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Aspectos Culturais e Biopsicossociais do Envelhecimento 02 1. A Cultura como Análise dos Significados 4 A Significação Cultural da Velhice 5 2. Os Mitos e Preconceitos da Velhice 8 3. Cultura, Memória e Valorização da Experiência do Idoso 13 Sociedades Primitivas 14 Os Mitos e Rituais de Regeneração 15 Sociedades Capitalistas 17 4. Quem tem mais Medo de Envelhecer: O Homem ou a Mulher? 20 Envelhecer - Um desafio 25 Envelhecimento Social 26 5. Aspectos Psicológicos do Envelhecimento 29 Mudanças nas Funções Cognitivas 33 Aprendizagem 34 Funcionamento Intelectual 35 Criatividade 35 Linguagem 35 Outras Alterações 36 6. Referências Bibliográficas 42 03 4 ASPECTOS CULTURAIS E BIOPSICOSSOCIAIS DO ENVELHECIMENTO 1. A Cultura como Análise dos Significados Fonte: BBC1 azer uma análise antropológica da cultura é interpretar os di- versos significados simbólicos cria- dos pelos diferentes grupos huma- nos sobre vários temas. Neste traba- lho, os significados que se está que- rendo descobrir dizem respeito ao velho tema, velhice. O conceito de cultura que bus- ca avaliar os significados é essencial- mente semiótico e é definido pela perspectiva hermenêutica da Antro- pologia, que tem como um dos seus maiores representantes o antropó- logo Clifford Geertz. Esse autor pro- põe um conceito semiótico de cultu- ra, pois acredita “como Max Weber, 1 Retirado em https://www.bbc.com/portuguese/brasil-52425735 que o homem é um animal amarrado a teias e significados que ele mesmo teceu, assumindo a cultura como sendo essas teias e a sua análise; portanto, não como uma ciência ex- perimental em busca de leis, mas como uma ciência interpretativa à procura de significado”. A proposta de Geertz é que o antropólogo deve fazer uma etno- grafia e esta, por sua vez, implica a realização de uma descrição densa. Tudo isso, nos termos do próprio au- tor, revela o seguinte: “O ponto a en- focar agora é somente que a etnogra- fia é uma descrição densa. O que o etnógrafo enfrenta, de fato - a não F 5 ASPECTOS CULTURAIS E BIOPSICOSSOCIAIS DO ENVELHECIMENTO ser quando está seguindo as rotinas mais automatizadas de coletar da- dos - é uma multiplicidade de estru- turas conceituais complexas, muitas delas sobrepostas ou amarradas umas às outras, que são simultanea- mente estranhas, irregulares e inex- plícitas, e que ele tem que, de algu- ma forma, primeiro apreender e de- pois apresentar. E isto é verdade em todos os níveis de atividade no seu trabalho de campo, mesmo o mais rotineiro: entrevistar informantes, observar rituais, deduzir os termos de parentesco, traçar as linhas de propriedade, fazer o censo domésti- co, escrever seu diário. Fazer a etno- grafia é como tentar ler (no sentido de construir uma leitura de) um ma- nuscrito estranho, desbotado, cheio de elipses, incoerências, emendas suspeitas e comentários tendencio- sos, escritos ou não com os sinais convencionais do som, mas com exemplos transitórios do comporta- mento modelado”. Enfatiza Geertz, em outro mo- mento de seu texto: “A cultura con- siste em estruturas de significados socialmente estabelecidas, nos ter- mos das quais as pessoas fazem cer- tas coisas”. Resumindo o pensamento de Geertz, tem-se que a cultura não é um poder, alguma coisa à qual se possa atribuir os acontecimentos so- ciais, as instituições, os comporta- mentos ou processos. A cultura apresenta-se como sistemas entrela- çados de signos interpretáveis. A cultura é um contexto, no qual os acontecimentos, as instituições e os processos podem ser descritos de forma inteligível, isto é, descritos com densidade. A Significação Cultural da Velhice Na nossa sociedade, ser velho significa na maioria das vezes estar excluído de vários lugares sociais. Um desses lugares, densamente valori- zado, é aquele relativo ao sistema pro- dutivo, o mundo do trabalho. Estar alijado ao sistema produtivo quase que inteiramente define o “ser velho”. O alijamento do mundo produtivo - extremamente valorizado, na nossa cultura - espalha-se, criando barrei- ras impeditivas de participação do ve- lho nas outras tantas e diversas di- mensões da vida social. Assim, a partir da argumenta- ção precedente, uma primeira avalia- ção do significado de ser velho, na nossa cultura, deve, sem dúvida, levar em conta a análise do mundo econô- mico, do trabalho, das ideias de pro- dutividade/improdutividade e como esses mesmos elementos são simboli- camente constituídos para os sujeitos - velhos, não velhos, homens, mulhe- res, classes sociais, etc. - que vivem nesta sociedade. 6 ASPECTOS CULTURAIS E BIOPSICOSSOCIAIS DO ENVELHECIMENTO É importante apontar que uma ampliação do significado de produ- tor está sendo discutida e, cada vez mais, utilizada pelos profissionais, sejam os que diretamente trabalham com o segmento idoso, sejam aque- les que são responsáveis pelo dese- nho de uma política social para este mesmo segmento. Esta ampliação significa não mais somente medir a produtividade econômica e, conse- quentemente definir o produtor a partir desse único critério, mas alar- gar o significado de produtor na di- reção das outras esferas da vida so- cial, passando assim a classificar de modo a incluir o velho como “produ- tivo” e/ou “produtor social”. Outros significados aparecem ligados à ideia de velho quando se estuda identidade social desses su- jeitos. Com certeza, a análise da construção das identidades sociais é um campo vasto e rico de possibili- dades de desvendamento de signifi- cados criados pela nossa sociedade, ou setores da mesma, para explicar o que é, ou quem é velho. Na construção da identidade de velho evidencia-se a existência de um jogo de contrastes de identida- des sociais, que aponta para o con- junto das mesmas - identidades - formando um sistema e criando uma estratégia de diferenças. Partindo dessa concepção se tem clara a ideia de que a identidade do “eu” é cons- truída pela oposição à identidade do “outro”. Assim, na nossa sociedade, a identidade de idosos se constrói pela contraposição à identidade de jovem e, como consequência, se tem tam- bém a contraposição das qualidades: atividade, força, memória, beleza, potência e produtividade como ca- racterísticas típicas e geralmente imputadas aos jovens e as qualida- des opostas a estas últimas, presente nos idosos. Estes significados levantados sobre “velho” na nossa sociedade re- presentam uma pequena amostra de um número muito maior de outros significados elaborados a respeito dos sujeitos idosos. 8 ASPECTOS CULTURAIS E BIOPSICOSSOCIAIS DO ENVELHECIMENTO 2. Os Mitos e Preconceitos da Velhice Fonte: UOL2 s pessoas individualmente e a sociedade em geral olham o en- velhecer com muitas restrições e ideias preconcebidas, como se essa fase fosse um período tempestuoso e cinzento, de total decrepitude e até mesmo castigo. Veem a velhice co- mo sinônimo de senilidade. A ideia de envelhecimento é um processo pessoal, multidimensi- onal e multivariado. Diverge de pes- soa para pessoa, de grupo para gru- po e de época para época. 2 Retirado em https://www.uol.com.br/vivabem/stories/conheca-9-mitos-sobre-o-envelhecimento/ Na opinião dos estudiosos, não há “velhice” (teórica ou abstra- ta) e sim pessoas que envelhecem de modo essencialmente personalizado e original. É uma experiência única e diferenciada. Gaiarsa, no seu livro Como en- frentar a velhice, diz com muita ên- fase: “Ser velho, além de um fato, é um conjunto de convenções sociais da pior espécie. Não sei o que pesa mais sobre os velhos, se é a idadeou a ideia que fazem de si mesmos, mo- A 9 ASPECTOS CULTURAIS E BIOPSICOSSOCIAIS DO ENVELHECIMENTO vidos pelo modo como são tratados, levados pelas ideias tantas vezes vin- gativas que orientam o comporta- mento da maioria deles”. Podemos constatar o trata- mento que a sociedade dá aos seus velhos porque, sob esta ótica, é uma parcela da população marginalizada, fruto de muitos preconceitos incoe- rentes e inconsequentes. São falsas várias ideias lança- das sobre o velho, sempre salientan- do os aspectos negativos, decaden- tes, e não os aspectos positivos da sua personalidade, como: mais sabe- doria, mais discernimento, mais se- gurança, mais liberdade, mais gene- rosidade e mais experiência. São aspectos negativos eviden- ciados como as perdas, a decadência e a decrepitude. Isso como a esclero- se e a senilidade fossem inevitáveis. Sobre o velho, jogam-se mui- tos mitos: Mito da Inutilidade: “O velho não produz, logo pensam que deve ser eliminado da sociedade”. Num siste- ma capitalista e consumista, só tem valor quem produz e quem consome, gerando lucros. O velho é conside- rado improdutivo. Porém, não é ob- servado que a experiência e a visão ampla do velho podem quantificar a produção e acima de tudo qualificá- la. Não é só o jovem que produz e consome, o velho pode fazer outras atividades também produtivas e se tiver recursos também vai consumir, não apenas em remédios. Mito do Antiquado: Julgam o ve- lho inoportuno, superado, desatuali- zado, inadequado, quando