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1 Fortaleza - 2011 ANAIS DO XI ENCONTRO DA EPFCL|AFCL - BRASIL 2 ANAIS DO XI ENCONTRO DA EPFCL|AFCL - BRASIL Coordenação Nacional: Sonia Alberti Georgina Cerquise Consuelo Pereira de Almeida Coordenação Local: Andrea Rodrigues Sandra Mara Nunes Dourado Coordenação da Comissão Científica: Lia Carneiro Silveira Membros da Comissão Científica: Alba Abreu Angélia Teixeira Andrea Brunetto, Diego Mautino Dominique Fingermann Maria Anita Carneiro Ribeiro Silvia Amoedo Zilda Machado. Diretoria da EPFCL-Brasil (2011): Ana Laura Prates (Diretora) Sandra Berta (Secretária) Beatriz Oliveira (Tesoureira) Patrocínio: Apoio: Associação dos Lojistas da Monsenhor Tabosa 3 SUMÁRIO APRESENTAÇÃO 5 PLENÁRIAS 7 O SINTOMA ENTRE MARX E LACAN 8 ALÍNGUA HISTÉRICA 14 ALGUMAS OBSERVAÇÕES SOBRE O NÚCLEO REAL DO SINTHOMA E A EXPERIÊNCIA DO GOZO OUTRO 24 “DAR NA PINTA”: PARECER MULHER COM CORPO DE HOMEM 32 SINTOMA E FANTASIA NA HISTERIA MASCULINA 42 O SINTOMA E O AMOR 50 APOSTAR NO SINTOMA 56 SINTOMA E ESCRITA OU...OS ECOS DO SINTOMA SELVAGEM 64 O LIVRO DE CABECEIRA: DA ESCRITA COMO SINTOMA AO SINTOMA COMO LETRA 74 A SATISFAÇÃO DO FINAL DE ANÁLISE 81 MESAS SIMULTÂNEAS 90 “FAZER UMA ESCOLHA OU PERMANECER NA DÚVIDA?” 91 O QUE MARCÉLIO SABIA 100 REFLEXÕES SOBRE A DIREÇÃO DO TRATAMENTO NA CLÍNICA DA PERVERSÃO 109 A PELE, SUAS MARCAS E O CORPO:FENÔMENO PSICOSSOMÁTICO E TATUAGEM 117 SINTOMA: RUÍDO DA ALÍNGUA NO CORPO 128 CONSIDERAÇÕES SOBRE O GOZO EM UM CASO CLÍNICO DE PSORÍASE 136 SINTHOME: O REAL DO SINTOMA 146 SINTOMA E FANTASIA FUNDAMENTAL 152 O NOME DO SINTOMA 160 A ARTE É O QUE HÁ DE MAIS REAL 168 OS USOS DO CORPO E A POLÍTICA DO SINTOMA: O CASO DA TRANSFORMAÇÃO CORPORAL 175 O REAL DO SINTOMA: SUA POLÍTICA NA CURA 184 SINTOMA OU FENÔMENO PSICOSSOMÁTICO? DECIFRA-ME OU TE DEVORO! 195 CONSIDERAÇÕES TOPOLÓGICAS DA PASSAGEM DO SINTOMA AO SINTHOMA 202 UM ADOLESCENTE EM CENA 210 A RELAÇÃO DO SINTOMA COM AS LEIS MORAIS 217 “SINTO QUE NÃO TOM(A)ES” – SOBRE A DESIMPLICAÇÃO SUBJETIVA NA SOCIEDADE CONTEMPORÂNEA 223 A FUNÇÃO DO ANALISTA E A POLÍTICA DA PSICANÁLISE NA POLÍTICA PÚBLICA DE SAÚDE MENTAL 229 OS IMPASSES DA TRANSMISSÃO DA PSICANÁLISE E DA TRANSMISSÃO EM PSICANÁLISE 235 ASPECTOS DA RELAÇÃO ENTRE SINTOMA E ANÁLISE 241 PSICOSES ORDINÁRIAS E ATOS VIOLENTOS 246 ENTRE A SÍNDROME E A MÃE: MARCELA 252 O HOMEM CONDUTOR: UM CASO DE HISTERIA MASCULINA? 260 DA ILUSÃO DE COMPLETUDE AO ENCONTRO SIMBÓLICO: A PEREGRINAÇÃO AMOROSA DO SUJEITO DESEJANTE EM “UMA APRENDIZAGEM OU O LIVRO DOS PRAZERES”, DE CLARICE LISPECTOR 267 SINTOMA, SINTHOME E FINAL DE ANÁLISE 277 4 “IMAGINE O QUE EU NÃO FALARIA SE EU NÃO FOSSE GAGO!”: O QUE FALA ESSA GAGUEIRA? 283 CONSIDERAÇÕES SOBRE A CONSTITUIÇÃO DA SUBJETIVIDADE NA PSICOSE: CASO SCHREBER 287 DE UM SINTOMA NO CORPO A UM SINTOMA ANALÍTICO: UMA CLÍNICA A PARTIR DOS FENÔMENOS PSICOSSOMÁTICOS 294 A CRIANÇA COMO SINTOMA DOS PAIS EM CASOS DE DISPUTA DE GUARDA 301 PSICANÁLISE E POLÍTICA : O PSICANALISTA COMO SINTOMA DA CULTURA 307 SINTOMA E REPETIÇÃO NA NEUROSE OBSESSIVA 314 O SINTOMA NA ARTE OU A ARTE COMO SINTOMA? 322 ESPAÇO ESCOLA 330 CARTEL: ESPAÇO DE SABER ARTICULADO À POLÍTICA DA PSICANÁLISE 331 O PASSE: A RAZÃO DE UM FRACASSO 340 5 Apresentação “O sintoma fundamental é a única coisa que faz identidade, que é o verdadeiro nome próprio – o que todas as identificações fracassam em fazer. É somente nele que o sujeito pode encontrar seu princípio de consistência e constitui-lo em resposta à questão de entrada: o que sou? Sou este gozo ou, mais precisamente, esta modalidade de amarração entre um desejo impossível de dizer tudo e um gozo que fixa uma letra do inconsciente” Colette Soler, 10/07/1999. Se identificamos três momentos para a psicanálise: o de seu surgimento, de sua releitura e de seu objeto a abrir um novo campo, ainda assim o sintoma, que estará nos três, poderá ser um quarto a amarrá-los. O sintoma é a política da psicanálise por diferenciá-la não só de todas as outras clínicas mas também como discurso, aparelho de gozo. A psicanálise surge num contexto histórico muito complexo, na pena de um gênio que consegue traduzir o que está absolutamente presente sem que ninguém consiga vê-lo e transmitir, com suas próprias palavras, o que até então não era possível dizer. Inicialmente é isso o sintoma: na histeria, o desejo de um desejo insatisfeito; na fobia, a angústia da castração, e na neurose obsessiva, o direito ao desejo no compromisso com sua proibição. A psicanálise cresce com o campo da fala e da linguagem com o qual Lacan pode “construir algoritmos mais rigorosos” (Lacan, p. 109, Sem. 21) para articular a obra de Freud, e trazer novamente à cena o que fora recalcado na própria psicanálise, cuja situação em 1956, para retomar somente um desses momentos, se sintomatizava na burocracia da formação psicanalítica, muito distante da verdade freudiana. A psicanálise abre um novo campo, o campo lacaniano, do gozo, e novamente o sintoma comparece, dessa vez como política. Na clínica, isso inclui em seu campo, além da neurose, a psicose e mesmo o final da análise. Com Joyce e a ciência do real, a lógica, os nós, instrumento que introduz as três dimensões com as quais, em 12 de março de 1974 Lacan propõe cingir o ponto do lugar da psicanálise no mundo. A psicanálise mesma como sintoma, observa Lacan em 1974, do que não vai bem no real... Nos seminários mais tardios de seu ensino, Jacques Lacan retomou a noção de sintoma para lhe atribuir finalmente, a função de anodamento, amarração, entre real, 6 simbólico e imaginário o que não deixa de ter referência com o termo freudiano atribuido a Eros de amarrar, ligar, binden. O sintoma como nó é quarto, é também o sintoma como o que vem do real: o que claudica, por exemplo, no discurso do mestre. Os novos sintomas presentificam o que claudica no discurso do mestre contemporaneo: as toxicomanias – que demandam drogas lícitas e ilícitas – como retorno do real do discurso do capitalista; o recrudecimento da segregação; os transtornos... conforme as novas nomenclaturas sintomatizando a ciência. O sintoma como o que claudica no discurso do mestreinclui o próprio inconsciente real, o grande campo do não saber. A partir do que observou nossa convidada internacional Colette Soler, ano passado em Buenos Aires, o passe deveria ocupar-se disso: na contramão da confusão entre a fantasia e o real do inconsciente, a identificação ao sintoma implica o saber-se objeto, ponto de virada em relação à repetição. Sonia Alberti – Diretora da EPFCL | AFCL-Brasil 7 PLENÁRIAS 8 O Sintoma entre Marx e Lacan Sonia Alberti1 O sintoma com Marx Praticamente, a cada vez em que Lacan se refere ao sintoma, estatisticamente se quiserem, podemos dizer a cada dois anos em seu Seminário, ele começa assim: “é importante observar que historicamente não reside aí a novidade de Freud, a noção de sintoma, como várias vezes marquei, e como é muito fácil observar na leitura daquele que por esta noção é responsável, [...] [é de] Marx” (1970-‐1, p. 220). Extraí essa citação ao acaso, elas são inúmeras nos textos de Lacan, ainda em RSI ele faz essa referência e no seminário sobre o Sinthome. Já anteriormente, em seu texto “Formulações sobre a causalidade psíquica” (1946) Lacan termina por colocar em série: Sócrates, Descartes, Marx e Freud como aqueles que “não podem ser superados, na medida em que conduziram suas investigações com essa paixão de desvelar a qual possui um objeto: a verdade” (p.193). É por estarem referidos a esse objeto, que os dois últimos, Marx e Freud, puderam perceber o quanto a verdade é sempre meio dizer e o quanto insiste, justamente, ali onde sempre se vela. Por outro lado, também podemos ler em Lacan que “O sintoma tem o sentido do valor da verdade”. Tal observação é associada, por Lacan, com esta outra: “o que há de essencial no pensamento marxista é a equivalência do sintoma com o valor de verdade” (Lacan, 1971-‐2, p. 25). Assim: para Lacan, tanto Marx como Freud possuem o mesmo objeto: a verdade, além disso, para ambos, é o valor desse objeto que equivale ao sintoma. 