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2016 1a Edição História e teoria da arquitetura, urbanismo e Paisagismo iii Prof.ª Jéssica Pinto de Souza Copyright © UNIASSELVI 2016 Elaboração: Prof.ª Jéssica Pinto de Souza Revisão, Diagramação e Produção: Centro Universitário Leonardo da Vinci – UNIASSELVI Ficha catalográfica elaborada na fonte pela Biblioteca Dante Alighieri UNIASSELVI – Indaial. Impresso por: 720.09 S719h Souza; Jéssica Pinto de História e Teoria da Arquitetura, Urbanismo e Paisagismo III / Jéssica Pinto de Souza: UNIASSELVI, 2016. 184 p. : il. ISBN 978-85-515-0028-6 1.Arquitetura moderna – história. I. Centro Universitário Leonardo Da Vinci. III aPresentação Seja bem-vindo ao Caderno de Estudos da disciplina de História e Teoria da Arquitetura, Urbanismo e Paisagismo III. Esta disciplina encerra o conjunto das disciplinas de História e Teoria do Curso de Arquitetura e Urbanismo, mas não deve ser o fim do seu interesse nesse assunto, mas sim um ponto de partida para ampliar cada vez mais seu conhecimento e sua visão de arquitetura. As disciplinas de História da Arquitetura possuem uma importância central na formação do Arquiteto e Urbanista por possibilitarem a ampliação do repertório de soluções e teorias arquitetônicas, além de permitirem a compreensão do pensamento do passado, o que traz maior clareza para a compreensão do panorama do presente. Nesta disciplina, vamos estudar a produção arquitetônica que inicia no século XVIII até a produção arquitetônica dos dias atuais. É muito importante compreendermos todas as discussões e transformações da arquitetura nesse período de tempo para buscarmos uma melhor compreensão da produção contemporânea da arquitetura. Para isso, dividimos este caderno em três unidades. Na Unidade 1, vamos estudar as transformações e inovações que acontecem nas cidades e na arquitetura dos séculos XVIII e XIX, os impactos da Revolução Industrial nas cidades, os impactos das novas tecnologias na arquitetura. Também vamos conhecer os primeiros movimentos que discutem as questões estéticas da arquitetura, que são o Movimento Arts and Crafts e a arquitetura inovadora da Escola de Chicago. Na Unidade 2, vamos estudar as origens e a formação do Movimento Moderno, no início do século XX, dando destaque aos arquitetos Walter Gropius, Le Corbusier e Mies van der Rohe, que foram figuras centrais nesse movimento. Na Unidade 3, vamos estudar as características da cidade modernista ou cidade funcionalista, e também o período de crise e críticas a esse movimento que irá culminar no desenvolvimento do pós-modernismo. Por último, vamos conhecer algumas obras de importantes arquitetos contemporâneos, visando compreender melhor a arquitetura que se destaca nos dias de hoje. IV Você já me conhece das outras disciplinas? Não? É calouro? Enfim, tanto para você que está chegando agora à UNIASSELVI quanto para você que já é veterano, há novidades em nosso material. Na Educação a Distância, o livro impresso, entregue a todos os acadêmicos desde 2005, é o material base da disciplina. A partir de 2017, nossos livros estão de visual novo, com um formato mais prático, que cabe na bolsa e facilita a leitura. O conteúdo continua na íntegra, mas a estrutura interna foi aperfeiçoada com nova diagramação no texto, aproveitando ao máximo o espaço da página, o que também contribui para diminuir a extração de árvores para produção de folhas de papel, por exemplo. Assim, a UNIASSELVI, preocupando-se com o impacto de nossas ações sobre o ambiente, apresenta também este livro no formato digital. Assim, você, acadêmico, tem a possibilidade de estudá-lo com versatilidade nas telas do celular, tablet ou computador. Eu mesmo, UNI, ganhei um novo layout, você me verá frequentemente e surgirei para apresentar dicas de vídeos e outras fontes de conhecimento que complementam o assunto em questão. Todos esses ajustes foram pensados a partir de relatos que recebemos nas pesquisas institucionais sobre os materiais impressos, para que você, nossa maior prioridade, possa continuar seus estudos com um material de qualidade. Aproveito o momento para convidá-lo para um bate-papo sobre o Exame Nacional de Desempenho de Estudantes – ENADE. Bons estudos! NOTA Agora, deixo você se concentrar nos seus estudos, mas lembro que você deverá acessar o material de apoio através da trilha de aprendizagem, disponível no seu Ambiente Virtual de Aprendizagem (AVA), além de sempre buscar mais informações e aperfeiçoar seus estudos sobre o assunto da disciplina. Bons Estudos! Profª Jéssica Pinto de Souza V VI VII UNIDADE 1 – TRANSFORMAÇÕES E INOVAÇÕES DOS SÉCULOS XVIII E XIX .............1 TÓPICO 1 – CIDADE LIBERAL .........................................................................................................3 1 INTRODUÇÃO ...................................................................................................................................3 2 TRANSFORMAÇÕES URBANAS ..................................................................................................3 3 PROPOSTAS UTÓPICAS .................................................................................................................8 3.1 ROBERT OWEN .............................................................................................................................8 3.2 CHARLES FOURIER .....................................................................................................................10 RESUMO DO TÓPICO 1......................................................................................................................13 AUTOATIVIDADE ...............................................................................................................................14 TÓPICO 2 – CIDADE PÓS-LIBERAL ................................................................................................15 1 INTRODUÇÃO ...................................................................................................................................15 2 INTERVENÇÕES URBANAS ..........................................................................................................15 3 A REFORMA DE PARIS ....................................................................................................................16 4 OS CASOS DE BARCELONA E VIENA ........................................................................................20 5 A CRÍTICA DE CAMILLO SITTE ...................................................................................................22 6 AS EXPERIÊNCIAS URBANÍSTICAS DO FINAL DO SÉCULO XIX .....................................23 6.1 CIDADE LINEAR ..........................................................................................................................23 6.2 CIDADE-JARDIM ..........................................................................................................................24 RESUMO DO TÓPICO 2......................................................................................................................27 AUTOATIVIDADE ...............................................................................................................................28 TÓPICO 3 – INOVAÇÕES TECNOLÓGICAS DO SÉCULO XIX ...............................................31 1 INTRODUÇÃO ...................................................................................................................................31 2 O USO DO FERRO NA ARQUITETURA ......................................................................................31 3 EXPOSIÇÕES UNIVERSAIS ............................................................................................................34 4 O CONCRETO ARMADO ................................................................................................................38RESUMO DO TÓPICO 3......................................................................................................................40 AUTOATIVIDADE ...............................................................................................................................41 TÓPICO 4 – O MOVIMENTO ARTS AND CRAFTS ....................................................................43 1 INTRODUÇÃO ...................................................................................................................................43 2 A CRISE DAS ARTES APLICADAS ...............................................................................................43 3 O ARTS AND CRAFTS .......................................................................................................................44 RESUMO DO TÓPICO 4......................................................................................................................47 AUTOATIVIDADE ...............................................................................................................................48 TÓPICO 5 – A ESCOLA DE CHICAGO ............................................................................................49 1 INTRODUÇÃO ...................................................................................................................................49 2 O GRANDE INCÊNDIO DE 1871 ...................................................................................................49 3 A ARQUITETURA DOS ARRANHA-CÉUS .................................................................................50 3.1 LOUIS SULLIVAN .........................................................................................................................53 3.2 FRANK LLOYD WRIGHT ............................................................................................................55 sumário VIII RESUMO DO TÓPICO 5......................................................................................................................61 