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A racionalidade da revelação divina especial Gordon H. Clark Todos os direitos em língua portuguesa reservados por Editora Monergismo Caixa Postal 2416 Brasília, DF, Brasil ─ CEP 70.842-970 Sítio: www.editoramonergismo.com.br 1ª edição, 2016 Tradução: Felipe Sabino de Araújo Neto Revisão: Fabrício Tavares de Moraes P������� � ���������� ��� ��������� �����, ����� �� ������ ��������, ��� ��������� �� �����. Todas as citações bíblicas foram extraídas da versão Almeida Revista e Atualizada (ARA) salvo indicação em contrário. Título original: Special Divine Revelation as Rational Sumário Prólogo à edição brasileira 1. A racionalidade do cristianismo 2. A revelação natural e a cosmovisão bíblica 3. O colapso das leis científicas e incompletude da lei da consciência 4. A leitura de Van Til 5. Raízes no vazio: o irracionalismo de Van Til 6. A tirania do irracionalismo 7. Após as trevas, a luz Introdução I. Inadequação da revelação geral II. Defesa da revelação racional III. Alguns problemas contemporâneos Bibliografia Sobre o autor P������ � ������ ���������� 1. A racionalidade do cristianismo Diferentemente de muitos de nossos atuais líderes eclesiásticos, teólogos e pensadores cristãos, o filósofo norte-americano Gordon Clark se valeu da lógica como um instrumento cirúrgico para dissecar não somente os corpos putrefatos dos sistemas heréticos, mas também para remover as máculas e feridas que, por vezes, se alastram silenciosamente no meio do pensamento cristão ortodoxo e genuíno. Essencialmente, a lógica trabalha com o conjunto metafísico de possibilidades e impossibilidades do real, no qual, por assim dizer, o próprio universo está inserido. Todavia, Clark sempre foi presto em relacionar a lógica com o Logos por meio do qual todas as coisas foram feitas. Com efeito, as leis lógicas não são somente invioláveis, mas são a condição mesma da existência de um ente; isto porque a lógica, tal qual por nós apreendida, é um reflexo da mente do Logos, vale dizer, Deus. Todas essas questões, felizmente, são ponto comum hoje em dia não apenas no meio reformado, mas também em outras tradições cristãs, com exceção talvez dos laivos ainda restantes do existencialismo cristão. No presente artigo, “A racionalidade da revelação divina especial”, Clark analisa a questão da inadequação da revelação natural; para o filósofo, o ponto crucial é que os céus, que declaram a glória de Deus, e o firmamento, que anuncia as obras de suas mãos, são arautos menos eloquentes do que nós, cristãos, imaginamos. Evidentemente, a Queda, por meio dos chamados efeitos noéticos do pecado, obnubilou nossos raciocínios e nossa capacidade de apreensão plena e exaustiva dos entes e suas relações. Contudo, para Clark, ainda no estado pré-lapsariano, Adão dependeu da revelação especial — a Lei-palavra de Deus — a fim de saber como proceder no Éden. Nenhuma investigação empírica, nenhuma análise e taxonomia botânicas poderiam, por exemplo, levá-lo à conclusão de que o comer da árvore do bem e do mal o conduziria à desobediência e, portanto, à separação de Deus. Portanto, a “natureza” (termo em si mesmo inadequado)[1] não contém em si as diretrizes para uma vida piedosa perante o Senhor. Não obstante, há duas questões problemáticas com as quais atualmente nos deparamos, e que procedem, ambas, de conclusões erradas com relação aos temas abordados no artigo de Clark. Em primeiro lugar, alguns movimentos negam, por completo, o termo “teologia natural”, apontando para sua impossibilidade ou mesmo heterodoxia. Atribuem ao método evidencialista de apologética uma origem romanista ou arminiana, revelando, assim, não somente um desconhecimento histórico, mas também impropriedade filosófica. Na verdade, deparamo-nos na Escolástica Protestante, na Nadere Reformatie holandesa (A segunda Reforma ou a Reforma mais profunda), com Wilhelm à Brakel e Hermann Witsius, e no período pós-Reforma, com Heinrich Heppe, na Alemanha, com amplas evidências do uso de argumentos evidencialistas. Todavia, o uso de tais argumentos sempre foi acompanhado pela advertência de que os raciocínios ali presentes somente apontavam para o conhecimento inato da Divindade (sensus divinitatis), e, por si só, jamais seriam capazes de gerarem a fé no coração dos homens. O teólogo à Brakel, por exemplo, no seu Christian’s Reasonable Service [O culto racional do cristão], tratando nos capítulos iniciais de sua obra sobre o sentimento religioso universal, elenca alguns argumentos que, hoje em dia, alguns chamariam de evidencialistas: Os filósofos mais brilhantes fizeram progresso considerável no tocante a esse conhecimento [da existência da Divindade] como resultado da observação das criaturas. É possível crescer nesse conhecimento de três modos: (1) Pela via da negação, negando