não até ridículo, têm-no como sinônimo de “velharia descartável”. É evidente que a evolução in- dustrial e a tecnologia cresceram ra- pidamente e as gerações mais anti- gas não conseguiram acompanhar todo seu avanço. Porém, todo desen- volvimento aconteceu graças aos ex- perimentos empíricos ou pouco ci- entíficos por eles realizados. O ideal é unir a força, o dina- mismo e o vigor do jovem com a ex- periência e a prudência dos mais vi- vidos, resultando num melhor cami- nho para o progresso. Mito da Fealdade: As aparências e a beleza exterior são supervaloriza- das em nossa sociedade: “Tudo o que é novo e belo, tudo o que é velho e feio”. Isto é uma maneira simplista e superficial de encarar a vida. Até nos meios de comunicação social, na literatura, no teatro e mesmo no am- biente familiar e social o jovem é o galã, o mocinho, o bem-sucedido; restando para o velho a fealdade e o ridículo. A fada aparece sempre co- mo uma bela jovem e a dona bruxa é uma velha horrenda. Isso não é dis- criminação? Os meios de comunicação eventualmente divulgam e elogiam 10 ASPECTOS CULTURAIS E BIOPSICOSSOCIAIS DO ENVELHECIMENTO os movimentos, programas e ativi- dades para idosos, mas paradoxal- mente expõe o velho ao ridículo em novelas, programas humorísticos, charges, etc. Mito da Esclerose: Identificam o velho como alguém que perdeu a memória, o raciocínio e até a lógica, como se isso fosse reservado somen- te aos velhos e, obrigatoriamente, a todos os velhos. Não percebem que o jovem também esquece, também se engana e ainda age muitas vezes de maneira ilógica. Mito da Impotência: Não apenas para o trabalho, mas, sobretudo a in- capacidade sexual, basta ver o apelo da mídia da TV e do cinema. Esse é o mito mais acentuado e o pior, e por pura ignorância da realidade orgâni- ca e psicológica do ser humano nor- mal. Hoje os médicos, os psicólogos e sexólogos já desmistificaram esse assunto tão importante para a pes- soa idosa em todas as etapas as sua existência. A ideia hoje é comum: “O corpo muda, a sexualidade continua, a sensibilidade fica mais refinada e mais bela”. Mito de que a Velhice é doença: Não é verdade, há muitos meios de prevenir e de preservar a saúde física e mental. Há doenças que são atri- buídas aos velhos, no entanto, os jo- vens também podem ser acometidos de muitas delas que tiveram início na infância e se agravaram no decor- rer da vida. Velhice é uma questão para a Gerontologia, doença é uma questão para a Medicina Geriátrica. Mito da Alienação: Aqui a socie- dade cria um estereótipo de pessoa desligada do real, desengajada. Su- bestima a capacidade de pensar, de opinar, de participar, de pessoas aposentadas ou não, com a idade avançada. O velho é rejeitado e mar- ginalizado, até dentro do próprio lar. Assim discriminado, o velho, por imposições - veladas ou declara- das - recolhe-se em seus aposentos (aposentado), dentro de seu pijama, numa cadeira de balanço e de frente para a televisão. Quanto mais isola- do tanto mais alheio, perdendo, as- sim, seu referencial, a sua identida- de e o seu papel. Para a sociedade indiferente, quanto mais calado e alheio, tanto melhor. Ele se acomoda, não reivin- dica seus direitos, desativa sua atua- ção social, priva-se da sua participa- ção política e morre socialmente antes da morte física. No entanto, quando o idoso é aceito, valorizado e motivado pres- ta significativa contribuição. A par- ticipação na vida familiar, na vizi- nhança e na comunidade é sempre uma oportunidade de integração e de vida. 11 ASPECTOS CULTURAIS E BIOPSICOSSOCIAIS DO ENVELHECIMENTO O mito da Inflexibilidade: Para não permitir a participação do velho nas decisões importantes, taxam-no de inflexível, teimosos e até fanático, o que não é verdade. Ele é prudente e experimentado na faina da vida, mas cede quando percebe a raciona- lidade. Assim citamos alguns mitos e principais tabus que são atribuídos aos velhos. Estes terminam aceitan- do-os e sofrendo pela própria retra- ção e consequente isolamento. O que se faz necessário, e com a máxima brevidade, é que o próprio idoso assuma seu papel inalienável na sociedade e não aceite ser sub- misso ao que lhe impõe. Sartre, na sua sapiência, já afirmava: “O pior não é aquilo que os outros fazem de nós. O pior é aquilo que nós fazemos daquilo que os ou- tros fazem de nós”. Vale ressaltar que o idoso que se recolhe em seu pijama, não por si mesmo, mas por imposições da soci- edade. Aposentado - recolhido a seus aposentos. Muitos são os limites impostos à terceira idade pela sociedade capi- talista, sob o pretexto de que já pas- sou o seu tempo e que agora deve acomodar-se, “descansar e dar lugar para os mais jovens”. Sem os mitos e preconceitos sociais, a velhice poderia ser enfren- tada com mais coragem e menos so- frimento, pois como alguém já afir- mou com muita sabedoria e lucidez: “A velhice é o domingo da vida”. A vida humana é um processo, tem seus altos e baixos, mais vai acu- mulando experiências, sentimentos, vivências que enriquecem a cami- nhada e somam-se os êxitos e os fra- cassos como estímulo para novas conquistas. 13 ASPECTOS CULTURAIS E BIOPSICOSSOCIAIS DO ENVELHECIMENTO 3. Cultura, Memória e Valorização da Experiência do Idoso Fonte: Parceiros do Futuro3 envelhecimento não é um fenô- meno biológico, fisiológico so- bre o qual podemos meramente, agregar os aspectos sociais, culturais e psicológicos. Todos estes elemen- tos estão intrinsecamente relaciona- dos e em recíproca inter-relação. As alterações e modificações que afe- tam o funcionamento físico ou psí- quico do organismo humano, con- forme o contexto social e cultural, podem ser ou não valorizadas e con- ferir ou não posição de destaque ao 3 Retirado em https://parceirosdofuturo.com.br/ seu portador. Em todas as socieda- des, os seres humanos, enquanto ca- racterístico universal da espécie nas- cem, ficam adultos, envelhecem e morrem, mas o que é variável é o mo- do como as diversas sociedades e cul- turas trabalham com esses momentos da vida. São diversos os modos como se constrói e se percebe essas etapase, como decorrência, vamos ter inú- meras formas de percepção não só da velhice como também de outros mo- mentos de nossa existência. O 14 ASPECTOS CULTURAIS E BIOPSICOSSOCIAIS DO ENVELHECIMENTO A organização social vai deter- minar para cada época um estatuto diferencial para a idade. O momento histórico que irá trazer grandes mo- dificações para aquelas pessoas que foram enquadradas na classe ou gru- po de pessoas velhas, será aquele em que as sociedades passam a se estru- turar por meio de contradições com relação à acumulação de bens, ri- quezas e propriedades. Os destinos das pessoas de idade passam a de- pender da acumulação privada de bens, que vão determinar a miséria de uns e a possibilidade para outros de uma vivência protegida e cercada pelos laços familiares. Nesse mo- mento, a equivalência entre acumu- lação de experiência e conhecimento sociais, que nas sociedades “primiti- vas” está ligada à progressão da pes- soa nas etapas do ciclo vital e que, em muitos casos, proporciona uma posição de destaque no sistema de status, é rompida. Esse rompimento colocará de forma diferenciada, em- bora cada vez de modo mais claro, à medida que a propriedade e acumu- lação passam a determinar mais e mais os destinos e a valorização so- cial das pessoas. Para examinar a realidade e o significado da velhice, é necessário conhecer em diferentes épocas e lu- gares, no conjunto daquela socieda- de, qual o lugar nela atribuído aos velhos. Conforme Magalhães, nas cul- turas tradicionais o idoso sempre foi visto como sendo símbolo de sabe- doria, através do ato de lembrar e dar expressão a suas lembranças: “O papel da memória é tradicional- mente valorizado entre os mais ve- lhos, assim como suas lembranças constituem o patrimônio coletivo, expresso e revivido permanente- mente no contato com as novas ge- rações, sejam crianças ou adultos. Ao velho e ao antigo cabem, na soci- edade tradicional, papéis e padrões comportamentais apoiados no valor da respeitabilidade”. Sociedades Primitivas Em muitas sociedades a expe- riência e os conhecimentos acumu- lados constituem um trunfo para os velhos, mas, em algumas delas, em algumas circunstâncias, não é sufici- ente para lhes garantir um lugar abrigado que lhes permita morrer nela amparado pelos demais. Frazer aponta para a tendên- cia de toda a sociedade: VIVER E SOBREVIVER. Nesta posição ela exalta o vigor e a fecundidade asso- ciados no ciclo de vida à juventude, enquanto teme o desgaste, a esterili- dade da velhice. Em comunidades onde o chefe é a encarnação da di- vindade, muitas vezes ao manifestar 15 ASPECTOS CULTURAIS E BIOPSICOSSOCIAIS DO ENVELHECIMENTO sinais de declínio ele deve pronta- mente ser sacrificado e novo chefe deve ser investido de poder e prestí- gio, pois se as forças da divindade se esgotarem com ele, o mundo rapida- mente pereceria. Entre os Dinda, segundo Fra- zer, algumas pessoas idosas em uma tribo são responsáveis