AUTOATIVIDADE ...............................................................................................................................62 UNIDADE 2 – AS ORIGENS E O INÍCIO DO MOVIMENTO MODERNO ............................63 TÓPICO 1 – O MOVIMENTO ART NOUVEAU ............................................................................65 1 INTRODUÇÃO ...................................................................................................................................65 2 A FORMAÇÃO DO ART NOUVEAU .............................................................................................65 3 O ART NOUVEAU NA ARQUITETURA .......................................................................................68 3.1 VICTOR HORTA ............................................................................................................................68 3.2 HENRY VAN DE VELDE .............................................................................................................70 3.3 HECTOR GUIMARD ....................................................................................................................71 3.4 ANTONI GAUDÍ ...........................................................................................................................73 3.5 MACKINTOSH E A ESCOLA DE GLASGOW .........................................................................76 4 A SECESSÃO DE VIENA ..................................................................................................................77 RESUMO DO TÓPICO 1......................................................................................................................80 AUTOATIVIDADE ...............................................................................................................................81 TÓPICO 2 – RUPTURAS E VANGUARDAS NA ARQUITETURA ............................................83 1 INTRODUÇÃO ...................................................................................................................................83 2 ADOLF LOOS ......................................................................................................................................83 3 DEUTSCHER WERKBUND .............................................................................................................85 4 MOVIMENTOS DE VANGUARDA ...............................................................................................87 4.1 CUBISMO ........................................................................................................................................88 4.2 EXPRESSIONISMO .......................................................................................................................89 4.3 FUTURISMO E CONSTRUTIVISMO .........................................................................................91 4.4 DE STIJL ..........................................................................................................................................93 5 O MOVIMENTO ART DECO ...........................................................................................................95 RESUMO DO TÓPICO 2......................................................................................................................97 AUTOATIVIDADE ...............................................................................................................................98 TÓPICO 3 – A FORMAÇÃO DO MOVIMENTO MODERNO ...................................................99 1 INTRODUÇÃO ...................................................................................................................................99 2 WALTER GROPIUS E A BAUHAUS ..............................................................................................99 3 LE CORBUSIER E A VILLA SAVOYE ............................................................................................102 4 MIES VAN DER ROHE E O PAVILHÃO DE BARCELONA .....................................................110 5 O CIAM E O ESTILO INTERNACIONAL ....................................................................................115 RESUMO DO TÓPICO 3......................................................................................................................119 AUTOATIVIDADE ...............................................................................................................................120 UNIDADE 3 – DA CRISE DO MODERNISMO AOS DIAS ATUAIS ........................................121 TÓPICO 1 – A CIDADE FUNCIONALISTA E A CRISE DO MOVIMENTO MODERNO .........................................................................................123 1 INTRODUÇÃO ...................................................................................................................................123 2 A CIDADE FUNCIONALISTA E A CARTA DE ATENAS .........................................................123 3 A ARQUITETURA MODERNA NOS ESTADOS UNIDOS ......................................................127 4 OS NOVOS RUMOS DE LE CORBUSIER ....................................................................................132 5 A CRÍTICA DO TEAM X ...................................................................................................................137 RESUMO DO TÓPICO 1......................................................................................................................141 AUTOATIVIDADE ...............................................................................................................................142 IX TÓPICO 2 – ALTERNATIVAS AO MODERNISMO ......................................................................143 1 INTRODUÇÃO ...................................................................................................................................143 2 ALVAR AALTO....................................................................................................................................1433 EERO SAARINEM ..............................................................................................................................145 4 LOUIS KAHN ......................................................................................................................................146 5 ARQUITETURAS VISIONÁRIAS ..................................................................................................148 RESUMO DO TÓPICO 2......................................................................................................................151 AUTOATIVIDADE ...............................................................................................................................152 TÓPICO 3 – A PLURALIDADE DO PÓS-MODERNISMO .........................................................155 1 INTRODUÇÃO ...................................................................................................................................155 2 HISTORICISMO ABSTRATO .........................................................................................................155 3 RACIONALISMO ITALIANO .........................................................................................................160 4 DESCONSTRUTIVISMO .................................................................................................................161 5 HIGH TECH ..........................................................................................................................................163 6 REGIONALISMO CRÍTICO ............................................................................................................164 RESUMO DO TÓPICO 3......................................................................................................................167 AUTOATIVIDADE ...............................................................................................................................168 TÓPICO 4 – A ARQUITETURA DO SÉCULO XXI.........................................................................171 1 INTRODUÇÃO ...................................................................................................................................171 2 PANORAMAS ARQUITETÔNICOS NO INÍCIO DO SÉCULO .............................................171 3 ZAHA HADID .....................................................................................................................................172 4 HERZOG E DE MEURON ................................................................................................................173 5 PETER ZUMTHOR .............................................................................................................................174 6 REM KOOLHAAS ..............................................................................................................................175 7 JEAN NOUVEL ...................................................................................................................................176 8 SANTIAGO CALATRAVA ...............................................................................................................178 RESUMO DO TÓPICO 4......................................................................................................................180 AUTOATIVIDADE ...............................................................................................................................181 REFERÊNCIAS .......................................................................................................................................183 X 1 UNIDADE 1 TRANSFORMAÇÕES E INOVAÇÕES DOS SÉCULOS XVIII E XIX OBJETIVOS DE APRENDIZAGEM PLANO DE ESTUDOS Esta unidade tem por objetivos: • contextualizar o aluno nas transformações causadas pela Revolução Industrial na sociedade; • conhecer as propostas que surgem em oposição ao modelo de cidade industrial; • apresentar as propostas de intervenção urbana implantadas no século XIX; • entender o movimento medievalista de revisão das artes aplicadas; Esta unidade está dividida em cinco tópicos. Em cada um deles, além dos conceitos e explanações dos conteúdos, estarão disponíveis atividades que têm por objetivo primordial auxiliá-lo na compreensão e apropriação dos conteúdos. TÓPICO 1 – CIDADE LIBERAL TÓPICO 2 – CIDADE PÓS-LIBERAL TÓPICO 3 – INOVAÇÕES TECNOLÓGICAS DO SÉCULO XIX TÓPICO 4 – O MOVIMENTO ARTS AND CRAFTS TÓPICO 5 – A ESCOLA DE CHICAGO 2 3 TÓPICO 1 UNIDADE 1 CIDADE LIBERAL 1 INTRODUÇÃO Neste tópico, iremos estudar as transformações urbanas que ocorreram a partir da Revolução Industrial para entendermos como se deu a formação da Cidade Liberal nesse contexto, e quais foram os resultados e reações que surgiram em decorrência dessa nova organização social. Estudaremos as primeiras propostas utópicas (idealizadas) de transformação urbana que resultaram do novo cenário urbano do capitalismo e da industrialização. 