a Deus toda imperfeição, fragilidade, fim e insignificâncias, todas as quais são encontradas na criatura; (2) Pela via da excelência, atribuindo infinita e perfeitamente a Deus tudo aquilo que pode ser observado como glorioso, belo e deleitável na criatura, pois a causa original sempre excederá aquilo que é encontrado em qualquer objeto criado; (3) Pela via da causalidade, ascendendo de um simples elemento até sua causa, daí procedendo para a causa superior, e, assim, finalmente chegando à causa final que é Deus, e dele descendo por meio de várias causas até a menor de todas as criaturas. Essas três vias apresentadas por à Brakel são, respectivamente, a via negativa, a via dos graus de perfeição e a via da causa eficiente, de Tomás de Aquino. Decerto, nenhum apologista romanista ou arminiano competente afirmaria que a simples exposição de evidências é capaz de “promover a fé”; na verdade, um dos mais celebrados evidencialistas contemporâneos, William Lane Craig, sempre chama a atenção de que seu intuito é apenas demonstrar a racionalidade ou razoabilidade da fé cristã. De semelhante modo, a tentativa de submeter a Palavra de Deus aos critérios da razão autônoma humana é não somente idolatria, mas uma própria inversão do real. E é disto que os evidencialistas, no mais das vezes, são injustamente acusados. Cremos, entretanto, que há aqui um falso dilema, pois se o cristianismo é a própria verdade — o que o diferencia de todas as doutrinas —, e se o Logos divino preside sobre toda a realidade, segue-se que tudo que é ilógico está em oposição à verdade divina. O marxismo, por exemplo, não somente é ilógico por não estar em conformidade com a cosmovisão bíblica, mas também porque vários de seus elementos, especialmente a filosofia da história a ele subjacente, estão em desconformidade com a própria estrutura do real. Basta perceber que nenhuma das noções distintamente marcadas pelo sistema econômico capitalista deu lugar naturalmente — como apregoa o socialismo científico — ao socialismo e, posteriormente, ao comunismo. Desse modo, lamentavelmente, o pressuposicionalismo tem sido adotado por inúmeros professores e estudantes de seminários não como uma ferramenta que, a depender da situação, é a mais útil e efetiva; pelo contrário, partindo da infalibilidade das Escrituras, muitos se entregaram a uma letargia intelectual mascarada de piedade e submissão à verdade de Deus. Em sua incapacidade ou indisposição de analisar e apontar os ilogismos e contradições internas dos sistemas heréticos, muitos simplesmente, por meio de bravatas intelectuais e num modo caricaturalmente ex cathedra, inibem ou suprimem de antemão qualquer discussão por meio da proclamação da superioridade da cosmovisão bíblica. Todo cristão genuíno sabe e reconhece essa superioridade. Todavia, a doutrina e sistematização a qual hoje temos acesso é fruto de um empenho laborioso e contínuo, repleto de revezes e controvérsias, além de diversos pontos sobre os quais ainda não há o mínimo consenso. Sob a arquitetura harmoniosa das Institutas, da Suma Teológica ou da Dogmática Reformada, de Herman Bavinck, por exemplo, há ruínas e detritos de antigos sistemas, heterodoxias e mesmo imprecisõesde teólogos ortodoxos que se sedimentaram ao longo do tempo. De fato, todos os grandes pensadores cristãos foram movidos pela certeza de que a fé que uma vez lhes fora confiada era superior a todos os sistemas engendrados pela mente humana — isto, todavia, não anulou ou desestimulou seus esforços para dissecar e refutar cada heresia, seja por meio das Escrituras ou da simples análise lógica. Portanto, aqueles que efetivamente buscam dar razão de sua fé não submetem a verdade bíblica à razão autônoma humana; na verdade, qualquer razão que esteja em oposição à revelação é inerentemente irracional ou está equivocada em algum de seus elementos. 2. A revelação natural e a cosmovisão bíblica Neste pequeno artigo, controverso entre os círculos de pressuposicionalistas vantilianos, Gordon H. Clark trabalha com a inadequação da revelação natural para orientar o homem ao cumprimento da vontade de Deus. Decerto a ira de Deus se manifesta do céu; indubitavelmente as estrelas são pequenos lampejos de uma glória maior; e a harmonia e simetria da Criação apontam para um Criador sábio. Todavia, a partir da simples observação da natureza, o homem não é capaz de deduzir o drama da salvação preparado desde a eternidade por Deus. Observando o mundo e os fenômenos ao seu redor, o homem é capaz apenas de roçar, ou delinear de modo bastante indistinto, alguns pilares da cosmovisão bíblica, e mesmo assim apenas de modo distorcido. Em primeiro lugar, tomemos a Criação. Os filósofos da Antiguidade, percebendo a ordem do cosmos, evidentemente se indagaram sobre sua origem. Os pensadores pré-socráticos, num