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TRANSCRIÇÃO DA AULA - Valdira Lima (Módulo 1 aula 2 parte 1)

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TRANSCRIÇÃO DA AULA
Valdira Lima (Módulo 1 – aula 2 – parte 1)
Bom dia a todos, eu sou a Coronel de Polícia Militar Valdira, atualmente estou
aposentada. Sou psicóloga. Vou contar um pouquinho para vocês a minha trajetória
dentro da instituição e fora dela também. Eu trabalhei nos 15 anos na área de
psicologia fui responsável aí pelo start na verdade porque nós sempre
trabalhamos em equipe. Pelo programa de prevenção a manifestações suicidas,
programa de sensibilização ao final da carreira policial militar, ao atendimento
clínico, particularmente a experiência maior foi em atendimento clínico. Mas também
tive a oportunidade de trabalhar na área de seleção da Polícia Militar. Trabalhei
também na escola de soldados. Saindo da academia de Polícia Militar do Barro
Branco me formei em psicologia e depois fui buscar outros conhecimentos. Então eu
fiz especialização em Dependência Química, eu fiz especialização gestão
segurança pública e hoje nós vamos refletir aqui sobre algumas questões são
importantes. Agradeço profundamente ao Instituto Vita Alere em nome da Dra.
Karen Scavacini. Eu queria isso só deixar um alerta também para os alunos.
Provavelmente durante as aulas vocês vão ouvir orientações semelhantes. Não se
preocupem com isso, essas repetições elas são necessárias para o seu
aprendizado.
Eu gostaria de falar antes com vocês também qual foi a primeira ocorrência
que eu atendi, não como psicóloga, mas como policial militar na minha carreira. O
primeiro trabalho que eu fiquei na viatura sozinha, porque tem um tempo que a
gente faz estágio, foram dois suicídios. E isso impactou muito. Exatamente nesse
dia porque foi um suicídio em que um rapaz havia se matado com gás de cozinha e
um outro que me passou, mais quando eu cheguei na ocorrência, uma mãe tinha se
jogado do quinto andar na frente de duas crianças. Eu confesso a vocês que eu
cheguei em casa, de madrugada abrir uma latinha de cerveja e disse: “isso não é
para mim”. E olha só, depois de 30 anos cá eu estou falando. Me apaixonei pelo
tema, tive que me atualizar, me informar porque é uma demanda na instituição e eu
estou muito feliz porque este momento único. Então parabéns aí a todas as pessoas
que estão ouvindo, a todas as pessoas que deram start para o curso. Porque eu sei
que é fundamental para todos nós, não só para os agentes de segurança. Para as
famílias, para os amigos. Então, uma boa sorte a todos, um bom curso e eu sempre
estarei à disposição de vocês.
Quais são os objetivos desta aula? Orientá-los sobre os principais fatores de
risco e proteção nas Forças de Segurança Pública. Propor reflexão sobre o tabu e a
questão do suicídio nas Forças de Segurança Pública. Reconhecer a identidade do
agente de segurança pública. Conceituar multifatorialidade e contextualizar o papel
do agente de segurança pública na prevenção do suicídio.
Tabu. Quando a gente fala: um tabu. Se nós pararmos para pensar a
dificuldade que é para falar na sociedade. Imaginem vocês dentro das Forças
de Segurança Pública. Realmente ainda é um grande tabu? Para você ter uma ideia
eu queria ter escrito sobre esse tema no meu mestrado profissional e fui
desencorajada. "Não, faz outra coisa porque o suicídio não é um bom tema para
que você fale no seu mestrado profissional”. E eu alio a isso algumas questões.
Muitos comandantes eles acabam tendo um pouco de medo de trem julgados
quando há um suicídio, por exemplo, na unidade em que eles trabalham. De que
algum problema na sua gestão, de que algum problema no seu quartel, na unidade
onde ele trabalha. E Isso dificulta bastante o trabalho porque esse tabu de fato
existe e, para ilustrar também um pouquinho isso, eu vou lembrar uma ocasião em
que eu fui ministrar aulas e havia acontecido um suicídio naquele local. E os alunos
estavam ansiosos, nervosos e de certa forma até revoltados com o comandante da
unidade da época. E por que isso? Porque o comandante, de uma forma bem inábil
ele simplesmente disse assim: "vida normal!" para todo mundo. Aí a gente se
pergunta: como vida normal se houve um suicídio nessa unidade? Mas nós também
não devemos julgar este comandante. Ele só não tem conhecimento, não teve a
sensibilidade, não teve habilidade de lidar porque talvez seja uma dificuldade para
ele. Isso é importante deixar claro. Por isso da importância desse curso para todos.