2 TRANSFORMAÇÕES URBANAS “A sociedade industrial é urbana. A cidade é o seu horizonte. Ela produz as metrópoles, conurbações, cidades industriais, grandes conjuntos habitacionais. No entanto, fracassa na ordenação desses locais” (CHOAY, 1998, p. 1). As profundas transformações causadas pela Revolução Industrial começaram a ser percebidas na Inglaterra no século XVIII e, posteriormente, nos demais territórios europeus. A população inglesa, que era de pouco mais de sete milhões de habitantes em 1760, passa para 14 milhões em 1830 (BENEVOLO, 2006). Esse aumento da população se deveu, em grande parte, ao desenvolvimento agrícola, que ampliou a produção e a qualidade dos alimentos, e também, aos avanços da medicina e da educação da população. Já o processo de mecanização da indústria resultou em um grande aumento na qualidade e na quantidade da produção industrial. As cidades europeias, nesse período, ainda mantinham suas características do período medieval, sofrendo um grande impacto desse rápido crescimento populacional. As ruas estreitas e as pequenas edificações não comportavam esse adensamento e grande fluxo de pessoas e mercadorias. As áreas centrais, rapidamente, tornam-se aglomerados insalubres de populações de baixa renda que migram para os centros urbanos em busca de novas oportunidades na produção industrial. UNIDADE 1 | TRANSFORMAÇÕES E INOVAÇÕES DOS SÉCULOS XVIII E XIX 4 Para atender à demanda mínima necessária à circulação das mercadorias no território, uma nova infraestrutura foi construída, com redes de linhas férreas, pontes, estradas e canais navegáveis. Essa necessidade de construção de inúmeras grandes obras, como as pontes, resultou em um progresso dos métodos tradicionais de construção em madeira e pedra e na inserção de novas tecnologias e novos materiais, principalmente o ferro. O desenvolvimento da linha férrea para o transporte de passageiros foi determinante para possibilitar a circulação de pessoas e impulsionar os movimentos migratórios em direção aos grandes centros industriais. As precárias condições de vida no campo levam a um êxodo da população rural para a cidade em números até então nunca vistos. FIGURA 1 - PRIMEIRA PONTE CONSTRUÍDA EM FERRO FUNDIDO FONTE: <http://www.architecture-student.com/wp-content/ uploads/2010/01/Coalbrookdale-Bridge.jpg>. Acesso em: 19 out. 2016. A arquitetura precisou responder a essas novas funções construindo edificações adaptadas a essas necessidades, como as novas estações de trens. Conforme Tietz (2000), a primeira estação de trens para o transporte de passageiros foi construída em 1830, na cidade de Liverpool, na Inglaterra. TÓPICO 1 | CIDADE LIBERAL 5 FIGURA 2 - THE CROWN STREET STATION, 1830, LIVERPOOL, INGLETERRA FONTE: <http://www.victorianweb.org/art/architecture/liverpool/19.jpg>. Acesso em: 19 out. 2016. Londres foi a primeira cidade industrial a atingir um milhão de habitantes no final do século XVIII e sofrer as consequências dessas transformações urbanas. Em 1872, o famoso ilustradorfrancês Gustave Doré publica uma série de gravuras retratando a realidade caótica da cidade e a extrema pobreza da sua população. As ruas se tornam uma sobreposição de esgotos a céu aberto, pessoas, crianças, animais e lixo. NOTA Gustave Doré se destacou por ilustrar grandes romances da literatura, como A Divina Comédia, de Dante Alighieri, 1861; e Os Trabalhadores do Mar, de Victor Hugo, 1867. FIGURA 3 – LONDRES. GRAVURA DE GUSTAVE DORÉ, 1872 FONTE: Benevolo (2006) UNIDADE 1 | TRANSFORMAÇÕES E INOVAÇÕES DOS SÉCULOS XVIII E XIX 6 FIGURA 4 - UMA CIDADE CRISTÃ EM 1440 E EM 1840. CONTRASTS GRAVURAS DE A. W. PUGIN, 1836 FONTE: Benevolo (2007) Além da precariedade e da pobreza da população, as cidades industriais sofrem uma profunda transformação em sua paisagem. As chaminés passam a se destacar no skyline que até então era caracterizado pelas torres das igrejas medievais. A poluição do ar e dos rios passa a fazer parte do cenário das cidades, trazendo inúmeros problemas para a saúde dos habitantes. Augustus Pugin ilustra essas transformações em suas gravuras, como na Figura 4. NOTA Augustus Pugin foi um importante arquiteto inglês defensor do estilo historicista neogótico. Seu principal projeto foi o Palácio de Westminster, conhecido como Parlamento Inglês, que fica na cidade de Londres. Conforme destaca Zucconi (2009), inúmeros importantes pensadores e escritores dessa época retrataram com propriedade essas cidades inchadas e transformadas pelo processo de industrialização. Charles Dickens, em Tempos Difíceis (1853), e Friedrich Engels, em As Condições da Classe Operária na Inglaterra (1845), por exemplo, descrevem a precariedade dessa cidade industrial. TÓPICO 1 | CIDADE LIBERAL 7 [...] Era uma cidade de tijolos vermelhos, ou melhor, de tijolos que teriam sido vermelhos se a fumaça e as cinzas o permitissem; mas do modo como estavam as coisas, era uma cidade de um vermelho e preto antinatural, como o rosto pintado de um selvagem. Era uma cidade de máquinas e de altas chaminés das quais saíam, sem solução de continuidade, intermináveis serpentes de fumaça que jamais conseguiam dissipar-se. Tinha um canal negro, um rio cor de púrpura por causa dos vernizes malcheirosos, e vastos grupos de edifícios cheios de janelas, onde o dia inteiro era um contínuo bater e tremer, onde os pistões das máquinas a vapor moviam-se para cima e para baixo, monótonos, como a cabeça de um elefante presa de uma loucura melancólica (DICKENS, 1854 apud BENEVOLO, 2006, p. 156). A falta de moradias também se tornou um dos maiores problemas da cidade industrial. Esse déficit impulsiona a ação de especuladores que oferecem moradias de aluguel para abrigar as famílias dos operários, com preços abusivos e condições precárias de utilização. Espaços mínimos, sem ventilação nem iluminação, se tornam insalubres para a população. Rapidamente as áreas centrais ficam saturadas, levando a novas ocupações em torno desses núcleos existentes. Gradualmente, as classes mais altas passam a abandonar essas áreas e ocupar seu entorno, que se desenvolve sem qualquer tipo de planejamento ou regulamentação, determinado apenas pelas iniciativas privadas. A intervenção do Estado nas questões urbanas se limita ao mínimo. O pensamento político que domina esse momento histórico, influenciado pela teoria econômica de Adam Smith, acabou definindo essa limitada intervenção, garantindo a liberdade da iniciativa privada no mercado imobiliário. Esse contexto resulta no que Benevolo (2007) chama de cidade liberal, que ele define como sendo resultado de um conjunto de iniciativas públicas e privadas, sem nenhum tipo de organização e regulamentação do governo. Para Benevolo (2007), uma das maiores consequências das mudanças desse período histórico vai ser a alteração da relação do homem com o tempo. Anteriormente à Revolução Industrial, os objetos e construções eram modificados muito lentamente, e podiam ser considerados como imóveis. Entretanto, as mudanças da industrialização exigiam maior dinâmica e maior rapidez nas transformações das edificações, as quais precisaram se adaptar às constantes alterações de necessidades da cidade capitalista. NOTA Adam Smith foi um filósofo e economista britânico que defendeu a teoria do liberalismo econômico, que acreditava na livre iniciativa privada e pouca intervenção do governo no mercado econômico. UNIDADE 1 | TRANSFORMAÇÕES E INOVAÇÕES DOS SÉCULOS XVIII E XIX 8 Essa situação teve uma grave consequência nas cidades, transformando a relação até então existente entre terreno e edificação. Enquanto se considerava que uma edificação tinha uma duração indefinida, o valor do terreno estava incorporado ao valor da edificação. No entanto, quando a duração do edifício passa a ser considerada limitada, o terreno adquire um valor independente, dando início ao mercado de terras urbanas. Nesse período, praticamente todo o solo das cidades passa a pertencer ao interesse privado. Já no início do século XIX, a precariedade sanitária torna as principais cidades europeias inabitáveis. Em 1830, um surto de cólera se espalhou pelo território, obrigando os governantes a tomarem providências para minimizar os problemas higiênicos das cidades. Em 1848 Londres tem sua primeira lei sanitária aprovada. O Estado passa então a criar legislações visando minimizar os problemas urbanos, especialmente os problemas sanitários, dando início a um novo modelo de cidade, que Benevolo (2007) chama de cidade pós-liberal. 