textos em prosa dos romances, Teorizações sobre a arte 11 vivenciando as angústias e alegrias dos personagens. Isso demonstra que a arte se manifesta de diversas maneiras e uma delas, certamente, já sensibilizou você. Todavia, você saberia definir o que é a arte? Existem diferenças entre as diversas manifestações artísticas? Ernst Gombrich (2013, p. 21), um dos maiores estudiosos da história da arte, afirma que: de fato, aquilo a que chamamos Arte não existe. Existem apenas artistas. No passado, eram homens que usavam terra colorida para esboçar silhuetas de bisões em paredes de cavernas; hoje, alguns compram suas tintas e criam cartazes para colar em tapumes. Fizeram e fazem muitas coisas. Não há mal em chamar todas essas atividades de arte, desde que não nos esqueçamos de que esse termo pode assumir significados muito distintos em diferentes tempos e lugares, e que a Arte com A maiúsculo não existe. Com efeito, a Arte com A maiúsculo tornou-se como que um bicho-papão, ou um fetiche. Podemos esmagar um artista dizendo-lhe que o que ele fez tem lá o seu valor, mas não é “Arte”. Ou confundir uma pessoa que contempla uma tela declarando que o que ela apreciou no quadro não foi a Arte, mas outra coisa qualquer. Segundo Gombrich (2013), não podemos falar em arte com “A” maiúsculo, mas, sim, em artistas, visto que o que é considerado arte em determinada época e lugar pode não ser em outro contexto. Já outras manifestações permanecem quase como atemporais, instigando beleza ou perplexidade, tanto em sua época quanto em outras que lhe são posteriores. Diante disso, percebemos que os significados do termo mudam com o tempo, porém, ainda podemos nos perguntar: o que faz de alguém um artista? O que caracteriza uma obra específica como arte? Vamos iniciar nossas reflexões explorando as origens etimológicas da palavra arte (do latim ars), definida na Antiguidade, segundo o filósofo Nicola Abbagnano (2007), como o conjunto das regras que direcionam uma atividade humana voltada à realização de um fim qualquer, seja ele prático, científico, filosófico ou político. Em seu significado mais geral, todo conjunto de regras capazes de dirigir uma atividade humana qualquer. Era nesse sentido que Platão falava da [arte] e, por isso, não estabeleceu distinção entre [arte] e ciência. [Arte], para Platão, é a arte do raciocínio [...] como a própria filosofia no seu grau mais alto, isto é, a dialética [...]; [arte] é a poesia, embora lhe seja indispensável a inspiração delirante [...]; A. é a política e a guerra [...]; [arte] é a medicina e [...] [é] respeito e justiça, sem os quais os homens não podem viver juntos nas cidades [...]. (ABBAGNANO, 2007, p. 81) Desse modo, arte seria, ainda, segundo a origem etimológica da palavra, tudo o que é relativo ao engenho humano – incluindo toda forma de destreza, saber, profissão, perícia, habilidade, talento ou ainda gênio. Em outras palavras, arte, para os antigos romanos, referia-se às qualidades que são aprendidas, adquiridas e empregadas no desenvolvimento de alguma atividade realizada segundo determinadas regras, as quais se opõem às qualidades que seriam naturais, denominadas ingenĭum. O termo arte, na antiga civilização romana, nominava o conjunto de habilidades necessárias à realização de alguma atividade regida por regras que podiam ser aprendidas, executadas e repassadas adiante. Sendo assim, a arte como ofício designava, por exemplo, o conjunto de habilidades manifestas na atividade de artesãos, como oleiros, tecelões, ourives, entre outros. História da arte: da pintura rupestre ao Pós-Modernismo12 Figura 2 – Marceneiro desempenhando a arte como ofício gu al tie ro b of fi/ Sh ut te rs to ck O termo grego para ars era tékhne; ele foi empregado pelo filósofo Aristóteles (384-322 a.C.) para caracterizar toda e qualquer atividade humana instituída sobre um saber-fazer regrado e destinado a determinada finalidade prática. A técnica de fazer alguma coisa consistia, portanto, em bem realizar uma tarefa, mediante o seguimento de regras e preceitos, por meio dos quais se atingia um fim. Embora propusesse pequenas distinções de hierarquia, para Aristóteles, a arquitetura, a olaria e a medicina, bem como a música e a pintura, por exemplo, eram consideradas tékhnai (artes). No entanto, Aristóteles diferenciava a arte como tékhnai(saber técnico, regrado e destinado a determinado fim) da arte como mimeses1 (imitação), esta última denominada arte poética pelo filósofo. A palavra poesia tem origem no vocábulo grego poíēsis (criação). O poeta é aquele que, em virtude de seu potencial para a criação, cria/inventa mitos e fábulas que têm por base elementos do comportamento humano, terreno fértil para uma vasta gama de possibilidades para a fabulação, invenção literária. Sendo assim, a criação poética é a arte da imitação que, embora ficcional, tem como base eventos reais e se apresenta como algo plausível e verosímil a essas situações. Propomo-nos tratar da produção poética em si mesma e de seus diversos gêneros, dizer qual a função de cada um deles, como se deve construir a fábula, no intuito de obter o belo poético; qual o número e a natureza de suas diversas partes, e falar igualmente dos demais assuntos relativos a esta produção. Seguindo a ordem natural, começaremos pelos mais importantes. A epopeia e a poesia trágica e também a comédia, a poesia ditirâmbica, a maior parte da aulética e da citarística, consideradas em geral, todas se enquadram nas artes de imitação. (ARISTÓTELES, 2005, p. 239) 1 Segundo Ceia (2010, grifos do original), o termo mimese tem como origens: “Do gr. mímesis, “imitação” (imitatio, em latim), designa a acção ou faculdade de imitar; cópia, reprodução ou representação da natureza, o que constitui, na filosofia aristotélica, o fundamento de toda a arte. Heródoto foi o primeiro a utilizar o conceito e Aristófanes, em Tesmofórias (411), já o aplica. O fenômeno não é um exclusivo do processo artístico, pois toda atividade humana inclui procedimentos miméticos como a dança, a aprendizagem de línguas, os rituais religiosos, a prática desportiva, o domínio das novas tecnologias etc. Por esta razão, Aristóteles defendia que era a mímesis que nos distinguia dos animais. Os conceitos de mímesis e poeisis são nucleares na filosofia de Platão, na poética de Aristóteles e no pensamento teórico posterior sobre estética, referindo-se à criação da obra de arte e à forma como reproduz objectos pré-existentes”. http://edtl.fcsh.unl.pt/encyclopedia/imitacao/ http://edtl.fcsh.unl.pt/encyclopedia/accao/ http://edtl.fcsh.unl.pt/encyclopedia/representacao/ http://edtl.fcsh.unl.pt/encyclopedia/conceito/ http://edtl.fcsh.unl.pt/encyclopedia/poetica/ http://edtl.fcsh.unl.pt/encyclopedia/estetica/ http://edtl.fcsh.unl.pt/encyclopedia/obra/ http://edtl.fcsh.unl.pt/encyclopedia/forma/ Teorizações sobre a arte 13 Para Aristóteles, a função da imitação é o reconhecimento e o estabelecimento da verossimilhança com o real, o que distinguiria as artes poéticas das demais artes. Desse modo, a arte poética representaria não só uma forma de conhecimento, mas propiciaria uma experiência estética, um prazer decorrente do reconhecimento da relação entre a arte mimética e o real. Nesse sentido, a música, a poesia, o teatro e as artes plásticas em geral, por exemplo, seriam manifestações de arte mimética/poética. Essa arte teria origem decorrente da tendência que o ser humano tem em relação à imitação e ao fato de encontrar prazer nesse tipo de atividade, o qual se daria em função de a arte, ao tentar imitar a natureza, produzir sensações agradáveis àquele que a contempla. De acordo com alguns dos primeiros filósofos que se dispuseram a pensar e a escrever sobre a arte, entre eles o próprio Aristóteles, alguns critérios que diferenciariam a arte de qualquer engenho ou criação humana é a fidedignidade em relação à natureza e a propensão para o belo. Sendo assim, foi considerado obra de arte o tipo de criação humana que, ao buscar reproduzir ou imitar algum aspecto ou elemento natural, se propôs a evocar, no espectador, a sensação da beleza. No entanto, seria a verossimilhança o principal objetivo ou a principal função da arte poética? Aristóteles, além de definir a arte como imitação, conferiu à criação poética outra função, à qual damos o nome de Estética. Desse modo, assim como outros filósofos posteriores, o pensador se debruçou sobre o tema relacionado à arte, ao sentido, à função e à maneira como ela nos afeta. 