afã monista, atribuíam a algum elemento o princípio (arché) de todas as coisas. Heráclito de Éfeso, por exemplo, entendeu que tudo procedia do fogo, ao passo que Anaxímenes concebia que tudo, inclusive os deuses, provinham do ar. Aristóteles, por exemplo, propôs a eternidade do universo, e partiu da antiga concepção grega de ὕλη (húlē), para se referir à matéria primordial, ou mesmo à massa indistinta de potencialidades que, para sua apreensão, exige a forma. Já em Timeu, de Platão, por exemplo, a ὕλη, em oposição à doutrina bíblica da Criação, é uma espécie de matéria-prima extraída do abismo do caos primordial e utilizada pelo Demiurgo na criação do universo. Em suma, a observação do mundo e sua ordem (significado do termo grego kosmos) e o entendimento de que há um Criador não conduziram o homem para uma compreensão mais profunda do Deus vivo; antes, engendrou um ídolo que é coeterno ao caos,[2] e por isso necessita confrontá-lo a fim de criar a ordem, mas ao mesmo tempo depende do caos como matéria-prima de sua criação, ou melhor, organização. Contudo, a verdade bíblica ensina que a Criação se deu ex nihilo (a partir do nada), mediante o poder de Deus, “que chama à existência as coisas que não existem” (Romanos 4.17); portanto, não se dá a partir de uma matéria preexistente, mas, sim, a partir de um princípio absoluto, a Palavra de Deus: “o universo [foi] formado pela palavra de Deus, de maneira que o visível veio a existir das coisas que não aparecem” (Hebreus 11.3). Ademais, diferentemente de todos os demais sistemas, o conceito de Criação bíblico implica não somente os entes físicos, mas também as entidades espirituais (anjos, potestades, etc.). A isto podemos acrescentar ainda o entendimento de Kuyper, posteriormente desenvolvido por Albert M. Wolters, acerca das potencialidades que subjazem à Criação e que são e devem ser exploradas pelo homem por meio do mandato cultural. Destarte, a ciência, as artes, a política e afins são partes essenciais do plano divino, embutidas, por assim dizer, na estrutura do universo e soberanamente regidas mediante as leis criacionais estabelecidas pelo próprio Deus. Em segundo lugar, a mente humana, destituída da revelação especial, atentando-se para a Criação e para o próprio coração, percebeu, ainda que de maneira confusa e obliterada, que tanto o cosmos quanto o espírito humano se encontram num estado de anormalidade. Aquilo que chamamos de Queda, cujos efeitos são tão mais visíveis quanto mais pertos de Deus estamos, assoma, por vezes, e de modo muito compacto, em escritos dos filósofos antigos. Todavia, como se deu no caso do primeiro alicerce analisado, os homens se desviaram da verdade, propondo sistemas que, ainda que provenientes da análise de uma experiência real, acabaram por se divergir do eixo revelacional. Os órficos, por exemplo, supostos seguidores do poeta e místico Orfeu, influenciados por correntes orientais, entendiam que o homem foi criado a partir das cinzas dos titãs malignos que devoraram Zagreu (o deus Baco ressurreto), de maneira que era um misto de bem e mal. De semelhante modo, criam que a alma racional e imortal do homem, tendo se originado nos céus luminosos, caiu nesta terra tenebrosa, tornando-se, pois, prisioneira do corpo material. A partir dessa condição miserável, a alma humana estava condenada ao ciclo ininterrupto de nascimento, morte e renascimento. Grosso modo, os místicos, poetas e filósofos reconhecem uma queda, no entanto, conforme visto acima, é uma queda incompleta ou dualista (a alma permanece pura e em oposição antitética ao corpo) ou cuja origem não está na desobediência à lei de Deus, mas na própria finitude metafísica do homem. Em resumo, para esses pensadores, a queda do homem não é ética, mas uma consequência da própria essência do homem. Desse modo, qualquer conceito de pecado original ou depravação total é, para eles, inconcebível. Em terceiro lugar, não há, em qualquer pensamento filosófico anterior ao cristianismo, a ideia de uma redenção cósmica seguida de um julgamento moral. Evidentemente é possível encontrar em alguns escritos e mitos uma expectativa de um futuro paraíso terreno, um retorno à era dourada da humanidade. Porém nenhum deles contempla simultaneamente a restauração de todas as coisas por meio do sacrifício do próprio Deus e o estabelecimento de um julgamento universal no qual há uma continuidade entre história e eternidade. Nos termos de Bavinck, a história não é o julgamento de Deus, mas sem dúvida é um de seus julgamentos. Em quarto e último lugar, a Consumação, a restauração, glorificação e submissão de todas as coisas a Cristo, que governará com paz, alegria e santidade. Sem dúvida os sistemas filosóficos, pelo menos em sua maioria, apresentam, ainda que tacitamente, uma escatologia. Josiah Royce, o filósofo