3 PROPOSTAS UTÓPICAS A insatisfação com o cenário urbano, resultante dessas transformações geradas pela Revolução Industrial, faz com que a partir de 1815 surjam diversas propostas revolucionárias de mudanças na organização da sociedade, bem como na organização das cidades e das habitações. Esses modelos de propostas inovadoras e idealizadas surgem como reação à cidade liberal, visando a substituição da iniciativa privada pela organização coletiva, buscando resolver de forma pública quase todos os aspectos da vida urbana. Nascem da insatisfação com as condições de vida da cidade industrial, criando soluções inéditas, rompendo com as tradições das cidades do passado. Essas propostas anteciparam pesquisas coletivas que acontecem na arquitetura moderna do século XX e ficaram conhecidas como propostas utópicas. 3.1 ROBERT OWEN Segundo Benevolo (2006), Robert Owen (1771-1858) foi um dos mais importantes reformistas utópicos do século XIX. Defendeu uma linha de pensamento muito peculiar, baseada em sua experiência direta como operário e dono de indústria. Sua proposta é uma união entre indústria e agricultura, defendendo que estes setores não devem ser tratados como setores diferentes da economia, mas sim, integrados. Propõe também que a agricultura deva ser a ocupação principal de toda a população, e a atividade industrial apenas um complemento. TÓPICO 1 | CIDADE LIBERAL 9 Em 1799, Owen se torna proprietário da fiação de New Lanark, na Escócia, quando testa algumas de suas ideias, centradas no bem-estar dos seus operários. Além de utilizar equipamentos modernos, implanta jornadas de trabalho moderadas, bons salários, moradias salubres, construindo perto da fábrica uma escola primária e uma creche (BENEVOLO, 2006). No início do século XIX, sua fábrica se torna uma referência e ponto de visitação de pessoas de todas as partes do mundo. Em 1813, Owen vai a Londres e entra em contato com dirigentes políticos, influenciando na criação de legislações trabalhistas e organizações sindicais. Todos os movimentos sociais, todos os progressos reais registrados na Inglaterra em interesse da classe trabalhadora, estão ligados ao nome de Owen. Assim, em 1819, depois de cinco anos de grandes esforços, conseguiu que fosse votada a primeira lei limitando o trabalho da mulher e das crianças nas fábricas (ENGELS, 1880). Em 1817, Owen expõe uma proposta de cidade modelo, para uma comunidade restrita, que trabalhe coletivamente no campoe na indústria e que seja autossuficiente, possuindo todos os serviços necessários à população. As edificações seriam dispostas em forma de um quadrado, sendo que três das faces estariam destinadas às moradias individuais para casais e filhos com menos de três anos de idade, e a quarta face seria destinada aos dormitórios para solteiros, enfermaria e albergue para visitantes. Na área central se localizariam edificações públicas de utilização coletiva, como: cozinha, com restaurante comum, escolas, biblioteca, centro de encontro, zonas verdes para recreação e espaços para a prática de esportes. Um pouco mais afastados ficariam os estabelecimentos industriais, armazéns, lavanderia, cervejaria, moinho, matadouro, estábulos e edificações rurais. FIGURA 5 - IMAGEM EXPOSTA POR OWEN EM 1817 FONTE: Benevolo (2007) UNIDADE 1 | TRANSFORMAÇÕES E INOVAÇÕES DOS SÉCULOS XVIII E XIX 10 Owen tenta, por diversas vezes, aplicar seu modelo na Inglaterra, mas somente em 1825 consegue fundar a colônia New Harmony, em Indiana, nos Estados Unidos. Entretanto, a aplicação prática de suas teorias não consegue ter o sucesso esperado, após três anos o empreendimento fracassa e Owen perde todo seu investimento. Apesar de nunca ter conseguido implantar seu modelo ideal, Owen pode ser considerado como um dos mais importantes utopistas do século XIX, introduzindo importantes discussões sobre o processo de trabalho na indústria e influenciando muitos outros pensadores que deram continuidade a seus estudos e teorias. 3.2 CHARLES FOURIER Charles Fourier (1772-1837) foi um filósofo francês que publicou, em 1829, o ensaio Le Nouveau Monde Industriel (O Novo Mundo Industrial), com a descrição de um novo sistema filosófico e político de organização social, onde a sociedade se baseia na busca da felicidade de cada indivíduo, na harmonia e na vida comunitária (FRAMPTON, 2008). Sua proposta é composta por uma monumental edificação, que abrigaria 1.620 pessoas de diferentes classes sociais, chamada de Falange. Propõe a implantação desse modelo em uma área de 250 hectares, em uma grande edificação unitária chamada de Falanstério (BENEVOLO, 2006). FIGURA 6 - PROPOSTA DE FALANSTÉRIO DE CHARLES FOURIER FONTE: Benevolo (2006) Fourier define esse Falanstério como sendo uma grande edificação em forma de U, com um pátio central e vários pátios menores. Segundo Benevolo (2006), a proposta é de um palácio para o povo inspirado nos palácios dos nobres, como o Palácio de Versalhes, na França. TÓPICO 1 | CIDADE LIBERAL 11 A edificação deveria ser simétrica, com três pátios e diversas entradas. No pavimento térreo ficariam localizados os acessos de carroças; já no primeiro pavimento se localizariam as galerias cobertas que fariam a ligação dos diversos setores da edificação, como se fossem ruas. Adultos ocupariam o segundo e o terceiro pavimento; jovens o mezanino; e hóspedes o sótão. A cidade ideal de Fourier é uma cidade concêntrica, onde na área central ficava o centro comercial e administrativo, em torno deste, uma área para a cidade industrial, e uma última área para a cidade agrícola. Esse modelo inovador exerceu uma imensa influência e admiração em vários países, que tentaram diversas vezes executar essa proposta. A principal delas foi realizada pelo industrial Jean-Baptiste Godin, na cidade de Guise, na França. A grande edificação foi construída para abrigar os operários de sua indústria e foi chamada por ele de familistério, que segundo Benevolo (2007), em função de sua adaptação à vida familiar que ocupava unidades particulares, ao contrário da proposta de Fourier, que organizava as ocupações por faixas etárias. A edificação principal se localizava em um parque, dividida em três blocos de quatro pavimentos, com 495 apartamentos. Era servida por escolas, teatro, lavanderias, banhos públicos e laboratórios, conforme a Figura 7. FIGURA 7 – FAMILISTÉRIO FONTE: Benevolo (2007) A: Familistério de Guise B: Creche C: Escola/Teatro D: Serviços UNIDADE 1 | TRANSFORMAÇÕES E INOVAÇÕES DOS SÉCULOS XVIII E XIX 12 Após 1880, a fábrica do Familistério passou a ser administrada por uma cooperativa de operários e se extinguiu em 1967, com a dissolução da cooperativa. Essa proposta de Fourier vai influenciar nas propostas de habitações coletivas que serão apresentadas pelo Movimento Modernista no século XX. A Unité d’Habitation (1947), de Le Corbusier, em Marselha, e o Edifício Copan (1952), de Oscar Niemeyer, em São Paulo, são exemplos dessa influência. 13 Neste tópico, vimos que: • A Revolução Industrial e o crescimento populacional alteram a organização social das cidades no século XVIII. • As cidades tornam-se locais insalubres e com condições precárias para a sobrevivência da sua população. • Grandes obras de infraestrutura são necessárias para o mínimo funcionamento das indústrias. • A pouca intervenção do Estado na organização urbana gera as “cidades liberais”, onde predomina a iniciativa privada sem regulamentação. • Propostas utópicas surgem na busca de solução para os inúmeros problemas urbanos. • Robert Owen lança sua proposta de organização em torno da indústria. • Charles Fourier lança sua proposta de organização em falanstérios, grandes edificações de uso coletivo. RESUMO DO TÓPICO 1 14 1 A Revolução Industrial gerou profundas transformações que modificaram a relação do homem com o tempo. Anteriormente à Revolução Industrial, os objetos e construções eram modificados muito lentamente, e podiam ser considerados como imóveis. Entretanto, as mudanças da industrialização modificaram essa característica quando as exigências de funcionamento passaram a ser mais dinâmicas, necessitando de constantes readequações. Essa situação teve uma grave consequência nas cidades, transformando a relação existente entre a edificação e o terreno. Assinale a alternativa que explica essa nova relação que surge nas cidades. a) ( ) O edifício passa a ter maior valor que o terreno – em função das novas técnicas construtivas – e acaba com o mercado de terras urbanas. b) ( ) O Estado passa a ter a posse de todo o território urbano para poder efetuar seus planos de transformações urbanas. c) ( ) Os terrenos passam a ter maior valor que as edificações e sua posse passa para as cooperativas que administram as indústrias no século XVIII. d) ( ) A duração do edifício passa a ser considerada limitada, o terreno adquire um valor independente, dando início ao mercado de terras urbanas. e) ( ) As edificações passam a ter o mesmo valor financeiro que os terrenos sempre tiveram, resultando na especulação imobiliária existente até hoje nas cidades. 2 A chamada “cidade liberal” é a cidade resultante do contexto da Revolução Industrial e muito influenciada pelo liberalismo econômico, difundido por Adam Smith no século XVII. Sobre essa influência, é correto afirmar: a) ( ) A influência desse pensamento político resulta na limitação da intervenção pública nos problemas urbanísticos. b) ( ) A influência desse pensamento político resulta nas intervenções de melhoramentos executados pelo poder público. c) ( ) A influência desse pensamento político resulta na busca por melhoramentos nas moradias dos operários. d) ( ) A influência desse pensamento político resulta na intervenção do Estado apenas no setor econômico e não no setor urbanístico. e) ( ) A influência desse pensamento político resulta na elaboração de legislações de controle sanitário. AUTOATIVIDADE 15 TÓPICO 2 CIDADE PÓS-LIBERAL UNIDADE 1 1 INTRODUÇÃO Neste tópico, veremos como o aumento da intervenção do Estado no espaço urbano vai definir a “cidade pós-liberal”. Também veremos alguns projetos de reformas urbanas que foram feitas no século XIX, com destaque para o plano de reforma de Paris, Viena e Barcelona, e algumas propostas inovadoras que surgem no final do século XIX, como a Cidade Linear e a Cidade-Jardim. 