1 AME , Membro da Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano -‐ Brasil. Membro do Fórum Rio de Janeiro 9 Ou seja: o valor verdade = valor sintoma, o sintoma em Marx e em Freud. Até aí pude ir no último trabalho apresentado, em particular em São Paulo quando tive a oportunidade de falar no FCL de lá. O que proponho hoje, e será rápido, é um pequeno avanço: o sintoma entre Marx e Lacan. Em 1844, época em que Marx estabelece as bases filosóficas para toda sua obra, a verdade em questão é a do sistema capitalista que Proudhon julgava estar se socializando cada vez mais. É no questionamento dessa hipótese de Proudhon que encontramos talvez a mais evidente acepção do emprego do termo sintoma, por Marx, na maneira como Lacan o marca. Retomemos toda a passagem em Marx: A diminuição do interesse no dinheiro, o que Proudhon considera como a anulação do capital e como uma tendência para socializar o capital é, por essa razão, de fato somente um sintoma da vitória total do capital de giro sobre o desperdício da riqueza, isto é, da transformação de toda propriedade privada em capital industrial. É a vitória total da propriedade privada sobre todas as qualidades que ainda são aparentemente humanas, e a total sujeição do dono da propriedade privada à essência da propriedade privada – o trabalho. Certamente, o capitalista industrial também goza. De forma alguma ele retorna para a simplicidade da necessidade que não é natural; mas seu gozo é somente um assunto lateral – recreação – submetido à produção; ao mesmo tempo, é calculado e, por isso, ele próprio, um gozo econômico. Pois ele o debita da conta das despesas, e o que for desperdiçado para seu gozo não pode exceder o que será substituído com o lucro da reprodução do capital. Por isso, o gozo é subsumido ao capital, e o indivíduo que 10 goza é subsumido ao indivíduo que acumula capital. Antes, a situação era o contrário [o indivíduo que acumulava capital o fazia para gozar com ele, provocando o desperdício da riqueza]. A diminuição da taxa de juros [que Proudhon via como uma diminuição do interesse do dinheiro] é, portanto, um sintoma da anulação do capital apenas na medida em que é um sintoma da crescente dominação do capital – da alienação crescente [...]. Aliás, esta é a única maneira de o que existe afirmar seu oposto (Marx, 1844, tradução e grifos meus). Não somos economistas para desenvolver todo esse raciocínio na articulação com as vicissitudes do capitalismo depois de 1844. Efetivamente, no campo da economia, tais observações de Marx devem ter tido novas contribuições com as guinadas – para retomar uma expressão que usávamos no sábado, a partir das observações de Colette Soler sobre o passe – do capitalismo no século XX. Mas o que me interessa aqui é verificar, na formulação mesma do termo em Marx, as razões que levaram Lacan a identificar, tantas vezes, a origem do conceitode sintoma, em psicanálise, em Marx, o que ocorre desde as primeiras observações sobre o sintoma em Lacan até as últimas, ou seja, no contexto do Seminário O Sinthoma, entre 1975-‐6. Se nas primeiras observações então a questão parece articular o sintoma com a verdade – razão de o sintoma em Freud ser o sintoma em Marx, como vimos em São Paulo –, por que Lacan se interessa em artiular o sintoma, do jeito que a psicanálise o conceituaria, no Seminário O Sinthoma, com o conceito inventado por Marx? 11 Retomemos com vagar a passagem lida, os comentários de Marx sobre as teses de Feuerbach: 1) “A diminuição do interesse no dinheiro, o que Proudhon considera como a anulação do capital e como uma tendência para socializar o capital é, por essa razão, de fato somente um sintoma da vitória total do capital de giro sobre o desperdício da riqueza, isto é, da transformação de toda propriedade privada em capital industrial”. Inicialmente, o sintoma é sinal de que o capital de giro venceu o desperdício da riqueza e, portanto, não corrobora a observação de Proudhon, de que a diminuição do interesse no dinheiro seria sinal de que o socialismo estaria chegando... Ao contrário, diz Marx: em detrimento da propriedade privada que deixa de ser privilegiada, surge o capital industrial, visando, na realidade, uma sempre maior circulação da riqueza, em que o próprio capital é produtor de mais capital. 2) “É a vitória total da propriedade privada sobre todas as qualidades que ainda são aparentemente humanas, e a total sujeição do dono da propriedade privada à essência da propriedade privada – o trabalho”. O capital que produz mais capital submete o dono da propriedade privada ao trabalho pois, para produzir é preciso trabalhar. Colocar o capital a trabalho. Ao mesmo tempo, Marx já denuncia aqui o fim do humanismo, pois o homem é agora submetido ao capital que o faz trabalhar para este mesmo capital. Se até então ainda havia uma ideia de fazê-‐lo para o homem, agora fica claro – já que essa ideia era somente uma noção que vinha das aparências porque, em essência, a propriedade privada privilegiada até então, era somente sustentada pelo trabalho, seu capital – que, na realidade, é pelo capital que o homem trabalha. E isso independente de esse homem ser o proprietário ou o operário, como se vê na frase seguinte: 12 3) “Certamente, o capitalista industrial também goza”. Frase um pouco estranha. Como assim: “também”? Só posso entender essa frase quando eu entender que o próprio gozo é esse capital que já estava lá apesar de velado pelas “qualidades aparentemente humanas”. 4) Não é porque no capitalismo industrial há uma diminuição do interesse no dinheiro que esse capitalista estaria retornando para “a simplicidade da necessidade” que, aliás, de natural não tem nada, observa Marx de quebra. 5) “mas seu gozo é somente um assunto lateral – recreação – submetido à produção; ao mesmo tempo, é calculado e, por isso, ele próprio, um gozo econômico. Pois ele o debita da conta das despesas, e o que for desperdiçado para seu gozo não pode exceder o que será substituído com o lucro da reprodução do capital. Por isso, o gozo é subsumido ao capital [...]”. A economia de gozo, no argumento de Marx, se mostra aqui mais uma vez como capital pois é ele mesmo calculado, como o é o capital que já não pode ser desperdiçado. Por outro lado, o mecanismo obsessivo aqui denunciado: tanto gozo para tanta possibilidade de substituição com o lucro da reprodução do capital, denuncia o quanto esse homem, anula seu desejo. 