por fenôme- nos e atividades consideradas essen- ciais à coletividade - a chuva, a caça, a pesca, etc. Se mostrarem sinais de fraqueza são enterrados vivos - ceri- monial ao qual eles se prestam vo- luntariamente - pois estão transmi- tindo a outros, antes que declinem, poderes necessários à sobrevivência da coletividade. As cerimônias fúne- bres nestes casos representam, pois uma festividade, um rejuvenesci- mento do princípio vital. Os Mitos e Rituais de Regene- ração Inúmeros ritos têm por objeti- vo apagar o tempo decorrido e reini- ciar uma existência livre do peso dos anos. As festas de passagem de ano e Ano Novo são o nosso rito atual. Nas monarquias europeias existe o: “O rei está morto. Viva o rei”. No culto Xintoísta no Japão os templos de- vem ser reconstituídos a cada 20 anos; sua decoração e mobiliário mudados. É uma demonstração de ligação do indivíduo ao mundo todo: reconstituindo o edifício fortalecem- se os laços dos homens com as divin- dades. Algumas comunidades simu- lam expulsar os idosos de seu seio, protegendo-o da deterioração da ve- lhice e fazendo aliança com a juven- tude (serrar a velha - bonecos). Como se vê, para muitas co- munidades o passar do tempo pode provocar o desgaste da natureza. Não vislumbram um porvir diferen- te, mas procuram se apegar a um passado reverenciado, segundo o qual se modela o presente. Quando o velho não significa o envelhecimento do grupo, não existe razão para supri-lo. Ele terá um sta- tus de acordo com as circunstâncias. Em uma sociedade que cultua a pro- dutividade, se ele se torna improdu- tivo, também se torna um fardo. Mas, ao decretar o destino do velho, o adulto estará determinando seu próprio futuro e, portanto, também deverá levar em conta seu interesse a longo prazo. Entre os mitos engendrados por uma coletividade e seu compor- tamento pode haver muita coinci- dência e pode haver muita distância. No campo que se refere ao trata- mento dado aos velhos, muitas soci- edades primitivas enaltecem a ve- lhice e o velho enquanto, na realida- de seu tratamento não condiz com estes prepostos ideais. Há deuses muito velhos, muito sábios, ou que 16 ASPECTOS CULTURAIS E BIOPSICOSSOCIAIS DO ENVELHECIMENTO inventaram culturas agrícolas, pe- cuárias ou artesanatos da maior im- portância para a nação e como tal são consagrados nos mitos e lendas. Mas muitas vezes as condições pre- cárias de vida, a imprevidência, o cli- ma, trazem a urgência do presente, e então passado e futuro desapare- cem, permanecendo apenas a neces- sidade de sobrevivência no presente. Sociedades nômades, coletoras, vi- vem geralmente sob estas condições, onde o xamanismo e a magia predo- minam. As condições de extrema miséria sufocam os sentimentos. Quando a sobrevivência de uma co- letividade depende dos mais aptos, os mais fracos são deixados à mín- gua ou mesmo sacrificados. Muitas sociedades respeitam as pessoas idosas enquanto estas se mantém robustas, lúcidas e desem- baraçadas, não tendo, porém escrú- pulos em se livrar delas quando se tornam decrépitas e caducas. Para muitas destas comunidades a pessoa velha e doente está mais perto da morte e, portanto está em perigo e ameaça aos demais. Ao se livrarem dela estão ajudando a manter a coe- são da comunidade, definindo o mundo dos vivos e o dos mortos. Para a maioria destas comunidades primitivas, ao indivíduo que enve- lhece, é negado por exemplo, o aces- so a determinados lugares, o conví- vio com o sexo oposto. A mulher não mais fértil e o homem impotente, podem passar para outra categoria, diferente do adulto, onde obrigações anteriores não mais existem e novas atividades e atributos estão ao seu alcance. Mas o progressivo envelhecimento ou às vezes o abuso dos velhos podem le- var os jovens a desejarem se livrar deles. Há também, no entanto, algu- mas sociedades que apesar de vive- rem nas mesmas precárias condi- ções, reservam para os idosos posi- ções de prestígio e tratamento dife- renciado. Há mesmo uma ênfase em preservar o poder através da posse e através da autoridade sobre familia- res e mesmo sobre outros membros do grupo. Na interpretação da escri- tora Simone de Beauvoir, estas cole- tividades estão agindo desta manei- ra porque avaliam sua própria posi- ção e tratamento na velhice e, por- tanto, estão sendo prudentes em matéria de organização social, ga- rantindo seu futuro tanto individual como coletivo. Também em algumas comunidades o velho é abrigado e respeitado por seus conhecimentos essenciais (artesãos, caçadores, agricultores, etc.), à manutenção e sobrevivência do grupo. Vivendo em ambientes hostis ou escasso de re- cursos, o conhecimento que os mais velhos podem transmitir passa a ser 17 ASPECTOS CULTURAIS E BIOPSICOSSOCIAISDO ENVELHECIMENTO de vital importância. Em outras cul- turas, aos velhos compete tarefas importantes como a marcação do tempo, nomear as crianças que nas- cem, recitar a genealogia para indi- car adequadamente o papel e o lugar do indivíduo dentro de seu mundo, transmitir as lendas, e mitos e todo um conjunto que mantém a identi- dade daquele povo. Em algumas co- munidades este poder pode ser tão grande que eles não ensinam, tendo reservado para si alguns segredos que só são transmitidos na hora morte. É uma maneira de se preser- var evitando a destituição do poder. Nas sociedades primitivas os velhos são pouco numerosos e, por isso mesmo, em muitas delas, eles são preciosos e respeitados por sua experiência, principalmente pelo fa- to de serem eles que, frequentemen- te, detêm o saber social e o conheci- mento místico, sendo inclusive, te- midos por sua proximidade com os ancestrais. Todavia, apesar disso, é variável o “status” ocupado por aqueles que são definidos como ve- lhos. Existem sociedades em que as pessoas enquadradas na classe ou grupo de idade dos anciãos são po- derosas na África, as quais alguns autores não hesitam em classificar em “gerontocráticas”. Em outras pa- lavras, os velhos, além de não terem poder, podem ser até abandonados em situações em que o grupo enfren- ta como fome, penúria etc. Sociedades Capitalistas Eclea Bosi, ao analisar a velhi- ce na sociedade industrial, fornece- nos um bom material para que pos- samos refletir sobre esta questão. A sociedade capitalista é que promove a degradação da força de trabalho, desgasta-a e consome-a. A idade é utilizada como critério de desvalori- zação social. A sociedade justifica a opressão na qual os idosos são sub- metidos através de vários mecanis- mos, como por exemplo: a produção de pesquisas pseudocientíficas que atestam a incompetência social do velho e que encontram uma preten- sa fundamentação a nível natural e biológico para desvalorizá-lo; o des- pojamento do velho através de me- canismos psicológicos que colabo- ram para construir uma autoima- gem negativa; os asilos que lhe tiram toda a criatividade e força-os a um comportamento padronizado; a re- cusa ao diálogo e a reciprocidade por parte das pessoas mais novas, etc. Observemos o seguinte texto da autora: Quando as mudanças históricas se aceleram e a sociedade extrai sua energia da divisão de clas- ses, criando uma série de ruptu- 18 ASPECTOS CULTURAIS E BIOPSICOSSOCIAIS DO ENVELHECIMENTO ras nas relações entre os ho- mens e na relação dos homens com a natureza, todo sentimen- to de continuidade é arrancado de nosso trabalho. Destruirão amanhã o que construirmos ho- je. A sociedade rejeita o velho, não oferece nenhuma sobrevi- vência à sua obra. Perdendo a força de trabalho ele já não é produtor nem reprodutor. Se a posse, a propriedade, consti- tuem, segundo Sartre, uma de- fesa contra o outro, o velho de uma classe favorecida defende- se pela acumulação de bens. Suas propriedades o defendem da desvalorização de sua pes- soa. A noção que temos de ve- lhice decorre mais da luta de classes que do conflito de gera- ções. O livro de Eclea Bosi abre um caminho fecundo para os trabalhos sobre a memória. As lembranças, as memórias dos velhos tornam-se, as- sim, um material de extrema impor- tância dentro de uma sociedade co- mo a nossa, com brutal concentra- ção de capital e aceleração das forças produtivas, o sentido de continuida- de é arrancado de nossas vidas. Este ângulo não escapa à Marilena Chaui a qual. [...] por que temos de lutar pe- los velhos? Porque são a fonte onde jorra a essência da cultu- ra, ponto onde o passado se conserva e o presente se prepa- ra, pois, como escrevera Benja- mim, só perde o sentido aquilo que no presente não é percebi- do como visado pelo passado... A função social do velho é lem- brar e aconselhar - memini mo- meo - unir o começo e o fim, li- gando o que foi e o por vir. Mas a sociedade capitalista impede a lembrança, usa o braço servil do velho e recusa os seus conse- lhos... A sociedade capitalista desarma o velho mobilizando mecanismos pelos quais opri- me a velhice, destrói os apoios da memória e substitui a lem- brança pela história oficial cele- brativa. No capitalismo, portanto, a acumulação de bens constitui-se a marca que pesa