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0 ANOTAÇÕES ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ _ BACHARELADO EM ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA 1 ANOTAÇÕES ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ _ 2 ANOTAÇÕES ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ _ GOVERNO FEDERAL REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO REPÚBLICA DE MOÇAMBIQUE MINISTÉRIO DE EDUCAÇÃO INICIAÇÃO ÀS CIÊNCIAS SOCIAIS Ministério da Educação República de Moçambique Ministério de Educação 3 ANOTAÇÕES ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ _ 4 ANOTAÇÕES ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ _ SUMÁRIO APRESENTAÇÃO........................................................................................................................ 00 UNIDADE 01 - SURGIMENTO E DESENVOLVIMENTO DAS CIÊNCIAS SOCIAIS.................................... 00 O CONTEXTO HISTÓRICO DO SURGIMENTO DAS CIÊNCIAS SOCIAIS....................................................................... 00 PRINCIPAIS FATORES QUE CONTRIBUIRAM PARA O SURGIMENTO DAS CIÊNCIAS SOCIAIS....................................... 00 AS DIFERENTES FORMAS DE CONHECIMENTO DA REALIDADE SOCIAL................................................................... 00 RESUMINDO..................................................................................................................................................... 00 UNIDADE 02 - A UNIDADE DO SOCIAL E A PLURALIDADE DAS CIÊNCIAS SOCIAIS........................ 00 A UNIDADE DO SOCIAL E A PLURALIDADE DAS CIÊNCIAS SOCIAIS.......................................................................... 00 A UNIDADE DO SOCIAL – FENÓMENO SOCIAL TOTAL ........................................................................................... 00 RESUMINDO..................................................................................................................................................... 00 UNIDADE 03 – A SINGULARIDADE DO ESTUDO DO SOCIAL.......................................................... 00 A SINGULARIDADE DO ESTUDO DO SOCIAL.......................................................................................................... 00 RUPTURA COM O SENSO COMUM NAS CIÊNCIAS SOCIAIS..................................................................................... 00 SIGNIFICADO DA RUPTURA COM O SENSO COMUM NAS CIÊNCIAS SOCIAIS............................................................. 00 RESUMINDO..................................................................................................................................................... 00 UNIDADE 04 - SURGIMENTO E DESENVOLVIMENTO DAS CIÊNCIAS SOCIAIS................................. 00 OBJECTIVIDADE E IMPARCIALIDADE NAS CIÊNCIAS SOCIAIS................................................................................... 00 A RESPOSTA DE ÉMILE DURKHEIM...................................................................................................................... 00 A RESPOSTA DE MAX WEBER............................................................................................................................ 00 RESUMINDO..................................................................................................................................................... 00 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS................................................................................................. 00 SOBRE O AUTOR....................................................................................................................... 00 5 ANOTAÇÕES ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ _ APRESENTAÇÃO Caro(a) estudante, Bem-vindo(a) à disciplina de Introdução às Ciências Sociais! Esta disciplina está entre várias outras que você vai ter ao longo do seu curso de Licenciatura em Administração Pública. Muito provavelmente você deve estar agora a colocar, entre outras, as seguintes perguntas? Estas perguntas são muito importantes e, por isso mesmo, devem ser respondidas antes de entrarmos nos conteúdos da disciplina. Isso vai permitir que você tire melhor proveito dos temas que serão apresentados ao longo da disciplina. Administração Pública é uma das áreas da Ciência Política. Por sua vez, a Ciência Política, juntamente com outras disciplinas tais como a Sociologia e a Antropologia, constitui aquilo que se chama, de uma forma genérica, Ciências Sociais, que estuda a realidade social. Portanto, como você pode constatar, Administração Pública é uma área de conhecimento que se situa dentro das Ciências Sociais. Sendo assim, a disciplina de Introdução às Ciências Sociais é muito importante num curso de Licenciatura em Administração Pública, na medida em que é nesta disciplina que você vai tomar o primeiro contacto com as grandes preocupações e questionamentos sobre o processo de conhecimento da realidade social. A disciplina de Introdução às Ciências Sociais vai lhe dar uma visão global sobre as Ciências Sociais procurando apresentar as principais questões teórico- Por que razão estudar Introdução às Ciências Sociais num curso de Licenciatura em Administração Pública? Qual é a mais-valia que esta disciplina pode trazer para a minha formação? 6 ANOTAÇÕES ________________ ________________ ________________ ________________________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ _ metodológicas no processo da construção do conhecimento da realidade social. De uma maneira específica, a disciplina de Introdução às Ciências Sociais visa: Contextualizar historicamente o surgimento das Ciências Sociais; Diferenciar as diversas formas de conhecimento da realidade social; Fornecer ao estudante instrumentos de natureza filosófica e epistemológica que lhe permitam problematizar a construção do conhecimento em Ciências Sociais e poder, desta forma, melhor analisar os fenómenos e processos administrativos. Esta disciplina está dividida em quatro unidades. Na Unidade 1, você vai estudar o contexto histórico do surgimento e desenvolvimento das Ciências Sociais. Nesta unidade você vai também estudar as diferentes formas de conhecimento da realidade social. Na Unidade 2, você vai estudar a pluralidade das Ciências Sociais. O facto de existirem várias Ciências Sociais não significa que existem várias realidades sociais. A realidade social é só uma. As diferentes Ciências Sociais são maneiras diferentes de olhar para a mesma realidade social. Na Unidade 3, você vai estudar a questão da singularidade do estudo do social. Nesta Unidade você vai saber quais são os principais problemas inerentes ao conhecimento da realidade social. Por fim, na Unidade 4, você vai estudar o problema da objectividade e imparcialidade no processo da construção do conhecimento em Ciências Sociais. No final da Unidade você vai ficar a saber como é que autores importantes em Ciências Sociais, tais como Émile Durkheim e Max Weber responderam ao problema da objectividade e imparcialidade na produção do conhecimento sobre a realidade social. Quando chegar ao fim desta disciplina, você deverá ter adquirido e desenvolvido conhecimentos necessários para a análise do fenómeno burocrático em geral, com particular destaque para a Administração Pública, enquanto fenómeno social. Bom trabalho! 