2 INTERVENÇÕES URBANAS As consequências da RevoluçãoIndustrial e as transformações causadas na sociedade, como vimos no tópico anterior, geram um clima de insatisfação e revolta que culmina em uma série de revoluções e movimentos populares na metade do século XIX, na Europa, em especial as revoluções de 1848, que aconteceram na França. Esse clima de tensão aliado às condições precárias da cidade liberal vai impulsionar um período de maior intervenção do Estado em alguns setores da sociedade, incluindo um maior controle sobre a questão urbana. Segundo Benevolo (2007), esse modelo de cidade, que substitui a “cidade liberal”, pode ser chamado de “cidade pós-liberal”. O Estado passa a gerenciar a infraestrutura urbana para garantir as necessidades mínimas para o funcionamento das cidades. Sistema viário, sistema de esgoto e abastecimento de água, pontes, estradas de ferro, entre outros. Esse gerenciamento pode ser considerado como o princípio do urbanismo moderno, que irá se definir como campo disciplinar no final do século XIX. Nas áreas centrais, que já apresentavam alta densidade na “cidade liberal”, as moradias passam a ter valores cada vez mais altos. As periferias passam a se compactar cada vez mais, definindo basicamente dois tipos de ocupação: as residências isoladas no lote das classes mais ricas e grandes áreas de residências precárias para a população de baixa renda, geralmente organizadas em fita. Os equipamentos de grande porte, necessários ao funcionamento da já estabelecida cidade industrializada, são empurrados para um subúrbio mais afastado, como galpões e depósitos industriais (BENEVOLO, 2007). UNIDADE 1 | TRANSFORMAÇÕES E INOVAÇÕES DOS SÉCULOS XVIII E XIX 16 O governo passa a fazer algumas reformas urbanas, visando minimizar os inúmeros problemas que a cidade industrial apresentava. Ruas são ampliadas e edificações demolidas, preservando-se apenas os monumentos mais significativos. Também são implantados parques urbanos, visando melhorar a qualidade de vida da população cada vez mais afastada da natureza. Essas ações podem ser chamadas de higienistas, pois a questão sanitária era uma das maiores preocupações dos governantes, após uma série de epidemias que atingiram o território europeu. O grande desafio da administração é ter que lidar com os interesses dos vários grupos dominantes, empresários e proprietários, e com as necessidades das classes mais pobres. FIGURA 8 - ESTRADA DE FERRO SUBTERRÂNEA DE LONDRES, ILUSTRAÇÃO DE 1867 FONTE: Benevolo (2007) 3 A REFORMA DE PARIS Durante o Segundo Império de Napoleão III, o barão Georges Haussmann, prefeito da cidade, inicia, em 1853, uma série de reformas urbanas que irão transformar a cidade de Paris e deixar um modelo de planejamento, que, conforme destaca Frampton (2008), é seguido por muito tempo e influencia diversas ações urbanas em todo o território europeu. Nesse período, a cidade de Paris apresentava o mesmo cenário caótico causado pela Revolução Industrial,como o cenário já visto da cidade de Londres. Águas poluídas, precariedade de saneamento, ruas estreitas, congestionamentos, habitações precárias etc. Segundo Benevolo (2006), o Imperador Napoleão ganha prestígio e poder a partir da onda de medo gerada na população pelas revoluções de 1848, fazendo com que fosse possível a execução de grandes obras com a intenção de dificultar novas revoltas populares, substituindo as estreitas ruas medievais por largas e retas avenidas que facilitam a movimentação dos militares. TÓPICO 2 | CIDADE PÓS-LIBERAL 17 FIGURA 9 - REVOLUÇÕES DE 1848 NA FRANÇA. PINTURA DE H. VERNET FONTE: <https://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/c/cd/Horace_Vernet-Barricade_ rue_Soufflot.jpg>. Acesso em: 19 out. 2016. Durante os 17 anos em que Haussmann esteve no poder, a prefeitura executou aproximadamente 137 quilômetros de vias (retificações, alargamentos ou aberturas) em substituição a cerca de 546 quilômetros de ruas medievais que existiam em Paris. Bairros inteiros foram demolidos para dar espaço aos grandes bulevares que passaram a conectar os principais pontos da cidade. Cerca de 27 mil residências foram derrubadas. Antigos e novos monumentos ganham destaque na paisagem e são utilizados como marcos visuais e pontos focais das avenidas, como o Arco do Triunfo, destaque na nova Place de l’Etoile (Figura 11), e a Ópera Garnier, destaque da nova Avenue de l’Opera. UNIDADE 1 | TRANSFORMAÇÕES E INOVAÇÕES DOS SÉCULOS XVIII E XIX 18 FIGURA 10 - NOVAS VIAS EXECUTADAS POR HAUSSMANN EM PARIS FONTE: Benevolo (2007) FIGURA 11 - PLACE DE L’ETOILE FONTE: <http://www.paris-unplugged.fr/wp-content/uploads/2014/09/1328387793-Paris-Arc- Triomphe-Aerophoto.jpg>. Acesso em: 19 out. 2016. As redes de abastecimento de água, esgoto, iluminação e transporte público foram melhoradas e ampliadas. Novas edificações públicas são construídas, como escolas, prisões, hospitais, escritórios administrativos, bibliotecas, mercados etc. (BENEVOLO, 2007). Dois grandes parques públicos são também implantados na cidade, o Bois de Boulogne e o Bois de Vincennes, e outros dois parques menores, o Buttes- Chaumont e o Parc Montsouris. TÓPICO 2 | CIDADE PÓS-LIBERAL 19 O problema da moradia das classes mais pobres também será alvo de propostas do governo de Napoleão III. Constrói-se o primeiro complexo de casas populares na Rue Rochechouart, e em 1852, outros dois complexos em Batignolles e em Neuilly. Entretanto, essas poucas iniciativas não alteraram a precária situação das moradias operárias em Paris. Buscando um maior controle estético das principais vias da cidade, Haussmann define uma série de normativas para regulamentar a estética das edificações privadas e manter a uniformidade das fachadas, criando grandes eixos visuais de influência barroca. As edificações seguem estilos historicistas, predominantes nesse período histórico. Também define a padronização do mobiliário urbano, como bancos, luminárias, lixeiras etc. e fixa proporções entre larguras de vias e alturas de edificações para garantir a salubridade das ocupações e a harmonia da paisagem urbana. As principais críticas às reformas urbanas de Paris dizem respeito à destruição de grande parte da cidade medieval para dar lugar às novas vias. A população perde parte de sua história e identidade e demora a se acostumar com a nova paisagem imposta. Na figura a seguir podemos ver o impacto dessas destruições na quantidade de edificações que tiveram que ser demolidas para a abertura da Avenue de L’Opera. FIGURA 12 - ABERTURA DA AVENUE DE L’OPERA FONTE: Benevolo (2007) A escala empregada por Haussmann nas grandes avenidas alterava, de forma profunda, a relação dos habitantes com a cidade, que possivelmente só foi compreendida no século XX, com o aumento do fluxo de veículos nas vias. Outra grande crítica destacada por Benevolo (2007) é a rigidez da proposta, pensada de forma estática, que cria uma grande dificuldade de se fazer modificações necessárias às dinâmicas e alterações que as cidades sofrem com o passar dos tempos. UNIDADE 1 | TRANSFORMAÇÕES E INOVAÇÕES DOS SÉCULOS XVIII E XIX 20 A partir de 1870, inúmeras cidades francesas e diversas cidades europeias vão seguir o protótipo de Paris e vão implantar planos de reformas urbanas. Entretanto, nenhuma outra cidade conseguiu fazer mudanças tão profundas como a capital francesa. Muitas vezes, os planos eram implantados parcialmente ou abandonados durante a execução. A personalidade de Haussmann e o poder de Napoleão III foram decisivos para essa grande obra, que custou muito caro aos cofres públicos. 4 OS CASOS DE BARCELONA E VIENA Em 1859, o engenheiro espanhol Ildefonso Cerdá (1815-1876) faz um plano de expansão territorial para a cidade de Barcelona, na Espanha. Sua proposta é de ampliar a ocupação urbana através de uma malha quadriculada e regular (quadras de 113 metros), com duas grandes diagonais que cortam o tecido regular. Essa malha, ao contrário da reforma de Paris, não se sobrepõe à malha medieval,e sim se conecta com ela, que é preservada. FIGURA 13 - PLANO DE CERDÁ PARA BARCELONA, 1859 FONTE: <http://www.vitruvius.com.br/media/images/magazines/grid_9/2e87e0bf587b_fig_6_ barcelona_cerda_plan.jpg>. Acesso em: 19 out. 2016. A proposta de Cerdá está dentro dos propósitos higienistas do período e se baseia nas propostas para circulação e habitação. Sua grande inovação está na proposta de quadras chanfradas (ângulo de 45 graus nas arestas do quadrado), com pátios internos para melhorar a ventilação e iluminação das residências, conforme vemos nas figuras a seguir. TÓPICO 2 | CIDADE PÓS-LIBERAL 21 Em 1867, a partir de suas experiências no Plano de Barcelona, Cerdá publica sua visão de planejamento no livro Teoria Geral de Urbanização, tornando-se o pioneiro no uso do termo urbanização (FRAMPTON, 2008). FIGURA 14 - DESENHO DAS QUADRAS E POSSIBILIDADES DE OCUPAÇÃO DAS QUADRAS DE CERDÁ FONTE: <http://3.bp.blogspot.com/_aHohI9jLvMQ/RluanWe4qPI/AAAAAAAAACo/Hn- 2FIdroyo/s200/geometria+dos+lotes.jpg>. Acesso em: 19 out. 2016. Na cidade de Viena, na Áustria, o plano de expansão de Ludwig Förster (1859) é feito através de anéis (conhecidos como Rings de Viena ou Ringstrasse) no entorno no centro medieval consolidado que ainda era delimitado por sua muralha, diferente da maioria das cidades europeias da época, que já haviam derrubado suas muralhas. FIGURA 15 - RINGSTRASSE DE VIENA, 1860 FONTE: <https://archhistdaily.files.wordpress.com/2012/12/vienna-1860.png?w=480&h=354>. Acesso em: ago. 2016. UNIDADE 1 | TRANSFORMAÇÕES E INOVAÇÕES DOS SÉCULOS XVIII E XIX 22 O arquiteto austríaco Camillo Sitte (1843-1902) lança o livro “Construção das Cidades Segundo seus Princípios Artísticos”, em 1889, onde cria uma teoria e um modelo de cidade ideal em contraposição às práticas urbanas que vinham sendo feitas, como o Ringstrasse de Viena (CHOAY, 1998). A publicação de Sitte chegou rapidamente ao sucesso, sendo traduzida e publicada