6) Novo mal-‐estar na civilização: em mal de desejo, desejo do qual o sujeito já não pode usufruir, gozar, “o indivíduo que goza é subsumido ao indivíduo que acumula capital. Antes, a situação era o contrário” [o indivíduo que acumulava capital o fazia para gozar com ele, provocando o desperdício da riqueza], pagando o preço para desejar. 7) E então, o grand finale de Marx: ao contrário do que previa Proudhon, “A diminuição da taxa de juros” (que Proudhon via como uma diminuição do interesse do dinheiro) serve a provocar maior capital de giro e “é, portanto, um 13 sintoma da anulação do capital apenas na medida em que é um sintoma da crescente dominação do capital”. Ainda aqui inicialmente, o sintoma é sinal, mas não só. Ele também amarra o imaginário do que havia de aparentemente humano, o simbólico que se contabiliza, com o real do incomensurável que é o trabalho que nessa operação sempre se perde enquanto mais valia, na 8) “alienação crescente” pois o próprio gozo que se perde, que se aliena, é ele mesmo o capital a incrementar a produção, gozo a mais ou mais de gozar. 9) “Aliás, esta é a única maneira de o que existe afirmar seu oposto”. Se é “sintoma da anulação do capital apenas na medida em que é um sintoma da crescente dominação do capital” é porque de um lado presentifica o que não se goza – e que podemos aqui associar com o impossível da relação sexual,de outro lado, com o gozo a mais, produzido a partir daquela perda: o Sinthoma e o real. Sinthoma, portanto, com “th”, reforçando a amarração entre real, simbólico e imaginário ali onde o homem está em mal de desejo. MARX, K. (1844) Human Requirements and Division of Labour. Under the Rule of Private Property. In Economic and Philosophical Manuscripts of 1844. Consultado no site: http://www.marxists.org/archive/marx/works/1844/manuscripts/needs.htm (1845) Thesen über Feuerbach in Marx-‐Engels Werke 3, 534. Consultadas no site: http://www.mlwerke.de/me/me03/me03_005.htm 14 Alíngua Histérica Jairo Gerbase1 Sob o título de alíngua histérica, escrita com uma só palavra como propõe Lacan, gostaria de justificar nossa hipótese de trabalho segundo a qual, o campo das neuroses, campo do inconsciente real, é uma espécie de território onde domina uma língua oficial – alíngua histérica – da qual as outras formas de sintoma, especialmente a forma do sintoma obsessivo, correspondem a um dialeto. Alíngua histérica e dialeto obsessivo Na introdução do caso do “homem dos ratos” [Notas sobre um caso de neurose obsessiva (1909) v. X] Freud afirma que “A linguagem de uma neurose obsessiva, ou seja, os meios pelos quais ela expressa seus pensamentos secretos, presume-se ser apenas um dialeto da linguagem da histeria; é, porém, um dialeto no qual teríamos de poder orientar-nos a seu 1 AME, Membro da Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campos do Fórum Lacaniano – Brasil. Membro do Fórum Salvador 15 respeito com mais facilidade de vez que se refere com mais proximidade às formas de expressão adotadas pelo nosso pensamento consciente do que a linguagem da histeria. Sobretudo, não implica o salto de um processo mental a uma inervação somática — conversão histérica — que jamais nos pode ser totalmente compreensível”. Esta relação entre alíngua e dialeto pode ser estendida às demais formas da neurose inclusive à paranoia se tomarmos por referência o caso de Cecília [Caso 5 - Srta. Elisabeth Von R. (Freud) v.II] no qual ele afirma que “... a histeria tem razão em restaurar o significado original das palavras ao retratar suas inervações inusitadamente fortes. Com efeito, talvez seja errado dizer que a histeria cria essas sensações através da simbolização. É possível que ela não tome em absoluto o uso da língua como seu modelo, mas que tanto a histeria quanto o uso da língua extraiam seu material de uma fonte comum...” Quer dizer que não apenas a histeria, a obsessão, a fobia e a paranoia, mas a própria língua faz uso da alíngua, ou como diria Lacan o objeto da lingüística não é a língua, mas alíngua. Se me for objetado que Freud também destacou acima que o pensamento obsessivo é mais próximo do pensamento consciente, ou que Lacan denominou a neurose obsessiva de o 16 princípio da consciência [L‘insu-que-sait de l‘une-bévue s’aile à mourre, 17/5/1977, Rumo a um significante novo – IV – Um significante novo] mesmo que me agrade a ideia de elevar a obsessão à categoria de uma neurose exemplar, refutaria que ainda assim não faz discurso: não dizemos, a rigor, discurso obsessivo. Uma terceira referência a propósito da dominância da alíngua histérica sobre o dialeto das demais formas de sintoma pode ser encontrada na fórmula 9 do artigo [Fantasias histéricas e sua relação com a bissexualidade (1908) v.VIII] “(9) Os sintomas histéricos são a expressão, por um lado, de uma fantasia sexual inconsciente masculina e, por outro lado, de uma feminina”. Trato esta fórmula como um teorema e faço sua demonstração traduzindo fantasia sexual inconsciente masculina, primeiramente por significação fálica e, em seguida por gozo fálico [J�], posto que o gozo fálico é aquele que toma por referente (ou significação - Bedeutung) o falo; por outro lado, traduzo a fantasia sexual inconsciente feminina por significação tórica e, em seguida, por gozo do Outro [J�], posto que o gozo do Outro é aquele que toma por referente o furo e que se pode mostrar seja através do símbolo do conjunto vazio [�] ou da Impossibilidade da Relação Sexual [IRS]ou ainda do objeto a. Freud termina este artigo afirmando que “No tratamento psicanalítico é extremamente importante estar preparado para encontrar sintomas com significado bissexual. Assim não ficaremos surpresos ou confusos se um sintoma parece não diminuir, embora já tenhamos resolvido um dos seus significados sexuais, pois ele ainda é mantido por um, talvez insuspeito, que pertence ao sexo oposto. No tratamento de tais casos, além disso, podemos observar como o paciente se utiliza, durante a análise de um dos significados sexuais, da 17 conveniente possibilidade de constantemente passar suas associações para o campo do significado oposto, tal como para uma trilha paralela”. O significado bissexual do sintoma histérico, que nesta fórmula é indicado como sintoma completo, como trabalho acabado, donde seu valor de alíngua oficial, devemos traduzir por significado asexual, posto que sabemos que a outra parte da sexualidade não pode se escrever, não havendo por isto relação. Quarta referência, desta vez em L´Étourdit, de Lacan, publicado no thesaurus: lalíngua [Lalíngua nos seminários, conferências e escritos de Jacques Lacan, organizado por Dominique Fingermann e Conrado Ramos e publicado em Stylus 19, OE 492] “... Esse dizer provém apenas do fato de que o inconsciente por ser ‘estruturado como uma linguagem’, isto é, como alíngua que ele habita, está sujeito à equivocidade pela qual cada uma delas se distingue. Uma língua entre outras não é nada além da integral dos equívocos que sua história deixou persistirem nela. É a veia em que o real – o único, para o discurso analítico, a motivar seu resultado, o real de que não existe relação sexual - se depositou ao longo das eras...” Citação que nos autoriza a atualizar o inconsciente estruturado como uma linguagem em o inconsciente real estruturado como alíngua. Prefiro traduzir lalangue por alíngua que por lalíngua porque apesar da segunda evocar a lalação não permite o equívoco que a primeira conserva. A objeção de que o inconsciente é estruturado como uma linguagem e de que a alíngua não é uma estrutura deve-se responder afirmando que o inconsciente real estruturado como alíngua corresponde a ideia do inconsciente como aluvião dos mal-entendidos da língua. 