sobre os destinos humanos. O papel de memória da comu- nidade e de transmissor da cultura em geral apareceu mais nas socieda- des que preservam seus velhos. Não são razões econômicas, nem o fato de ser mais primitiva ou mais elaborada uma cultura, o que leva a tratar os velhos desta ou da- quela maneira. O que define o sentido e o valor da velhice é o sentido atribuído pelos homens à existência, é o seu sistema global de valores. Se quisermos desvendar este segredo, muitas vezes cuidado- samente oculto, devemos aten- tar para o modo como esta soci- edade trata seus velhos. (Simo- ne de Beauvoir) 19 20 ASPECTOS CULTURAIS E BIOPSICOSSOCIAIS DO ENVELHECIMENTO 4. Quem tem mais Medo de Envelhecer: O Homem ou a Mulher? Fonte: Ada Tina4 ntes de passarmos à reflexão propriamente dita acerca das variáveis que influenciam a caracte- rização do grupo etário idoso mascu- lino como minoritário, necessário se faz situar este grupo no contexto da população brasileira. Embora o envelhecimento seja um processo extremamente indivi- dual e condicionado à história de vida de cada pessoa, a organização Mundial da Saúde define como idosa a população de mais de 60 anos, en- tendendo-se este patamar como o momento em que um número signi- 4 Retirado em https://blog.adatina.com/envelhecimento-da-pele-do-homem-e-diferente-da-pele-da-mulher/ ficativo de pessoas passa a apresen- tar as características biopsicossoci- ais que definem o envelhecimento. O aumento da expectativa de vida e o crescimento demográfico da população idosa no Brasil são fatos recentes, razão pela qual somente nos últimos 20 anos tem sido discu- tida, em termos de realidade brasi- leira, a questão social da velhice. Pouquíssimos estudos e pes- quisas a respeito desse grupo etário foram até hoje realizados entre nós, razão pela qual praticamente os úni- cos dados de que dispomos são A 21 ASPECTOS CULTURAIS E BIOPSICOSSOCIAIS DO ENVELHECIMENTO aqueles fornecidos pelos censos de- mográficos e ainda assim com pou- cas referências especificas à popula- ção de mais de 60 anos. Do ponto de vista social, a po- pulação idosa, tanto masculina co- mo feminina, apresenta baixo grau de associativismo e reduzida partici- pação política, profissional ou religi- osa, exceção feita às poucas associa- ções de aposentados, predominante- mente masculinas, e aos grupos de lazer, predominantemente femini- nos, que muito recentemente vêm sendo criados e multiplicados, e se constituem nas primeiras tentativas de rompimento do isolamento e da marginalização social da velhice. Para este quadro desalentador é que se encaminham, num processo irreversível e biologicamente deter- minado, as pessoas que envelhecem. Numa perspectiva individual - e vale a pena ressaltar uma vez mais o caráter extremamente pessoal do processo de envelhecimento, o ser ou estar velho traz, portanto, uma série de consequências que afetam de forma mais ou menos intensa as pessoas, segundo as suas condições individuais, sejam elas homens ou mulheres. No que diz respeito ao homem velho, alguns fatores culturais tor- nam muito difícil a adaptação a essa nova fase da vida, biologicamente determinada e socialmente imposta, caracterizada pelo esvaziamento de papéis sociais e por perdas significa- tivas. O médico Claude Nahun, em seu artigo "A velhice da pessoa", afirma que trabalho eamor são antí- dotos para a patologia da velhice. Realmente, a cessação do trabalho pela aposentadoria, a redução das oportunidades de expressão da afe- tividade e as alterações da sexualida- de, decorrentes do envelhecimento biológico, são os fatos que afetam de maneira mais efetiva a identidade masculina. Podemos dizer que com as mulheres, o mesmo não ocorre, pois mesmo que se aposentem, o papel de dona de casa, o papel social, con- tinuam, além de aceitar melhor as alterações da sexualidade. Muitas podem até ter a “crise do ninho va- zio” mas logo conseguem substituir por outros afazeres: Faculdade de Terceira Idade, rodas de amigas, etc. Na moderna sociedade capita- lista em que vivemos, ser homem significa - e é valorizado como tal - estar engajado no mercado de traba- lho, ser qualificado e reconhecido como produtor de bens ou serviços, e ter poder aquisitivo para ser um bom consumidor desses mesmos bens e serviços; em decorrência des- sas condições, ser homem é também exercer autoridade a nível familiar, desempenhar os papéis de marido e 22 ASPECTOS CULTURAIS E BIOPSICOSSOCIAIS DO ENVELHECIMENTO pai de família, bem como o de ma- cho; reprodutor ou não, através de uma intensa vida sexual, dentro e fora do casamento. A partir desse enfoque, o de- sengajamento do mercado de traba- lho pela aposentadoria, nem sempre desejada, muito mais que um prê- mio pelo esforço empreendido ao longo de uma vida, é vivenciado co- mo um processo de desvalorização social que afeta profundamente o equilíbrio emocional daquele que o sofre. A este respeito assim se ex- pressa o sociólogo Paul Bastíde em seu artigo "A ideia do tempo e o en- velhecimento": “A dureza da socie- dade onde vivemos, dominada por uma exigência de produção e de efi- ciência, contribui para agravar o peso do envelhecimento”. Esta exigência manifesta-se brutalmente quando o limite de idade obriga a aposentadoria. “Essa constatação da incapacidade para a produção e da exclusão do ciclo da rentabilidade equivale para muitos, a uma condenação sem apelo a mor- te social, o homem percebe que foi apenas um instrumento de trabalho, sem jamais ter tido tempo de gostar do que fazia e de fazer aquilo que gostava". A aposentadoria implica ne- cessariamente no retorno a casa, a um convívio familiar intenso com pessoas das quais o homem perma- neceu afastado a maior parte do seu tempo, voltado até então predomi- nantemente ao trabalho, Nesse re- torno, a grande maioria dos homens constata que o seu papel de provedor da família ficou bastante abalado pe- la redução de renda que a aposenta- doria acarreta e diminuiu, assim, de forma considerável a sua autoridade doméstica. Ele percebe também que seu papel de pai ficou bastante esva- ziado: os filhos cresceram, torna- ram-se adultos e donos da sua pró- pria vida; com frequência julgam o pai ultrapassado e implicante, difi- cilmente aceitando os conselhos que dele venham por entendê-los inade- quados; constata então o homem o desaparecimento da sua autoridade paterna, Para as mulheres, hoje com mais de 60 anos, e que, em sua gran- de maioria, permaneceram exclusi- vamente dedicadas aos afazeres do- mésticos, a presença do homem apo- sentado em casa é, muitas vezes, perturbadora da ordem até então por elas estabelecida; essa situação é geradora de conflitos, os quais, ape- nas eventualmente, são bem soluci- onados através de uma redistribui- ção de tarefas: e a reafirmação, a ní- vel doméstico, da sua inutilidade, o relacionamento familiar, que se constituía muito frequentemente em fonte geradora de afetividade, 23 ASPECTOS CULTURAIS E BIOPSICOSSOCIAIS DO ENVELHECIMENTO passa a exercer função exatamente inversa. Quase sempre, o único papel social que a família oferece ao ho- mem aposentado é o de avô, muitas vezes confundido com o de "babá" dos netos, papel este que, embora possa ser exercido com muita afeti- vidade, não deixa de acentuar a sua condição de velho, aumentando a sensação de inutilidade e ameaçan- do profundamente a sua virilidade. Em face desta situação, o homem aposentado sente-se um "estranho no ninho", Vê decretada muitas ve- zes a sua "solidão em família" e bus- ca então nos bares, nos bancos de praça ou em visitas aos poucos ami- gos que restaram, a possibilidade de viver das recordações do seu pas- sado. A estes sentimentos de solidão e inutilidade vem se juntar, e é até por eles agravada, uma enorme inse- gurança quanto ao desempenho se- xual, um dos aspectos mais impor- tantes da afirmação da masculinida- de. O desconhecimento do processo biológico do envelhecimento e os ta- bus que cercam a sexualidade na ve- lhice, precipitam o fim de uma vida sexual que poderia ser gratificante até os últimos dias. Sobre esse as- pecto do envelhecimento, assim se expressam Robert Butler e Myrna Lewis, em seu livro "Sexo e Amor na Terceira Idade": "Os homens são as principais vítimas de uma vida intei- ra de ênfase excessiva no desempe- nho físico. A masculinidade é equi- parada à proeza física. Os homens mais velhos se julgam e são julgados pela comparação da frequência e po- tência do seu desempenho sexual com as de um homem mais jovem. Estas comparações raramente valo- rizam a experiência e a qualidade do sexo. Quando medidos por padrões essencialmente atléticos, os homens mais velhos são naturalmente consi- derados inferiores". No, entanto, es- tudos e pesquisas (realizados no campo da sexualidade humana) comprovam que sexo e velhice po- dem caminhar juntos: é apenas uma questão de ritmo, habilidade e utili- zação dos recursos existentes. Evidentemente o comporta- mento da companheira pode agra- var ou aliviar o quadro de tensão emocional que se instala, quando do surgimento das primeiras dificulda- des decorrentes do envelhecimento dos órgãos sexuais, razão pela qual, nessa fase da vida, o diálogo entre o casal sobre sua vida sexual assume uma importância extraordinária, Da mesma forma, alguma doenças po- dem trazer consequências a nível de desempenho sexual mas, com pou- cas exceções, não incapacitam per- manentemente e podem ser resolvi- das ou minimizadas com os recursos de que dispõe a geriatria. 