7 ANOTAÇÕES ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ _ © Im ageZ oo/C orbis - B ull's E ye UNIDADE 1 SURGIMENTO E DESENVOLVIMENTO DAS CIÊNCIAS SOCIAIS OBJETIVOS ESPECÍFICOS DE APRENDIZAGEM No final desta Unidade, você deverá ser capaz de: Contextualizar historicamente o surgimento das Ciências Sociais; Identificar os principais aspectos económicos, sociais, políticos e filosóficos que contribuiram para o surgimento das Ciências Sociais; Compreender a importância do saber filosófico para o processo da construção do conhecimento em Ciências Sociais; Diferenciar as formas de conhecimento da realidade social; 8 ANOTAÇÕES ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ _ © ImageZoo/Corbis O CONTEXTO HISTÓRICO DO SURGIMENTO DAS CIÊNCIAS SOCIAIS Caro (a) Estudante, As Ciências Sociais são um campo do saber científico que se dedica à reflexão sobre a natureza da vida em sociedade. Neste sentido (enquanto um campo do saber científico), as Ciências Sociais são uma criação recente, isto é, elas datam apenas dos meados do século XIX d. C. Isso não quer dizer, de forma alguma, que antes do surgimento das Ciências Sociais não houvesse uma reflexão sobre a natureza da vida em sociedade. Na realidade, essa reflexão sempre existiu. Ela existiu sob diferentes formas do saber, particularmente a Filosofia e o Mito. A novidade que as Ciências Sociais trazem para a reflexão da natureza da vida em sociedade é o seu carácter científico. Mas, que factores contribuiram para que isso acontecesse? Em que momento histórico isso aconteceu e por quê? Para respondermos a estas perguntas vamos começar por contextualizar historicamente o surgimento das Ciências Sociais. O surgimento das Ciências Sociais é um fenómeno situado no tempo e no espaço. Situado no tempo, no sentido de que as Ciências Sociais surgem numa época histórica específica, a saber, os meados do século XIX d.C. E situado no espaço, na medida em que as Ciências Sociais surgem na sociedade europeia, marcada por aspectos particulares do ponto de vista social, económico, polítco e cultural. Mas, como você pode imaginar as Ciências Sociais não surgiram de um dia para o outro. O seu surgimento é o resultado de um longo processo marcado por grandes acontecimentos que ocorreram na própria sociedade europeia daquela época. Que acontecimentos foram esses? Os principais acontecimentos foram: Os descobrimentos; A revolução industrial; A revolução francesa; As novas formas de pensar: Os acontecimentos que acabamos de mencionar, na verdade, podem ser considerados como fatores que contribuiram para o surgimento das Ciências 9 ANOTAÇÕES ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ _ © Im ageZ oo/C orbis – S tudio Z oo Sociais. Por isso, vejamos agora, ainda que resumidamente, cada um destes factores. PRINCIPAIS FATORES QUE CONTRIBUIRAM PARA O SURGIMENTO DAS CIÊNCIAS SOCIAIS Os descobrimentos Os descobrimentos foi um grande movimento constituído por uma série de viagens e explorações marítimas feitas pelos europeus a partir do século XV d.C. Os descobrimentos resultaram na expansão europeia e colonização – fenómenos que tiveram um grande impacto para a história da humanidade. Mas, para aquilo que nos interessa aqui, os descobrimentos foram muito importantes na medida em que representaram a saída dos europeus ao encontro do “Outro”. O “Outro” significa aqui simplesmente outros povos diferentes do povo europeu, com outras religiões, outros usos e costumes, outros hábitos, enfim, povos com outras culturas. A partir do momento em que os europeus “descobriram” o “Outro”, eles tiveram a necessidade de conhecer melhor esse “Outro” e, por essa via, se foi constituindo uma área de saber que veio resultar numa das importantes Ciências Sociais, hoje conhecida por Antropologia. Na realidade, Antropologia é, em grande medida, o resultado de todo este movimento que iniciou com os descobrimentos. A revolução industrial A revoluçao indistrial foi um acontecimento de extrema importância que trouxe transformações profundas na sociedade europeia. Enaquanto fenómeno social e económico, a revolução industrialé o culminar de um longo processo, que encontra o seu ponto mais alto no aperfeiçoamento da técnica e no aparecimento de duas classes sociais importantes no processo produtivo: os operários (também conhecidos por proletariado urbano) e a burguesia. Estas duas classes eram diferentes, na medida em que equanto os operários eram assalriados e sem acesso aos meios de produção, a burguesia era a classe que detinha os meios de 10 ANOTAÇÕES ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ _ produção e organizava todo o processo produtivo. Na realidade, os operários eram apenas trabalhadores que iam vender a sua força de trabalho aos burgueses. Estes últimos eram os patrões, donos das fábricas. Em geral, os historiadores situam entre 1750 e 1850 o pico da revolução industrial, tendo começado na Grã-Bretanha, depois na França e generalizando-se, mais tarde, para a Europa Ocidental e os Estados Unidos da América. Mas, você deve estar agora a perguntar-se qual foi a importância da revolução industrial para o surgimento das Ciências Sociais? Esta pergunta é muito importante, na medida em que nos ajuda a perceber a relevância das próprias Ciências Sociais no estudo da realidade social. Na verdade a importância aqui não está tanto na revolução industrial em si mesma, mas sim nas suas consequências, que trouxeram uma nova ordem social, cuja análise e compreensão exigiam também um novo tipo de saber, ou seja, uma nova ciência. Que consequências foram essas? Essas consequências se resumem nas crises sociais e económicas do capitalismo liberal, que tem suas raízes justamente na revolução industrial. Falando das consequências da revolução industrial, Quintaneiro, Barbosa e De Oliveira (2010), dizem o seguinte: “A partir da segunda metade do século XVIII, com a primeira revolução industrial e o nascimento do proletariado, cresceram as pressões por uma maior participação política, e a urbanização intensificou-se, recriando uma paisagem social muito distinta da que antes existia. Os céus dos grandes centros industriais começaram a cobrir-se da fumaça despejada pelas chaminés de fábricas que se multiplicavam em ritmo acelerado [...]. A capitalização e modernização da agricultura provocaram o êxodo de milhares de famílias que, expulsas de seu habitat ancestral, vagavam à procura de trabalho. As cidades, receptoras desses fluxos contínuos, foram crescendo acelerada e desordenadamente [...]. A cidade acenava a todos com a possibilidade de maior liberdade, protecção, ocupação e melhores ganhos, embora para muitos tais promessas não chegassem a cumprir- se. No carregado ambiente urbano, a pobreza, o alcoolismo, os nascimentos ilegítimos, a violência e a promiscuidade tornavam-se notáveis e atingiam os membros mais frágeis do novo sistema, particularmente os que ficavam fora da cobertura das leis e instituições sociais. A aglomeração, conjugada a outros factores como as condições sanitárias, tinha outras consequências deletérias sobre a população urbana, especialmente sobre os mais miseráveis [...] As condições de trabalho que caracterizam o início da revolução industrial eram assutadoras...os operários labutavam em turnos diários de 12 a 16 horas, ampliados para até 18 horas quando a iluminação a gás tornou-se disponível [...] A luta por melhores condições de trabalho, na Europa como na América, foi árdua, e novos direitos foram sendo aos poucos conquistados e acrescentados à legislação social e trabalhista em diversos países [...]”