18 O discurso histérico Passemos ao discurso histérico que escrevemos desse modo e que podemos ler de várias maneiras. Vamos ler esse matema tal como Lacan o leu no texto sobre o sentido [Introdução è edição alemã de um 1º volume dos Escritos, OE 550]. Existe uma clínica. Ela é inclusive anterior ao discurso analítico, e se o discurso analítico lhe trouxe alguma luz, isso ainda é preciso ser demonstrado. A clínica é mais antiga. O que é uma clínica? Não podemos dizer só há uma estrutura clínica, a estrutura de linguagem, a estrutura significante, que escrevemos [S( )], porque isso não é uma clínica. A clínica psicanalítica é o que se diz em uma psicanálise. Mesmo se deduzo da afirmação, da Bejahung e da não-afirmação, da Verwerfung, da primeira afirmação e da primeira não-afirmação, nesse nível ainda não há uma clínica,porque 19 estamos no nível da gênese do julgamento, e nesse nível ou admito ou expulso, nesse nível que deduzo da estrutura de linguagem e que chamo de estrutura do sintoma. Creio que é por esta razão que Lacan afirma que existe uma clínica no nível das formas do sintoma. Uma clínica depende das formas de sintoma. É preciso que o sintoma tome forma, configuração, para que se possa dizer: existe uma clínica. É necessário que o sintoma tome a forma que convém à estrutura do sintoma para que possamos falar de clínica. Portanto, a clínica é das formas do sintoma, das formas neuróticas do sintoma, que podemos escrever como [Σn] e que sabemos que resultam da estrutura do recalque, ou das formas que podemos escrever como [Σp], do sintoma psicótico, que é outra forma do sintoma e que depende da estrutura da foraclusão ou da holófrase. A holófrase precede a frase. É uma coalescência dos �� da frase que suprime o intervalo ��� próprio da neurose, que também se pode escrever como ��� e funciona como 20 Um que vai da debilidade à psicose. Alíngua é uma holófrase. É um jouis-signes distinto da mensagem articulada. Um é do simbólico o outro é do real. Um é pré-verbal o outro é pré- linguagem.1 Podemos partir de [S( )] e deduzir daí o discurso histérico; isso torna possíveis as formas histérica, obsessiva e fóbica do sintoma. Em um esquema como esse, temos, num primeiro nível, a estrutura da linguagem, do significante e, num segundo nível, a estrutura do sintoma, que é, por exemplo, o discurso histérico. Hoje vou dizer que o discurso histérico é a estrutura do sintoma por excelência, dado que esse discurso operou do lado da afirmação primordial, operou negando essa afirmação de modo veemente, afirmando: tenho horror de saber disso, que é o que se chama de mecanismo do recalque e que permite constituir a estrutura do sintoma que atinge um discurso, o discurso histérico, do qual podemos deduzir diversas formas de sintoma. De acordo com essa concepção, a obsessão e a fobia deveriam ser consideradas como formas do discurso histérico, ou tipos de sintoma que resultam da estrutura do recalque. Dessa maneira gostaria de elevar o discurso histérico à estrutura de todo sintoma ou, pelo menos, à estrutura de todo sintoma neurótico e fazer da obsessão e da fobia formas do sintoma histérico. 1 SOLER, C. O corpo falante. Caderno de Stylus, p.27. 21 Dizer que o sintoma obsessivo é uma forma do discurso histérico é, no léxico de Freud, dizer que a obsessão é um dialeto da histeria, ou que é uma forma inacabada do sintoma. Poderíamos usar o léxico de Joyce e dizer que o sintoma obsessivo é um “Work in progress”, um sintoma em construção, um trabalho em andamento. O sintoma fóbico é também um “Work in progress”, dado que não sabemos se ele vai se concluir em um sintoma histérico, em um sintoma obsessivo, ou se vai permanecer, todavia como um sintoma fóbico. Podemos estender este argumento ao extremo para poder dizer que inclusive a paranoia uma vez colocada no dispositivo analítico, isto é, uma vez operada a partir do discurso do analista deve ser hystorizada ou histerizada a fim de se tornar sintoma analítico. Isto parece contrariar o conceito de estrutura clínica, a ideia de que as estruturas clínicas não são intercambiáveis. Porém, atenção: não disse que a histeria pode virar paranoia, nem mesmo disse que a paranoia pode virar histeria, disse que o paranoico pode historizar seu 22 discurso posto que a paranoia é igualmente um fato de discurso. O paranoico continuará paranoico, porém com um discurso histerizado, historizado. Isto, certamente implicará em uma estabilização. Talvez possamos tomar como exemplo de sintoma em construção o caso do Índio. Trata-se de uma “personalidade” anancástica. Um estudante de Engenharia ambiental que se preocupa desde já em proteger o ambiente, por exemplo, reaproveitamento da água suja para a descarga. Suas máximas: o homem destrói o ambiente; o sol vai esfriar; o índio já era artista muito antes de Tarzan... Com quatro anos de idade perguntou à sua mãe: e quando a água do mundo acabar? Ela respondeu: não vai acabar. Ele replicou: como não vai acabar se todo mundo usa a água? Desenvolveu uma inibição escopofílica [fobia social] que lhe impôs um atraso escolar considerável, uma procrastinação. Para me explicar diz que era uma criança tão hiperativa que certa vez seu pai foi à escola lhe obrigar a pedir desculpas à professora e aos 23 colegas; morreu de vergonha. Seu pai gostava de lhe expor ao ridículo: vestir-lhe de palhaço com a cara lambuzada em festas juninas; em um carnaval lhe vestiu uma fantasia de índio, sem roupas, sob o argumento irônico de que: índio anda nu. De modo que acredito que esta fixão de gozo determinou tanto seu sintoma como sua escolha vocacional. 24 Algumas observações sobre o núcleo real do sinthoma e a experiência do gozo Outro Elisabeth da Rocha Miranda1 O sintoma é, para Freud, uma solução de compromisso (Kompromissbildung) entre o desejo inconsciente e as exigências defensivas do eu. É um sinal e o substituto de uma satisfação pulsional que não pode alcançar seu alvo de forma direta. É uma mensagem cifrada que pede interpretação. Para Lacan, o sintoma endereçado ao Outro ganha uma significação. A “dialética do senhor e do escravo” elaborada por Hegel foi uma referência quando em 1953 no texto “Função e campo da palavra e da linguagem” Lacan nos dá uma primeira leitura da questão do sintoma. A partir de 1958, no texto “A direção do tratamento e os princípios de seu poder” (Lacan,1958) ele concebe o inconsciente como tendo “a estrutura radical da linguagem” (Lacan, 1958: 600). A linguagem, segundo Saussure, é plena de diferenças e a sincronia significante inscrita no lugar do Outro, longe de ser uma plenitude compacta, contém rupturas. Na seqüência sincrônica da linguagem abre-se uma hiância que se revela na clínica e pode ser formalizada graças à teoria lacaniana