norte-americano, fundamentava sua filosofia com a ideia de que cada ente do real é percebido não somente em sua substancialidade, mas também em seu potencial teleológico, isto é, sua inclinação a algum fim ou finalidade. Em seu livro Problem of Christianity [O problema do cristianismo], Royce afirma que “o mundo real é a Comunidade da Interpretação… Se a interpretação é uma realidade, e se interpreta verdadeiramente o todo da realidade, então a comunidade alcança sua finalidade (a representação plena do Ser), e o mundo real inclui seu próprio intérprete”. Tal exemplo serve para corroborar a ideia clarkiana de que o homem, ainda que tendo nascido numa sociedade majoritariamente cristã, não é capaz, por meio da simples observação do real, de concluir que, num ponto histórico específico, os entes serão conduzidos pelo poder divino a uma nova e superior condição (a glorificação). A observação da mutabilidade das coisas em geral leva o homem à conclusão sumarizada nos versos de Georg Trakl: “todos os caminhos desembocam em negra podridão”; e jamais, portanto, na restauração gloriosa da todas as coisas. Somente as Escrituras, a revelação divina especial, ensina e fortalece o homem para esperar a manifestação visível do Reino de Deus. 3. O colapso das leis científicas e incompletude da lei da consciência De modo bastante sucinto, podemos dizer que uma compreensão superficial e deliberadamente equivocada do mecanicismo de Newton conduziu a ciência à crença de eternidade das chamadas “leis naturais”. Na verdade, após conceber a realidade como uma estrutura maquinal cuja totalidadeé prontamente apreensível, muitos encontraram na ciência não um método de busca pela verdade, mas um instrumento de poder sobre a natureza, incluindo o próprio homem. Para tal mentalidade, não importa muito descobrir o que determinado ente é, mas, sim, suas capacidades e utilidades. Todavia, dada sua contingência, é impossível depreender do movimento da natureza alguma lei fixa e imutável; e dessa frustração surge o relativismo pós-moderno, ou o perpectivismo nietzschiano. Afinal, tendo pressuposto equivocadamente uma estrutura autônoma e autocontida chamada Natureza, e lhe imputado subsequentemente certas leis imutáveis, o homem engendrou para si um universo fechado, abarcável e exaustivamente conhecido. Contudo, com os fracassos de vários experimentos, e com a impredictibilidade de alguns fenômenos, não apenas da física quântica, mas mesmo do macrocosmo, a ânsia humana de poder, controle e previsão do comportamento e potencialidades da natureza, vendo-se frustrada, alardeia a relatividade de todas as coisas. A acidentalidade e o acaso tornam- se os suseranos de todos os entes. Clark, juntamente com Cornelius Van Til, sabem que o universo é iluminado e interpretado pela luz das Escrituras. Sem a unidade da soberania de Deus, o universo é regido pelo fortuito; e tudo aquilo que é completamente ocasional é, por definição, irracional, como no mundo de Alice, de Lewis Carroll. Curiosamente, Clark estabelece a inadequação da revelação natural e simultaneamente a racionalidade da revelação especial (as Escrituras). Lamentavelmente a igreja moderna adotou pressupostos iluministas no tocante à doutrina da revelação e da inspiração da Bíblia. Trabalhando sob a falsa dicotomia entre “razão x revelação”, vários crentes eventualmente se deparam com um beco sem saída, sendo obrigados a renunciar à inspiração plenária ou infalibilidade das Escrituras ou à racionalidade. Por meio da leitura de seu artigo, torna-se claro que Clark busca, antes, refutar qualquer tentativa de conceber uma lei natural, uma lei moral inerente à natureza, do que dizer que o universo, como um todo, não resplandece — como pequenos fragmentos de espelho refletem a luz do sol — a glória de Deus. Na verdade, grande parte do conflito atual entre Estado e Igreja, entre autonomia e teonomia, laicidade e cultura cristã, provém de uma metamorfose do conceito de lei natural. Rousas John Rushdoony, por exemplo, em Cristianismo e Estado, citando teólogos cristãos medievais, demonstra como a cristandade sempre concebeu o Evangelho como a lei natural por excelência. Por exemplo, em seu Decreto, o monge e jurista Graciano afirma que “a humanidade é governada de dois modos: a saber, por meio da lei natural e pelos costumes. A lei da natureza é aquela contida na Lei e Evangelhos, por meio da qual é ordenada a fazer para com o outrem aquilo que deseja que se faça para si mesmo, e é proibido de infligir no próximo aquilo que não gostaria que fizessem para consigo”. No século XII, Rufino afirma: “a lei natural, que fora completamente perdida no primeiro homem (Adão), foi restaurada na lei mosaica, aperfeiçoada no Evangelho, e adornada nos costumes”. Portanto, para o pensamento jurídico e teológico medieval, a lei