(Quintaneiro, Barbosa e De Oliveira, 2010, p. 10). Como você pode perceber, a partir do extrato do texto que acabamos de citar, a revolução industrial trouxe mudanças profundas para a sociedade europeia 11 ANOTAÇÕES ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ _ no seu todo. Ora, nessa altura uma das perguntas, a nível do saber científico, era como explicar essas mudanças? As áreas do saber existentes, nomeadamente a Filosofia, a Teologia, as Ciências Naturais não apresentavam explicações sobre essas mudanças, que pudessem reivindicar o estatuto de “Ciência”. Foi assim que alguns pensadores, muitos deles ligados à Filosofia, como por exemplo Auguste Comte, começaram a propor uma forma diferente de explicar as consequências da revolução industrial. Essa forma diferente de explicar as consequências da revolução industrial, que Auguste Comte chamou “física social”, contribuiu decisivamente para a constituição das Ciências Sociais. Saiba Mais Auguste Comte nasceu em Montpellier, França em 19 de Janeiro de 1798. A sua família era monárquica e católica e o pai um funcionário de categoria média. Ainda jovem, Comte adere às convicções liberais e revolucionárias que dominavam o seu tempo. Entre 1814 e 1816 frequenta a Escola Politécnica, em Paris. Devido ao encerramento da escola… regressa durante alguns meses a Montpellier onde estuda medicina e fisiologia. A formação em ciências naturais e matemática que então inicia são importantes, pois desde cedo proporá a aplicação do método científico utilizado naquelas disciplinas à nova “ciência social”. (Ferreira et al, 1995, p. 74). Revolução francesa À semelhança da revolução industrial, a revolução francesa foi um outro acontecimento extremamente importante, que trouxe mudanças profundas não só para a sociedade francesa, como também para a sociedade europeia em geral. Com efeito, datada de 1789, tendo resultado na queda do antigo regime representado pela nobreza e o clero, a revolução francesa se desencadeou sob o lema liberdade, igualdade e fraternidade. Neste contexto, a revolução francesa trouxe ideias muito importantes que vão marcar as sociedades contemporâneas, Algumas dessas ideias são: soberania do povo, estado de direito, assembleias eleitas e soberanas. Estas ideias vão desempenhar um papel importante na 12 ANOTAÇÕES ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ _ © ImageZoo/Corbis – Kari Lehr maneira como o poder político estará organizado e será exercido em muitos Estados contemporâneos. Tudo isto vai também exigir uma nova forma de conhecimento e explicação do próprio fenómeno político, fato que vai, igualmente, contribuir de uma maneira significativa no surgimento das Ciências Sociais. As novas formas de pensar As novas formas de pensar foram outro acontecimento que contribuiu para o surgimento das Ciências Sociais. De que forma? Pois bem. As novas formas de pensar a que nos referimos aqui estão profundamente relacionadas com as correntes filosóficas, que defendiam a autonomia da razão no processo de produção do conhecimento, rompendo, deste modo, com a tradição da Idade Média.Com o movimento do Renascimento, particularmente a partir do século XV d. C., vão-se constituindo correntes filosóficas, que exaltam a razão no processo de produção do conhecimento. Para aquilo que nos interessa nesta Unidade, vamos destacar duas correntes filosóficas, nomeadamente o racionalismo e o positivismo. Do racionalismo, as Ciências Sociais vão, sobretudo, ser influenciadas por duas ideias importantes: “deve-se afastar, no estudo da realidade objectiva, toda e qualquer ideia preconcebida, toda a noção apriorística sobre os factos que se estudam; o espírito deve ser conduzido à pesquisa pela dúvida, dúvida metódica e construtiva, que analisa e investiga, único meio de retirar a verdade dos factos e não deformar os factos para ajustá-los a uma verdade revelada”. Relativamente ao positivismo, as Ciências Sociais, no seu período inicial, vão reter particularmente a ideia da descoberta das leis de funcionamento das sociedades humanas. Tal como fizemos referência nesta Unidade, Auguste Comte – um dos autores mais representativos do positivismo – inventou a expressão “física social” para designar um novo saber científico inteiramente dedicado ao estudo das sociedades humanas. Alguns autores consideram que “a ambição de Comte era fundar uma ciência naturalista da sociedade capaz de explicar o passado da espécie humana e predizer o seu futuro aplicando os mesmos métodos de investigação que tinham provado ser tão bem sucedidos no estudo da natureza, a saber, observação, experimentação e comparação” (Outhwaite e Bottomore, 1996, p. 593). Como você pode constatar, as Ciências Sociais têm uma relação muito forte com a Filosofia. Na verdade, a Filosofia serviu de base muito importante para 13 ANOTAÇÕES ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ _ o surgimento da Ciência em geral e, de uma maneira particular, as Ciências Sociais. Em que sentido? No sentido de que as Ciências Sociais herdaram da Filosofia o espírito de questionamento, interrogação da realidade social. Por conseguinte, assim como a Filosofia começa com perguntas, questiona, interroga, a pesquisa em Ciências Sociais também sempre começa com perguntas. À semelhança do que acontece em Filosofia, em Ciências Sociais é fundamental questionar, colocar perguntas sobre a realidade social. Mas, você provavelmente deve estar a perguntar-se, será a Filosofia mesma coisa que Ciências Sociais? Com base no que você já estudou até aqui, tente responder a esta pergunta nas linhas que se seguem: ___________________________________________________________________ ___________________________________________________________________ ___________________________________________________________________ ___________________________________________________________________ ___________________________________________________________________ ___________________________________________________________________ ___________________________________________________________________ ___________________________________________________________________ ___________________________________________________________________ ___________________________________________________________________ ___________________________________________________________________ Que tal? Foi difícil responder à pergunta? Se sim, não se preocupe, pois esta pergunta é mesmo complexa. Por isso, vamos tentar esclarecê-la nas linhas que se seguem. A resposta à pergunta é claramente não. Porquê? Não, porque enquanto a Filosofia se preocupa com “o que deve ser”, ou seja as essências das coisas (como deve ser um bom governo, como deve ser uma boa sociedade, como devem ser os usos e costumes, etc., as Ciências Sociais se preocupam com a compreensão “do que é”, ou seja, daquilo que é dado observar (a compreensão de como funciona uma sociedade, como funciona um Estado, que razões explicam as diferenças, por exemplo, entre o Estado Americano e o Estado Moçambicano ou ainda o Estado Brasileiro?, etc). Tendo dito isso, podemos afirmar que, na realidade, as Ciências Sociais são apenas uma forma de conhecimento que se produz sobre a realidade social, o que não quer dizer que seja a única forma. Na verdade, existem diferentes formas 14 ANOTAÇÕES ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ _ © ImageZoo/Corbis – Rob Colvin de conhecimento da realidade social. Algumas dessas formas de conhecimento são: conhecimento filosófico, conhecimento religioso e conhecimento do senso comum. Você agora deve estar perguntando, qual é a diferença entre todos estes tipos de conhecimento. Isso é o que vamos ver na secção a seguir. AS DIFERENTES FORMAS DE CONHECIMENTO DA REALIDADE SOCIAL O que distingue o conhecimento científico de outros tipos de conhecimento não é nem a veracidade, nem o objecto conhecido, mas é, sobretudo, a FORMA de Conhecer, O METODO e os ISNTRUMENTOS usados para conhecer. A ciência moderna é o culminar de todo um processo histórico liderado pelo conhecimento filosófico na busca do saber, da verdade. Todavia, a ciência moderna é um saber diferente do conhecimento filosófico, como, aliás, explicámos acima. A ciência moderna foi-se construindo numa espécie de movimento emancipatório relativamente ao conhecimento filosófico, na medida em que a ciência, diferentemente da filosofia, ela visa conhecer o fenómeno, aquilo que aparece e não as essências, que caem no campo do conhecimento filosófico. Só no sec. XVI, Galileu Galilei foi o autor que inaugura a atitude científica ao rejeitar um conhecimento baseado nas essências propondo um conhecimento baseado nos factos, na experimentação. A experimentação segue basicamente um procedimento indutivo: partindo de casos particulares procura, através da observação, chegar a enunciados