em diversos países, o que indica que havia uma insatisfação com a cidade que estava sendo planejada na segunda metade do século XIX. Esse ambiente de insatisfação vai estimular o surgimento de diversas propostas de organização alternativas, como veremos adiante. Sitte faz duras críticas ao planejamento moderno que, segundo ele, desconsiderava o caráter artístico que este deveria ter, resgatando alguns princípios estéticos da cidade medieval. Focado nas questões estéticas, destaca a monotonia que a excessiva regularidade das cidades causava em seus espaços simétricos, desarticulados e sem conexão com a arquitetura (BENEVOLO, 2006). A organização espacial do espaço público, em especial a praça, vai ser o grande focode análise para Sitte. Organiza seu estudo nos seguintes itens: • Relações entre os edifícios, os monumentos e as praças. • O centro das praças é desobstruído. • A praça é um espaço fechado. • Irregularidade das praças antigas. • A vida moderna limita o desenvolvimento da arte de construir cidades. • Reformas a introduzir na ordenação das cidades modernas. • A organização espacial do espaço público, em especial as praças, vai ser o grande foco de sua análise. Para Benevolo (2006), Sitte trouxe importantes contribuições para o pensamento urbanístico, recuperou o interesse pelas cidades antigas e destacou problemas da cidade moderna, que, aparentemente estéticos, acabam levando aos reais problemas do planejamento moderno. Uma grande avenida aos moldes dos bulevares haussmanianos é implantada no entorno do centro medieval que o plano preserva em sua quase totalidade. Nesse anel é possível organizar diversas edificações públicas em áreas espaçosas, como escolas, museus e teatros. É possível ver esse contraste do centro existente e do anel planejado na figura anterior. Segundo Benevolo (2006), essa solução também é utilizada em diversas cidades nórdicas, como Colônia, Leipzig, Lübeck, Copenhague. 5 A CRÍTICA DE CAMILLO SITTE TÓPICO 2 | CIDADE PÓS-LIBERAL 23 Apesar de seu apreço pela organização espacial medieval, Sitte não tem uma posição antiurbana e nem contrária ao planejamento. Deixa clara sua inspiração nas qualidades estéticas da cidade antiga, utilizando-a para definir os princípios estéticos necessários para o desenho da cidade moderna. No entanto, poder-se-ia verdadeiramente conceber no plano do projeto as mesmas belezas, tais como as produzidas pela história no decurso dos séculos? [...] Os modelos dos antigos devem reviver hoje de modo bem diferente do que uma cópia, embora conscienciosa; somente examinando-se aquilo que existe de essencial em sua criação e procurando-se, se conseguir, adaptar às condições modernas aquilo que existe de mais significativo em suas obras, é que poderemos esperar extrair ao terreno aparentemente tornado estéril uma semente que possa novamente germinar (SITTE, 1889 apud BENEVOLO, 2006, p. 354). 6 AS EXPERIÊNCIAS URBANÍSTICAS DO FINAL DO SÉCULO XIX No final do século XIX, o Estado passa a regulamentar cada vez mais o espaço urbano, através de legislações e planos reguladores para tentar minimizar os intermináveis problemas urbanos. Os problemas habitacionais e de saneamento continuam preocupando o governo e a população. Essa dificuldade em solucionar os problemas urbanos faz com que continuem surgindo propostas inovadoras de organizações sociais, influenciadas pelas propostas utópicas do início do século e pelas críticas de Sitte (que vimos em tópicos anteriores), que buscam alternativas ao modelo de cidade vigente. Destacam-se as propostas da Cidade Linear de Arturio Soria e da Cidade-Jardim de Ebenezer Howard. 6.1 CIDADE LINEAR O engenheiro espanhol Arturo Soria (1844-1920) propõe, em 1882, um modelo de cidade que apresenta uma alternativa ao modelo centralizado tradicional, que é a cidade de ocupação linear. Essa proposta, segundo Benevolo (2006), parte do princípio de que a cidade de organização centralizada tende a produzir congestionamentos e dificuldades de circulação. Assim, a ocupação se daria em um faixa longitudinal de largura limitada, percorrida por linhas férreas, que facilitariam o transporte e o fluxo contínuo. Essa ocupação poderia se estender de forma ilimitada e conectar diferentes cidades. UNIDADE 1 | TRANSFORMAÇÕES E INOVAÇÕES DOS SÉCULOS XVIII E XIX 24 FIGURA 16 - CIDADE LINEAR FONTE: Benevolo (2006) Propõe uma via arborizada central de, no mínimo, 40 metros, com linhas férreas em sua parte central. Nas laterais, amplos lotes com edificações isoladas, hortas e jardins. Na última década do século XIX, Soria projeta uma cidade linear em forma de ferradura para o entorno de Madri, que foi parcialmente executada, mas, posteriormente, acabou incorporada à periferia da cidade e descaracterizada. 6.2 CIDADE-JARDIM Ebenezer Howard (1850-1928) publica seu primeiro livro em 1898, onde inicia sua discussão sobre a cidade, que vai criar um movimento que irá influenciar de forma significativa as propostas urbanas implantadas no século XX, inclusive no Brasil. Sua proposta de cidade apresenta uma visão romântica e antiurbana, que busca uma aproximação do homem com a natureza, em contraposição à cidade industrial que afastava cada vez mais o campo da cidade. NOTA O termo romântica aqui é usado para designar o movimento artístico e filosófico do século XVIII, que defendia o culto à natureza. TÓPICO 2 | CIDADE PÓS-LIBERAL 25 Howard parte da questão da propriedade privada, que considerava o maior problema das grandes cidades. Propõe a regulamentação do espaço urbano como área pública e a utilização das áreas livres como espaços verdes de uso coletivo, trazendo a paisagem do campo para dentro da cidade. Propõe que a produção agrícola forme um cinturão verde no entorno da cidade, ficando facilmente acessível aos habitantes. Sua ideia é de criar uma cidade autossuficiente, equilibrada entre a indústria e a agricultura. FIGURA 17 - ÁREA CENTRAL DA CIDADE-JARDIM FONTE: Howard (2002) Howard apresenta sua propostaatravés de diagramas (figura anterior), onde define uma cidade radial centralizada e dividida em setores. Grandes bulevares de 36 metros de largura conectam o parque central ao perímetro externo, onde se localiza a ferrovia. Uma grande avenida de 128 metros de largura assume o caráter de um parque linear. Apesar de seu modelo inovador e sua crítica à cidade industrial, Howard demonstra, em seus bulevares, a influência da intervenção de Haussmann em Paris (OTTONI, 2002). A primeira cidade-jardim vai ser construída em 1904, em Letchworth, a 50 km de Londres. O projeto apresenta um rígido zoneamento que não permitia comércio nas áreas residenciais, nem pequenas indústrias. A cidade foi projetada para 35 mil habitantes, mas nunca chegou perto desse número, e a propriedade do solo, que deveria ser coletiva, acabou nas mãos de acionistas. UNIDADE 1 | TRANSFORMAÇÕES E INOVAÇÕES DOS SÉCULOS XVIII E XIX 26 Em 1919 Howard constrói a cidade de Welwyn, entre Letchworth e Londres. A cidade é projetada para 50 mil habitantes. Esta cresce rapidamente, mas nunca chega a ser autossuficiente, e acaba se tornando uma espécie de bairro distante de Londres. Muitas das ideias de Howard serão retomadas nas propostas urbanas do movimento Modernista, conforme veremos nas próximas unidades do caderno. 27 RESUMO DO TÓPICO 2 Neste tópico, vimos que: • O Estado passa a gerenciar os aspectos mínimos para o funcionamento das cidades. • Reformas urbanas são feitas para melhorar as vias e a infraestrutura urbana básica. • O início das ações de planejadores urbanos se dá através de planos elaborados por técnicos higienistas, focados nos melhoramentos sanitários. • Haussmann planeja e executa a maior e mais importante reforma urbana do século XIX. • O Plano de Paris se torna referência para os planejadores de todo o mundo. • Camillo Sitte faz duras críticas à qualidade estética das intervenções urbanas. • Novos pensadores, influenciados pelos utopistas do início do século XIX, pensam organizações alternativas à ocupação da cidade tradicional. • Arturo Soria propõe a Cidade Linear visando solucionar os problemas de mobilidade. • Ebenezer Howard propõe a Cidade-Jardim visando recuperar a proximidade do homem com a natureza. 28 1 O século XIX é conhecido por uma série de projetos de intervenção urbana, especialmente na Europa, que buscava solucionar os inúmeros problemas da cidade. Os planos de Haussmann, para Paris; e de Cerdá, para Barcelona, são dois exemplos de intervenção que foram executados nesse período, mas que apresentam abordagens diferenciadas. Sobre esses planos, é correto afirmar: I. O Plano de Haussmann propõe a abertura de grandes avenidas para o melhoramento da circulação viária. II. O Plano de Haussmann, além de ter o objetivo de melhorar a infraestrutura da cidade, também tinha objetivos militares. III. O Plano de Cerdá propõe a demolição de grande parte do tecido urbano medieval da cidade. IV. O Plano de Cerdá apresenta uma malha viária regular cortada por grandes vias diagonais. a) ( ) As afirmações I e II estão corretas. b) ( ) As afirmações I, III e IV estão corretas. c) ( ) As afirmações I e IV estão corretas. d) ( ) As afirmações I e III estão corretas. e) ( ) As afirmações I, II e IV estão corretas. 