24 ASPECTOS CULTURAIS E BIOPSICOSSOCIAIS DO ENVELHECIMENTO Estas considerações todas conduzem â conclusão de que não é fácil envelhecer na nossa sociedade, tanto para o homem como para a mulher. Nem é agradável, em prin- cípio, passar a compor este segmen- to minoritário da população consti- tuído pelos velhos. Podemos dizer que, e princi- palmente ao homem, nunca nos foi permitido o direito ao lazer. Sempre estamos preocupados com o PO- DER, com o TER, esquecendo-nos muitas vezes do SER. Na terceira idade, na velhice, ou ainda na aposentadoria, o indiví- duo na maioria das vezes deixa seu trabalho remunerado, mas não dei- xa de “fazer”, de “produzir”. Essa ne- cessidade continua, pois é constan- te, é dinâmica, é evolutiva. Vários fatores bloqueiam ou dificultam o desempenho natural desse “fazer” nesse período. Os fato- res podem ser: sociais, psicoemocio- nais, físicos, etc. Acreditamos que se o lazer for visto como algo importantíssimo no desenvolvimento do ser humano, desde cedo a pessoa passará a execu- tá-lo, para mais tarde, quando apo- sentado ou idoso, saber usar o “tem- po” sem sentir-se “culpado”, “premi- ado”. Infelizmente nossa sociedade ainda não nos permite enxergá-lo de modo como “direito” e não um “cas- tigo”, um “pecado”. Somos preparados para o tra- balho e rendimento, muitas vezes, só nos dando o devido descanso e lazer, quando ficamos doentes, onde não temos outra opção. Cada pessoa é única e especial, desenvolve seu próprio processo de envelhecimento e o envelhecimento entre os sexos tempesos e valores diferentes. A mulher tem medo de enve- lhecer, mais em relação a estética, pois ela está sempre preparada para atividades sociais, com trabalhos ca- seiros ou não, ou então, vão em bus- ca de algo para se realizarem, pois muitas vezes chegou a chance de tor- narem-se donas de seu tempo, seu tempo livre, de lazer. O homem, após aposentado, dificilmente busca outra atividade. Se sente, conforme diz o texto, real- mente “aposentado”, como se ti- ves-se que ficar dentro dos aposen- tos da casa. Dificilmente, ele busca algo que o realize, percebem que seu tempo livre é “seu”, mas está tão condicionado ao trabalho, que não se permite. Acredito que em termos de estética, a mulher tem mais medo ou preocupação, pois já pesquisei junto a meninas e meninos, crian- ças e adolescentes, e veem a ima- gem de “FICAR VELHA É FICAR FEIA”. 25 ASPECTOS CULTURAIS E BIOPSICOSSOCIAIS DO ENVELHECIMENTO Quanto ao homem, é o medo de perder a virilidade, o papel de provedor e o deslocamento social. Saber quem tem mais medo de envelhecer entre os sexos, acredito ser difícil de medir, pois cada indiví- duo é único, tem e dá o seu valor pa- ra a velhice ou envelhecimento. Envelhecer - Um desafio Viver bem a idade que se tem é uma sábia aventura. Saber envelhecer com tranqui- lidade é um desafio salutar e perma- nente. A velhice é uma importante etapa do ciclo vital, uma fase natural do desenvolvimento da vida huma- na. Pode não ser a melhor, mas cer- tamente não será a pior; é mais uma. Sabe-se que é privilégio de poucos, daí a importância de enfrenta-la com alegria e otimismo. Envelhecer é um processo vital e único, por isso cada um constrói o seu próprio roteiro, é ator e diretor da sua existência, por isso pode pro- gramar um “final feliz”. E mais, já que a morte é inevitável, por que não esperá-la vestida de gala, como para uma grande festa, o coroamento de uma bela caminhada terrena? O idoso, na verdade, não é apenas um idoso, é uma pessoa do- tada de prerrogativas próprias. É um ser a “vir a ser”, sempre em transfor- mação. Difícil é enfrentar os estigmas que lhe são impostos. Ao invés de in- divíduos, as pessoas passam a ser apenas: mulher, negro, deficiente, carente, excepcional, mendigo ou velho. São olhados apenas pela ótica do estigma. Porém, muito pior do que o estigma social é o estigma que o indivíduo carrega, ele próprio, a respeito da sua condição estabele- cida. Como já nos referimos anteri- ormente, Sartre já constatava essa acomodação da pessoa em aceitar todas as imposições feitas pelos ou- tros. O velho introspecta esses estig- mas e já não reage, talvez por julgar natural ou por sentir-se muito só para uma batalha tão feroz e até cruel. Em nossa sociedade há três preconceitos básicos: a cor, o sexo e a idade, sendo este último mais acentuado e profundo. Em se tratando do idoso, (car- regado de idade), essa carga é extre- mamente agravada, pois ele se sente fragilizado ao acumular idade e acei- ta passivamente o que o meio lhe im- põe. A velhice representa, para muitos, uma ameaça à vida, um ca- minho que aproxima, a cada dia, a chegada à morte, o desgaste da vida. Diz a Dra. Mônica Rebouças - Geriatra, Coordenadora do Centro Geriátrico das Obras Sociais Irmã 26 ASPECTOS CULTURAIS E BIOPSICOSSOCIAIS DO ENVELHECIMENTO Dulce, BA: “Ao contrário do que se pensa, a decadência física não é o problema maior para as pessoas, o espelho incomoda, mas não assusta as pessoas. O medo da morte é real”. E nós acrescentamos: e cruel. Se a pessoa que envelhece for bem aceita, sem preconceitos, certa- mente terá novas e salutares expec- tativas para o seu futuro. Além disso, dará ainda uma perspectiva alvissa- reira e otimista para seus pósteros. Por isso é procedente afirmar: “Quem investe nos idosos investe no futuro da juventude”. Envelhecimento Social Além do envelhecimento pes- soal, acontece também o envelheci- mento social, hoje talvez com um acentuado tom de melancolia e an- gústia. Pesquisas científicas, um tanto recentes, revelaram que boa parte das modificações mentais e compor- tamentais verificadas nos velhos não representam efeitos biológicos do envelhecimento, mas sim conse- quência das mudanças e até imposi- ções de papéis na sociedade. Eis algumas situações que se evidenciam no estudo da problemá- tica do idoso: Progressiva diminuição nos contatos sociais: Os familiares vão diminuindo - a viuvez, os con- temporâneos se ausentam, dimi- nuem também as chamadas telefô- nicas, as cartas, as visitas, etc. O es- critor Tristão de Atayde escreveu um dia: “Mais um companheiro que des- ce, antes do tempo e antes de mim...” Isso assusta a qualquer um. Distanciamento social: As gera- ções mais novas, a cada ano, estão realizando mais cedo o que era pri- vilégio dos mais velhos, e, por vezes, o fazem com maior eficácia e perfei- ção - a tecnologia e a informática -is- so propicia o afastamento das gera- ções. Quem pode garantir que quem se afasta dos próprios grupos con- siga integrar- se e adaptar-se a ou- tros grupos? Mudança de emprego, aposentadoria, mudança de residên- cia? Progressiva perda do poder de decisão: Quando adultos, homens e mulheres aprenderam a analisar possíveis alternativas para as situa- ções que enfrentavam, aprenderam, sobretudo, a decidir sobre o que lhes parecia mais acertado; desejavel- mente, tornaram-se capazes de en- frentar os resultados positivos ou negativos das escolhas feitas. Com o passar do tempo, os mais jovens, progressivamente, começam a “re- solver” a vida dos velhos. Muitas ve- zes os filhos passam a fazer o papel 27 ASPECTOS CULTURAIS E BIOPSICOSSOCIAIS DO ENVELHECIMENTO dos pais, decidem e até superprote- gem os mesmos. Progressivo esvaziamento dos papéis sociais: Intimamente liga- do à perda de poder de decisão e, quase simultaneamente, como causa e consequência está o progressivo esvaziamento dos papéis sociais. Os velhos passam a ser valori- zados pelo que “foram” - “meu avô foi” - e aí os idosos assumem e dizem “eu fazia”, “eu costumava dizer”, “no meu tempo”, vivem no passado, mas ainda estão vivos, isso é terrível. Corrói a própria identidade. Alterações no processo de co- municação: Uma das possíveis consequências da perda de autono- mia é a preocupação dos jovens em esconder os velhos fatos que eles, os mais jovens, acham que trariam pre- ocupação, emoção. Tais atitudes aceleram o envelhecimento social e dão lugar a ressentimentos para com essas pessoas quando descobrem que lhe ocultaram alguma notícia, e o levam à solidão e à desconfiança. Crescente importância do pas- sado: O passado aos poucos se tor- na mais importante que o presente, pois o sujeito da ação, antigamente, era ele, o idoso de hoje. Pelo fato de ele ter, na atualidade, menor preo- cupação (a sua participação foi dis- pensada), ele pensa na morte, com muita frequência, pois perdeu o seu papel na família e na comunidade. Isto é a morte social que acelera a morte física. Concluindo, podemos afirmar que pelo fato de o homem ser um ser essencialmente social, o natural é que o mesmo se integre na sua co- munidade e ali possa trocar experi- ências, fazendo acontecer a realiza- ção pessoal e a dos seus semelhan- tes. Cabe à sociedade organizar-se de tal forma que possa assegurar um padrão mínimo de sobrevivência digna aos que nos precederam e construíram, com seu esforço e dedi- cação, o mundo que aí está. Prosse- guir no seu aprimoramento depende de todos. O compromisso é bilateral. As- sim como a pessoa é responsável pela sociedade, esta também é res- ponsável pelos seus componentes. Quanto mais afinada a relação, tanto maior será a harmonia e o bem-es- tar. Aquimuito bem cabe aquela assertiva: “Ninguém é tão pobre que nada tenha a dar, como ninguém é tão rico que nada tenha a receber”. O idoso, que contribuiu para a construção da sua comunidade e do seu mundo, merece respeito e re- compensa por sua doação, pela con- tribuição que acrescentou ao muti- rão humano. 