1.2 A Estética e os diferentes conceitos sobre a arte A palavra estética tem origem etimológica no termo grego aisthetiké, cujo significado aproximado para nossa língua seria “aquele que percebe, aquele que nota algo”. No âmbito do pensamento ocidental, mais especificamente do pensamento filosófico, a Estética foi se afirmando enquanto uma filosofia da arte como a “ciência (filosófica) da arte e do belo” (ABBAGNANO, 2007, p. 367). O uso do termo com essa designação foi empregado no século XVIII, em 1750, pelo filósofo alemão Alexander Gottlieb Baumgarten (1714-1762), que, embora não tenha sido o primeiro teórico a abordar o fenômeno artístico, foi o primeiro a sistematizar o uso do termo para sua abordagem filosófica na obra Estética, escrita entre 1750 e 1758. Desde a Antiguidade Clássica grega, filósofos têm se dedicado a “notar” e a “olhar com atenção” para a arte. Segundo Figurelli (2009), as primeiras experiências parecem ter sido realizadas no campo da música, entre os séculos VI e V a.C., pelos pitagóricos, discípulos do filósofo, matemático e místico grego Pitágoras de Samos2. 2 Pitágoras é considerado um dos mais importantes filósofos pré‑socráticos. Suas ideias influenciaram seus seguidores e outros filósofos que vieram depois dele, dentre os quais se destaca Platão. Foi provavelmente no âmbito doméstico, observando o pai lapidar pedras brutas, transformando-as em joias, que Pitágoras pode ter percebido a relação entre as formas geométricas e a beleza. Foi também fortemente influenciado pelo orfismo: “Tradição filosófico‑religiosa originária do século VII a.C., na Grécia Antiga, inspirada na figura mítica de Orfeu, famoso por seus poemas e canções” (JAPIASSÚ; MARCONDES, 1996, p. 202). A filosofia pitagórica girava em torno da ideia de que tudo no universo é número e que há uma relação mística entre o ordenamento (o Cosmos) e a Matemática. Os pitagóricos podem ter chegado a essa conclusão verificando a relação entre as proporções numéricas simples e a harmonia sonora nos instrumentos musicais. O Cosmos seria como uma grande harmonia cuja música poderia auxiliar a compreender o estudo dos números. História da arte: da pintura rupestre ao Pós-Modernismo14 1.2.1 Platão e a arte como mimese Alguns dos primeiros textos relacionados à análise das artes plásticas e da literatura estão atribuídos ao filósofo grego Platão (427/428-348 a.C.), discípulo de Sócrates (470-399 a.C.) e influenciado pelos pitagóricos. Dentre esses escritos, os principais que abordam alusões à Estética são Hípias Maior, O banquete, A República (principalmente os livros II, III e X) e Leis. Segundo destaca Figurelli (2009, p. 544, grifos no original): sabe-se, pela História da Filosofia, que Platão foi influenciado pela doutrina dos pitagóricos. E, em alguns diálogos, é possível detectar a profundidade das relações entre platonismo e pitagorismo. Platão não redigiu Tratado de Estética, no sentido moderno da expressão. Mas coube a ele o mérito de ter escrito o primeiro texto completo da História da Estética: o Hípias Maior, diálogo da mocidade, sobre o belo. E, se percorrermos a vasta obra de Platão, veremos que questões estéticas são discutidas em alguns dos mais conhecidos e importantes diálogos. Assim, no Banquete, o elogio estusiástico do amor e da beleza. A República, da maturidade, nos Livros II, III e X, também é leitura obrigatória. E mesmo nas Leis, obra da velhice, foram deixados traços da doutrina pitagórica acerca da medida e da proporção. Essas indicações, arroladas como exemplos, e muitas outras passagens têm sido sistematizadas por especialistas de sorte a apresentar o que se convencionou chamar de a estética de Platão. Todavia, de acordo com os textos mencionados, qual é o entendimento que Platão manifestava sobre a arte? Para o filósofo ateniense, aarte de um modo geral – e incluindo-se aí a criação de imagens pelo artista – não passava de uma tentativa de criar um simulacro, uma ilusão, uma imitação (mimese) do real sensível, o qual, por sua vez, constituía o aspecto aparente da realidade cuja essência seria inteligível, acessível apenas à razão e manifesta no chamado “mundo das ideias”. Como já dito, para Platão a arte é mimese, ou seja, imitação da cópia. O filósofo concebia como inferior a atividade do artista – a imitação –, uma vez que para ele o real passível de ser imitado pelo artista era o real sensível, aquele que poderia ser percebido com os sentidos e que, por sua vez, consistia no aspecto aparente de um real ideal, essencial, atingível somente pelo intelecto: o mundo das ideias. Sendo o real sensível a aparência material do real real, essencial, o artista seria aquele que, ao imitar a imitação, entreteria os homens os distraindo do verdadeiro sentido da realidade: as essências imutáveis de tudo o que existe em matéria, as ideias ou os modelos eternos, invisíveis, espirituais e perfeitos de todas as coisas, atingíveis somente por intermédio do amor à sabedoria – a Filosofia – conduzido de forma dialética3. 3 Para saber mais a respeito da concepção de arte como mimese em Platão e sobre como se relaciona ao conceito de mundo das ideias, sugerimos os seguintes livros: PLATÃO. A República. Trad. de José Saramago. Lisboa: Estampa, 1978; PLATÃO. Critão, Meão, Hípias Maior e outros. 2. ed. Trad. de Carlos Alberto Nunes. Belém: EDUFPA, 2007; FIGURELLI, R. Platão e os primórdios da Estética. In: MARÇAL, J. (org.). Antologia de textos filosóficos. Curitiba: SEED, 2009. Disponível em: http:// www.educadores.diaadia.pr.gov.br/arquivos/File/cadernos_pedagogicos/caderno_filo.pdf. Acesso em: 24 out. 2019. Teorizações sobre a arte 15 1.2.2 Aristóteles e a arte como catarse Conforme estudamos, Aristóteles, discípulo de Platão, também concebia a arte como mimese, ou seja, como imitação possível do real. Ele empregou o termo arte mimética em sua obra Poética para designar certos tipos de manifestações – entre elas a epopeia, a poesia trágica, a aulética, a comédia, a poesia ditirâmbica e a citarística. No entanto, diferentemente de seu mestre, Aristóteles não considerava a imitação do real como algo negativo, mas como uma maneira de produzir sensações agradáveis àqueles que a contemplam. Além da imitação com vistas à fruição, Aristóteles via na arte mais uma função. No Capítulo VI do livro Poética, o filósofo abordou especificamente um dos gêneros da dramaturgia grega, a tragédia, assim como suas diferentes partes. Segundo o filósofo, a essência da tragédia é ser um tipo de imitação completa, dotada de certa extensão, composta em estilo que se manifesta como agradável por apresentar-se em partes que se harmonizam entre si e cuja ação é apresentada por atores. Desse modo, sua função ao imitar aspectos do comportamento humano é suscitar a catarse, isto é, a purificação, a purgação das emoções: falemos da tragédia em função do que deixamos dito, formulemos a definição de sua essência própria. A tragédia é a imitação de uma ação importante e completa, de certa extensão; deve ser composta em um estilo tornado agradável pelo emprego separado de cada uma de suas formas; na tragédia, a ação é apresentada não com a ajuda de uma narrativa, mas por atores. Suscitando a compaixão e o terror, a tragédia tem por efeito obter a purgação das emoções. Entendo por “um estilo tornado agradável” o que reúne ritmo, harmonia e canto. Entendo por “separação das formas” o fato de estas partes serem umas manifestadas só pelo metro e outras pelo canto. Como é pela ação que as personagens produzem a imitação, daí resulta necessariamente que uma parte da tragédia consiste no belo espetáculo oferecido aos olhos; além deste, há também o da música e, enfim, a própria elocução. (ARISTÓTELES, 2013, p. 27-28, grifo nosso) Para compreendermos melhor o conceito de catarse ou purgação estética em Aristóteles vamos considerar que, para o filósofo, na obra Ética a Nicômaco, a virtude não é algo que nasce conosco. Embora em nossa essência sejamos seres racionais, cuja finalidade existencial é a realização plena dessa racionalidade como obtenção de uma vida boa e feliz, não somos apenas dotados de razão, somos seres dotados de matéria, a qual está sujeita à degradação e tem suas necessidades. A virtude consiste em equilibrar as necessidades do corpo com as vicissitudes da razão, cultivando a moderação e evitando os excessos e, de acordo com Aristóteles, a vida virtuosa é um hábito que atingimos por meio da educação. Sendo assim, a tragédia, ao evocar