gerais, teorias. O método experimental de Galileu segue assim os seguintes passos: Observação dos fenómenos; Análise dos elementos constitutivos desses fenómenos; Indução de certo número de hipóteses; Verificação das hipóteses; Generalização do resultado; Confirmação das hipóteses e formulação de leis gerais. Francis Bacon, um pensador inglês apresenta um método semelhante, que também é um procedimento indutivo: Formulação de hipóteses; Repetição; Testagem de hipóteses; 15 ANOTAÇÕES ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ _ Formulação de generalizações e leis Voltemos, de uma forma resumida e comparada, às principais características dos diferentes tipos de conhecimento: Conhecimento do Senso Comum é: Superficial: Fica nas aparências sem questionamento profundo sobre a própriarealidade; Sensitivo: faz referência às vivências do dia a dia, às experiências do quotidiano; Subjectivo: está dependente da maneira como o próprio sujeito (individual ou colectivo) organiza a sua própria experiência; Assistemático: não se preocupa com a sistematização das ideias; Acrítico: a questão da verdade ou falsidade não é submetida à crítica, questionamento, experimentação, verificação; Conhecimento Filosófico é: Valorativo: baseia-se em juízos valorativos sublinhando o como deveria ser: bom, mau, …; é normativo; Não verificável: As hipóteses, enunciados filosóficos não podem ser verificados: confirmados ou refutados, através da experimentação; Racional: baseado na razão e consiste num conjunto de enunciados logicamente correlacionados; Sistemático: as suas hipóteses e enunciados pretendem ser uma representação coerente sobre a realidade conhecida; Conhecimento Religioso é: Baseia-se em verdades reveladas; Sistemático; Não verificável; Infalível, indiscutível Conhecimento Científico (das Ciências Sociais) é: Real, factual: tudo aquilo que se manifesta e põe de lado tudo aquilo que tem a ver com essências; Contingente: A falsidade ou veracidade das hipóteses é baseada na experimentação, situada no tempo e no espaço; 16 ANOTAÇÕES ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ _ Sistemático: constituído por um corpus, conjunto coerente de ideias, enunciados (teorias) e não conhecimento disperso; Verificável: tudo aquilo que não pode ser comprovado cai fora do âmbito da ciência; Falível: o conhecimento científico não é definitivo. Ele é sempre provisório: novas proposições e técnicas podem reformular as teorias. 17 ANOTAÇÕES ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ _ Resumindo Nesta Unidade você estudou o contexto histórico do surgimento das Ciências Sociais. Você agora já deve ter uma noção clara sobre os principais factores ou acontecimentos que contribuíram de uma maneira significativa para o surgimento das Ciências Sociais. Além disso, você já deve também ser capaz de : Compreender a importância do saber filosófico para o processo da construção do conhecimento em Ciências Sociais; Diferenciar as formas de conhecimento da realidade social; O que acha da matéria estudada nesta Unidade? Está clara para você? Se sim, vamos passar para a Unidade 2 da nossa disciplina de Introdução às Ciências Sociais. Mas, se a matéria que tratámos nesta Unidade 1 não está clara para você, por favor, volte a ler novamente os principais pontos deste texto e converse com o seu tutor e consulte a principal bibliografia sobre o assunto, que é fornecida nesta disciplina. 18 ANOTAÇÕES ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ _ © Im ages.com /C orbis – K ino B rod UNIDADE 2 A UNIDADE DO SOCIAL E A PLURALIDADE DAS CIÊNCIAS SOCIAIS OBJETIVOS ESPECÍFICOS DE APRENDIZAGEM No final desta Unidade, você deverá ser capaz de: Explicar por que razão, sendo a realidade social uma só, temos várias Ciências Sociais; Explicar o conceito de “fenómeno social total”; e Compreender a importância da interdisciplinaridade no estudo dos fenómenos sociais. 19 ANOTAÇÕES ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ _ © ImageZoo/Corbis – Alloy A UNIDADE DO SOCIAL E A PLURALIDADE DAS CIÊNCIAS SOCIAIS Caro (a) estudante, Com base no que vimos na Unidade 1, podemos dizer que as Ciências Sociais são produto da história, no sentido de que o seu surgimento dependeu de uma série de acontecimentos históricos, particularmente os descobrimentos, a revolução industrial, a revolução francesa, o desenvolvimento de correntes filosóficas tais como o racionalismo e o positivismo. Quando falamos de Ciências Sociais estamos a referirmo-nos a um conjunto de áreas de conhecimento que estudam diferentes fenómenos da realidade social. Algumas dessas áreas de conhecimento são a sociologia, a antropologia, a ciência política, a história, etc. Apesar de semelhanças, cada uma destas Ciências Sociais tem o seu próprio objecto de estudo e tem a sua particularidade. Mas, isso não quer dizer que cada Ciência Social estuda uma realidade social diferente da estudada por outras Ciências Sociais. A realidade estudada por todas as Ciências Sociais é a mesma: realidade social. Cada Ciência Social olha para a realidade social de uma maneira particular. Como é que isso se explica? Que factores determinam a existência de várias Ciências Sociais? Que relação existe entre as diferentes Ciências Sociais? Todas estas perguntas são muito importantes, na medida em que nos ajudam a perceber melhor a complexidade de qualquer fenómeno social, como por exemplo, o Estado, a administração pública, a governação, a cultura, etc. Para responder às perguntas que acabámos de colocar, vamos começar por falar daquilo que chamamos “a unidade do social”. Vamos a isso… No período inicial do surgimento das Ciências Sociais havia uma ideia aceite, com alguma facilidade, segundo a qual, a cada Ciência Social cabe investigar uma realidade social diferente daquela que é investigada por outras Ciências Sociais (Nunes, 2005). Quer dizer, de acordo com essa ideia, haveria uma realidade política investigada apenas pela Ciência Política, uma realidade económica investigada pela Economia, uma realidade cultural investigada pela Antropologia, uma realidade sociológica investigada pela Sociologia, assim por diante. Ora, para se opor a esta ideia (de várias realidades sociais), no início do século XX d.C, um sociólogo e antropólogo francês chamado Marcel Mauss trouxe um conceito revolucionário: o conceito de “Fenómeno Social Total”. 20 ANOTAÇÕES ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________________________ ________________ ________________ _ Google Imagens: Tor Aarestad Saiba Mais Marcel Mauss foi um sociólogo e antropólogo francês. Ele nasceu em 10 de Maio de 1872 em Epinal, França e era sobrinho do sobejamente conhecido sociólogo francês chamado Émile Durkheim. Marcel Mauss estudou fiolosofia na Universidade de Bordeaux e história da religião na Escola Prática de Altos Estudos, em Paris. Foi aqui onde ele começou a sua carreira como professor de religião primitiva. Ele também ensinou no prestigiado Colégio de França e foi co-fundador do Instituto de Etnologia, na Universidade de Paris (Fonte: http://fr.wikipedia.org/wiki/Marcel_Mauss. Consultado em 18 de Janeiro de 2011). A UNIDADE DO SOCIAL – FENÓMENO SOCIAL TOTAL Comecemos por colocar a seguinte pergunta: o que é isso de “Fenómeno Social Total”? Você tem alguma ideia?... Tente! Que tal, conseguiu? Se não conseguiu, não faz mal. “Fenómeno Social Total” é um conceito complexo. Para aquilo que nos interessa nesta Unidade, definimos o conceito de “Fenómeno Social Total” como um “ conjunto de fenómenos que – seja na sua estrutura própria, seja nas suas relações e determinações – têm implicações simultaneamente em vários níveis e em diferentes dimensões do real- social, sendo portanto susceptíveis, pelo menos potencialmente, de interessar a várias, senão a todas as Ciências Sociais” (Nunes, 2005, p. 24). Parece complicado, não é? Na verdade, o que acabámos de citar acima quer simplesmente dizer o seguinte: a