28 29 ASPECTOS CULTURAIS E BIOPSICOSSOCIAIS DO ENVELHECIMENTO 5. Aspectos Psicológicos do Envelhecimento Fonte: Cuidar dos Pais em Casa5 interesse pela psicologia do en- velhecimento começou no iní- cio do século XX, quando alguns tex- tos foram publicados por volta de 1922, pelo americano Stanley Hall, porém, como é sabida no início do século passado, a transição demo- gráfica das populações de modo ge- ral eram bem distintas do que se percebe hoje. A velhice é um conceito abs- trato considerado como uma etapa da vida. A psicologia do desenvolvi- mento, os autores tem denominado velhice como a última das etapas do 5 Retirado em https://cuidardospaisemcasa.com.br/aspectos-emocionais-e-psicologicos-envelhecimento/ ser humano: infância, adolescência, idade adulta e velhice. Mas, assim como está claro de que a infância co- meça quando se inicia a vida fora do útero materno, a adolescência quan- do começam os primeiros embates da puberdade e a idade adulta quan- do o indivíduo se torna independen- te, assim fica a pergunta: Em qual a idade que começa a velhice? Algumas pessoas acreditam que a velhice não está necessaria- mente associada à idade e que são outros fatores como perder a ilusão pela vida ou as transformações físi- O 30 ASPECTOS CULTURAIS E BIOPSICOSSOCIAIS DO ENVELHECIMENTO cas e mentais que marcam seu iní- cio. Outros consideram uma deter- minada idade cronológica como a fronteira da velhice. A resposta não está clara nem para as pessoas co- muns, nem para os estudiosos, pois não existe uma idade que suceda al- go de concreto que faça o indivíduo entrar na velhice. Como a idade cronológica não é um bom identificador da velhice, alguns autores tem se ocupado do conceito de “idade funcional” como o preditor obtido de diferentes indi- cadores sobre o funcionamento bio- lógico, social e psicológico (o biopsi- cossocial) do indivíduo. Assim, por exemplo, a idade funcional seria ob- tida por indicadores como a desem- penho do indivíduo nos aspectos bi- ológico, psicológico e social. Como se pode constatar, não é tarefa fácil operacionalizar quanto ao marco da velhice. É interessante mencionar ainda que em países de- senvolvidos, podemos considerar hoje que a velhice é aquela etapa da vida em que o indivíduo se aposenta, ou seja, deixa suas funções laborais. No entanto, ao considerarmos indi- víduos que ingressaram cedo no tra- balho, vamos concluir que os mes- mos se aposentarão cedo também, alguns até mesmo antes dos 50 anos de idade. Finalmente, uma distinção que se faz necessário realizar é que pode se estabelecer entre o processo de envelhecimento que ocorre ao longo da vida e a velhice como um estado que começa em um momento não muito bem definido, já que faz parte do ciclo da vida. Na realidade, esse processo começa quando se ini- cia a vida, de maneira que não existe vida orgânica sem envelhecimento. Assim, pode- se dizer que o envelhe- cimento é vida e viver leva, necessa- riamente, ao envelhecimento e nesse processo se produzem alguns pa- drões de mudanças e de estabilida- de, assim como de desenvolvimento e declínio. Algo que é considerado velho é algo que já existe há muito tempo. No entanto, esse tempo não ocorre da mesma forma para todas as pes- soas. O envelhecimento é, portanto, um processo individual e, por isso mesmo é uma experiência diferente para cada indivíduo. Em 1963, Erik Erikson, um dos pioneiros nos estudos sobre o desenvolvimento humano, com a formulação da Teoria do Desenvol- vimento durante toda a vida, explici- tava que o desenvolvimento se pro- cessa ao longo da vida e que o sen- tido da identidade de uma pessoa se desenvolve através de uma série de estágios psicossociais durante toda a vida. Esta teoria compõe-se de oito estágios, sendo o período da vida 31 ASPECTOS CULTURAIS E BIOPSICOSSOCIAIS DO ENVELHECIMENTO adulta (após 41 anos) denominado de integridade do ego versus deses- pero, sendo que a integridade do ego é caracterizada por fatores intrínse- cos à velhice como: dignidade, pru- dência, sabedoria prática e aceitação do modo de viver, e desespero se- riam possivelmente medo da morte. Erikson, através destes estudos, contribuiu significativamente para a compreensão das transformações ocorridas na velhice, salientando-se o que, até então, nenhum outro au- tor na área da psicologia havia feito: dado ênfase ao estágio do desenvol- vimento humano contemplando a vida adulta. A teoria de Erikson colaborou no sentido de oferecer sínteses sobre o desenvolvimento cognitivo e da personalidade, sobretudo na vida adulta. Após o desenvolvimento des- ta teoria, passaram-se décadas na psicologia sem a formulação de ou- tra teoria do desenvolvimento da vi- da adulta. Em 1978, outra teoria, desen- volvida por Gould, enfatiza os pro- cessos do desenvolvimento da velhi- ce, seguindo uma abordagem simi- lar a de Erikson, propondo também estágios de desenvolvimento. Estas teorias desencadearam, dentro da Psicologia do Desenvolvimento, re- levância a este estágio do desenvol- vimento humano, pois neste período já era despertado, em várias áreas do conhecimento, sobretudo a Geron- tologia, o interesse em conhecer me- lhor os fenômenos peculiares ao processo de envelhecimento e à ve- lhice. Denota-se, com os avanços dos estudos da Psicologia do Envelheci- mento, a busca da velhice bem-suce- dida, e, para tanto, alia-se a experi- ência de vida que os idosos possuem e os fatores da personalidade para que estes possam desenvolver meca- nismos que contribuam para uma boa saúde física e mental, autono- mia e envolvimento ativo com a vida pessoal, a família, os amigos, o ócio, o tempo livre e as relações interpes- soais (Neri, 2004). A psicologia do envelhecimen- to é hoje a área que se dedica à in- vestigação das alterações comporta- mentais que acompanham o gradual declínio na funcionalidade dos vá- rios domínios do comportamento psicológico, nos anos mais avança- dos da vida adulta. Ela se refere à forma como o sujeito percebe a realidade e a inter- preta, como se sente e valoriza esta relação com os demais e com o seu ambiente e acima de tudo como se comporta. O envelhecimento psicológico é o ponto de vista da ação e do efeito do tempo sobre as distintas funções psicológicas a respeito de tópicos tais como: personalidade, as funções 32 ASPECTOS CULTURAIS E BIOPSICOSSOCIAIS DO ENVELHECIMENTO cognitivas, a capacidade perceptiva, de aprendizagem e criatividade, a comunicação, a interação social com seus semelhantes e a afetividade e como os principais componentes do ser humano em qualquer momento de seu ciclo vital. O relacionamento do idoso com o mundo se caracteriza pelas di- ficuldades adaptativas, tanto emoci- onais quanto fisiológicas; seu de- sempenho ocupacional e social, o pragmatismo, a dificuldade para aceitação do novo, as alterações na escala de valores e a disposição geral para outros relacionamentos. No re- lacionamento com sua história o idoso pode atribuir novos significa- dos a fatos antigos e os tons mais maduros de sua afetividade passam a colorir a existência com novos ma- tizes: alegres ou tristes, culposas ou meritosas, frustrantes ou gratifican- tes, satisfatórias ou sofríveis. Por tu- do isso a dinâmica psíquica do idoso é exuberante, rica e ao mesmo tem- po complicada. O médico Freud afirmava,com notável sabedoria, que os de- terminantes patogênicos envolvi- dos nos transtornos mentais pode- riam ser divididos em duas partes: Aqueles que a pessoa traz consigo para a vida; Aqueles que a vida lhe traz. Na senilidade isso fica mais evidente ainda, de um lado os fato- res que o indivíduo traz consigo em sua constituição e, de outro, os fato- res trazidos a ele pelo seu destino. O equilíbrio psíquico do idoso depen- de, basicamente, de sua capacidade de adaptação à sua existência pre- sente e passada e das condições da realidade que o cercam. Segundo o psiquiatra Ajuria- guerra, ao afirmar que "envelhece-se como se viveu", certamente estava se referindo aos traços pessoais de nos- sa constituição que acabam ficando mais marcantes com o envelheci- mento. A prática clínica tem mostra- do, embora nunca de maneira abso- luta, que