comportamentos, sentimentos, inclinações humanas pela via da imitação, valendo-se de elementos agradáveis – como o canto, as cores, as palavras em rima – propicia aos expectadores que “vivenciem sem viver” os acontecimentos representados pelas personagens. A audiência acaba vivenciando como que “por procuração” determinadas ações. Essas ações, por vezes, manifestam inclinações viciosas, as quais, se vivenciadas de fato, seriam perniciosas para a vida em sociedade, mas que, experienciadas pela via estética, por intermédio História da arte: da pintura rupestre ao Pós-Modernismo16 da imitação do real, encontram um modo de serem extravasadas e, assim, purificadas, sem que precisem necessariamente serem realizadas de fato. Tomemos como exemplo a peça trágica Édipo Rei, escrita em 427 a.C. pelo dramaturgo grego Sófocles (496-406 a.C.), na qual um jovem rei da cidade de Tebas, sem ter conhecimento sobre a realidade e a totalidade dos fatos, foi vítima de um destino terrível, sendo levado a assassinar seu pai, Laio, e a se apaixonar e se casar com a própria mãe, Jocasta: Laio, rei de Tebas, ouviu de um oráculo – o oráculo de Delfos – que seria assassinado pelo próprio filho, Édipo, o qual também desposaria a própria mãe. Atormentado com a revelação, Laio entregou o filho para um pastor, ordenando que o pendurasse em uma árvore no monte Citerão para que fosse devorado por feras. Condoído diante da situação, o pastor não mata o bebê, mas, sem condições para criá-lo, entrega-o para adoção, que passa a ser criado por Políbio, rei de Corinto. Na juventude, Édipo recebe a notícia de que tinha sido adotado e, perturbado, sai em desvario e passa a perambular pela estrada. Chegando em uma encruzilhada, encontra-se com um grupo de pessoas, entre elas está Laio, que era rei de Tebas e também seu pai, fato que Édipo desconhecia. Em um desentendimento, acaba se lançando contra Laio e o matando. Chegando em Tebas e se depara com uma esfinge, a qual lhe propõe um enigma até então nunca decifrado: qual é a criatura que pela manhã caminha sobre quatro patas, ao meio-dia sobre duas e à tarde sobre três? Édipo responde que essa criatura é o ser humano que, quando bebê, engatinha, quando adulto, anda sobre duas pernas e, na velhice, necessita de bengala para caminhar (como se tivesse três pernas). Por resolver o enigma, é coroado rei de Tebas e desposa a rainha, esposa do falecido Laio (que o próprio Édipo havia assassinado, mas cujo feito não era de conhecimento dele e dos demais tebanos). Édipo e Jocasta se casam e têm quatro filhos: duas meninas e dois meninos. Algum tempo depois, ao consultar um oráculo, descobre a verdade sobre seu destino e, desesperado, fura os olhos e sai em desatino pelo mundo, enquanto sua mãe/esposa Jocasta se suicida. Teorizações sobre a arte 17 Figura 3 – Édipo cega seus próprios olhos Representação teatral da obra Édipo Rei (1896). Al be rt G re in er /W . C om m on s O que acontece com o expectador que assiste à tragédia Édipo Rei, de Sófocles? Ele vivencia, por intermédio das personagens, algumas de suas inclinações mais violentas, sórdidas e sombrias, dando vasão a elas, purgando-as e, ao mesmo tempo, libertando-se da necessidade de vivenciá-las de fato. A tragédia provoca a catarse pela via estética e, assim, manifesta-secomo uma maneira de manter a vida social saudável e harmoniosa. A arte – como representação/imitação não somente do que é belo, mas também sombrio e sórdido no ser humano – pode nos educar para valores melhores, para ações belas e nobres. Desse modo, não somente por produzir coisas belas mas por inspirar ações belas, influenciado pelo conceito aristotélico, o pensamento ocidental concebeu a ideia de belas artes, diferenciando esse tipo de criação humana de outras, mais técnicas. Aristóteles atribui papel ético à arte poética na obra Política. Segundo o filósofo, a educação musical e poética contribui para formar no ser humano o gosto pelas ações nobres e belas. Sendo assim, uma educação estética colaboraria para desenvolver no ser humano o gosto pela ação contemplativa, a mais nobre de todas as ações. Segundo Santoro (2010, p. 47-48), entendemos que a finalidade da obra de arte está na sua própria fruição e que belas são as coisas que desejamos por elas mesmas. Úteis são aquelas que desejamos em vista de um outro bem. Esta diferença para marcar as artes que visam o belo já recebeu também a qualificação de livre (artes liberais) e chegou a inspirar a determinação kantiana para a sua teoria do juízo de belo, como um juízo de valor desinteressado. Esta cisão tem origem na ética e na política de Aristóteles, ainda que não visasse exatamente uma distinção nas artes, mas antes as atividades História da arte: da pintura rupestre ao Pós-Modernismo18 humanas em geral. [...] As coisas belas, para Aristóteles, são menos os objetos produzidos pelas diversas artes do que as melhores e mais felizes ações humanas, principalmente a ação contemplativa. Mas, diz ele, as diversas músicas e a poesia devem educar-nos para os melhores valores, os valores do homem livre e suas ações belas e nobres. De certo modo, Aristóteles propõe uma educação estética, em que não apenas se vão aprender conteúdos éticos importantes, mas em que, por meio da arte, já se vai tomando gosto pela atividade mais nobre e mais divina no homem, a atividade contemplativa. Assim, mais do que produzir coisas belas, é importante aprender e agir de modo belo. Para Aristóteles, as coisas que têm um fim em si mesmas – as coisas belas –, assim como o ócio, é que deveriam direcionar as atividades consideradas necessárias e úteis, uma vez que só aquelas conduzem a vida humana a uma direção livre, desinteressada e, portanto, feliz. E você, o que pensa a respeito dessa concepção? Concorda com o posicionamento aristotélico de que o que é considerado útil e necessário deve ser direcionado pela contemplação da beleza e pelo ócio? Não é exatamente o contrário disso o que fazemos em nossa sociedade atual? Qual foi a última vez em que você se permitiu ficar a sós consigo mesmo, diante de uma paisagem natural ou de uma obra de arte em atitude de silêncio e contemplação? Ainda que pareçam dissonantes em relação ao nosso tempo, as considerações aristotélicas sobre a música, a poesia dramática e a poesia épica exerceram forte influência sobre o que a tradição ocidental convencionou a respeito da arte por muitos séculos. Embora o próprio Aristóteles não tenha se ocupado, na Poética, das artes plásticas propriamente ditas, as categorias e os princípios estéticos desenvolvidos por ele influenciaram escolas de arte europeias durante o Renascimento artístico e cultural dos séculos XIV, XV e XVI, quando, pela primeira vez, a pintura e a escultura passaram a desfrutar do mesmo status antes exclusivo às artes poéticas. No entanto, foi na passagem do século XVII para o XVIII que se efetivou, no Ocidente, a delimitação do campo artístico e, a partir de então, o conceito de Belas Artes passou a demarcar a diferença entre as artes destinadas a evocar a beleza e as artes liberais. A Estética passou a ocupar-se desse campo filosófico e, diferentemente de outras formas de conhecimento, não se interessava pelo verdadeiro (preocupação da ciência) ou pelo bom (campo da ética), sendo que sua única ocupação passou a residir na reflexão do belo em si mesmo. Cabia à Estética avaliar uma obra frente a sua capacidade de evocar a beleza, que só existe de modo puro na natureza, mas, ao mesmo tempo, pelo seu potencial em criar algo distinto da natureza, algo original, sem relação alguma com o que é útil e sem a preocupação com o seguimento de procedimentos regrados. Essa concepção de arte se relacionou à concepção de artista como “gênio criador”, aquele capaz de produzir e suscitar a beleza. 1.2.3 Kant e a relação entre a arte e o sublime Embora a ideia de beleza esteja presente em diferentes épocas e sociedades humanas, o seu conceito está sempre se atualizando. Sendo assim, o que é considerado belo em uma época e cultura pode não ser considerado em outro contexto. Teorizações sobre a arte 19 Todavia, seria a função da arte somente suscitar e evocar o belo? Que critérios podem ser estabelecidos para definir objetivamente o que é belo? Para nos ajudar a pensar sobre isso, vejamos como o termo belo é definido em um dicionário de Filosofia: Belo (lat. bellus: bonito). 