do Outro do significante. A incompletude do Outro é um fato de estrutura, o que faz Lacan defini-lo como lugar da fala, “lugar da falta” (Lacan, 1958: 633). O recurso do sujeito para lidar com essa falta é o apelo ao significante Nome-do-Pai concebido como o significante do Outro da lei inserido no Outro do significante. A significação fálica, produzida retroativamente, está regida pela função paterna, que se 1 AME, Membro da Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano -‐ Brasil, membro do Fórum Rio de Janeiro 25 inscreve no seio do Outro, em A. O sintoma se apresenta, neste momento, como metáfora significante e se constitui em decorrência da inscrição do significante Nome-do-Pai. No entanto, a estrutura do sintoma não se limita à estrutura da metáfora, já que o sintoma não se resolve de todo em uma análise da linguagem. O sintoma está enraizado em algo de uma natureza distinta do significante, o que se comprova com a teoria das pulsões. A compulsão à repetição e o gozo participam da estruturação do sintoma tanto quanto a metáfora significante surgida do discurso do Outro. A lógica da enunciação não pode encontrar no campo do significante seu própriofundamento. Não há Outro do Outro, visto que todo enunciado de autoridade possui como única garantia sua própria enunciação. Nenhuma metalinguagem pode articular a verdade última do desejo. Há um significante que marca que ao Outro falta, constituindo-o por uma falha e que se escreve com o matema . A ordem simbólica está articulada em torno de um furo, o que nos permite considerar como o matema do Nome-do-Pai. Ainda que tenha sido introduzido para sublinhar a mortificação do pai freudiano pelo significante, o Nome-do-Pai encontra-se inserido de saída no campo da linguagem. A incompletude do Outro impede que consideremos o pai simbólico como o significante mestre (S1). Lacan destaca que o pai da horda primitiva, cujo desaparecimento instaura a lei, não transmite nenhuma mensagem, de tal maneira que sua função se iguala a um significante sem significação. A referência a sua morte vai a favor do Outro marcado por uma hiância. “O cadáver é um significante, mas o túmulo de Moisés está tão vazio para Freud quanto o de Cristo para Hegel. Abraão a nenhum dos dois revelou seu mistério” (Lacan, 1960: 833) diz Lacan em 1960. Na única aula do 26 seminário “Os nomes do pai”, Lacan (1963) diz que o sacrifício exigido por Deus a Abraão nos faz entender que a herança do pai freudiano reside no complexo de castração. A descoberta freudiana e a lógica matemática levaram Lacan a formular a tese de que o significante Nome-do-Pai determina e ordena a cadeia significante, regulando o gozo inerente a ela, gozo limitado pela renúncia ao objeto primordial de gozo. Essa tese se afirma com as fórmulas da sexuação e com o tardio desenvolvimento da cadeia borromeana no ensino de Lacan. A necessidade de recorrer a essa noção se impõe devido à inexistência da relação sexual. Uma amarração das três instâncias R.S.I. constitui a topologia mínima capaz de captar a estrutura do sujeito e construir a realidade para o ser falante. A topologia dos nós baseia-se na idéia do furo, já que o desejo só se sustenta em uma falta (Lacan, lição de 15 de abril de 1975). “A cadeia borromeana é um triplo furo” (Lacan, 1975: 267) que delimita o quarto furo onde se aloja o objeto a. Esses furos se presentificam de maneiras diversas em cada um dos três registros; no registro do simbólico, ele aparece como a hiância fundamental, como a incompletude do Outro, como já dissemos, não há Outro do Outro, ao Outro falta, ele é barrado em relação ao todo; no registro do imaginário (Lacan, lição de 11 de março de 1975 e de 10 de dezembro de 1974), para além do que a imagem do corpo tenta elidir, o furo se faz através da negativização do falo (–phi); no registro do real, temos a hiância posta às claras pela não relação sexual, que marca a impossível completude do ser sexuado. Em 1975, Lacan faz uma equivalência entre o Nome-do-Pai e a cadeia borromeana. Esta, como já dissemos, é composta de três registros, RSI, que por si só não dão ao humano a 27 estrutura necessária para que ele aceda ao falasser (parlêtre) e como tal poder utilizar-se do discurso como recurso à falta-ser. É necessário o quarto nó que amarre os três e esse quarto nó é o Nome-do-Pai, que nesta ocasião Lacan faz equivaler ao sinthome. Temos então o objeto a enquanto puro vazio, marca da castração, da falta radical constitutiva do sujeito alojado no quarto furo delimitado pelo RSI. Neste mesmo lugar Lacan situa o sinthome e o Nome-do- Pai. O sinthome escrito assim em uma nova grafia tomada do francês antigo é utilizado por Lacan para designar o conceito de sinthoma como quarto nó correlativo ao Nome-do-Pai. Para forjar este novo conceito diz Lacan, foi “preciso reduzir o sinthoma em um grau para considerar que ele era homogêneo à elucubração do inconsciente” (Lacan, 1976: 134). O conceito anterior era o de uma metáfora estanque, cujo sentido era possível de se extrair; a partir da indicação de 1976, temos um irredutível no sinthoma que se mantém no campo do Real, estabelecendo “uma coerência entre o sinthoma e o inconsciente [...]. Elemento necessário da estrutura o sinthoma é ancorado em um gozo vinculado ao da fantasia fundamental. Algo do sinthoma escapa ao sentido de tal maneira que no final de uma análise resta-nos apenas “saber fazer com seu sintoma” (Lacan, lição de 16 de novembro de 1976). Se existe um núcleo incurável, resta-nos assumi-lo, o que produz uma modificação do sujeito na relação com seu próprio gozo. O sinthoma é o real que se faz presente no simbólico, é a existência de uma marca do inconsciente transportada ao simbólico, ele é “é o que as pessoas têm de mais real” diz Lacan (Lacan, 1975: 41), é a comprovação de que há inconsciente, é o que testemunha que o 28 inconsciente mordeu o real. Logo, pode-se falar de sinthoma quando há uma marca de inconsciente do sujeito que se enodou com algo do real de seu gozo. O sujeito não é só relativo ao significante, o que realmente lhe dá existência, está ligado ao real de seu gozo, ao real do sexo. Em Lacan, a posição sexuada, a identidade, tem essencialmente suas raízes no real e não na relatividade significante e é, finalmente, a alteridade feminina que põe sobre o tapete o laço do sexo com o real. No entanto, o problema do neurótico não é que o Outro do Outro não exista, mas o que existe no lugar da inexistência do Outro como real. O sujeito tem que lidar com o que existe como alteridade. Confrontar-se com a alteridade é confrontar-se com a questão do que existe aí onde o Outro está barrado , é confrontar-se com a ex-sistência. É na barra colocada sobre o Outro, nesta falta, nesta falha que se articula o lugar do gozo. O gozo fálico é limitado pelo Um da exceção enquanto que o é o lugar no qual Lacan situa o gozo feminino, outro que fálico, e que está em relação ao lado não-todo, em relação a não existência do Um da exceção que seria a mulher se ela existisse, logo lugar da ex-sistência. O gozo do Outro barrado conforme Lacan o apresenta em 16 de dezembro de 1975 não é o gozo do Outro do significante, nem o Outro como corpo, mas Outro real, quer dizer impossível, é o furo