bíblica é a lei natural, visto que procede de Deus cuja lei se encontra sobre e em todos os seres. Foi somente no período iluminista que tal compreensão literalmente sofreu uma reviravolta. Clark herda a antiga tradição, pois defende que apenas a lei natural, isto é, a lei bíblica é adequada para revelar aos homens certos atributos de Deus. Todavia, em seu livro The Protestant Doctrine of Scripture, Cornelius Van Til, criticando o posicionamento de Clark neste artigo em questão e em outras de suas obras, afirma: Ora, Clark, por mais franca e honestamente comprometido com a fé reformada que seja, falha, pois, em desafiar o descrente a apresentar suas credenciais. Ele não diz ao cientista descrente que a natureza claramente revela o senhorio de Deus, o Criador-Redentor. Clark simplesmente desiste de exigir ao homem natural que reconheça o caráter revelacional do campo dos fatos no qual realiza sua pesquisa. Clark diz simplesmente que a ciência “não deve ser vista como cognitiva”. (Van Til, The Protestant Doctrine of Scripture, grifo nosso) Ora, se a “natureza claramente revela o senhorio de Deus, o Criador-Redentor”, porque tantas concepções distintas da Divindade ao longo da história, nos povos que não receberam a revelação especial? E se tal clareza é tão indiscutível, não há necessidade alguma de Clark, ou qualquer outro teólogo ou pregador, “de exigir ao homem natural que reconheça o caráter revelacional do campo dos fatos no qual realiza sua pesquisa”. Em que sentido o cientista descrente pode deduzir que Deus é o Redentor, quando na verdade todas as coisas demonstram a ira de Deus contra aqueles que sufocam o senso da divindade? Van Til se afirma como herdeiro da tradição neocalvinista holandesa; no entanto, um dos seus principais nomes, Herman Bavinck, compreende a questão de modo semelhante a Clark: Aquilo que nem a natureza, nem a história, nem mente nem coração, nem a ciência nem arte podem nos ensinar, isto nos é dado a conhecer — a vontade fixa e inalterável de Deus em resgatar o mundo e salvar os pecadores, uma vontade em desacordo com a quase totalidade da aparência das coisas. Essa vontade divina é o segredo da revelação. Na criação, Deus manifesta o poder de sua mente; na revelação, cujo centro é a redenção, ele descerra para nós a grandeza de seu coração. (Herman Bavinck, Filosofia da fevelação) A vontade de Deus, fixa e inalterável, está em desacordo com a quase totalidade das coisas aparentes. A observação da natureza serve no mais das vezes para ocultar ou falsear a revelação geral. 4. A leitura de Van Til Analisando a crítica de Van Til (em The Protestant Doctrine of Scripture) à visão clarkiana da revelação natural, há apenas três conclusões possíveis para uma pessoa sensata: primeiramente, o teólogo holandês não leu o artigo e pautou-se, portanto, em meros espantalhos ou boatos; em segundo lugar, não compreendeu em absoluto os argumentos ali apresentados; e, finalmente, imbuído de ojeriza e antipatia a Clark, decidiu simplesmente distorcer ou interpretar, de mau grado, a posição exposta no artigo. Pelo bem da piedade cristã e da honestidade intelectual, esperamos sinceramente que a crítica de Van Til seja o resultado da segunda opção. Em certa passagem, Van Til afirma com relação ao artigo de Clark: Contudo, Clark compartilha, juntamente com o cientista descrente, da visão operacional de natureza. Butler ao menos afirmava ser capaz de provar a possibilidade e verdade provável do ensino cristão no que diz respeito a Cristo e sua relação com a natureza. Mas Clark não pode legitimamente afirmar nada acerca da superioridade dos ensinos cristãos com relação à natureza sobre os demais pontos de vista. Se a ciência não é cognitiva, este é o fim de toda argumentação. Pois isto implica em dizer que a natureza não revela claramente o poder e divindade de Deus. (Cornelius Van Til, The Protestant Doctrine of Scripture) Ora, em momento algum o filósofo norte-americano defende uma visão operacional da natureza, já que isto implicaria no mais grosseiro deísmo e, por conseguinte, numa rejeição à doutrina da Providência divina, a qual é basilar ao pensamento e teologia calvinistas. Citando o próprio Clark, “a natureza tem menos mensagem que algumas pessoas, particularmente alguns cristãos, pensam”. Não é dito que a natureza nada revela acerca de Deus, mas que tem menos a dizer do que supomos. Metaforicamente falando, para Clark, a natureza não é, de modo algum, muda, mas sem dúvida também não é eloquente — como Moisés, sua língua é pesada. Contudo, Clark esclarece qualquer possível dúvida acerca de sua posição mais adiante: Os planetas acima e as plantas abaixo mostram algo da sabedoria e poder de Deus; isto é, mostram isso àqueles que já creem que Deus os criou. Mesmo para um cristão devoto, contudo, o universonão mostra o