1. Diz-se de tudo aquilo que, como tal, suscita um *prazer desinteressado (uma emoção estética) produzido pela contemplação e pela admiração de um objeto ou de um ser. Ex.: um belo castelo, uma mulher bela. 2. Diz-se de tudo aquilo que apresenta um *valor moral digno de admiração. Ex.: uma bela ação. 3. Conceito normativo fundamental da *estética que se aplica ao juízo de apreciação sobre as coisas ou sobre os seres que provocam a emoção ou o sentimento estético, seja em seu estado natural (uma bela paisagem), seja como produto da arte (pintura, música, arquitetura etc.). Todo belo é o resultado de uma apreciação, de um juízo de gosto subjetivo, isto é, pressupõe que não haja nada para ser conhecido [...]. (JAPIASSÚ; MARCONDES, 1996, p. 27) Observe que o conceito de belo está associado ao que é digno de admiração, de contemplação desinteressada ou que tem como interesse a pura fruição, isso tanto em relação a uma paisagem natural quanto a um produto artístico concebido para tal – para suscitar esse tipo de sensação. Note também que todo belo é resultado de uma apreciação, de um juízo de gosto, ou seja, da perspectiva e das impressões que o objeto causa no expectador, naquele que o contempla. Portanto, temos que a ideia de beleza é universal, porém seu conceito se atualiza, de maneira distinta, em diferentes épocas e culturas. Além disso, a percepção da beleza pressupõe sempre um aspecto subjetivo, ou seja, a apreciação de algo como belo ou não depende daquele que o vê, que o ouve e que o sente. Necessariamente, essa concepção visava ao reconhecimento do valor da arte como algo relacionado à livre criação, à inspiração, à originalidade, sem uma relação obrigatória com a produção de conhecimento. Os critérios segundo os quais uma obra era avaliada relacionavam-se, por um lado, à capacidade inventiva do artista e, por outro, à capacidade do expectador em reconhecer a beleza (o bom gosto). No entanto, essa era uma relação bastante subjetiva, que, de certa maneira, dificultava o estabelecimento de bases reflexivas mais sólidas sobre a arte. Dentre os filósofos modernos que buscaram compreender teoricamente como apreciamos ou depreciamos uma obra de arte destaca-se o alemão Immanuel Kant (1724-1804). Em sua obra Crítica da Faculdade do Juízo (1790), o filósofo estabeleceu critérios objetivos para o juízo estético, ou seja, para o desenvolvimento de conceitos relacionados à arte, o qual denominou juízo de gosto4. No mesmo século em que o conceito de Estética foi cunhado, Kant viria a romper com a tradição aristotélica ao propor que a função da arte é provocar o sublime, e não necessariamente o belo. Diferentemente do belo, o sublime pode ser concebido como a capacidade de uma obra linguística, literária ou artística evocar sentimentos nobres e elevados (ABBAGNANO, 2007). 4 Para saber mais, leia: KANT, I. Crítica da faculdade do juízo. Trad.de Valerio Rohden e António Marques. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2005. p. 58. História da arte: da pintura rupestre ao Pós-Modernismo20 Para entendermos o conceito de juízo de gosto é importante primeiramente compreendermos o conceito de juízo da maneira como foi concebido por Kant na obra Crítica da Razão Pura (1781, 1787). Nessa obra, o filósofo definiu juízo como a capacidade de pensar ou discernir, e a manifestação do pensamento cognoscente – desenvolvido pelo sujeito – sobre um objeto qualquer por meio de uma proposição linguística. Os juízos podem ser a priori, ou seja, sem relação com a experiência, o pensamento puro, manifesto por meio de proposições lógicas; ou a posteriori, decorrente de uma constatação empírica. Juízo relaciona-se, portanto, com o modo pelo qual conhecemos e expressamos nosso conhecimento, e o juízo de gosto pressupõe a capacidade de afecção causada no espectador diante da obra de arte. A principal questão posta por Kant caracterizou-se pela problematização do próprio ato de julgar a obra de arte: polemizou que o juízo de gosto não constituía critério seguro para a avaliação da arte, uma vez que era concebido de modo subjetivo, dependendo, por um lado, de critérios individuais do artista e, por outro, de critérios subjetivos do expectador. Se cada um tem um gosto e uma compreensão do que seja a beleza, como definir critérios objetivos de julgamento de gosto? Como a Estética, pensada filosoficamente, pode contribuir para o aprimoramento artístico e para o próprio pensamento filosófico? De acordo com Kant, a obra de arte, ao se comunicar com a sensibilidade das pessoas, instigando opiniões e sentimentos, estabelece vias de reflexão e, por isso, pode ser pensada objetivamente. Ainda que não seja possível pensar no gosto como algo que possa ser debatido, envolvendo uma disputa com vistas à obtenção de evidências – como acontece com a Filosofia –, é possível pensá-lo como algo que pode ser discutido, processo pelo qual se passa do gosto subjetivo para o refinamento do gosto e, portanto, para a reflexão estética. O refinamento da opinião propicia o refinamento do gosto e a possibilidade de um juízo de gosto, um tipo de “acordo sobre a beleza” que possa ser compartilhado por mais de uma pessoa. Isso é possível porque, embora as opiniões sobre a beleza sejam subjetivas e individuais, a ideia de beleza é uma ideia da razão e, por isso, universal. Ainda que variem de acordo com a pessoa, a época e o local, os conceitos sobre a beleza se manifestam como tentativas de atualizar essa ideia, que é sempre presente na razão. Antes de tudo, é preciso convencer-se inteiramente de que pelo juízo de gosto (sobre o belo) imputa-se a qualquer um a complacência no objeto, sem contudo se fundar sobre um conceito (pois então se trataria do bom); e que esta reivindicação de validade universal pertence tão essencialmente a um juízo pelo qual declaramos algo belo, que sem pensar essa universalidade ninguém teria ideia de usar essa expressão, mas tudo o que apraz sem conceito seria computado como agradável, com respeito ao qual deixa-se a cada um seguir sua própria cabeça e nenhum presume do outro adesão a seu juízo de gosto, o que, entretanto, sempre ocorre no juízo de gosto sobre a beleza. (KANT, 2005, p. 58) Se a ideia de beleza é uma ideia da razão, o juízo de gosto pode ser discutido porque o sentimento do belo é comum ao ser humano em virtude de sua condição racional. Assim, se somos Teorizações sobre a arte 21 seres racionais, tendemos a pensar, a buscar e a apreciar a beleza, em qualquer época, local ou cultura, e o que muda é tão somente o conceito de beleza. Como parâmetro para se discutir a beleza, Kant propõe o sublime – conceito que expressa o que podemos perceber externamente, como o que ultrapassa a percepção dos nossos sentidos e a compreensão do nosso intelecto: o ilimitado, o infinito, o absoluto. Enquanto a perspectiva do belo se dirige ao objeto considerado em suas limitações, a busca do sublime o ultrapassa, remetendo o olhar ao que o objeto evoca de ilimitado. A contemplação da natureza evoca o sublime na medida em que alguns dos seus elementos, pela sua grandiosidade, suscitam a noção de infinitude, como mostra a Figura 4 a seguir. Figura 4 – Elementos da natureza An dr ew M ay ov sk yy /S hu tt er st oc k Uma obra de arte, por exemplo, também pode evocar esse sentimento, desde que atinja o ponto em que eleve e transporte o espírito para além dos limites da subjetividade. O infinito não se mostra objetivamente ao entendimento humano – uma vez que não pode ser concebido como objeto da experiência – excedendo todo padrão de sensibilidade e não podendo, por isso, ser conhecido. Pode, no entanto, ser pensado como uma ideia da razão, e, desse modo, ser perseguido pelo entendimento, embora ultrapasse todas as barreiras da sensibilidade. Segundo Kant (2005, p. 101), “a natureza é, portanto, sublime naquele entre os seus fenômenos cuja intuição comporta a ideia de sua infinitude. Isto não pode ocorrer senão pela própria inadequação do máximo esforço de nossa faculdade da imaginação na avaliação da grandeza de um objeto”. Uma obra de arte pode derrubar as barreiras tanto do que é subjetivo quanto do que é sensível, suscitando e remetendo ao que é eterno, o que pode ser definido como “a evocação do sublime”. Podemos observar como exemplo a reprodução da obra The Oxbow, do pintor romântico estadunidense Thomas Cole (1801-1848) que, ao retratar o rio Oxbow, uma extensão do rio Connecticut, nos EUA, instiga o expectador a ir além de si mesmo ao seguir o curso do rio em sua extensão pelo vale. História da arte: da pintura rupestre ao Pós-Modernismo22 Figura 5 – The Oxbow (1836), de Thomas Cole. M et ro po lit an M us eu m o f A rt /W . C om m on s Fonte: COLE, T. The Oxbow. 