Para todos.
Uma das tarefas exatamente sensibilizar, do soldado ao coronel, do
investigador ao delegado e assim por diante. Essa é a função de todos nós. Essa
sensibilização. Então nós não devemos julgar também. Porque essa inabilidade ter
a ver com coisas que a pessoa não se dá conta. Ela não consegue entrar em
conato. Nós não viemos de Marte. Essa é uma fala que eu costumo dizer muito
porque as pessoas acham que nós somos diferentes. E nós não vemos de Marte,
nós, agentes de Segurança Pública viemos desta mesma sociedade. E nós temos
os mesmos problemas. Problemas familiares, problemas no local de trabalho,
problemas financeiros. Então, nós não viemos de Marte. Nós viemos desta mesma
sociedade. E nós podemos adoecer a qualquer momento. Tem um autor que eu
gosto muito que é o DeJours que fala de psicopatologia do trabalho e na verdade é
exatamente isso que ele diz. Que nós podemos adoecer a qualquer momento.
Porque senão, nós ficamos procurando culpados. A culpa é da seleção que não foi
bem-feita, a culpa é da instrução que não foi bem dada. Nós aliás temos essa
história de terceirizarmos tudo. Nós terceirizamos a nossa felicidade e a nossa
infelicidade, os afazeres domésticos, mas as respostas estão dentro da gente. E
quando a gente desperta para isso as coisas realmente ficam diferenciadas na
nossa vida.
Eu costumo dizer quando eu vou dar aula entre os Policiais Militares que a
gente tem uma chavinha. E essa chavinha pode ser de oportunidade ou de castigo.
Se a gente vai para uma escala a gente já vai com aquele peso da escala. E a gente
tem que pensar assim: o que que eu vou aprender com isso, que oportunidades que
eu vou ter de crescimento, de conhecer outras pessoas, de me
desenvolver profissionalmente. A gente precisa só virar a chavinha. Vamos agora
para uma reflexão. Pense na maior crise que você já teve na vida? Que recursos
você usou? Você buscou um amigo? Um profissional? Pensou em morrer? Pense
um pouquinho sobre isso. Qual foi o seu comportamento diante da maior crise que
você teve na vida. Ouça seu coração agora um pouquinho. Feche os olhos e tente
lembrar que recursos você usou. Um amigo. Um profissional. Pensou em morrer.
Quem nunca teve uma desilusão amorosa, problemas financeiros, um chefe
complicado, problemas familiares. Todos nós já tivemos isso. Inclusive eu. E é
interessante falar isso porque tem gente fala assim: “não, oficial não tem problema”.
Tem, tem problema. E nós fazemos faixas: uma equipe, uma equipe maior, um bem
maior. Então nós também temos esses mesmos problemas. Nem por isso tiramos
as nossas vidas. Mesmo que tenha passado pela cabeça de algum de nós. E aí eu
estou falando com você que está aí do outro lado. Tirar a vida. Pode até ter
passado, mas nós estamos aqui? Vivos. Nem por isso nós pensamos em tirar as
nossas vidas. E mais para frente a gente vai ver o que nos diferencia. Na verdade, o
que os diferencia é um instrumento de trabalho. E nem por isso, só o fato de termos
uma arma na cintura faz com que nós tiremos a nossa vida.
Mas o que nos diferencia é o nosso instrumento de trabalho que está muito
próximo de nós. Eu gosto muito desses dizeres que foi feito por um
soldado desconhecido do exército. A carreira militar não é uma atividade
inespecífica e descartável, um simples emprego, uma ocupação. Mas um ofício
absorvente e exclusivista que nos condiciona e autolimita até o fim. Ela não nos
exige as horas de trabalho da Lei, mas todas as horas da vida nos impondo também
nossos destinos. A farda não é uma veste-se se despe com facilidade e até com
indiferença. Mas uma outra pele que adere a própria alma, irreversivelmente para
sempre.