abissal e impossível que existe no lugar do Outro do Outro que não existe. É o verdadeiro furo da estrutura. O sinthoma é uma resposta à possibilidade sempre presente dos três registros R.S.I. se confundirem. Resposta que se faz através do ser sexuado, pois o gozo referido ao objeto a enquanto perda exclui a diferença sexual. O ser sexuado se faz através do gozo implicado na 29 fantasia fundamental e se articula ao núcleo real do sinthoma, ao gozo do sinthoma. É no lugar de J(A barrado) que Lacan inscreve o artifício do sinthoma como quarto elemento da estrutura, necessário à subjetivação, por impedir que os outros três se confundam. O final de uma análise freudiana é o rochedo da castração, a inveja do pênis Penisneid para as mulheres e o protesto viril para os homens, mas para uma análise lacaniana que vai além do falo, a castração se verifica no como significante do gozo feminino, que se trata de dissociar do objeto pequeno a da fantasia. A partir daí podemos fazer uma diferença entre o gozo do sinthoma histérico, que é o gozo da privação do phallus e o gozo Outro que Lacan em O Seminário, livro: 20 Mais ainda...faz corresponder ao gozo de Deus, como a outra face de Deus. O gozo de Deus genitivo subjetivo tem a face do Nome-do-Pai e outra face que é o gozo feminino que demanda ainda e sempre amor. A demanda de amor parte do Deus barrado e a hiância que marca o abismo que o Outro representa, faz com que a demanda de amor jamais seja satisfeita. A noção de gozo de Deus é introduzida por Lacan na falha dono borromeo. Chegar a decantar seu sintoma, chegar ao núcleo real do sintoma é uma possibilidade de se produzir um irreal, queé o objeto pequeno a no fim da análise. Em 1969 Lacan no relatório do Seminário, livro15 O ato analítico diz que: é “a partir da estrutura de ficção pela qual se enuncia a verdade que ele –o sujeito- fará de seu próprio ser, estofo para a produção de um irreal” (Lacan, 1969, p.372). Irreal que remete ao vazio de ser e à estrutura de ficção. Final em que o sujeito chega a tocar a estrutura, cuja chave é o gozo do Outro barrado J(A 30 barrado), hiância que conforme Lacan em O Seminário livro 23 o sinthoma se abre entre imaginário e o real. Decantar o sinthoma até as últimas conseqüências é poder verificar que há algo do qual nós não podemos gozar e que imputamos à Deus, e neste lugar não há nada de nada. Se para o neurótico o sinthoma é uma rede que o aprisiona na compulsão à repetição, no final de uma análise pode-se experimentar um silêncio inominável que liberta e apazigua. Fica então a questão a ser comprovada clinicamente da possibilidade contingencial de ao final de análise, ao chegar ao significante da falta no Outro se ter a experiência do gozo Outro feminino, na medida em que também é aí em que Lacan o situa. Pode-se experimentar o gozo Outro feminino, sempre que se ocupa a posição feminina e se cai no vazio de e uma das possibilidades de se experimentar aí é no momento do final de uma análise. Bibliografia 31 LACAN,J. (1953) Função e campo da palavra e da linguagem em psicanálise” In Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998. ———— (1957-1958). “De uma questão preliminar a todo tratamento possível das psicoses”. In Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998. ------------ (1958). “A direção do tratamento e os princípios de seu poder”. In Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998. -------------(1958) “Die Bedeutung des Phallus” In Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998. ————. (1960). Subversão do sujeito e dialética do desejo no inconsciente freudiano. In Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998. -------------(1963) O Seminário Os nomes do Pai Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005. ————. (1969). Seminário De um Outro ao outro. Inédito. ————. (1973-1974). Seminário: Les non-dupes errent. Inédito. ————. (1974-1975). Seminário: RSI (1974). Inédito. ————. (1975). Conférences et entretiens dans des universités nord-americaines. In Scilicet 6/7. Paris: Seuil, 1976. ————. (1972-1973). O seminário, livro 20, Mais, ainda. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985. 32 ————. (1975-1976). O seminário, livro 23, O sinthoma. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2007. “Dar na pinta”: Parecer mulher com corpo de homem Georgina Cerquise1 No tempo inaugural da psicanálise, um dos critérios para estabelecer-‐se o diagnóstico de histeria era o sintoma conversivo. Freud ampliou o campo das descobertas e teorizou, em (1893-‐1895), que diferentes fatores sexuais produzem diferentes quadros de desordens neuróticas. Em 1905, o conflito psíquico-‐inconsciente passa a ser a principal causa da histeria, ao introduzir-‐se a realidade psíquica como um aporte que favorecia o entendimento da sintomatologia da doença. A conversão começa, então, a ser entendida como uma tentativa de realização do desejo. Freud avança em sua tese quando pesquisa a sexualidade infantil, postulando que tanto a impossibilidade de o sujeito liquidar o complexo de Édipo quanto a tentativa de evitar deparar com a castração têm conseqüências: levam o sujeito a uma rejeição da sexualidade, conduzindo-‐o à neurose histérica. Caso Clínico: A mãe de um jovem de dezoito anos, em entrevista, pede para que seu filho seja atendido, alegando uma necessidade de ajuda. Esclarece que ele escolheu o pior caminho, pois assumiu a homossexualidade. Acrescenta que ela tivera problemas no parto e que isso ocasionou muitas dificuldades no desenvolvimento do filho. No período escolar, custou para ser alfabetizado e “sempre teve a pecha de retardado, esquisito, inconveniente e exibido”. Ainda não conseguiu concluir o primeiro grau, apesar dos esforços da mãe para colocá-‐lo em escolas especiais. No momento do 1 Membro da Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano – Brasil. Membro do Fórum Rio de janeiro 33 encaminhamento, estava cursando a sexta série do primeiro grau, numa escola municipal. A mãe revela que ficou doente durante anos, com uma depressão que lhe jogava na cama, não tendo cuidado direito dos filhos. Diz também que o alcoolismo do marido derrubou-‐lhe e que não teve escolha: mandou-‐o embora. Ela interroga-‐se: “Será que isso que acontece com meu filho é falta de pai?” Para o sujeito histérico, há um reconhecimento da falha, da impotência do pai. Isso não quer dizer que ele deixe de ostentar os títulos simbólicos de pai, “mas, como um ex-‐combatente, tem os títulos, mas está fora de combate” (Kaufmann, 1998, p. 249). O jovem chega atrasado para a sessão, a primeira impressão choca, percebe-‐se um corpo de menino de 12 anos em um jovem de 18 anos, extremamente magro. Com voz de criança, olhar fugidio, afirma: “Não sei se você percebeu, mas eu sou um gay”. Revela que já havia feito a sua opção sexual, o que lhe trazia problemas em casa. Costumava freqüentar boate gay, casa de orgia, e que saia com qualquer um, além de “baixar também no Aterro do Flamengo”, embora isso fosse reprovado pelos amigos. O paciente explica: “Gosto de tudo escandaloso, gosto de dar na pinta; quando chego, eu arraso, não me incomodo que me chamem de bichinha quá-‐quá-‐quá”2. A teoria freudiana de 1888 postula que nos sintomas da histeria pode ser observada uma série de distúrbios psíquicos: alterações no cursoe na associação de idéias, exagero e supressão dos sentimentos. As manifestações histéricas têm uma característica marcante: são sempre exageradas. Percebe-‐se que o jovem tem um comportamento histriônico. Há, na sua fala, significantes expressivos que dão contorno de um possível diagnóstico de histeria: voraz, exagerado, escandaloso e, em especial, “dar na pinta” – expressão que para ele significa chocar e aparecer, no meio da boate, com roupas diferentes e danças sensuais, sem dar bola para ninguém. 