1836. 1 óleo sobre tela, 130,8 x 193 cm. The Metropolitan Museum of Art, Nova Iorque, Estados Unidos. Para você, a arte também pode instigar em nós, que somos finitos, a sensação e a busca do infinito? Ou você pensa, como Platão, que a arte é mera imitação do real? Se assim fosse, o que dizer de determinadas expressões artísticas que evocam reais impossíveis ou irrealidades? Seria a arte aquilo que, ao evocar a beleza, nos leva a sentir sensações agradáveis, tornando nossa existência mais harmoniosa e feliz? Ou é, ainda, o meio pelo qual, por intermédio da catarse, purgaríamos pensamentos e desejos sórdidos nos tornando mais éticos? Para responder a essas questões, é importante levar em consideração não somente os conteúdos estudados neste capítulo, mas também nossas próprias experiências pessoais com diferentes formas de expressão artística, como música, pintura, escultura, cinema, dança e teatro. Considerações finais Neste capítulo, iniciamos nossos estudos sobre arte, abordando desde a origem etimológica desta palavra e passando pelo conceito de Estética tratado tanto na Antiguidade Clássica, por Aristóteles e Platão, quanto na Modernidade, por Kant. Exploramos possíveis sentidos e funções da obra de arte, como algo que leva à contemplação e à imitação da natureza, que instiga o prazer pela suscitação da beleza, que eleva o caráter mediante a purgação e a catarse de desejos e comportamentos reprovados socialmente ou, ainda, algo que pode evocar a sensação de infinitude mediante a elevação do espírito. Além disso, estudamos que, embora os conceitos e as opiniões sobre a beleza variem ao longo do tempo e em cada sociedade e cultura, ela permanece como algo relativo à razão humana. Teorizações sobre a arte 23 Do mesmo modo, embora mudem os artistas, os estilos, as formas e os materiais pelos quais a obra de arte se expressa, a arte como forma de expressão humana permanece e se mantém como um artefato linguístico, plástico ou pictórico, capaz de nos afetar e despertar sentimentos, ideias e sensações, sendo, por isso, fundamental à nossa existência e sobrevivência. Ampliando seusconhecimentos • HADDOCK-LOBO, R. Os filósofos e a arte. Rio de Janeiro: Rocco, 2010. Esta obra apresenta, de maneira clara e competente, artigos de autores brasileiros sobre a relação entre arte e filosofia para alguns dos maiores expoentes do pensamento filosófico, como Platão, Aristóteles, Schopenhauer, Nietzsche, Kant, Foucault, Derrida etc. A obra – que discorre desde a noção de arte como mimese em Platão até o conceito de enceguecimento em Jacques Derrida – mostra como vários filósofos, desde a Antiguidade até o século XX, abordaram a arte como forma de expressão humana. Trata-se de uma leitura importante para entender como a arte tem sido pensada ao longo de mais de dois mil anos, assim, ter argumentos para se construir o próprio conceito sobre as expressões artísticas e sua relação com o que o é humano por excelência. • CAFÉ Filosófico – A importância da Arte na formação do ser humano. 2016. 1 vídeo (40min16s). Publicado pelo canal Vera Borges. Disponível em: https://youtu.be/0- u1Ba0w3B4. Acesso em: 24 out. 2019. Este é o terceiro vídeo da série “Sarau de todas as tribos”, da filósofa Vera Borges, publicado no canal Café Filosófico. Trata-se de um material importante e acessível – fundamental para complementar o conteúdo estudado neste capítulo –, que aborda as origens da expressão artística e o sentido da manifestação estética no cotidiano do ser humano como forma de interiorização e exteriorização de sentimentos, sensações e ideias. Borges discute como o ser humano se comunica com o absoluto, com o infinito, com o conhecimento, com o belo, com o cotidiano, com o transcendente e com tudo que o ultrapassa. Além disso, a filósofa discorre sobre a arte como forma de afetar, de instigar o autoconhecimento e a sensibilidade para o outro. Atividades 1. Considerando as origens dos termos arte e Estética defina, com suas palavras, em que consiste a expressão artística e de que forma tem sido abordada pela Filosofia ao longo dos séculos. 2. A arte é apenas o que imita o real ou pode ser também aquilo que reinventa, transcende e amplia? Justifique sua resposta com base nas diferentes concepções sobre a arte apresentadas neste capítulo. 3. Explique o conceito de juízo de gosto em Kant e como este pode ser empregado para se pensar a arte. História da arte: da pintura rupestre ao Pós-Modernismo24 Referências ABBAGNANO, N. Dicionário de Filosofia. 5 ed. São Paulo: Martins Fontes, 2007. ARISTÓTELES. Arte retórica e arte poética. 17. ed. Rio de Janeiro: Ediouro, 2005. ARISTÓTELES. Poética e tópicos I, II, III e IV. São Paulo: Hunter Books, 2013. FIGURELLI, R. Platão e os primórdios da Estética. In: MARÇAL, J. (org.). Antologia de textos filosóficos. Curitiba: SEED, 2009. Disponível em: http://www.educadores.diaadia.pr.gov.br/arquivos/File/cadernos_ pedagogicos/caderno_filo.pdf. Acesso em: 24 out. 2019. GOMBRICH, E. A História da arte. Rio de Janeiro: LTC, 2013. HADDOCK-LOBO, R. Os filósofos e a arte. Rio de Janeiro: Rocco, 2010. JAPIASSU, H.; MARCONDES, D. Dicionário Básico de Filosofia. 3. ed. Rio de Janeiro: Zahar, 1996. KANT, I. Crítica da faculdade do juízo. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2005. MÍMESIS ou MIMESI. In: E-dicionário de termos literários de Carlos Ceia. 2010. Disponível em: http://edtl. fcsh.unl.pt/encyclopedia/mimesis-mimese/. Acesso em: 6 set. 2019. PLATÃO. A República. Lisboa: Estampa, 1978. PLATÃO. Critão, Meão, Hípias Maior e outros. 2. ed. Belém: EDUFPA, 2007. SANTORO, F. Aristóteles e a arte poética. In: HADDOCK-LOBO, R. Os filósofos e a arte. Rio de Janeiro: Rocco, 2010. 2 Arte rupestre no Ocidente e nas Américas Andréa Carneiro Lobo Neste capítulo, vamos abordar a origem e o sentido da arte para a humanidade, situando‑os na Pré‑História e problematizando as relações entre expressão artística e evocação de forças sobrenaturais relativas ao sagrado. Com base nessa perspectiva, exploraremos aspectos relativos à história da arte dita primitiva (primeira) no Ocidente e algumas de suas manifestações plásticas, notadamente pinturas e esculturas. Na sequência, vamos apresentar elementos relativos à história da arte pré‑histórica brasileira, anterior à presença dos colonizadores europeus e problematizaremos suas motivações, formas de expressão e possíveis significados. 2.1 A Pré-História e a relação entre arte e magia Seria possível definir com exatidão quando o homem procedeu a primeira intervenção artística sobre seu meio? Quando foi que alguém entalhou pela primeira vez uma pedra ou modelou uma argila tendo como intenção criar algo belo e não somente útil? Quais foram os primeiros artistas da humanidade? O que pensavam quando criavam suas obras? Que finalidade a criação artística tinha para eles? Em que medida suas concepções estéticas se aproximam ou se afastam das nossas? Assim como não é possível definir com precisão quando teve início a linguagem falada, também não é possível localizar com exatidão a época e o local em que se deu o aparecimento da arte como expressão humana. Estudiosos da arte, como Gombrich (2013) e Hauser (2010), embasados em evidências arqueológicas, afirmam que as primeiras manifestações artísticas remontam à chamada Pré‑História. Essa é uma designação controversa, porém, tradicionalmente atribuída pelos historiadores ocidentais à fase do desenvolvimento humano, que é caracterizado: • pelos diferentes estágios de evolução biológica da espécie humana, desde os primeiros hominídeos – chamados de australopithecus, há aproximadamente 4 milhões de anos – passando pelas diferentes espécies do gênero Homo (habilis, erectus, neanderthalensis) até o desenvolvimento do Homo sapiens sapiens (por volta de 100.000 anos atrás); História da arte: da pintura rupestre ao Pós-Modernismo26 • pela formação dos primeiros agrupamentos humanos no planeta Terra e pelas diferentes fases da sua produção material (desde a caça e a coleta, passando pela descoberta da agricultura, pecuária, artesanato e metalurgia); • pela inexistência da escrita como forma de registro; • pela inexistência do estado como fator de ordenamento social. A Pré-História é o período mais longo do desenvolvimento humano na Terra, englobando desde 4 milhões até 10 mil anos atrás. Esse longo período é costumeiramente dividido em três fases: • Paleolítico (do grego palaiós = antigo; lithos = pedra; “pedra velha”): período em que a pedra lascada era utilizada para a produção de armas e ferramentas. Além disso, são marcos desta era a descoberta técnica do fogo e da arte da pintura e escultura. O período paleolítico é subdivido em: • Inferior: aproximadamente 4,5 milhões de anos a 100 mil anos atrás (outros autores consideram 2,5 milhões de anos); • Médio: aproximadamente 100 mil a 40 mil anos atrás; • Superior: aproximadamente 40 mil a 10 mil anos atrás (CRUZ; CUNHA, 2008). • Neolítico (do grego neo = novo; lithos = pedra; “pedra nova”): período em que a pedra polida era utilizada para a produção de armas e ferramentas. Nesta fase, o desenvolvimento tecnológico e cultural humano teve início por volta de 10 mil anos e teria se estendido até 6 mil anos atrás. Além da técnica de polimento das rochas, a era neolítica é caracterizada pela descoberta da agricultura e da pecuária, assim como o desenvolvimento da vida sedentária e o surgimento das primeiras comunidades, fato que atribuiu a este período a designação Revolução neolítica. • Idade dos Metais: período em que metais eram utilizados para a fabricação de armas e ferramentas, sobretudo em algumas regiões como a Ásia Menor e o Oriente Médio. Teve início por volta de 5 mil anos atrás com a descoberta do cobre e do estanho. Da mistura desses dois metais foi desenvolvido o bronze (período chamado de calcolítico). Esse período foi marcado também pela descoberta e disseminação de metais mais “moles”, como o ouro, cujo uso se disseminou no Oriente Médio, Ásia Menor e Sul da Europa entre 4 e 2 mil anos atrás. Por volta de 3,5 mil anos, a metalurgia deum metal mais duro e resistente (o ferro) se disseminou em comunidades da Ásia Menor e posteriormente em regiões da África, Europa e do Oriente Médio. A Idade dos Metais foi caracterizada, dentre outros fatores, pelo surgimento da vida urbana (nascem as primeiras cidades), pelo desenvolvimento da escrita, pela expansão do comércio e pelo florescimento das primeiras civilizações. Arte rupestre no Ocidente e nas Américas 27 2.1.1 Pinturas rupestres A Pré‑História foi conceituada por historiadores nórdicos do século XIX para se referir à fase do desenvolvimento humano anterior à escrita. Ela constituiu um longo período da trajetória humana, caracterizado por descobertas importantes, como o fogo, a lascadura e polimento de rochas, a metalurgia, o artesanato, a agricultura e a pecuária etc. Dentre essas descobertas, também está a expressão artística. Grande parte das mais expressivas manifestações artísticas plásticas remontam aos períodos Paleolítico Médio e Superior – aproximadamente 30 e 11 mil anos a.C.1 – e podem ser encontradas no interior de cavernas e abrigos de pedra (tanto em paredes quanto em tetos) situados na Europa, África e América. Essas são chamadas de pinturas rupestres; já as esculturas de silhuetas femininas com formas arredondadas são chamadas de vênus paleolíticas. Segundo Hauser (2010, p. 2), as pinturas rupestres do Período Paleolítico chamam a atenção pelo naturalismo e pela tentativa de fidedignidade ao meio natural da forma como era concebido pelo artista pré‑histórico: “é uma arte que, a partir de uma fidelidade linear à natureza, na qual as formas individuais ainda são moldadas rígida e laboriosamente, avança para uma técnica ágil e brilhante, quase impressionista”. Segundo o autor, o artista paleolítico pintava aquilo que via e tentava fazê‑lo da forma mais exata possível, considerando materiais e técnicas, isto é, os meios dos quais dispunha. Para Gombrich (2013, p. 38), uma das pistas para se compreender o sentido e a origem da arte entre os povos primitivos – assim designados não por serem mais simples que as sociedades atuais, mas sim por estarem mais próximos da humanidade em suas origens do que nós – é o fato de que, para eles, “a construção e a criação de imagens têm funções idênticas”. Mas de fato, o que isso significa? É possível afirmar que as construções deste período tinham tanto a função de abrigar esses povos das intempéries da natureza quanto de protegê‑los das ações sobrenaturais dos deuses. Já as imagens – manifestadas em pinturas – imitavam elementos da natureza ou sua personificação sobrenatural. As imagens tinham o poder de intervir no real, isto é, tinham funções mágicas. De qualquer maneira, tanto as construções quanto as imagens atendiam a critérios utilitários: serviam para atender às necessidades do mundo material/natural ou do mundo sobrenatural2. Os seres humanos do Período Paleolítico ainda não sabiam produzir e reproduzir o seu alimento – isto é, desconheciam a agricultura e a pecuária –, por isso sobreviviam do que caçavam e coletavam. Na luta constante com as forças da natureza, o sucesso ou o fracasso de uma caçada representava a diferença entre sobreviver ou padecer de fome, portanto, o controle dessas forças era fundamental. Infinitamente inferior à adversidade representada pelo mundo natural, os seres 1 A sigla a.C. identifica as datações anteriores à Era Cristã. O calendário ocidental cristão tem como marco inicial o nascimento de Jesus Cristo, fenômeno que, de acordo com astrônomos cristãos medievais e modernos, teria ocorrido há dois mil anos. Os acontecimentos cronologicamente ocorridos antes de Cristo são datados em ordem decrescente, dos mais distantes (e antigos) aos mais próximos (e contemporâneos) ao nascimento de Jesus Cristo. 2 A palavra magia tem origem etimológica no termo grego mageía. Segundo o filósofo Nicola Abbagnano, trata-se de um tipo de conhecimento que pretende dominar as forças naturais por meio dos mesmos meios empregados para o controle dos seres animados. Esse conhecimento parte do pressuposto de que todos os elementos naturais são seres animados, ou seja, têm vida. História da arte: da pintura rupestre ao Pós-Modernismo28 humanos com suas armas de pedra lascada podem ter descoberto na arte uma forma de tentar ter controle sobre a natureza. Segundo Hauser (2010, p. 4), a arte funcionaria como um instrumento de acesso e controle das forças naturais por vias sobrenaturais, isto é, por meio da magia, pois: nessa época de vida puramente prática, tudo gravitava, como é óbvio, em torno da mera subsistência, e nada justifica, portanto, supormos que a arte servia a qualquer outro propósito que não fosse o de constituir um meio para a obtenção de alimentos. Todas as indicações apontam, mais exatamente, para o fato de que se tratava do instrumento de uma técnica mágica e, como tal, tinha uma função inteiramente pragmática que visava alcançar objetivos econômicos diretos. Para Gombrich (2013), a razão de ser da arte paleolítica pode ser pragmática: os artistas procuravam desenhar com precisão e naturalismo plantas, animais (bisões, cavalos, cervos, touros etc.) e figuras humanas (caçadores e coletores). Segundo o autor, de alguma forma, esses povos acreditavam que as imagens tinham o poder de intervir sobre o meio natural, em uma espécie de atribuição de sentido sobrenatural ao que buscavam representar. A explicação mais provável para essas pinturas rupestres é que se trata das mais antigas relíquias da crença universal no poder das imagens; em outras palavras, ao que parece, esses caçadores primitivos imaginavam que, se fizessem uma imagem de suas presas – e talvez se a golpeassem com suas lanças e machados de pedra –, os animais reais também sucumbiriam ao seu poder. (GOMBRICH, 2013, p. 39) Até mesmo o local em que as pinturas eram realizadas – geralmente no interior de cavernas escuras e íngremes aonde se chega por meio de corredores estreitos e de difícil passagem – e o fato de, muitas vezes, serem feitas sobrepostas umas às outras, denota que a função da arte não era meramente “decorativa” e, sim, que havia alguma atribuição espiritual a elas: é uma estranha experiência adentrar essas cavernas, às vezes por corredores baixos e estreitos, mergulhar no negro ventre da montanha e, de repente, ver a lanterna do guia iluminar a imagem de um touro. Uma coisa é clara: ninguém se esgueiraria por tal distância, penetrando as lúgubres profundezas da terra, apenas para decorar local tão inacessível. Ademais, poucas dessas imagens foram claramente distribuídas pelos tetos ou paredes da caverna, com exceção de algumas pinturas na caverna de Lascaux [...]