pleno poder e sabedoria de Deus, pois Deus não exauriu a si mesmo em sua criação. Sem dúvida os sistemas estelares demonstram um vasto e inimaginável poder; todavia, um número maior de estrelas com movimentos mais complicados é concebível. Portanto, a onipotência não é uma conclusão necessária a partir das estrelas. Nem é a justiça. Os atributos morais que a Bíblia atribui a Deus são ainda menos dedutíveis a partir de uma observação da natureza. (Gordon Clark, A racionalidade da revelação divina especial) Conforme já demonstrado, e apoiado por Herman Bavinck, não é possível deduzir a justiça e menos ainda a misericórdia de Deus a partir da observação dos fenômenos naturais. Nas pragas do Egito, por exemplo, por meio das quais Deus demonstrou não apenas seu poder soberano sobre a natureza mas também sua superioridade em relação aos deuses egípcios, cada evento milagroso foi acompanhado do anúncio ou posterior explicação de Moisés. As densas trevas que o Senhor trouxe à terra do Egito foi uma demonstração tanto de seu poder sobre a luz e as trevas (tal como na Criação) quanto da inferioridade de Rá, o deus-sol do panteão egípcio. Não fosse o anúncio e pregação de Moisés, os egípcios poderiam simplesmente interpretar as trevas como um sinal de desprazer de seu falso deus. Também segundo o dr. Cornelius Van Til, Clark supostamente adota a ideia de factualidade bruta, isto é, a concepção de que existem fatos isolados da interpretação divina e, portanto, não integrados na estrutura geral do drama da salvação (que é a própria “história do universo”, por assim dizer), conforme podemos notar em seu comentário: Devemos notar os seguintes pontos com relação a esse argumento [de Clark]. É preciso (a) lembrarmo-nos de que, segundo Clark, o descrente faz jus à natureza caso diga que suas leis (da natureza) são simplesmente operacionais e, de modo nenhum, revelacionais dos atributos de Deus. Isto exclui a possibilidade de qualquer alegação, mesmo aquela de que há maior probabilidade de veracidade na afirmação de que a natureza é a obra da ação criativa-redentiva de Deus do que na afirmação de que a natureza veio à existência por acaso. E, então, (b) Clark afirma que os descrentes por vezes concordaram com os crentes na afirmação de que Deus existe. Mas isto é apenas formalmente verdade. O conteúdo da palavra “Deus”, o sentido do termo, sempre difere radicalmente entre um cristão e um não cristão… Quando Clark concorda com o descrente acerca da visão meramente operacional da natureza, ele virtualmente afirma que o descrente e o crente podem ainda crer no mesmo Deus. Todavia, desta vez, o descrente está em vantagem no jogo. Ele conduziu astutamente Clark em direção a uma admissão virtual de que o Deus triúno não opera claramente no mundo do espaço-tempo. (Cornelius Van Til, The Protestant Doctrine of Scripture) O objetivo do argumento clarkiano não é apresentar uma suposta neutralidade e opacidade do universo, como se fosse possível que um ente criado por Deus não carregasse consigo, como a própria condição de sua existência, as leis do Logos divino; pelo contrário, Clark, a despeito das acusações de racionalismo que lhe atribuem, defende vigorosamente a imprescindibilidade da revelação especial — e mais do que isto, sua racionalidade. Desse modo, as palavras de Clark são suficientes para demonstrar que seu posicionamento é diferente e não tão simplório quanto Van Til nos leva a acreditar: Se, agora, alguém deseja argumentar que essa divergência ética não indica a inadequação da revelação geral, mas meramente as trevas da mente pecaminosa, a réplica segura, para um cristão, é que Deus falou com Adão antes da queda e lhe deu mandamentos que ele não poderia ter conhecido de outra forma. Quando Adão foi criado e colocado no Jardim do Éden, ele não sabia o que fazer. Nem um estudo do Jardim teria levado a qualquer conclusão necessária. Seu dever foi imposto sobre ele por uma revelação divina. (Gordon Clark, A racionalidade…). Retomando o texto de Van Til, percebemos outra crítica do pensamento de Gordon Clark, mais especificamente a suposta assertiva de que, por vezes, crentes e descrentes creem, em comum, na existência de Deus: “Clark afirma que os descrentes por vezes concordaram com os crentes na afirmação de que Deus existe”. E, em seguida, Van Til refuta tal concepção afirmando que cada uma das partes compreende de modo distinto o termo Deus. No entanto, a leitura mais superficial de A racionalidade da revelação divina especial demonstra precisamente o contrário. Nas palavras do próprio Clark: Na verdade, o problema do mal — calamidades físicas como terremotos e tragédias causadas por ímpios – tem levado alguns filósofos a negar completamente a existência de Deus, ou a propor um deus finito. John Stuart Mill pensava que o universo tendia