realidade social é composta por fenómenos sociais, que transportam consigo várias dimensões e, por isso mesmo, podem ser objecto de estudo de várias Ciências Sociais. Por outras palavras, um fenómeno social pode ser estudado sob várias perspectivas, o que equivale dizer que um mesmo fenómeno social pode ser estudado por várias Ciências Sociais, na medida em que encerra em si várias dimensões. Peguemos num exemplo concreto para ilustrar o que estamos a tentar explicar. Por exemplo, Adérito Sedas Nunes (2005), um autor português importante na área das Ciências Sociais, ao exemplificar um “Fenómeno Social Total” tomou o exemplo de Classes Sociais. Segundo Adérito Sedas Nunes, as Classes Sociais são um “Fenómeno Social Total”, na medida em que interessam à: Sociologia: classes sociais são vistas como elementos estruturais e estruturantes basilares; http://fr.wikipedia.org/wiki/Marcel_Mauss 21 ANOTAÇÕES ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ _ Economia: no sentido de que a estrutura das actividades e das relações económicas constituem elementos fundamentais para a constituição da “situação de classe”; Ciência Política: uma vez constituídas, as classes sociais são portadoras de interesses antagónicos, o que gera relações de poder, que é o foco da Ciência Política; Psicologia Social: as actividades, opiniões, preconceitos colectivos, que se manifestam nos indivíduos são em grande medida determinados pela classe social. Poderíamos mencionar mais áreas das Ciências Sociais que se interessam às Classes Sociais. Mas, também poderíamos pegar em “pobreza”, “lobolo” ou ainda a “função pública” como fenómenos sociais totais, no sentido de que cada um destes fenómenos encerra em si mesmo uma multiplicidade de dimensões. Assim, a “pobreza”, o “lobolo”, a “função pública” podem ser analisados a partir de diferentes perspectivas: sociológica, antropológica, económica, da ciência política, etc. Portanto, como sublinha Adérito Sedas Nunes (2005), o campo da realidade social sobre o qual as Ciências Sociais se debruçam é só um e todos os fenómenos que compõem esse campo são “fenómenos sociais totais”. Um fenómeno social encerra em si uma multiplicidade de dimensões e, por isso mesmo, pode ser analisado a partir de diferentes perspectivas. Mas, você, provavelmente, deve estar agora a colocar a seguinte pergunta: se diferentes Ciências Sociais podem se interessar a um mesmo fenómeno, o que é que faz a diferença entre uma e outra Ciência Social? Quer dizer, quando a Sociologia, a Antropologia, a Ciência Política se interessam ao fenómeno burocrático, por exemplo, será que todas elas o fazem da mesma maneira? Com base no que você já estudou até aqui, procure responder a esta pergunta nas linhas que se seguem: ___________________________________________________________________ ___________________________________________________________________ ___________________________________________________________________ ___________________________________________________________________ ___________________________________________________________________ ___________________________________________________________________ ___________________________________________________________________ ___________________________________________________________________ ___________________________________________________________________ ___________________________________________________________________ 22 ANOTAÇÕES ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ _ © ImageZoo/Corbis – Darren Pryce Que tal, foi difícil responder à pergunta? Se sim, não se preocupe… porque a resposta é complexa e você vai ter mais subsídios para a resposta, à medida que for avançando nesta disciplina. Seja como for, esta pergunta é extremamente importante, na medida em que nos ajuda a perceber a razão da existência das diferentes Ciências Sociais, ou seja, a questão da pluralidade das Ciências Sociais. Este é o tópico de que nos vamos ocupar a seguir. Você vai ver que ao desenvolvermos este tópico, nós estaremos respondendo à pergunta feita acima. A PLURALIDADE DAS CIÊNCIAS SOCIAIS A existência de diferentes Ciências Sociais não provem do facto de estas se ocuparem de diferentes fenómenos ou realidades sociais. Dito de uma maneira muito simples, a diferença entre Sociologia e Antropologia não provem do facto de que uma estuda a realidade sociológica e outra a realidade antropológica; a diferença entre a Ciência Política e a História não provem do facto de que uma estuda a realidade política e outra a realidade histórica… Não. Todas as Ciências Sociais se ocupam da mesma realidade: a realidade social. Então, de onde vem a diferença? A diferença entre as várias Ciências Sociais vem das próprias Ciências Sociais. Parece um jogo de palavras, não é?... Na realidade não se trata de um jogo de palavras, na medida em que ao afirmarmos que a diferença entre as várias Ciências Sociais provem das próprias Ciências Sociais significa que cada uma das disciplinas encara, aborda, analisa de forma diferente a mesma realidade social. Segundo Nunes (2005), existem quatro níveis principais, nos quais as Ciências Sociais se diferenciam: Os fins ou objectivos que comandam a investigação: em cada disciplina das Ciências Sociais, os investigadores se propõem fins e objectivos específicos. Assim, por exemplo, enquanto em Sociologia os investigadores se interessem mais pela estruturação das relações sociais, em Ciência Política,os investigadores estão mais interessados pelas relações de poder; Os problemas sobre os quais a pesquisa deve incidir. Como veremos mais em diante, em Ciências Sociais os problemas de investigação são construídos, através de um processo que passa pela elaboração de perguntas, questionamentos da própria realidade social. Assim, cada Ciência Social constrói os seus problemas de investigação de uma forma 23 ANOTAÇÕES ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ _ diferente, o que equivale dizer que levanta suas próprias e específicas questões, perguntas de investigação. Os critérios usados pelos investigadores a fim de seleccionar as variáveis relevantes para o estudo dos problemas construídos. Os sociólogos, os antropólogos, os politólogos, os historiadores têm, cada um, critérios diferentes para privilegiar este ou aquele aspecto a analisar. Os métodos e técnicas de pesquisa empírica e de interpretação teórica. Embora hoje em dia haja cada vez mais empréstimo de técnicas de pesquisa entre as diferentes disciplinas das Ciências Sociais, cada disciplina das Ciências Sociais possuem seus métodos e técnicas de pesquisa empírica que lhe são próprios. Assim, por exemplo, o que se chama observação participante é uma técnica de pesquisa, que até se confunde com o próprio método antropológico. Mas, quando olhamos para os quatro níveis acima mencionados, existe uma espécie de encadeamento entre si. Em que sentido? No sentido de que os fins ou objectivos de uma disciplina das Ciências Sociais determinam a definição dos problemas; esta determina a selecção das variáveis relevantes que conduzem à adopção de métodos e técnicas adequados para se trabalhar sobre as variáveis seleccionadas e assim se resolver os problemas previamente definidos e se atingir os fins da disciplina (Nunes 2005). Além dos níveis acima mencionados, ao quais contribuem significativamente para a diferenciação entre as várias Ciências Sociais, pode-se também considerar que o que uma determinada Ciência Social é como produto, o seja o que a Sociologia, a Antropologia ou ainda a Ciência Política são, cada uma delas na sua especificidade, depende daquilo que cada uma dessas Ciências Sociais é como sistema de produção (Nunes 2005). Concretamente, isso quer dizer que depende de: Quem são os investigadores, seus interesses científicos, suas posições relativamente à dinâmica social, cultural, política, etc.; Os meios de produção que os investigadores