. Pelo contrário, às vezes encontram‑se pintadas ou gravadas umas sobre as outras, sem nenhuma ordem aparente. (GOMBRICH, 2013, p. 39) Observe que a Figura 1, a seguir, trata‑se da reprodução de uma das pinturas rupestres da caverna de Altamira, norte da Espanha. Os arqueólogos estimam que essas pinturas foram feitas durante o Período Paleolítico Superior, entre 35 e 11 mil anos a.C.: Arte rupestre no Ocidente e nas Américas 29 Figura 1 – Detalhe da sequência de pinturas rupestres da caverna de Altamira, norte da Espanha. EQ Ro y/ Sh ut te rs to ck Arqueólogos estimam que essas pinturas tenham sido realizadas entre 35 e 11 mil anos a.C. A localização das galerias em que estão impressas essas imagens – isoladas de influências climáticas externas – ajuda a entender seu excelente estado de conservação até os dias atuais. Já a Figura 2, a seguir, é uma reprodução de pinturas localizadas na caverna de Lauscaux, sudoeste da França. Descobertas por pesquisadores no ano de 1940, a sequência de pinturas rupestres desse local conta com 600 imagens impressionantes, a maioria representando cavalos, mas há também bisões, veados e até alguns felinos. A datação aproximada situa‑se entre 17 e 15 mil anos a.C., ou seja, no final do Período Paleolítico Superior. No detalhe reproduzido a seguir,é possível observar a sobreposição de imagens de animais, provavelmente pintados em períodos e até mesmo por artistas diferentes: Figura 2 – Detalhe das pinturas rupestres registradas em Lascaux, França. É possível ver desenhos de bisões, cavalos e veados, alguns estão sobrepostos. Pr of . s ax x/ W .C om m on s História da arte: da pintura rupestre ao Pós-Modernismo30 Nas pinturas rupestres manifesta‑se, portanto, a crença ou suposição, bem como o desejo de intervenção sobre aquilo que representavam: não parecia existir a distinção entre o fenômeno representado e sua representação. Dessa forma, pintar/desenhar a imagem de um bisão atingido por uma flecha representaria a garantia do sucesso na caçada. Para historiadores da arte, como Gombrich (2013) e Hauser (2010), a imagem tinha a função de “antecipar” o evento registrado. Nas pinturas em que se destacam animais, a figura humana, ainda que mais raramente, também aparece. Os seres humanos são representados em atividades como caça, dança e, em alguns casos – como em pinturas rupestres localizadas no Brasil –, fazendo sexo. São também representadas palmas de mãos e motivos geométricos ou artísticos abstratos, os quais foram nominados pelo arqueólogo, geólogo e etnólogo francês Henri Breuil como macarrões. As pinturas são policromáticas e as tintas, feitas de matéria orgânica, tinham diferentes origens: sangue, saliva, argila de diferentes tonalidades e excrementos de animais que habitavam as cavernas, como morcegos. Pode parecer estranho para nós, em pleno século XXI, o fato de os artistas paleolíticos considerarem a imagem de um determinado elemento ou fenômeno como a realidade propriamente dita. Mas será que essa prática remete apenas àquele período? Figura 3 – A associação entre a imagem e o que ela representa D ho di S ya ile nd ra /S hu tt er st oc k O costume de alguns fãs de beijar pôsteres com a imagem de ídolos (Figura 3) ou o hábito de “conversar” com a imagem de um contato em redes sociais não seriam também modos de considerar imagens como a representação da realidade? 2.1.2 Vênus paleolíticas Outra expressão significativa da arte pré‑histórica são as esculturas representando formas femininas, designadas por estudiosos e especialistas como vênus paleolíticas. A denominação é uma Arte rupestre no Ocidente e nas Américas 31 alusão à entidade que, entre os antigos romanos, era concebida como a deusa Vênus, atribuição latina para Afrodite, deusa grega do amor, da sexualidade e da beleza feminina. Da civilização grega – que floresceu no primeiro milênio antes de Cristo, atingiu seu apogeu no século V a.C. e teve seu declínio no século II a.C. – sobreviveu uma escultura, feita em mármore e com 202 centímetros, que representa a deusa Afrodite. A obra, datada do Período Helenístico (provavelmente século II a.C.), é atribuída ao escultor Alexandre de Antioquia e foi denominada Vênus de Milo (Figura 4), pois foi descoberta na Ilha de Milo, no Mar Egeu, em 1820. A escultura representa a divindade greco‑romana como uma mulher seminua, com a parte de cima do corpo descoberta e dotada de formas consideradas perfeitas para as concepções estéticas da época. Seus braços quebrados causam controvérsias entre os pesquisadores sobre a época em que isso teria acontecido. Outra controvérsia se dá em relação a sua datação: para muitos, a Vênus de Milo pertence ao Período Helenístico, que é justamente a época de declínio e decadência da civilização helênica; em outras palavras, a obra contrasta com o período em questão. Agora que sabemos a origem da designação vênus para esculturas que representam a figura feminina, bem como o ideal de beleza e sexualidade, podemos nos perguntar: qual a relação de uma estátua do século II a.C. com a Pré‑História? Ocorre que, ao lado das chamadas pinturas rupestres, a estatutária é a uma das mais significativas expressões da arte paleolítica. Dentre as esculturas e estátuas mais antigas produzidas pelo ser humano, destacam‑se aquelas que parecem representar a figura feminina, com especial enfoque às partes do corpo vinculadas à sexualidade e à fertilidade. São formas humanas femininas representadas nuas, com coxas, nádegas, ventre e seios protuberantes e avantajados. Já os membros superiores e a cabeça são desproporcionalmente representados em um tamanho menor. Li vi oa nd ro ni co 20 13 /W .C om m on s Fonte: ALEXANDRE de Antioquia. Vênus de Milo. séc. II a.C. 1 escultura em mármore, 202 cm. Museu do Louvre, Paris, França. Exposta no Museu do Louvre, na França, Vênus de Milo há mais de 2.000 anos é considerada por muitos como um ícone do ideal estético da beleza feminina. Figura 4 – Vênus de Milo (séc. II a.C.), de Alexandre de Antioquia. História da arte: da pintura rupestre ao Pós-Modernismo32 Como exemplo, podemos citar a denominada Vênus de Willendorf (Figura 5), descoberta pelo paleontólogo austríaco Hugo Obermaler, em 1908, na região de Willendorf, baixa Áustria (VELÁZQUEZ, 2017). A estatueta, com 10,45 cm de altura e feita em calcário, é datada do Período Paleolítico Superior. Outro exemplo desse tipo de escultura – pertencente ao Período Paleolítico Superior – é a chamada Vênus de Lespugue (Figura 6). Datada aproximadamente de 26 e 24 mil anos atrás, foi descoberta em 1922 em uma caverna chamada Rideaux de Lespugue (na França, região dos Pirineus) pelo arqueólogo e naturalista René de Saint‑Périer, que a danificou acidentalmente durante a escavação, sendo depois reconstituída. Talhada em marfim de mamute (animal pré‑histórico extinto, parecido com os elefantes atuais), a estatueta tem 14,7 cm de altura. Dentre todas as Vênus paleolíticas descobertas, a de Lespugue é a que tem as características sexuais (seios, vulva, nádegas) mais acentuadas e proeminentes3. Seriam as vênus paleolíticas representações do ideal de beleza feminina na Pré‑História? Segundo estudiosos, esta hipótese parece pouco provável. Ainda que as formas das estátuas pudessem ser também associadas à beleza, sua função estética estava submetida a uma possível função religiosa. Segundo Sheldon Cheney (1995, p. 34), essas “estatuetas podem ter sido figuras votivas ligadas aos ritos destinados a manter e incrementar a fertilidade das mulheres”. A hipótese explicaria a protuberância das partes do corpo feminino associadas à sexualidade e à fertilidade. Há, entretanto, estudiosos que defendem outra hipótese: as estatuetas manifestariam, por intermédio de figuras votivas femininas, a sacralização da fertilidade da própria natureza, associada ao feminino. Dentre esses, destaca‑se os estudos da filósofa francesa Elisabeth Badinter em sua obra intitulada Um é o outro4 (1986). 3 Para conhecer mais sobre as vênus paleolíticas, acesse: ROSSETTI, V. As deusas Vênus do Paleolítico. NetNature, 7 dez. 2016. Disponível em: https://netnature.wordpress.com/2016/12/07/as-deusas-venus-do-paleolitico. Acesso em: 28 set. 2019. 4 A obra em questão é a primeira parte de uma coletânea composta dos títulos Um e o outro, Um sem ou outro e Um é o outro. Nela, a autora discute a sexualidade humana através dos tempos. M at th ia sK ab el /W .C om m on s Figura 5 – Vênus de Willendorf Fonte: VÊNUS de Willendorf. 24000- -22000 a.C. 1 escultura de calcário oolítico, 10,45 cm. Museu de História Natural, Viena, Áustria. Figura 6 – Vênus de Lespugue Fonte: VÊNUS de Lespugue. 