2 Alcunha dada aos homossexuais que se exibem, que são escandalosos 34 Chamando atenção pelo ônibus com roupas extravagantes, o jovem atravessa a cidade em busca de boates e lugares onde há festas de gays, sem levar em conta a preocupação da mãe que lhe adverte sobre a violência da cidade. Mesmo assim, ele sai sem preocupar-‐se com nada. “Eu tenho de sair, não posso perder tempo, eu não penso em ficar velho, prefiro morrer a chegar aos trinta anos”. Segundo a postulação freudiana, “a histeria masculina tem a aparência de uma doença grave; os sintomas que ela produz quase sempre são rebeldes ao tratamento” (Freud, 1888, p. 95). Esclarece que sempre vai para o “quarto escuro3” da boate e transa com que estiver ali e que não costuma ficar com ninguém. “Eu não gosto de homem, eles não prestam, esses gays são homens também, isso é a pior raça: são competitivos, querem sempre derrubar o outro”. Curiosamente, revela: “Gosto mesmo é de mulher, elas são o máximo, eu procuro imitá-‐las, quero superá-‐las, mas sem cair no ridículo de amar sem ser amado. Percebe-‐se aqui o narcisismo e a identificação com as mulheres. Tal qual a jovem homossexual, ele apresenta uma amargura generalizada pelos homens. Com muita emoção, o paciente traz para a sessão um pai falho: “Não sei onde ele está, é um alcoólatra”. Rememora sua infância sofrida, com a mãe deprimida e o pai brigando dentro de casa. “Quando eles começavam, eu ia para a rua e fazia sacanagem com os meninos da vila. Era a alegria da meninada, porque já era um exagerado, tinha uma fila para transar comigo, depois eu sentia nojo e ficava muito triste”. No “caso Dora”, Freud pontua: “Eu, sem dúvida, consideraria histérica uma pessoa na qual uma ocasião para a excitação sexual despertasse sensações que fossem, preponderante ou exclusivamente, desagradáveis; eu o faria, fosse ou não a pessoa capaz de produzir sintomas somáticos” (Freud, 1905, p. 26). Na tentativa de esclarecer melhor os episódios, a analista pede-‐lhe que desdobre sua fala: “Será que sou assim por que meu pai não me olhava? Eu tentava chamar atenção dele, queria um pai como todos 3 “Quarto escuro” é o local de encontro em que os gays transam sexualmente. É costumeiro não haver reconhecimento do parceiro. Segundo a fala do paciente, esse local funciona como um “vale tudo”. 35 os meninos tinham. Ele era um homem bêbado, um pobre coitado, mas eu sempre defendi meu pai, eu gosto muito dele”. Lacan destaca o amor do histérico (masculino-‐feminino) pelo pai, apesar das falhas, acrescentando que o sujeito se coloca como aquele que vai amparar, vai tentar suprir a incapacidade paterna. O histérico engendra seu amor ao pai a partir do que este não lhe dá. Na teoria psicanalítica, a histeria articula-‐se, a partir do Édipo, com uma pergunta: Sou homem ou sou mulher? Vale ressaltar que isso está para os dois sexos. Após esse primeiro momento da análise, o paciente faltou às sessões por duas semanas. A analista recebe um telefonema da irmã que pede, aflita, para que a família seja atendida. Na sessão, comparecem a mãe, o paciente e sua irmã. A mãe, enlouquecida, diz que o paciente ficara doente, com erupções na pele, e que o médico lhe pedira um exame de HIV. Repreende o filho com dureza e chora copiosamente. O jovem está acabrunhado e, até mesmo, apavorado, mas tenta disfarçar a angústia: “Não estou nem aí, seu eu tiver com a “doce3“, melhor, eu não quero viver até os trinta anos, não suporto a idéia de envelhecer, de ficar com o corpo velho; por isso, aproveito tudo agora”. O resultado dá positivo, revelando a presença do vírus no rapaz e instalando o caos familiar. O paciente chega para a análise com o corpo coberto de erupções, pede uma cadeira de pouco uso: “Eu peguei sarna, não quero passar isso para seus pacientes”. Sem falar sobre o resultado do exame, diz que sua mãe está louca, que sua irmã é irresponsável porque não cuida dos filhos. A analista intervém e pergunta o que estava realmente acontecendo. Ele responde, aos gritos e histericamente, que não queria falar, mas que não podia esquecer e que sabia que iria morrer jovem. Frente a essa atuação, a analista pergunta-‐lhe diretamente sobre o resultado do exame. Ele chora, grita, revolta-‐ se e diz que o piorera não poder transar livremente: “Eu estou enterrado vivo. Como pode uma pessoa nova como eu ficar sem sexo?” 3 Gíria usada pelos gays para designar o vírus HIV. 36 Completamente transtornado frente aos limites impostos pelo médico, como defesa, não esboça nenhuma elaboração quanto à doença. Não quer saber de nada disso, preocupa-‐se em ser descoberto, em “dar pinta”, com o corpo, de que estava “pegado”4. “Eu não me preocupo em morrer, eu só não quero ficar como um coitado, eu prefiro morrer jovem a ficar velho”. Teríamos aqui o desdobramento da fantasia “envelhece-‐se uma criança, ou pinta-‐se uma criança”? O paciente prossegue: “Eu nunca achei que pegaria a doce, ninguém fala o que tem e vai passando para os outros” No desenrolar da análise, o jovem recupera-‐se do susto e segue retomando seus hábitos antigos. É fácil observar que ele não tem nenhum projeto, não pensa em trabalhar, o estudo é só uma fachada encobridora. Ele dorme de dia para sair na noite. Interrogado sobre os cuidados que deve ter para evitar a contaminação, responde evasivamente e troca de assunto. Frente a isso, a analista, como diretriz, chama a mãe para entrevista. A mãe revela: “Vivo no inferno, meu filho está com HIV, não consegue estudar, não faz nada, só pensa em futilidades. Continua arriscando-‐se pela noite, sai sem dinheiro, com roupas estranhíssimas, que podem provocar a agressão dos outros”. Essas roupas são peças femininas em um vestuário masculino, do tipo: calça jeans masculina, bordada com paetês e brilhos; blusa cor de rosa; botina do Exército; anéis de caveira com pulseiras de miçangas; gargantilhas; cinturão masculino. Cabe aqui citar o Abade de Choisy5: “Quando alguns homens possuem ou crêem possuir traços belos, que podem inspirar amor, tratam de aumentá-‐los com seus adornos femininos. Sentem, então, um inexprimível prazer de ser amado” (Choisy, 1985, p. 13). O jovem revela que adora “se montar”6, e nas boates e festas, destaca-‐se com suas “peças” femininas; sempre que pode, dança e se exibe: “Todos pensam que eu me drogo, 4 Gíria referente a quem tem o vírus HIV. 5 Referência feita por Lacan, no artigo “A carta roubada” (In: Escritos, 1998), a respeito de um homem que se vestia de mulher para amar as donzelas que deviam estar vestidas de homem. 6 “Montar-‐se” significa vestir-‐se com adereços ou roupas femininas. 