manipulam; métodos, conceitos, teorias, recursos financeiros, recursos humanos, etc.; As organizações onde se realiza a investigação: quem as financia, qual é o seu grau de liberdade, independência, etc.; Objecto de estudo construído: como mencionado acima, cada Ciência Social constrói o seu próprio objecto científico. Como você pode perceber, a questão da pluralidade das Ciências Sociais encontra sua explicação na dinâmica de desenvolvimento das próprias Ciências Sociais. Assim, o facto de a realidade estudada pelas Ciências Sociais ser uma só implica que as diferentes Ciências Sociais não podem ser vistas como compartimentos estanques ou gavetas. Quer dizer, não podemos ver a Sociologia, a Antropologia, a Ciência Política, a História, a Demografia, etc. como Ciências 24 ANOTAÇÕES ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ _ © ImageZoo/Corbis – Bull's Eye completamente separadas uma das outras. A consequência disso é a ideia de interdisciplinaridade em Ciências Sociais. Saiba Mais A interdisciplinaridade, nas Ciências Sociais, significa o intercâmbio de saberes com vista à complementaridade do conhecimento, para melhor explicar os fenómenos sociais na sua totalidade.0 real social é pluridimensional e, por isso, susceptível de ser abordado de diferentes maneiras pelas diversas Ciências Sociais. Estas mantêm entre si relações de interdependência na abordagem aos fenómenos sociais. As diferentes ciências analisam as mesmas realidades, os mesmos fenómenos "sociais totais", embora privile- giando cada uma delas uma perspectiva própria de análise. Este intercâmbio entre disciplinas leva a que as investigações realizadas numa disciplina qualquer possam ser fundamentais para outra. "Assim, é precisamente a mesma realidade humana e social que vai interessar às diversas Ciências Sociais [...]. Temos, portanto, que o social é único; as maneiras de o abordar, as dimensões a privilegiar é que variam consoante os interesses que orientam e a partir dos quais se situa o investigador em Ciências Sociais, com a sua específica abordagem da realidade social [...]". (Fonte: http://www.esas.pt/dfa/sociologia/interdisciplinaridade.htm Consultado em 18 de Janeiro de 2011) http://www.esas.pt/dfa/sociologia/interdisciplinaridade.htm 25 ANOTAÇÕES ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ _ Resumindo Nesta Unidade você estudou a unidade do social e a pluralidade em Ciências Sociais. Você agora já deve ter uma noção clara sobre as razões que explicam a existência de várias Ciências Sociais, sendo a realidade social uma e única. Além disso, você já deve também ser capaz de : Explicar o conceito de “Fenómeno Social Total” em Ciências Sociais; Explicar e perceber a importância do conceito de interdisciplinaridade em Ciências Sociais; O que acha da matéria estudada nesta Unidade? Está clara para você? Se sim, vamos passar para a Unidade 3 da nossa disciplina de Introdução às Ciências Sociais. Mas, se a matéria que tratámos nesta Unidade 2 não está clara para você, por favor, volte a ler novamente os principais pontos deste texto e converse com o seu tutor e consulte a principal bibliografia sobre o assunto, que é fornecida nesta disciplina. 26 ANOTAÇÕES ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ _ © Im ageZ oo/C orbis - B ull's E ye UNIDADE 3 A SINGULARIDADE DO ESTUDO DO SOCIAL OBJETIVOS ESPECÍFICOS DE APRENDIZAGEM No final desta Unidade, você deverá ser capaz de: Explicar por que razão o processo de construção do conhecimento nas Ciências Sociais passa pela ruptura com o senso comum; Compreender o significado da ruptura com o senso comum nas CiênciasSociais; e Compreender a diferença entre as Ciências Sociais e as Ciências Naturais 27 ANOTAÇÕES ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ _ © Images.com/Corbis - Todd Davidson © Lawrence Manning/Corbis - Corbis Yellow © ImageZoo/Corbis - Alloy A SINGULARIDADE DO ESTUDO DO SOCIAL Caro (a) estudante, Tal como vimos na Unidade 1, as Ciências Sociais são um ramo do saber científico que se dedica ao estudo da vida em sociedade. Quando as Ciências Sociais surgem nos meados do séc. XIX d.C., elas tiveram que ir conquistando o estatuto de Ciência, através da construção de um objecto e método de estudo próprios. Portanto, as Ciências Sociais tiveram que construir o seu próprio objecto de estudo, diferente do objecto de estudo das Ciências Naturais, pois as Ciências Sociais não estudam a mesma realidade que as Ciências Naturais. Assim, enquanto nas Ciências Naturais, como por exemplo, em Física, Química, Astronomia etc., o cientista estuda algo que ele próprio pode isolar, manipular e submeter ao processo de experimentação em laboratório (como por exemplo a água, o metal, os astros, etc.), nas Ciências Sociais, o cientista não tem as mesmas possibilidades. De facto, sendo a vida em sociedade o objecto de estudo das Ciências Sociais, resulta que o cientista social é ele próprio parte do seu objecto de estudo. Ora, que implicações este facto tem para a construção do objecto de estudo em Ciências Sociais? Como é que o cientista social pode estudar uma realidade da qual ele próprio faz parte? Enfim, qual é a singularidade do estudo do social? As respostas a estas perguntas são muito importantes, na medida em que elas nos permitem perceber melhor a particularidade do processo de construção do objecto de estudo nas Ciências Sociais e, por isso mesmo, a singularidade do estudo do social. Nas linhas que se seguem, nós vamos procurar trazer respostas às perguntas que fizemos há pouco. Vamos a isso... Vamos começar com dois exemplos simples: O primeiro exemplo é “família enquanto objecto de estudo”. Quando um cientista social está a estudar a família como um facto social, é evidente que ele próprio, no seu dia a dia, está envolvido em algum tipo de relação familiar como, por exemplo, uma relação de pai, mãe, filho, ou irmão, etc. O segundo exemplo é “Administração Pública, enquanto objecto de estudo”. Quando um cientista social está a estudar o desempenho da Administração Pública na prestação de serviços aos cidadãos, é claro que ele próprio, no seu dia a dia, de alguma forma, tem experiência dos serviços prestados pela Administração Pública do seu próprio país ou de outro país qualquer. 28 ANOTAÇÕES ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ _ Como você pode perceber, quer num quer no outro exemplo, o cientista social é parte do seu próprio objecto de estudo. Isto quer dizer que quando um sociólogo, um antropólogo ou ainda um politólogo vai estudar, por exemplo, a qualidade dos serviços prestados por uma instituição do Estado, ele já traz consigo uma ideia sobre o assunto, fruto da sua experiência do dia a dia. Mas, há um risco muito grande de o próprio cientista social confundir essa ideia que tem da realidade social com a própria realidade social. A este propósito, vejamos o que Émile Durkheim diz: “O homem não pode viver no meio das coisas sem fazer delas ideia segundo as quais regula o seu comportamento. Mas, como essas noções estão mais próximas de nós e mais ao nosso alcance do que as realidades a que correspondem, tendemos naturalmente a substitui-las a estas últimas e a fazer delas a própria matéria das nossas especulações. Em vez de observar as coisas, de as descrever, de as comparar, contentamo-nos em tomar consciência das nossas ideias, em analisá-las, em combiná-las. Em vez de uma ciência de realidades, não fazemos senão uma mera análise ideológica” (Durkheim 2007, p. 49). Portanto, como você pode constatar, com base na citação de Durkheim que acabámos de fazer, a nossa experiência do dia a dia nos leva a produzir ideias sobre o mundo que nos rodeia, sobre o grupo, a sociedade, o Estado em que vivemos. Isso quer dizer que nós temos uma certa familiaridade com o social. De facto, qualquer pessoa, com base na sua experiência do dia a dia, pode produzir e tem um certo conhecimento sobre como funcionam as instituições do