imperfeitamente para a produção do bem; humanistas modernos são mais propensos a dizer que o universo é neutro com respeito às esperanças e aspirações do homem; enquanto Bertrand Russell e Joseph Wood Krutch aconselham a bravura em face da derrota inevitável. Essas várias opiniões, embora parcialmente devidas à pecaminosidade humana, dependem muito, creio eu, da inadequação da revelação geral em si. A mensagem de Deus nos céus simplesmente não é abrangente para cobrir essas questões. (Clark, A racionalidade da revelação divina especial) Com a erudição filosófica que lhe é própria, Clark expõe várias correntes e concepções diferentes acerca de Deus, mas que podem ser presentemente resumidas em: finitismo, isto é, a crença num deus finito, não onipotente ou não todo amoroso, crença popularizada a partir dos dilemas (falaciosos) propostos David Hume, por exemplo, e atualmente defendida pelo rabi Harold Kushner; e o ateísmo filosófico de Bertrand Russell e Krutch e, por um tempo, de Antony Flew. Como é possível, a partir desse trecho supracitado, concluir que haja alguma identificação que o deus finito defendido por alguns pensadores é o mesmo Deus onipotente e soberano de Clark e Van Til? Com efeito, Clark critica até mesmo a crença de Mill de um universo saturado de acidentalidades que se dirige essencialmente ao bem; e discorda completamente da crença na neutralidade do universo (e, portanto, dos fatos) apregoada pelos humanistas modernos. Conforme Clark argumenta, o fim último do universo não é deduzível da observação empírica do universo; afinal, “a mensagem de Deus nos céus simplesmente não é abrangente para cobrir essas questões”. Van Til, todavia, ao afirmar que todos os fatos perante os quais o homem se posta são revelacionais, cria uma dificuldade ou uma petição de princípio irresolvível. Como é possível que o cientista ou o homem comum que se depara com os fatos do universo possam perceber todos os fatos como sendo “revelacionais dos atributos de Deus” sem a tão alardeada estrutura de referência vantiliana (no caso a narrativa bíblica de Criação-Queda-Redenção- Consumação)? Em seu artigo “A ressurreição como uma parte da verdade cristã”, o filósofo do Westminster Theological Seminary afirma: “A ressurreição de Cristo é um fato, e seu significado ser-nos-á inteligível somente se pensarmos nela como estando relacionada ao sistema da verdade cristã tomado como uma unidade indivisa”. Não há dúvidas quanto a isto, afinal, a ressurreição do Cristo é fulcral à fé cristã. Todavia, se ela é um fato, e se todo fato é, segundo Van Til, revelacional dos atributos de Deus, como é possível que a ressurreição não seja inteligível à parte da verdade cristã como uma unidade indivisa? De acordo com o teor de sua crítica dirigida a Clark, não seria este fato — a ressurreição de Cristo — por si só, revelacional dos atributos de Deus? Para Van Til, a fim de se entender corretamente o fato da ressurreição, é necessário entender a estrutura de referência; todavia, “os fatos sobre Jesus e a ressurreição são o que são apenas na estrutura das doutrinas da criação, providência e consumação da história no juízo final. Ninguém é capaz de encontrar essaestrutura, a não ser que seja convertido de outra estrutura por meio do próprio fato da morte e ressurreição de Jesus ser aplicado a si mediante o Espírito Santo e seu poder regenerador. É necessário o fato da ressurreição para perceber a referência apropriada, e é necessária a referência para perceber o fato da ressurreição” (Cornelius Van Til, Paulo em Atenas).[3] Trata-se não somente de tautologia, mas de uma contradição à própria assertiva vantiliana de que todo fato é revelacional dos atributos de Deus. Certamente, como já dissera o apóstolo, a ira de Deus se manifesta contra toda a impiedade dos homens. As estrelas e galáxias podem demonstrar a ordem e o poder da Divindade, no entanto, não são suficientes para apresentar a misericórdia divina. 5. Raízes no vazio: o irracionalismo de Van Til Um dos raciocínios mais profundos de Cornelius Van Til é a relação entre epistemologia e o caráter pactual do homem. De acordo com seu raciocínio, cada ação humana, sendo soberanamente governada por Deus e estando ubiquamente sob sua lei, somente pode ser interpretada apropriadamente com base nessa mesma lei: Paulo sustenta que o pecador é responsável por não perceber, na natureza e em si mesmo, a presença dos atributos de Deus. Todavia, Paulo assim o faz porque concebe o homem como um ser inerentemente pactual. O pecador é um transgressor do pacto em e com Adão. Todo fato que se apresenta ao homem, tanto por meio de sua própria constituição quanto por meio de seu ambiente, o coloca face a face com Deus. Ele deve, portanto, lidar com todos os fatos aos quais tem acesso visando a glória de Deus. Como um cientista, ele