os indivíduos portadores de dificuldades adaptativas em ida- de pregressa envelhecem com maio- res problemas do ponto de vista emocional. Se os acontecimentos existen- ciais eram sentidos com alguma difi- culdade ou sofrimento na idade adulta ou jovem, quando a própria fisiologia era mais favorável e as condições de vida mais satisfatórias e atraentes, no envelhecimento, en- tão, quando as circunstâncias con- correm naturalmente para um de- créscimo na qualidade geral de vida, a adaptação será muito mais proble- mática. Portanto, está correto dizer 33 ASPECTOS CULTURAIS E BIOPSICOSSOCIAIS DO ENVELHECIMENTO que quanto melhor tenha sido a adaptação da pessoa à vida em ida- des pregressas, melhor será tam- bém sua adaptação no envelheci- mento. Por outro lado, alguns auto- res observam uma significativa me- lhora em alguns casos de transtor- nos com o envelhecimento, fato também observável na prática psi- quiátrica. Isso nos mostra, de fato, não haver uma desestruturação psíquica no envelhecimento, mas sim, uma alteração estrutural na dinâmica psíquica, novos arranjos psicodinâmicos e nova arquitetura afetiva distinta da anterior. Porém, vale destacar que o processo de envelhecimento, mesmo diante de circunstâncias existenciais favoráveis para alguns idosos, como viver em um ambiente cheio de cari- nho, respeito e atenção, ao lado da família, adaptar-se satisfatoriamen- te a esta fase não é fácil, devido a certa fragilidade emocional própria dos traços afetivos dos idosos. Nes- tes casos não é, absolutamente, a vi- da ou as circunstâncias ambientais correlacionadas à senilidade que es- tariam proporcionando condições necessárias para a eclosão de trans- tornos, mas sim, as condições de personalidade prévia do idoso. É por causa disso que se envelhece como se viveu. Mudanças nas Funções Cogni- tivas As funções cognitivas são aquelas funções e processos que o indivíduo recebe, armazena e pro- cessa a informação relativa a si mes- ma, aos outros e ao mundo. Entre estas funções se destacam: a aten- ção, a percepção, a memória, a ori- entação e o juízo. A memória é a função cogni- tiva mais importante. Em relação às mudanças globais das funções inte- lectuais dos idosos, a memória exer- ce um papel cada vez mais impor- tante. Ela é básica para a resolução de problemas e para a adaptação ao meio. Existem diferentes tipos de me- mória, assim como também muitas formas de classificá-las. Apresentare- mos a seguir a forma mais conhecida: Memória Sensorial: É a respon- sável em registrar a informação que nos chega através dos órgãos dos sentidos. Esta informação fica retida durante apenas alguns segundos em relação a cada um dos nossos senti- dos (visão, audição, olfato, etc.). Memória de Curto Prazo: Pode- mos entendê-la como o local onde se guarda a informação durante alguns segundos. Ela é limitada no sentido de não transferir a informação regis- trada para a memória de longo pra- zo, ela se perde. Assim por exemplo 34 ASPECTOS CULTURAIS E BIOPSICOSSOCIAIS DO ENVELHECIMENTO quando “gravamos” um número de telefone, logo em seguida nos esque- cemos. Memória de Longo Prazo: É um armazenamento ilimitado, onde parte da informação que nos chega permanece durante muito tempo e inclusive de maneira “permanente”, uma vez que podemos recordar a in- formação, quem sabe para o resto de nossas vidas. A memória de longo prazo pode ser dividida em 03 tipos: Memória Episódica - É res- ponsável por recordar fatos concretos, como por exemplo, o que fizemos no natal pas- sado, o nascimento de um fi- lho ou qualquer outro aconte- cimento; Memória Semântica - É res- ponsável pelos conhecimentos de um modo geral, tais como a tabuada, os acontecimentos da II Guerra Mundial, ou seja, tu- do o que aprendemos através dos nossos estudos; Memória de Procedimentos - É aquela que serve para recor- dar a forma como se amarra um sapato, andar de bicicleta, correr, nadar, ou seja, todas as ações que aprendemos quando ainda éramos bem pequenos. Com o envelhecimento po- dem ocorrer determinadas patolo- gias que levam o indivíduo a perder a memória, como por exemplo, a Doença de Alzheimer. De qualquer forma, mesmo em idosos saudáveis, é comum ocor- rer uma dificuldade de memória, principalmente para memória re- cente, como com relação aos recados e compromissos. Esta dificuldade progride até certo nível e estabiliza. Esta situação é conhecida como perda benigna de memória da seni- lidade. Aprendizagem Existe um estereótipo de que o idoso não apresenta condições para aprender coisas novas. Ao contrário, existem diferentes estudos em que são demonstrados na prática que eles possuem uma plasticidade inte- lectual e conductual, ou seja, a capa- cidade de aprender, gerar estraté- gias, substitutivas para conseguir a aprendizagem. Os idosos necessitam de um tempo de reação mais longo, que se observa em situações como entrevis- tas, a condução de veículos, o uso do telefone celular, o manejo com o computador, etc. Podem ter dificuldades na uti- lização de algumas técnicas de aprendizagem, como a associação e a visualização. Além disso, existe uma tendência a serem mais preca- vidos. Assim como na memória, po- de-se afirmar que na aprendizagem, 35 ASPECTOS CULTURAIS E BIOPSICOSSOCIAIS DO ENVELHECIMENTO a maior complexidade, rapidez e abstração ocorrem com maior difi- culdade. Funcionamento Intelectual Os resultados obtidos segundo estudos e investigações é que exis- tem fatores que influenciam no fun- cionamento intelectual, tais como grau de escolaridade, o entorno esti- mulador, o estado de saúde física e psíquica, as perdas sensoriais, os as- pectos biográficos e de personalida- de, a motivação e a relevância do material utilizado. Com o passar dos anos neces- sitamos de mais tempo para a reso- lução de problemas, por exemplo, pois a inteligência fluída diminui, isto é, a agilidade mental. O idoso apresenta uma maior lentidão na so- lução de problemas, elaboração de informações e no tempo de reação diante das atividades e tarefas, en- quanto que a inteligência cristaliza- da melhora, pois esta é baseada nos conhecimentos adquiridos através da experiência. No funcionamento intelectual, destacam-se os seguintes aspectos: São mantidos: A compreensão, a capacidade do juízo, o vocabulário e os conhecimentos gerais. Diminuem: A memória, a aten- ção, a concentração, a assimilação e a agilidade da reação. As mudanças rápidas no ren- dimento cognitivo são indicadores significativos de deterioração física ou psíquica que merecem uma in- vestigação e acompanhamento mé- dico. Criatividade A curiosidade com relação às perguntas e respostas e às novidades é mais presente na população jovem, porém, os estudos apontam que a re- lação entre criatividade e idade se mantém estáveis ao longo do tempo. Podemoscomprovar esta tese atra- vés das artes (música, literatura, etc.). Linguagem Podemos apontar algumas ca- racterísticas descritas em diferentes estudos são: Tendência em utilizar frases mais longas e complexas; Diminuição da discriminação e compreensão da linguagem falada; Diminuição da capacidade de nomeação; “Erro semântico”, tendência a circunlóquios (explicação substituindo a palavra em fal- ta, por exemplo, em lugar de “copo”, pode ser dito “isso aí que serve para beber água”); Mudanças nas conversas, pois se recordam que disseram 36 ASPECTOS CULTURAIS E BIOPSICOSSOCIAIS DO ENVELHECIMENTO algo, mas custam para recor- dar para quem disseram por exemplo. Outras Alterações Capacidade Psicomotora: Entre as modificações mais importantes na capacidade psicomotora se desta- cam: Alteração dos reflexos; Transtornos do equilíbrio; Transtornos do conhecimento do próprio corpo; Transtornos na execução dos atos voluntários; Diminuição da capacidade de conhecimento perceptivo e de identificação; Transtornos da escrita. É importante assinalar que quanto às alterações nas articula- ções e ossos, que podem provocar osteoporose e osteoartrite, muito presentes na população idosa, prin- cipalmente feminina. Personalidade e Ajustes: Duran- te muito tempo a personalidade do idoso foi caracterizada pela redução da energia, da força, da resistência e uma diminuição da atividade social, redução de interesses, de metas e projetos. Sob outras perspectivas, hoje se fala mais de uma mudança que propriamente de diminuição. Alguns estudos apontam que a ideia principal com relação à perso- nalidade do idoso é de que esta ten- de a se tornar estável e não mais marcada por tantas alterações e nu- ances como em outras fases da vida. Como fase mais avançada do processo evolutivo, ao chegar à ve- lhice a integridade, como uma acei- tação do que foi possível realizar ao longo da vida, aceitando os êxitos e assumindo os fracassos se torna mais fácil. Reações frente às mudanças: Como enfrentamos às mudanças com o passar dos anos? As reações afetivas e emocionais são diversas e é importante destacar: A problemática; Os vários tipos de personali- dade; A história pessoal e de apren- dizagem. Desta forma, algumas reações são