Estado, como funcionam as instituições sociais, tais como a família, o lobolo, os ritos de iniciação etc. Mas, este conhecimento produzido com base na experiência do dia a dia não pode ser confundido, de maneira nenhuma, com o conhecimento científico sobre o social. Ora, justamente por causa desta familiaridade que o investigador em Ciências Sociais tem com o social, o processo de produção de conhecimento científico na área das Ciências Sociais passa pela ruptura com aquilo que alguns autores chamam pré-noções ou senso comum. Provavelmente você deve estar agora a perguntar o que é isso de pré- noções? o que é isso de senso comum? Pois bem... Você lembra-se do que falámos na Unidade 1 sobre os diferentes tipos de conhecimento e mencionámos o senso comum como sendo um dos tipos de conhecimento? Lembra-se também que dissemos que uma das características do senso comum é ser um conhecimento superficial e acrítico? Se não se lembra, por favor, volte a consultar a Unidade 1. Na realidade, pré-noções e senso comum significam a mesma coisa. Trata- se de ideias que vamos construindo como resultado da experiência quotidiana. Por exemplo, ideias como “homem não chora...”; “há corrupção na função pública porque os funcionários são mal pagos...”; “chefe é chefe, não pode ser questionado”, etc., podem ser consideradas como sendo senso comum ou pré- noções. Vejamos o que Emile Durkheim diz sobre so senso comum ou pré-noções: 29 ANOTAÇÕES ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ _ © Google Images – Ph. Manuell Coll. “ (...) as noções que acabámos de referir são as notiones vulgares ou prenotiones... que tomam o lugar dos factos. São os idola, espécies de fantasmas que desfiguram o verdadeiro aspecto das coisas e que, no entanto, nós confundimos com as verdadeiras coisas... Ora, é sobretudo em sociologia [entenda-se Ciências Sociais] que estas pré-noções... são susceptíveis de dominar os espíritos e de se substituir à realidade... A organização da família, do contrato, da repressão, do Estado, da sociedade, aparecem, assim, como um simples desenvolvimento das ideias que temos sobre a sociedade, o Estado, a justiça, etc. (...)” (Durkheim 2007, p. (51 – 52). Depois desta citação de Durkheim que acabámos de fazer, imagino quevocê esteja agora a colocar-se muitas questões... Isso é muito bom. Uma das questões que você, provavelmente, neste momento, deve estar a colocar-se é a questão de saber o que é preciso fazer para que o conhecimento produzido nas Ciências Sociais não se confunda com as pré-noções, com o senso comum? Esta questão é muito importante e extremamente discutida nas Ciências Sociais. Muitos autores, como por exemplo, Émile Durkheim, consideram que o primeiro passo a dar é a ruptura com as pré-noções, com o senso comum. Mas, na realidade, o que significa romper com o senso comum? Esta é a discussão que vamos fazer na secção a seguir. Saiba Mais Émile Durkheim foi um sociólogo francês muito famoso. Ele, juntamente com Karl Marx e Max Weber, é considerado como o arquitecto principal da Ciência Social moderna. Émile Durkheim nasceu em Épinal, em França a 15 de Abril de 1858. Ele fundou o primeiro departamento de Sociologia na Europa, na Universidade de Bordeaux, em França, em 1895. Ele refinou o positivismo originalmente estabelecido por Auguste Comte... Para Durkheim, Sociologia era a Ciência das Instituições, cujo objectivo era descobrir a estrutura dos “factos sociais”. Durkheim tem uma vastíssima obra, com destaque para livros que contribuíram de uma maneira significativa para o desenvolvimento das Ciências Sociais, nomeadamente “As Regras do Método Sociológico”, “O Suicídio”, “A Divisão Social do Trabalho”, etc. (Fonte: http://en.wikipedia.org/%89mile_Durkheim. Consultado a 9 de Fevereiro de 2011) http://en.wikipedia.org/%89mile_Durkheim 30 ANOTAÇÕES ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ _ RUPTURA COM O SENSO COMUM NAS CIÊNCIAS SOCIAIS Se você se lembra do que falámos sobre o processo de surgimento das Ciências Sociais, na Unidade 1, você vai perceber que as Ciências Sociais surgem como o resultado de um processo de busca de explicações (diferentes da Filosofia, da Teologia, do senso comum) sobre o funcionamento das sociedades humanas. Essas explicações reivindicavam a qualificação de Ciência, quer dizer, um saber sistematizado e objectivo sobre a realidade social. Mas, isso foi possível porque os primeiros sociólogos, antropólogos, politólogos, historiadores, etc., perceberam que a ordem social, a realidade social não é algo determinado por alguma vontade divina ou uma força que esteja fora da própria sociedade. Dito de outra maneira, os primeiros cientistas sociais perceberam que, por exemplo, as causas do funcionamento deficiente das instituições de um Estado só podem ser encontradas na própria sociedade e não numa vontade divina ou ordem sobrenatural. Ora, explicar o funcionamento das instituições sociais, políticas, económicas, enfim o funcionamento das sociedades humanas usando os cânones da Ciência, implica um exercício de ruptura com o senso comum. Assim, no início do sec. XX d.C, Émile Durkheim insistiu, em várias das suas obras, particularmente na sua famosa obra “As Regras do Método Sociológico”, na ideia segundo a qual a investigação científica nas Ciências Sociais deve começar pela ruptura com as pré-noções. Isso porquê? Porque o senso comum nos traz a ilusão do saber imediato, um saber sem questionamento. Tomado neste sentido, o senso comum pode ser considerado um obstáculo à construção do conhecimento científico. Vejamos, ainda que resumidamente, como o senso comum pode ser um obstáculo à construção do conhecimento científico. O senso comum, muitas vezes, procura construir interpretações naturalistas, individualistas e etnocentristas sobre a realidade social (Silva 1986). Isto quer dizer o quê, concretamente? Você seria capaz de responder a esta pergunta? Tente nas linhas que se seguem: ___________________________________________________________________ ___________________________________________________________________ ___________________________________________________________________ ___________________________________________________________________ ___________________________________________________________________ ___________________________________________________________________ ___________________________________________________________________ ___________________________________________________________________ ___________________________________________________________________ ___________________________________________________________________ ___________________________________________________________________ ___________________________________________________________________ 31 ANOTAÇÕES ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ _ Que tal, conseguiu? Se não conseguiu, não se preocupe... porque você vai perceber que à medida que formos avançando, a questão das interpretações do senso comum vai ficando mais clara. O senso comum tende a produzir interpretações naturalistas da realidade social, no sentido de que a explicação da realidade social é feita com base em factores de ordem natural ou biológica. Por exemplo, o senso comum explica que a divisão de tarefas no forum doméstico entre homem e mulher é fruto da natureza... o homem não pode fazer tarefas domésticas tais como limpar a casa, confeccionar os alimentos, lavar a roupa porque estas são tarefas reservadas à mulher, porque a natureza é assim mesmo... Como você pode constatar, a partir deste exemplo, o senso comum evoca “causas naturais” (a natureza é assim mesmo, isso foi sempre assim, etc...) para explicar a divisão de tarefas entre homem e mulher. Dizemos que o senso comum tende a produzir interpretações individualistas da realidade social, no sentido de que o senso comum tende a explicar o comportamento de indivíduos singulares, isolando-os dos grupos, das