26000- -24000 a.C. 1 escultura de marfim de mamute, 14,7 cm. Museu do Homem, Paris, França. Jo sé -M an ue l B en ito /W .C om m on s Arte rupestre no Ocidente e nas Américas 33 No Período Neolítico – em que a maioria dos seres humanos ainda não conhecia o uso da metalurgia e passava de um estágio de caçador‑coletor para agricultor‑pastor –, os agrupamentos humanos viviam uma relação de total dependência da natureza para garantia da sobrevivência. É possível que tenha existido uma divinização feminina da natureza e essas manifestações artísticas sejamexpressões de uma religiosidade ancestral em que se cultuavam deusas – e não deuses. Até o início da idade do bronze e o surgimento das primeiras civilizações, estatuetas representando essas imagens femininas do sagrado predominaram entre grupos humanos que iam da Europa até o Oriente Médio, vindo a ser paulatinamente substituídas por esculturas representando deuses masculinos. Isso nos leva a pensar que no princípio podem ter sido as deusas, e não os deuses, a primeira forma de representação do sagrado entre os seres humanos. De qualquer modo, em relação à forma como o homem pré‑histórico concebia o real e como essa concepção se manifestava em sua arte, nós podemos tecer apenas especulações, afinal, são tempos anteriores à escrita. 2.2 Expressões da arte pré-histórica no Brasil Como vimos anteriormente, o termo Pré-História foi criado para designar uma forma de sobrevivência, característica dos primeiros grupos humanos. Seus períodos são divisões criadas para caracterizar aspectos da vida material desses grupos, contudo, esses estágios não aconteceram da mesma forma e na mesma época em todas as regiões do globo. As datações mencionadas no início deste capítulo referem‑se a estágios de desenvolvimento técnico de seres humanos que viveram em regiões da Europa, África e Ásia há milhares e até mesmo milhões de anos. Na América, esses estágios ocorreram em períodos diferentes, até porque, como veremos a seguir, o povoamento humano das Américas é posterior à ocupação humana na África (mais antiga), na Ásia e na Europa. As expressões artístico‑culturais – isto é, representações de cenas de caça, de dança e de acasalamento humano por meio de pinturas rupestres, estatuetas, vasos e objetos decorativos – ocorreram em diversos lugares e em épocas diferentes, todavia, não deixam de apresentar entre si algumas características comuns. Vamos analisar mais detalhadamente, a partir de agora, algumas das manifestações artísticas relativas à Pré‑História brasileira. 2.2.1. A origem do homem e da mulher das Américas No Brasil, assim como nas Américas, os primórdios do povoamento humano se deram com as espécies Homo sapiens sapiens durante o Pleistoceno, período geológico que durou de 2 milhões até 10 mil anos, e que antecedeu o período geológico atual, chamado Holoceno. A origem do Homo sapiens sapiens é africana, foi na África que nossa espécie surgiu, por volta de 100 mil anos atrás e foi de lá que ela partiu para povoar praticamente todo o globo. Entretanto, os arqueólogos ainda se perguntam: quando e como os nossos antepassados chegaram ao continente americano? História da arte: da pintura rupestre ao Pós-Modernismo34 Até a década 1970 a tese mais aceita entre os estudiosos era a de que as primeiras populações humanas da América descendiam de grupos vindos do Sudeste Asiático. Esses grupos teriam migrado para a América através da Beríngia – um estreito de mar entre a Sibéria Oriental (Ásia) e o Alasca (América do Norte) – que, em função da oscilação climática característica da última era glacial, teria ficado emersa durante aproximadamente 18 mil anos, fato que possibilitou a travessia por grupos nômades sobre ela. A travessia (Figura 7) teria ocorrido há aproximadamente 12 mil anos. Figura 7 – Hipótese da travessia humana da Beríngia e o povoamento humano da América Ro bl es pe pe /W .C om m on s Placa de gelo Laurentina; Placa de gelo da Cordilheira; corredor livre de gelo (tradução livre). Essa tese se amparava, sobretudo, em descobertas realizadas nos sítios arqueológicos de Clóvis (Figura 8) e Folsom, localizados na América do Norte, datados aproximadamente entre 13.500 e 8 mil anos atrás. Figura 8 – Instrumentos líticos (cultura Clóvis), Novo México, Estados Unidos. U SD A- ph ot o/ W ik im ed ia C om m on s Arte rupestre no Ocidente e nas Américas 35 Porém, nas últimas décadas do século XX, importantes descobertas derrubaram essa teoria. Fósseis humanos, descobertos no sítio arqueológico de Lagoa Santa, em Minas Gerais, foram datados em aproximadamente 12 mil anos atrás. O caso mais conhecido é o do esqueleto de uma mulher, a quem os arqueólogos batizaram de Luzia. A conformação craniana de Luzia, tal qual se pode perceber na reconstituição5 da Figura 9, ao lado, é diferente do aspecto anatômico das populações indígenas atuais – o qual lembra o aspecto dos grupos de origem mongol, na Ásia – assemelhando‑se às populações da Oceania (Austrália, principalmente) e da África. Na América do Norte, pesquisadores constataram, nos últimos anos, que a presença humana mais antiga – encontrada em sítios como o de Cactus Hill (Estados Unidos) – pode chegar a até 25 mil anos. Além disso, pesquisas arqueológicas realizadas nos últimos 30 anos detectaram vestígios de populações humanas na América do Sul – Minas Gerais, Mato Grosso, parte do Nordeste e da Amazônia (no Brasil), e Monte Verde (no Chile) – cuja datação chega a 13 mil anos. Ainda sobre a origem do homem e da mulher das Américas, desde a década de 1970, um grupo de estudiosos, comandados pela arqueóloga Niède Guidon, tem defendido que certos vestígios de fogueiras e de pedras lascadas, encontrados no sítio do abrigo de Pedra Furada, no Parque Nacional da Serra da Capivara, município de São Raimundo Nonato (Piauí), chegam à datações que oscilam entre 20 e 40 mil anos. Embora as descobertas arqueológicas mais recentes ainda apresentem com prudência o resultado de suas pesquisas, é praticamente consenso entre os arqueólogos que a presença do Homo sapiens sapiens, em nosso continente, remonta há pelo menos 13 mil anos. Essa tese, no entanto, vem sendo discutida em razão da existência de evidências arqueológicas anteriores a 15 mil anos, algo que não pode ser explicado pela teoria da Beríngia. As manifestações artísticas mais antigas das Américas se localizam – segundo estudiosos que compõem o grupo coordenado por Guidon – na região Nordeste do Brasil, no estado do Piauí. Elas fazem parte da chamada Tradição Nordeste, forma como foram batizados os grupos humanos autores de pinturas rupestres cuja datação pode chegar a mais de 13 mil anos. Além desta, a chamada Tradição Amazônia seria uma das mais antigas manifestações da arte estatuária brasileira, conforme veremos a seguir. 5 Essa reconstituição estava exposta no acervo do Museu Nacional do Rio de Janeiro, que, infelizmente, teve a maior parte do seu acervo destruída por um incêndio em 2018. O fóssil de Luzia, no entanto, “sobreviveu” ao incêndio e sua face poderá ser novamente reconstituída por artistas e cientistas especializados. Figura 9 – Reconstituição do provável rosto de Luzia Fonte: RECONSTITUIÇÃO de indivíduo humano de sexo feminino (Luzia) com base nos remanescentes do crânio achado em Lapa Vermelha IV, Lagoa Santa, Minas Gerais. Acervo de Antropologia Biológica do Museu Nacional/UFRJ, Rio de Janeiro, Brasil. D or ni ck e/ W .C om m on s História da arte: da pintura rupestre ao Pós-Modernismo36 2.3.1.1 Tradição Nordeste e Tradição Amazônia A Tradição Nordeste é uma cultura pré‑histórica brasileira, a qual é estudada há quatro décadas. Iniciada pela pesquisadora francesa Niède Guidon, a pesquisa traz fortes indícios empíricos de que as manifestações artísticas mais antigas das Américas podem estar no Brasil. O principal sítio arqueológico encontra‑se no estado do Piauí, no município de São Raimundo Nonato, chamado Serra da Capivara. É um sítio rico em pinturas rupestres, sendo que as mais antigas podem remontar há mais de 9 mil anos. Elas normalmente se caracterizam pela representação de figuras humanas, isoladas ou em grupos, às vezes usando cocares. Pintadas com um único pigmento, as representações contrastam com a cor da rocha sobre a qual estão (Figura 10). Acredita‑se que as pinturas mais antigas estejam relacionadas à afirmação dos grupos em determinados territórios ou a crenças religiosas. Os abrigos sob rocha eram usados para sepultamentos e pinturas rupestres: vestígios