possíveis: Recolher-se, evitando as situa- ções estressantes como forma de autoproteção; Irritação, mau humor pelo au- mento da dificuldade para o ajuste social; Dependência de algum fami- liar ou de alguém, por exem- plo, um Cuidador. Este é um reflexo claro da diminuição da competência e um fator de ris- co para a depressão; 37 ASPECTOS CULTURAIS E BIOPSICOSSOCIAIS DO ENVELHECIMENTO Afrontamento de novas situa- ções através de novos interes- ses, novas estratégias de ajus- tamento, um maior esforço pa- ra aproveitar a relação com os demais. Perdas e Viuvez: Nesta etapa do ci- clo vital aumenta consideravelmente a possibilidade de ocorrer perdas vi- tais significativas e da viuvez, que é sem dúvidas a crise mais prejudicial nesta etapa. Ocorrem perdas reais como a viuvez, perdas físicas de amigos, per- da física do emprego com a aposenta- doria e perdas simbólicas, como a perda do papel profissional com a saí- da do mercado laboral. O ser humano enfrenta estas perdas através de um processo deno- minado duelo, mecanismo adaptativo que permite superar a dor e o impacto psicológico. BOWLBY fala de várias fases neste processo: Embotamento afetivo (dificul- dades em expressar sentimen- tos e emoções); Desejo intenso e busca da figu- ra perdida; Desorganização e desesperan- ça; Reorganização. Nem sempre se realiza de ma- neira adequada este processo e pode haver problemas. É importante dife- renciar alguns sinais e sintomas e, esses podem denominar de duelo psicológico. Duelo Normal: No duelo normal existe uma causa desencadeante, es- tão presentes a tristeza e o retrai- mento, e se dá uma aceitação da per- da sem desaprovação. Tudo isso se configura em um processo necessá- rio. Neste duelo existem fases, a saber: 1ª Fase: Tem a duração de várias semanas e se inicia logo em seguida a morte do ente querido. Comoção e incredulidade; Mostra-se ausente e confuso; Relacionamentos frios e dis- tantes; Instaura-se uma barreira di- ante da pessoa; Possível estado de dor aguda (moléstias orgânicas do tipo nervoso, sensação de rigidez, vazio estomacal, cansaço mus- cular, tensão); Sentimento de culpa; Inquietude e dispersão nas ta- refas; Eventual hostilidade com os familiares; 2ª Fase: Inicia-se após 03 semanas e dura aproximadamente até 01 ano. Recordação obsessiva do (a) falecido (a); Aceitação gradativa da reali- dade quanto à perda; Repentinas e fortes reações de dor; Necessidade de relacionar-se com as demais pessoas. 38 ASPECTOS CULTURAIS E BIOPSICOSSOCIAIS DO ENVELHECIMENTO 3ª Fase: A partir do 2º ano. O sujeito se adapta a perda do ente querido; Consciência da inutilidade de refugiar-se ao passado; Melhora nas relações familia- res e sociais; Amadurecimento quanto ao significado da própria vida. Duelo Patológico: A diferença do duelo que o idoso realiza normal- mente pode surgir: A não aceitação da perda; Muita referência ao objeto perdido; A resposta emocional dura por meses ou anos; Eventuais transtornos psicos- somáticos; Desorganização; Bruscas mudanças entre cal- ma e irritabilidade; Depressão; Insônia; Autodesvalorização; Baixa autoestima; Sintomas hipocondríacos (crença de padecer de uma do- ença grave) e fóbicos (medo, temor de algo ou de situações); Enjoos e dores de cabeça; Sintomas que identificam com a enfermidade do (a) falecido (a); Incapacidade de superação e consequentemente necessi- dade de acompanhamento te- rapêutico. Relações Familiares: As relações familiares exercem um papel primor- dial no sentimento do bem estar psi- cológico. Nos idosos ocorre um pro- cesso de reestruturação familiar mo- tivado pela saída dos filhos de casa, pela aposentadoria, incorporação de novos membros na família ou perdas. Atualmente as relações famili- ares e a estrutura da instituição fa- miliar foram modificadas considera- velmente e as principais característi- cas são: a diversidade de modelos e arranjos desta instituição, ou seja, o surgimento de famílias monoparen- tais em decorrência das separações, divórcios, aumento do número de pessoas solteiras e sem filhos. Tam- bém é importante destacar a trans- formação da família extensa com muitos filhos (03 gerações) para a família nuclear, a incorporação da mulher no mercado de trabalho, as dificuldades das famílias em desem- penhar o papel de cuidadoras dos seus idosos, em função de suas resi- dências cada vez menores e o impor- tante aumento do custo de vida. No entanto, a família segue de- sempenhando este papel de suporte comunitário e apoio psicoafetivo e emocional de maneira fundamental para seus idosos, e, esta realidade está presente principalmente nos países latinos e em países em desen- volvimento, como é o caso do Brasil. 39 ASPECTOS CULTURAIS E BIOPSICOSSOCIAIS DO ENVELHECIMENTO Sexualidade: Ainda é visível o dis- curso social e o preconceito que a so- ciedade tem em relação à sexualida- de na Terceira Idade. As pessoas em sua grande maioria, insistem em acreditar que o desejo e a atividade sexual desaparecem à medida que o sujeito envelhece. A crença de que o avançar da idade e o declínio da ati- vidade sexual estejam ligados, faz com que não se dê a devida atenção a uma das atividades associadas à qualidade de vida, como é o caso da sexualidade. A nossa cultura moderna pre- coniza que o corpo velho não é algodesejável. Os avanços tecnológicos na área da estética estão cada vez mais presentes com o objetivo de re- tardar o processo do envelhecimen- to. Apresentam-se uma variada ofer- ta de produtos endereçados àqueles que buscam se esquivar dessa con- frontação com o real do corpo. Desta forma, é então instituído um novo mercado de consumo com a pro- messa da “eterna juventude”. CONFORT (1985) menciona que a resposta sexual humana na ve- lhice é normal se não é afetada por enfermidades psíquicas, ansiedade ou expectativas sociais, que é o prin- cipal fator da diminuição da conduta sexual. Uma das variáveis mais rele- vantes na conduta sexual e afetiva é a disponibilidade do (a) parceiro (a), especialmente das mulheres. O interesse sexual no passado, a própria experiência da pessoa, a frequência das relações sexuais são os principais preditores do compor- tamento sexual atual, associado ao estado geral de saúde e às modifica- ções fisiológicas provenientes do processo do envelhecimento. No sexo feminino cabe desta- car as mudanças hormonais após a menopausa, que é caracterizada pela cessação da menstruação e carência do estrógeno. Desta forma, as mu- lheres sofrem uma série de mudan- ças físicas com a alteração dos teci- dos da vulva, vagina, trompas, seios, mucosa da bexiga e também a perda da fertilidade. Com a diminuição da lubrificação da vagina, ocorre, por- tanto, maior dificuldade para o ato sexual, e consequentemente maior risco de infecções vaginais. Com isso, perde-se os padrões da juven- tude, o que não significa dizer que se perde o desejo sexual, que perma- nece por toda a vida. Os sentimentos de perda, de falência, podem surgir neste período e devem ser conside- rados. No sexo masculino por sua vez, ocorre a andropausa, e ao con- trário das mulheres, não existe uma idade pré-estabelecida para deter- miná-la. Manifestam uma gradual 40 ASPECTOS CULTURAIS E BIOPSICOSSOCIAIS DO ENVELHECIMENTO perda da potência sexual com a di- minuição hormonal da testosterona e também, há alteração da capacida- de erétil devido a problemas vascu- lares, incompetência dos corpos ca- vernosos e problemas emocionais com o rebaixamento da libido (dese- jo). Porém, o homem não perde a ca- pacidade reprodutiva como a mu- lher. Na atividade sexual, seja ela com o (a) parceiro (a), seja ela atra- vés da prática masturbatória, a fan- tasia é fundamental. Desenvolver a imaginação erótica faz parte da vida sexual, inclusive na velhice, onde a sexualidade ganha um conteúdo mais qualitativo do que quantitati- vo. Mesmo com o passar dos anos, o sexo representa um papel importan- te na vida das pessoas. O limite físico não impede que o indivíduo possa demonstrar seus desejos. É impor- tante encontrar formas de satisfa- ção, pois a sexualidade faz parte da vida do ser humano e como vivenciá- la pode mudar de alguma forma, de acordo com a singularidade de cada um. Em um corpo mesmo envelhe- cido, é necessário encontrar beleza, pois é com este corpo que o sujeito vai de encontro ao outro e assumir a passagem dos anos lhe permite uma aceitação afetiva de si e também do outro. 41 42 ASPECTOS CULTURAIS E BIOPSICOSSOCIAIS DO ENVELHECIMENTO 6. Referências Bibliográficas COSTA, M. R. Aspectos Antropológicos. São Paulo: Instituto Sedes Sapientiae, 1996. FERNÁNDEZ, B. R. Qué es la Psicología de la Vejez. Madrid: Biblioteca Nueva. 1999. FOGAÇA, M. C. C. B. H. “Faculdade Aberta para a Terceira Idade: Possibilidade de mudança comportamental para quem fre- quenta e para aqueles que direta ou indi- retamente dela participam”. Monografia apresentada para obtenção do título de Gerontóloga pela Sociedade Brasileira de Geriatria e Gerontologia. FOGAÇA, M. C. C. B. H. 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