sociedades, a que pertencem. Quer dizer, nas suas interpretações individualistas, o senso comum não percebe que o comportamento dos indivíduos singulares é fruto da sua interacção com os grupos, sociedades a que pertencem. Por exemplo, para explicar o fraco desempenho de um funcionário público numa determinada instituição do Estado, o senso comum vê unicamente o individuo,... isolado do seu meio, do seu grupo, da sua instituição, da sua sociedade. Como consequência, o senso comum vai explicar o comportamento desse funcionário público, neste caso o seu fraco desempenho, com base em “causas individuais”, ou seja, o individuo tomado como algo de isolado do grupo, do Estado, da sociedade em que vive. E, por último, dizemos que o senso comum tende a produzir interpretações etnocentristas da realidade social, no sentido de que, muitas vezes, procura explicar comportamentos de grupos, sociedades, com base em critérios etnocentristas. Etnocentrismo é uma atitude segundo a qual um sujeito explica a realidade que o rodeia ou a realidade do outro, com base nos critérios da sua própria cultura, do seu próprio grupo. Por exemplo, os usos e costumes dos outros serão “bons” ou “maus” em função de como esses usos e costumes são vistos na minha própria cultura. Assim por exemplo, o lobolo será coisa “boa” ou “má” em função decomo ele é visto na minha própria cultura. Mas, se por um lado, o senso comum é muitas vezes apresentado como sendo um obstáculo para a construção do conhecimento científico, ele, por outro lado, é também importante. Sim... parece paradoxal, não é? Sim, o senso comum é importante no processo de construção de conhecimento científico. Em que sentido? No sentido de que ele constitui um ponto de partida para uma pesquisa científica. Nas Ciências Sociais, uma pesquisa científica, muitas vezes, começa com algo 32 ANOTAÇÕES ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ _ © Images.com/Corbis - Todd Davidson ligado à experiência do dia a dia. A motivação para uma pesquisa começa sempre com um problema, que é vivido ou pelo pesquisador ou por um determinado grupo. Esse problema vivido é que vai estar na origem do interesse pela pesquisa e, consequentemente, o ponto de partida para as perguntas da própria pesquisa. Por exemplo, se um sociólogo, um antropólogo ou ainda um politólogo quer investigar o impacto da reforma do sector público na melhoria da provisão de serviços por parte das instituições do Estado, ele vai sempre partir de uma experiência e, por isso mesmo, já traz consigo uma ideia sobre o assunto (como por exemplo, a reforma não tem nenhum impacto porque ele percebe no seu dia a dia que os serviços prestados pelas instituições do Estado não melhoraram ou o contrário). Ora, essa ideia que o pesquisador traz consigo é uma ideia que resulta da sua experiência prática do dia a dia e, por isso mesmo, é senso comum. Apesar disso, é importante que ele tenha essa ideia, porque é a partir dessa ideia que ele vai começar o seu processo de construção de conhecimento científico, no âmbito da sua pesquisa. Mas, à medida que a pesquisa vai avançando, vai sendo construída, o pesquisador vai também rompendo com a sua ideia inicial sobre o assunto, o que equivale dizer aue o pesquisador vai rompendo com o senso comum. Você provavelmente esteja agora a perguntar se isso é fácil. A resposta é não. De facto, para um pesquisador nas Ciências Sociais, a ruptura com o senso é um processo contínuo. E é por esta razão que alguns autores, como por exemplo, Bourdieu, falam em vigilância epistemológica – uma atitude que um investigador nas Ciências Sociais tem que construir permanentemente (Bourdieu, Chamboredon & Passeron 1999). Mas, o que realmente significa a ruptura com o senso comum? Vamos responder a esta pergunta na secção a seguir. SIGNIFICADO DA RUPTURA COM O SENSO COMUM NAS CIÊNCIAS SOCIAIS A questão da ruptura com o senso comum nas Ciências Sociais é um assunto complexo. Quer dizer, nas Ciências Sociais, a ruptura com o senso comum não significa que existe uma fronteira intransponível, rígida, que separa o senso comum do conhecimento científico... Parece difícil entender isso, não acha? Na realidade não é. Talvez seja importante aqui recorrer ao que José Madureira Pinto diz sobre este assunto: “ (...) Aceitemos a ideia, que ao longo do número anterior se foi consolidando, de que a expressão „ruptura com o senso comum pode incentivar uma visão 33 ANOTAÇÕES ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ _ deturpada e dogmática do que são o trabalho e o progresso científicos, ao sugerir a existência de uma fronteira rígida entre, de um lado, o espaço da ignorância e do erro (em que a aprendizagem social e espontânea nos encerra) e, do outro, o do saber e verdade impolutos (a que só acederíamos através de uma conversão aos valores da ciência” (Pinto 1994, p. 122 – 123). Como você pode perceber, senso comum e conhecimento científico não são dois tipos de conhecimento que se opõem, sendo um (senso comum) falso/mau e outro (conhecimento científico) verdadeiro/bom. Não... Na realidade se trata de dois tipos de conhecimento simplesmente diferentes, o que não quer dizer opostos. Cada um deles obedece a lógicas específicas de construção. Assim, enquanto o senso comum se constrói com base na experiência prática do dia a dia, o conhecimento científico se constrói usando técnicas e instrumentos teórico- metodológicos específicos. E por serem tipos diferentes de conhecimento, o senso comum não pode ser confundido com conhecimento científico. Portanto, apesar de não se tratar de tipos de conhecimento que se opõem e se excluem mutuamente, o senso comum e o conhecimento científico são tipos de conhecimento diferentes. Assim, como insiste José Madureira Pinto, quando falamos de ruptura com o senso comum no processo de construção de conhecimento científico nas Ciências Sociais, é importante reter cinco aspectos importantes (Pinto 1994) O primeiro aspecto é entender que o senso comum e o conhecimento científico são dois tipos de conhecimento diferentes. A diferença entre estes dois tipos de conhecimento provem do facto de que cada um deles possui lógicas diferentes de construção e validação; O segundo aspecto tem a ver com o facto de que o senso comum não é algo de homogéneo e muito menos imutável. Com efeito, o conhecimento do senso comum pode variar em função do contexto e, por isso mesmo, ele não permanece o mesmo em todos os tempos, culturas e sociedades. Além disso, é importante referir, assim como mencionámos nesta Unidade, que o existe uma relação entre o senso comum e o conhecimento científico. O terceiro aspecto se refere ao facto de que, na sua relação com o senso comum, o conhecimento científico desenvolve uma abordagem crítica, o que permite marcar uma certa diferença entre os dois tipos de conhecimento; O quarto aspecto tem a ver com o facto de que considerar algumas interpretações do senso comum como obstáculos para o processo de construção do conhecimento científico nas Ciências Sociais não implica qualquer juízo de valor relativamente ao senso comum. Quer dizer, não implica olhar para o senso comum como algo de mau. Aliás, se você se lembra, dissemos acima que senso comum e conhecimento científico 34 ANOTAÇÕES ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ ________________ _ © Images.com/Corbis - Todd Davidson não são dois tipos de conhecimento que se opõem, sendo um mau e outro bom. São apenas dois tipos de conhecimento com lógicas de construção diferentes; O quinto e último aspecto se refere ao facto de que qualquer estudo da realidade social com pretenções de conhecimento científico tem que tomar o senso comum como ponto de partida, uma vez que o senso comum é uma componente indissolúvel das práticas humanas. Estes cinco aspectos acima mencionados constituem, na realidade, o que podemos chamar o significado da ruptura com o senso comum no processo de construção