Eu leio isso e de fato me arrepia. Porque é exatamente isso. Nósinternalizamos de uma tal forma que ela faz parte da nossa vida. Hoje eu já me
aposentei, não uso mais farda, mas ela está em mim. Os valores estão em mim, o
dia a dia está mim e de fato. Essa fala ela nos toca. Eu tenho certeza de que toda
pessoa que tem esse compromisso com a instituição se sente tocada. Por isso. E
mesmo quando as pessoas entram sem um comprometimento maior é quando a
gente vai fazer seleção e tem lá gente que quer entrar. Por conta da
estabilidade financeira. Nós vamos criando raízes e essas raízes são difíceis de
serem cortadas. Muito difíceis.
Vamos falar um pouquinho sobre a identidade militar. E aí eu posso falar do
agente de segurança mais especificamente da identidade militar. Nós temos a
questão da disciplina e da hierarquia que é bem forte. Nós temos normas para tudo.
Mas se a gente for pensar também. Disciplina e hierarquia existem na iniciativa
privada. Também existente na iniciativa privada. Mas nós temos regulamentos
rígidos e esses regulamentos fazem parte do nosso dia a dia. Todos os nossos atos,
todos os nossos comportamentos estão delineados neste regulamento disciplinar.
Então, lá está disciplinando qualquer comportamento que a gente tenha dentro ou
fora da instituição.
Nós temos a pressão interna e externa. Então hoje existe a pressão da mídia,
da OAB, existem várias questões da própria comunidade que não respeita o Policial
Militar como respeitava em tempos passados. E aí como é que fica isso? E as
exigências do trabalho, das escalas, do dia a dia. É bastante complicado. Nós temos
que estar permanentemente disponíveis. Nós temos uma exigência de
aperfeiçoamento contínuo. Nós somos profissionais de emergência. Nós temos
intensa exposição emocional. No mesmo dia o policial militar ao mesmo tempo, que
ele media um conflito, ele atende, ele faz o atendimento de ocorrência de suicídio.
Nós temos vários papéis. De mediador, padre, psicólogo e isso é muito complicado
e dispende uma energia muito grande de todos nós. Nós temos as escalas, as
escalas extras, enfim. Existe dentro ainda dessa intensa exposição emocional, nós
vamos desde um conflito de troca de tiros até a realização de um parto. Isso num
único dia de trabalho.
Os sentimentos também são contraditórios. Horas nós tiramos a vida, hora
nós ajudamos a trazer uma vida mundo. Aí existem as questões religiosas de cada
agente de segurança. Mato ou não mato. Como é que funciona isso dentro de mim?
Existe também a identidade militar e a identidade pessoal. É só a gente parar para
pensar um pouquinho, e aí independente de ser da polícia militar, guarda civil
metropolitano, Polícia Civil, o quanto nós mudamos de comportamento depois que
nós entramos na instituição? Eu por exemplo, se eu antigamente eu entrava em
qualquer estabelecimento ou para um restaurante, tranquila, não olhava para lugar
nenhum. Agora você entra você olha para tudo, você tem que se sentar olhando
para porta porque se alguém te atacar você está observando.
Os amigos talvez não possam ser os mesmos, a gente vai se fechando um
pouco para as outras pessoas. Até a nossa linguagem muda. Eu tenho amigos que
trabalharam ou trabalham, a vida inteira na área operacional que eu falo assim:
aperta a tecla SAP porque muitas vezes não consigo me comunicar. QAP, QRV,
QSL e aí você fala assim “meu Deus?”. Porque eu me distanciei um pouquinho
dessa área operacional. Então nós mudamos nosso comportamento, nós mudamos
o nosso comportamento antes de entrarmos na instituição e depois que nós
entramos na instituição.
Existe o risco de morte, o risco de perda de liberdade, o risco de ficar uma
cadeira de rodas como nós temos tantos policiais que ficaram. E o vínculo com a
profissão. Nós temos inclusive na inatividade. Inclusive relacionado ao nosso
regulamento disciplinar. Então assim, eu falo hoje eu sou só psicóloga vou fazer o
que eu quero da minha vida. As coisas não funcionam bem assim. Qualquer ato
meu que desabone a instituição, ele vai ser corrigido da forma rígida que se tem aí
no regulamento disciplinar. Então, eu costumo brincar que minha vida não é
mais minha. Então isso não dá para mudar. A gente tem vínculo para o resto da
vida. Se de repente eu estiver dirigindo meu carro me pararem e eu estiver
alcoolizada, é o policial militar, ele vai tomar as providências necessárias. E aí
independente de eu estar na inatividade ou não. Então, essa veste ela está na vida
da gente pela vida toda.

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