37 mas não tem nada a ver. Eu só bebo água, porque estou sempre sem dinheiro, bem que gosto de um vinho. Agora, estou comprando pinturas e cílios postiços, vou me maquiar para sair na night”. O que você pretende? – indaga a analista. “Parecer uma mulher com um corpo de homem”. Lacan (1985[1955-‐56], p. 204) ressalta que: “nos sintomas histéricos, é sempre de uma anatomia imaginária que se trata”. Cabe aqui uma questão diagnóstica: No caso, estaríamos diante de um desmentido da castração ou do recalque? De uma neurose ou perversão? Lacan (1956-‐57, p. 121), ao citar a tese freudiana de que a perversão é o negativo da neurose, marca a diferença entre o mecanismo de um fenômeno perverso e a perversão categórica, chamando atenção de que o molde da perversão se forma a partir da valorização da imagem. “Você sabe, eu gosto de ser homem, mas não gosto de homem, eles não prestam. O único homem que eu amei foi meu pai, mesmo assim ele me abandonou, nunca se preocupou comigo. Talvez, se ele não tivesse ido embora, eu seria diferente”. Por quê? “Eu acho que não teria coragem de decepcioná-‐lo”. Em “A dissolução do complexo de Édipo”, Freud teoriza que há duas saídas para o complexo de Édipo: uma satisfação ativa, e outra passiva. Na primeira, a criança poderia colocar-‐se no lugar de seu pai, à maneira masculina, e ter relações com a mãe, tal como o pai, sendo que este ocuparia um lugar de estorvo. Na segunda, a criança poderia assumir o lugar da mãe e ser amada pelo pai. O paciente agora apresenta o projeto de trabalhar como cabeleireiro ou com moda: “Não sou uma bichinha doméstica, não suporto trabalho de casa. Também não consigo aprender nada na escola, mas tenho vergonha de dizer que ainda estou no primeiro grau”. O trabalho analítico é difícil porque o paciente falta às sessões, perde ou esquece a hora. Na clínica psicanalítica com adolescentes, o tratamento costuma ser cheio de impedimentos e resistências, visto que o jovem interpreta a análise como mais uma imposição dos pais. Apesar dos avatares, sempre é possível um trabalho se a transferência tiver sido estabelecida. Nesse caso, o jovem vai e vem, mas sempre retorna 38 do ponto onde começaram as faltas. Interroga a analista sobre seu saber e investiga sobre a “lembrança” de suas falas: “Não suporto ser esquecido, ainda bem que você não esquece o que eu digo”. O que é isso: ser esquecido/lembrado?“Você sabe, isso é uma dor horrível, meu pai esqueceu de mim, ele nem me conhece mais. Se eu passar por ele na rua, não vai me reconhecer mesmo”. A analista pede que o paciente desdobre sua fala e, chorando muito, diz: “Eu vestido de metade homem/metade mulher passo ao largo e ele pode me olhar, mas não vai me ver. Esse gay não é o filho dele, quando ele foi embora eu ainda era um menino, eu tinha 10 anos”. A exibição do jovem paciente faz lembrar o caso da “Jovem homossexual”, de Freud: junto com sua amada, tenta chamar a atenção do pai, exibindo-‐se nas ruas por onde costumava passar. A nostalgia do nosso paciente refere-‐se ao nada que ele ocupa no afeto do pai, ou seja, mesmo que passe pelas ruas fantasiado, chamando toda atenção, o pai não poderá reconhecê-‐lo como filho. Num segundo momento da análise, oferece-‐se para trabalhar como ajudante de cabeleireiro, mas é reprovado, não tem a escolaridade exigida, e os documentos necessários para empregar-‐se. Sofre um abalo com as recusas sociais e com as advertências do médico com relação a sua conduta: ele se coloca em risco de vida e pode ser mortífero para os outros. Esse tempo de análise foi de intensa angústia e desespero. Sem conseguir nada do que deseja e com muitas reclamações, revela uma fantasia: “Tenho vontade de trabalhar na night, dançando, fazendo show de “drag-‐queen”. Sempre que danço, eu abalo. Gosto muito de palco e, nas boates, fico bem no lugar onde posso aparecer. O jovem trabalha essa idéia e pede ajuda às suas amigas mulheres. Começa a busca por roupas e acessórios femininos que lhe possam favorecer nessa empreitada. A mãe nada sabe disso, visto que ele esconde as roupas. A mãe sempre pergunta e cobra o trabalho, o estudo e lembra que ele tem o vírus. Isso basta para que se desencadeiem brigas e agressões verbais ditas na janela para envergonhar a mãe e fazê-‐la parar de falar. 39 Nesse momento, a rebeldia se entrelaça com uma concretização do desejo, pois ele cava uma oportunidade de dublar uma música num concurso de certa boate gay. Escolhe, sozinho, uma música e resolve “montar-‐se” de “drag-‐queen”, planejando o show. Trata-‐se de uma competição em que o ganhador recebe um prêmio em dinheiro. Como treinamento, participa de uma parada gay “montado de mulher”. Escondido da mãe, tal qual Anna Ó, ele arma seu “teatro privado’’ durante o dia: ensaia frente ao espelho a dublagem de uma música em inglês, idioma que não domina, repetindo as palavras, sem distinguir seu significado. Há, porém, três significantes de que ele se apropria para estabelecer os gestuais da mímica: my eyes, my hair, my lips. O jovem, realmente, dá seu show. Frente às vicissitudes do desejo, ele tem uma estratégica histérica: no palco, correndo o risco máximo como todos os jovens costumam fazer, ele entra em cena com o nome artístico de “Ohana”. “En-‐cenando” seu número no começo da apresentação, ao sacudir seus cabelos postiços, a peruca cai em pleno palco, já que não foi devidamente presa para agüentar os gestos da dança e da mímica7. Ohana, em desespero, fica sobre o foco do refletor vestido de “drag”, sem a peruca e sem ação. Vaiado, ridicularizado, como um objeto que cai, como um nada, ele sai de cena e desmaia em pleno palco. “O nada e o olhar são aqui duas formas de referências ao objeto em que o sujeito, nesse momento, se fixa” (Alberti, 1995, p. 81). Como resposta a esse embaraço máximo, surge a angústia frente ao real impossível de simbolizar. O jovem, abalado, sem resistência, pega uma virose, mas seu organismo recupera-‐se e ele volta à análise. Impactado com os acontecimentos, faz um acting-out: pinta seus cabelos de rosa e tortura a mãe para que lhe dê dinheiro. Ameaçando jogar-‐se pela janela, aos gritos, quebra uma mesa e sai pela noite. Em análise, confessa: “Saí como uma pantera cor-‐de-‐ rosa só para chocar e dar pinta de gay maluco. “Não pense que esqueci a vergonha que passei no show”. 7 A estratégia histérica frente ao desejo é torná-‐lo insatisfeito. 40 Indagado sobre o que ele pretendia fazer frente ao fracasso, chora e grita: “Eu preciso trabalhar, achava que era um caminho fácil ser artista e me vestir de mulher. Agora, cai na real, tenho de inventar outra coisa”. Após os episódios, toma outra diretriz: pede ajuda às suas amigas-‐mulheres e aceita trabalhar numa feira de bairro. Corta couro, pinta cinturões e “chama a freguesia com sua pinta dando pinta”, distribuindo panfletos em praça, exibindo-‐se, mesmo com roupas de homem. Poderíamos pensar que a fantasia fundamental do paciente seria tal qual o ditado Bíblico: “Pai, por que me abandonastes?”. Para a analista, Ohana não engana: em praça pública, faz um apelo de reconhecimento ao pai. Talvez pudéssemos pensar que o jovem, neuroticamente, engendra com seu corpo uma defesa contra o aviltamento do pai. Segundo Lacan, “só nos detemos nas coisas
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