2 As palavras do nostálgico poeta flâneur acusam a insatisfação que surgiu durante o desenvolvimento das obras de transformação da cidade de Paris, comandadas pelo prefeito George-Eugène Haussmann. A velha Paris não existe mais (a forma de uma cidade muda mais depressa, ai! Do que o coração de um mortal) Paris muda! Mas nada se moveu em minha melancolia! Palácios novos, andaimes, blocos, velhos subúrbios, tudo para mim se torna alegoria, e minhas caras lembranças são mais pesadas do que rochas (BAUDELAIRE, Charles. La cygne, 1857). Assinale a alternativa com a correta justificativa para essa insatisfação expressa por Baudelaire. a) ( ) A reforma de Haussmann não trouxe a modernidade que a sociedade esperava e foi considerada uma mudança muito sutil. b) ( ) A reforma de Haussmann destruiu milhares de edificações provenientes da cidade medieval, transformando drasticamente a paisagem da cidade. c) ( ) A reforma de Haussmann não modificou a paisagem da cidade como a população esperava. AUTOATIVIDADE 29 d) ( ) A reforma de Haussmann transformou a paisagem da cidade medieval à medida que substituiu a antiga estrutura por grandes arranha-céus influenciados pelos avanços tecnológicos da Escola de Chicago, nos Estados Unidos. e) ( ) A reforma de Haussmann não conseguiu mudar as características das cidades medievais, mantendo as inúmeras vielas estreitas e sem infraestrutura. 30 31 TÓPICO 3 INOVAÇÕES TECNOLÓGICAS DO SÉCULO XIX UNIDADE 1 1 INTRODUÇÃO Nesse tópico, estudaremos as inovações tecnológicas que passaram a ser utilizadas nas construções no século XIX, especialmente as estruturas metálicas e o concreto armado. Veremos também como as Exposições Universais foram um importante palco para experimentações e disseminação de novas formas de se pensar a arquitetura. 2 O USO DO FERRO NA ARQUITETURA A Revolução Industrial, além das transformações das cidades, trouxe também um grande avanço tecnológico para a engenharia. A introdução do ferro nas construções seria uma das grandes responsáveis pelo desenvolvimento da tecnologia na arquitetura do século XIX. A Inglaterra virou pioneira na utilização desse material através do desenvolvimento dos meios de transporte férreo, da construção de inúmeras pontes e estações ferroviárias. FIGURA 18 - PONTE MARIA PIA, PORTO, GUSTAVE EIFFEL 1877 FONTE: <https://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/4/49/Ponte_Maria_Pia_-_ Porto.JPG>. Acesso em: 19 out. 2016. 32 UNIDADE 1 | TRANSFORMAÇÕES E INOVAÇÕES DOS SÉCULOS XVIII E XIX FIGURA 19 - PONTE DE FERRO CONSTRUÍDA EM EDIMBURGO, EM 1880 FONTE: <https://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/thumb/4/4f/Bbforthrailbridge. jpg/1280px-Bb-forthrailbridge.jpg>. Acesso em: 19 out. 2016. Segundo Argan (1999), alguns fatores influenciaram nessa crescente utilização do ferro na arquitetura, como: o aumento da produção industrial do material, a possibilidade de transporte de grandes peças pré-fabricadas, as potencialidades técnicas e resistência do material, otimização e rapidez das construções e a evolução da engenharia estrutural. Inicialmente, o uso do ferro nas edificações não era bem aceito pelos arquitetos, pois era considerado um material feio e pouco nobre. Foram os técnicos e engenheiros que descobriram as potencialidades desse material, que por ter maior resistência à tração, se adapta melhor às necessidades de grandes vãos sem apoios, como é o de caso de pontes e grandes estações. Curtis (2008, p. 38) destaca essa situação: “As atividades historicamente limitadas à profissão de arquiteto também estavam sendo dispensadas graças à vivacidade e ao talento dos engenheiros”. Mesmo com a resistência à estética das estruturas metálicas, os arquitetos não puderam ignorar as vantagens técnicas desse material sobre os materiais tradicionais, como a alvenaria e a pedra. A resistência aos esforços de tração e torção são muito superiores aos demais materiais em uma estrutura muito mais leve que a tradicional. Lentamente os arquitetos passam a utilizar estruturas de ferro. Inicialmente, escondem essas estruturas atrás de revestimentos e mantêm as fachadas tradicionais historicistas (GYMPEL, 2001). Henri Labrouste, em seu projeto para a Biblioteca Nacional de Paris (figura a seguir), em 1858, vai ser um dos pioneiros na utilização da estrutura de ferro em uma edificação pública e inovador ao deixá-la aparente em seus espaços interiores. Labrouste explora a potencialidade estética da estrutura metálica, e apesar de utilizar elementos historicistas decorativos nos pilares, consegue criar espaços interessantes com suas coberturas em abóbadas de ferro e gesso. Utiliza estruturas esbeltas que destacama leveza da cobertura. arquiteto James Bunning também explorou o potencial estético do ferro nos espaços interiores do seu projeto para a Bolsa de Carvão de Londres, em 1846. TÓPICO 3 | INOVAÇÕES TECNOLÓGICAS DO SÉCULO XIX 33 FIGURA 20 - BIBLIOTECA NACIONAL DE PARIS, 1858 FONTE: Argan (1999) FIGURA 21 - BOLSA DE CARVÃO DE LONDRES, 1846 FONTE: <https://s-media-cache-ak0.pinimg.com/564x/92/ea/39/92 ea39f688a956dab854ae2312086a85.jpg>. Acesso em: ago. 2016. Contrariando a opinião da maioria dos arquitetos da época, o arquiteto Metthew Wyatt, um dos organizadores da Exposição de 1851 (que veremos no próximo item) e admirador das estruturas de ferro, percebe a importância e a potencialidade desse novo material, e já em 1851 afirma que essa nova tecnologia criaria uma “nova era na arquitetura” (PEVSNER, 2001). As Exposições Universais, que se disseminam no século XIX, vão ser um importante meio de divulgação e experimentação na utilização do ferro na arquitetura. As tipologias das edificações que precisavam ser construídas para 34 UNIDADE 1 | TRANSFORMAÇÕES E INOVAÇÕES DOS SÉCULOS XVIII E XIX 3 EXPOSIÇÕES UNIVERSAIS A primeira exposição de caráter universal acontece na cidade de Londres, em 1851, com o objetivo de mostrar a produção industrial e as novas tecnologias de cada país, aproximando produtores, comerciantes, consumidores, potencializando novos negócios. A edificação construída para abrigar a feira foi idealizada pelo jardineiro e construtor de estufas Joseph Paxton. Foi concebida para ser uma obra temporária, econômica, de fácil manutenção, rápida execução e possível de ser desmontada e reutilizada. A obra de Paxton, que ficou conhecida como Palácio de Cristal, foi a primeira construção totalmente pré-fabricada, construída em peças de ferro fundido e revestida de vidro. A proposta se baseava nas estufas que já havia construído, entretanto, em uma escala monumental. Sua estrutura segue uma malha modular, com 600 metros de comprimento, 120 metros de largura e 34 metros de altura, 3.300 colunas e 2.300 vigas. Foi construído em nove meses. abrigar as grandes máquinas e equipamentos a serem expostos, além de uma multidão de pessoas do mundo todo, mostraram-se ideais para a utilização das estruturas de ferro. Além dos grandes vãos, o caráter temporário das edificações, que eram desmontadas após as feiras, se adaptava perfeitamente ao processo de construção pré-fabricado de peças montáveis e desmontáveis, como é o caso das estruturas metálicas. FIGURA 22 - PALÁCIO DE CRISTAL, 1851 FONTE: <http://1.bp.blogspot.com/-xqPExvWPcY0/UkARoh6A4WI/AAAAAAAAOns/ dwWoWHy4G_0/s1600/Victorian+London+1888+(25).jpg>. Acesso em: ago. 2016. TÓPICO 3 | INOVAÇÕES TECNOLÓGICAS DO SÉCULO XIX 35 FIGURA 23 - INTERIOR PALÁCIO DE CRISTAL, 1851 FONTE: <https://abrilguiadoestudante.files.wordpress.com/2016/10/exposicaomundial- londres-1851.jpg?quality=70&strip=all&w=550&h=450&crop=1>. Acesso em: ago. 2016. O destaque dessa edificação, além da inovação construtiva e tecnológica, é o distanciamento com todos os estilos historicistas que predominavam na arquitetura. Finalmente, surge uma edificação que busca um desenho condizente com as novas tecnologias e novas necessidades da sociedade moderna e industrial, ao contrário das edificações historicistas que predominavam no cenário arquitetônico da época. Argan (1999) destaca que, além do interesse prático das questões técnicas empregadas por Paxton, ele alcança bons resultados no plano estético: a leveza e liberação do peso da massa é de uma volumetria tão grande, a transparência que integra espaços interiores e exteriores e o predomínio dos planos vazados, e a iluminação interior praticamente igual às áreas externas. (Ver Figura 24). Apesar de ter sido duramente criticada pelos arquitetos da época, a edificação conquistou a população, que estava em busca da modernidade. Tanto é verdade que após o fim da exposição, a edificação foi desmontada e remontada em Sydenham Hill, próximo a Londres, onde permaneceu até 1936, quando foi destruída por um incêndio. A partir da Exposição de Londres, em 1851, inúmeras exposições se seguiram por diversas cidades do mundo, como Sidney (1879), Melbourne (1880), Amsterdã (1883), Antuérpia e New Orleans (1885), Barcelona e Bruxelas (1888). Cohen (2013) ressalta que as feiras se tornaram espetáculos de massa, grandes acontecimentos que atraíam multidões de todo o mundo. A Exposição de 1889, que aconteceu em Paris, marcou a comemoração dos 100 anos da Revolução Francesa, e também marcou a história das exposições universais. Apresentou uma grande evolução na técnica de construção com 36 UNIDADE 1 | TRANSFORMAÇÕES E INOVAÇÕES DOS SÉCULOS XVIII E XIX estrutura metálica e inseriu elementos que marcam a paisagem de Paris até os dias de hoje, pode-se dizer que foi a mais ambiciosa exposição em termos de mostra arquitetônica. Ao contrário das exposições anteriores, que se desenvolviam basicamente em uma única edificação, essa exposição inaugura o sistema de aglomeração de vários pavilhões, como até hoje se organizam as feiras. Duas grandes estruturas tiveram destaque na feira. A Torre Eiffel, com seus 300 metros de altura, que compõe a paisagem da cidade até os dias de hoje, e a Galeria das Máquinas, com seu vão livre de 115 metros, que foi posteriormente desmontada. FIGURA 24 - FOTO AÉREA DA EXPOSIÇÃO DE PARIS DE 1889 FONTE: <http://drupal-multisite-s3.s3-us-west-2.amazonaws.com/files/31-3-tour_eiffel_b40739. jpg>. Acesso em: ago. 2016. A torre de treliças metálicas, construída para a Exposição de 1889, pelo engenheiro Gustave Eiffel, tinha o objetivo de se tornar o marco da mostra e ser a mais alta estrutura construída pelo homem. Somente a estrutura metálica poderia conceber um elemento de tal dimensão, e somente Eiffel conseguiu calcular e executar uma estrutura desse porte, a partir das experimentações que já havia feito em diversas pontes que construiu, como a ponte Maria Pia, que pudemos ver anteriormente. Assim como o Palácio de Cristal, a Torre Eiffel foi duramente criticada na época de sua construção. Sua estética era considerada questionável e os intelectuais da época clamavam por sua destruição. Entretanto, o impacto que causou na paisagem da cidade conquistou a população e a torre permaneceu em pé mesmo após o fim da feira. Argan (1999) destaca que a Torre Eiffel se tornou o símbolo da modernidade, destacando, em sua forma, a funcionalidade técnica e estrutural. Para ele, o novo marco da paisagem urbana parisiense se destaca sobre os demais monumentos da cidade sem celebrar o passado e, sim, glorificando o presente e o futuro. TÓPICO 3 | INOVAÇÕES TECNOLÓGICAS DO SÉCULO XIX 37 A Galeria das Máquinas foi uma edificação projetada por Ferdinand Dutert, com uma estrutura metálica que permitiu a construção do maior vão livre já erguido até aquele momento (115 metros). Dutert desenvolveu um sistema de treliças em aço (primeira utilização em larga escala na construção) que necessitava apenas 20 arcos para absorver o peso da cobertura de uma edificação de 420 metros de comprimento. Cada arco possuía 48 metros de altura e três rótulas (articulação cilíndrica) que faziam a conexão das peças. Uma na parte superior e duas nos apoios que permitiam a absorção de movimentos de estruturas dessa dimensão. Os apoios em seções mínimas causaram discussão e desconfiança à época da construção. FIGURA 25 - GALERIA DAS MÁQUINAS, 1889 FONTE: < http://twixar.me/mvT1 >. Acesso em: 19 out. 2016. FONTE: <http://www.dezenovevinte.net/arte%20decorativa/ad_odete_arquivos/galeria%20 maquinas.jpg>. Acesso em: 19 out. 2016. 38 UNIDADE 1 | TRANSFORMAÇÕES E INOVAÇÕES DOS SÉCULOS XVIII E XIX Apesar da monumentalidade da estrutura, o conjunto apresenta uma notável leveza que se dá pelo desenho dos arcos, pela sutileza de seus apoios e pela transparência do vidro da cobertura. Para Gympel (2001), a Galeria de Máquinas se tornou um dos mais importantessímbolos da era industrial, pois demonstrou toda a potencialidade desse tipo de estrutura. Além disso, essa edificação também marca uma grande inovação formal, quando, pela primeira vez, um único elemento estrutural cumpre a função de pilar e cobertura ao mesmo tempo, além de definir a forma da edificação. 4 O CONCRETO ARMADO O uso do concreto nas construções remonta ao período do Império Romano, entretanto, somente na segunda metade do século XIX volta a ser explorado nas construções em função de seu baixo custo, sua resistência aos esforços e ao fogo (CURTIS, 2008). A introdução das barras de ferro na estrutura de concreto só aconteceu a partir de 1870. Ernst Ransome (Estados Unidos) e François Hennebique (França) inventaram sistemas de pilares e vigas de concreto armado que, assim como as estruturas metálicas, resgatavam o princípio gótico de separação entre estrutura e fechamento, abrindo um campo de grande liberdade formal no uso da planta livre que vai ser testada em todas as suas possibilidades no século XX, conforme veremos posteriormente. FIGURA 26 - SISTEMA ESTRUTURAL DE CONCRETO ARMADO CRIADO POR HENNEBIQUE, 1892 FONTE: <https://s3.amazonaws.com/classconnection/500/flashcards/10550500/jpg/ franc_ois_hennebique__system_hennebique__1892-_stahlbetondecke_mit_plattenbalken- 152B79DCB5574B3522B.jpg>. Acesso em: ago. 2016. TÓPICO 3 | INOVAÇÕES TECNOLÓGICAS DO SÉCULO XIX 39 A junção do ferro (com sua flexibilidade e resistência aos esforços de tração) ao concreto (com sua rigidez e resistência aos esforços de compressão) cria um novo material que possibilita a execução de infinitas formas na construção, que são impossíveis de se executar com materiais tradicionais. FIGURA 27 - APARTAMENTOS DA RUA FRANKLIN, PARIS (1903-04) FONTE: <http://files1.structurae.de/files/ photos/64/paris25frank01.jpg>. Acesso em: 16 jul. 2019. FONTE: <https://c2.staticflickr.com/4/3367/ 3578004376_891e414816_b.jpg>. Acesso em: 19 out. 2016. Auguste Perret foi o primeiro a usar o concreto armado em uma edificação residencial. Em seu projeto para os apartamentos da Rua Franklin (1903-04) deixa evidente a estrutura de pilares e vigas na fachada. Painéis de fechamento decorados e grandes aberturas puderam ser colocados na fachada da edificação em função da liberdade estrutural fornecida pelo material. O pavimento térreo livre deixava exposta a rede de pilares de concreto que fazia a estruturação da edificação. Curtis (2008) destaca esse pioneirismo de Perret no uso dos pilotis, que seria muito significativo no Movimento Moderno no século XX. 40 RESUMO DO TÓPICO 3 Neste tópico, vimos que: • O ferro passa a ser utilizado em larga escala na construção, inicialmente, nas grandes obras de engenharia, como pontes e vias férreas. • Os arquitetos apresentam uma grande resistência à estética desse novo material. • As Exposições Universais passam a ser um importante meio de desenvolvimento da estética e do uso das estruturas metálicas na arquitetura. • A Exposição de Paris de 1889 deixa um grande legado para a arquitetura, com a construção da Torre Eiffel e da Galeria de Máquinas. • O desenvolvimento do concreto armado abre um campo de possibilidades para o uso desse material na arquitetura. 41 1 A pluralidade eclética característica das manifestações arquitetônicas do século XIX é ofuscada por um importante conjunto de obras construídas para as grandes Exposições Universais, que seria chamada por Giulio Argan (1999) de “Arquitetura dos Engenheiros”. Assinale a alternativa que trata corretamente o assunto. a) ( ) As Exposições Universais se destacaram na arquitetura por propiciarem a construção de grandes edificações de linguagem modernizada que utilizavam estruturas metálicas de forma inovadora. b) ( ) As Exposições Universais trouxeram grandes estruturas de ferro, como pontes e estações ferroviárias, para suprir uma necessidade nova, gerada pela industrialização. c) ( ) As Exposições Universais se destacaram na arquitetura pela inserção de parques verdes permanentes no espaço urbano das cidades. d) ( ) As Exposições Universais trouxeram reformas urbanas importantes para a cidade pós-liberal, com abertura de vias e melhoramentos sanitários. e) ( ) As Exposições Universais exploraram a principal característica das estruturas de ferro: de suportarem a compressão construindo edificações monumentais para abrigarem esses grandes eventos. 2 A arquitetura vai ganhar um lugar de destaque nas Exposições Universais do século XIX, por ser simultaneamente a superestrutura do evento e objeto de exposição, sendo o ferro o material escolhido para estruturar essas edificações. Qual alternativa contém a correta justificativa para a utilização desse material na construção dos pavilhões dessas exposições? a) ( ) O ferro possuía a mesma resistência que a pedra, mas era considerado esteticamente mais belo pelos arquitetos. b) ( ) O ferro possuía boa capacidade para vencer grandes vãos e possibilitava uma maior rapidez nas construções. c) ( ) O ferro possuía uma boa resistência à compressão e era um material tradicionalmente usado na arquitetura. d) ( ) O ferro possuía boa capacidade para vencer grandes vãos e possibilitava a construção de edificações maciças e pesadas. e) ( ) O ferro possuía boa resistência à compressão e possibilitava a construção de edificações verticalizadas com mais de dez pavimentos. AUTOATIVIDADE 42 43 TÓPICO 4 O MOVIMENTO ARTS AND CRAFTS UNIDADE 1 1 INTRODUÇÃO Neste tópico, iremos conhecer o movimento que discute a qualidade da produção industrial no século XIX, liderado por William Morris, que ficou conhecido como Arts and Crafts. Inicia como um movimento visual e posteriormente passa a ser um movimento social também, de crítica à industrialização. 2 A CRISE DAS ARTES APLICADAS No contexto de discussões sobre as consequências da industrialização no século XIX, surge um movimento que discute a baixa qualidade dos objetos industrializados, como mobiliários, tecidos, utensílios domésticos etc. A partir da Revolução Industrial, define-se uma separação entre a arte e as “artes aplicadas”, ou seja, os artistas se desconectam da produção de objetos de uso diário e se concentram apenas nas chamadas belas artes, como pinturas, esculturas, entre outros elementos. O processo de produção em série faz com que se perca o controle no desenho e execução de produtos que até então eram feitos pelo trabalho do artesão. Essa mecanização acabou resultando em uma grande queda na qualidade e no acabamento desses utilitários. A Exposição de 1851, já mencionada anteriormente, reuniu a produção industrial de diversos países do mundo, deixou clara a inferioridade na qualidade dos objetos europeus com relação ao resto do mundo e impulsionou a ampliação dessa discussão sobre as artes aplicadas. John Ruskin, já na década de 1850, foi um dos primeiros críticos a mencionar a “falta de arte” nos produtos e também destacar a deplorável situação dos operários da indústria, influenciando uma geração de pensadores, como William Morris, que defendia o artesanato como alternativa aos produtos industrializados produzidos em massa, pregava o fim da distinção entre o artesão e o artista e a criação de uma arte acessível a todos. 44 UNIDADE 1 | TRANSFORMAÇÕES E INOVAÇÕES DOS SÉCULOS XVIII E XIX 3 O ARTS AND CRAFTS O movimento Arts and Crafts se define a partir da atuação de William Morris (1834-1896) e seus parceiros, incluindo os arquitetos Philip Webb e Richard Shaw. Influenciado pelas ideias dos medievalistas Ruskin e Pugin, Morris defendia a ideia de que o arquiteto deveria atuar como um “mestre de ofício” em seus projetos, definindo tanto a edificação quanto seus detalhes interiores de decoração e mobiliário. Os arquitetos influenciados pela visão social de Morris vão se voltar para a construção de residências para a classe média, enquanto a maioria dos arquitetos da época se concentrava nas grandes
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