deve usar hipóteses, e somente aquelas baseadas na pressuposição de que todo fato é aquilo que é devido ao lugar que ocupa no plano de Deus (Cornelius Van Til, The Protestant Doctrine of Scripture). Sendo o homem um ser inerentemente pactual e, não obstante cada um de seus atos ou pensamentos sejam violações ou consecuções da lei de Deus, podemos claramente afirmar que somente são interpretados e julgados infalivelmente pela lei de Deus. É possível, portanto, afirmar que os fatos são revelacionais somente se analisados mediante o prisma da lei divina. Em termos concretos, o idólatra que se curva perante um ídolo, uma pedra sagrada, por exemplo, está transgredindo um mandamento; no entanto, para si, subjetivamente falando, realiza um ato de culto, piedoso e louvável, a uma caricatura da Divindade. A afirmação de Cornelius Van Til aparentemente funde os aspectos ético e epistemológico. Sem sombra de dúvida, todos os atos humanos e todos os eventos do universo são interpretados e julgados por Deus. Não há neutralidade ética ou religiosa neste ponto, conforme ele afirma. O homem, como ser pactual, está em constante e ininterrupta relação ética com a lei de Deus, mas não necessariamente numa relação de conhecimento dessa lei. Um indivíduo que esteja temporariamente inconsciente permanece sujeito às leis da lógica e mesmo às “leis naturais”, ainda que, naquele espaço de tempo, seja incapaz de percebê-las (por exemplo, ele não pode estar deitado e em pé, numa mesma perspectiva e ao mesmo tempo). Ora, só faz sentido chamar um fato de revelacional se de fato desvela para uma inteligência uma nova realidade, uma nova proposição, ou relação até então não percebida. Portanto, seguindo o raciocínio de Van Til, nomeadamente, de que todos os fatos são revelacionais, como ele pode afirmar que “Clark concorda com o descrente acerca da visão meramente operacional da natureza”? Se o descrente possui uma visão simplesmente operacional do cosmos, então evidentemente não é capaz de perceber seu aspecto revelacional. Ironicamente, o próprio Van Til afirma isso em Common Grace and the Gospel: “Pois o homem natural busca interpretar todos os fatos deste mundo de modo imanentista. Ele procura por sentido nos fatos deste mundo sem considerar que tais fatos carregam consigo a revelação e, com isso, as reivindicações de Deus. Ele (o homem natural) deseja determinar o que pode ou não pode, o que é possível ou não é possível, por meio do escopo da lógica humana que se assenta sobre o próprio homem, como seu fundamento”. Ora, a apologética vantiliana é celebrada justamente por reconhecer o aspecto universal e absoluto da Palavra de Deus. A revelação especial é infalível e a base inamovível de qualquer sistema de pensamento. Todavia, se o homem natural não é capaz de perceber o aspecto revelacional dos fatos, segue-se que a revelação mediante os fatos não é, portanto, infalível. Se, segundo Van Til, ela pode ser suprimida ou obnubilada pelo raciocínio humano — como de fato o é —, o teólogo de Westminster, ao fim e ao cabo, simplesmente concorda com Clark: a revelação natural é real, mas inadequada se tomada em si mesma. 6. A tirania do irracionalismo Antecipando problemas intelectuais que defrontariam o Ocidente a partir da segunda metade do século XX, Clark resguarda a revelação especial dos ataques oriundos das novas ciências da linguagem. O estruturalismo de Saussure, com seus pares de oposição entre langue e parole, eixo sincrônico e eixo diacrônico, significante e significado, bem como a sua concepção da linguagem como uma estrutura, um sistema ou mesmo um jogo de pares de oposições, deu lugar, posteriormente, ao desconstrucionismo de Derrida. Antes disso, todavia, Johann Gottfried Herder, em sua obra Ensaio sobre a origem da linguagem, rompeu com a ideia da origem divina da linguagem, atribuindo-a à imitação dos sons da natureza e à necessidade intrínseca de comunicação por parte do homem. Tempos depois, também Friedrich Nietzsche lançou as sementes da dúvida sobre a capacidade da linguagem de apreensão do real. Em seu livro A verdade e a mentira num sentido extra-moral, o filósofo alemão propõe que todas as línguas, sendo em si mesmas nada mais do que ruídos guturais, não possuem uma relação essencial com o real, sendo, antes, metáforas do real. Gordon Clark, embora não trate extensivamente do problema da crise da linguagem, disseca os pressupostos evolucionistas que subjazem às teorias sobre a origem da linguagem e, de semelhante modo, apresenta uma defesa lógica da possibilidade da revelação objetiva proposicional. No seu entendimento: As teorias contemporâneas são frequentemente baseadas numa filosofia evolucionária na qual se supõe que a linguagem humana tenha se originado de gritos e grunhidos de animais. Essas teorias evolucionárias da linguagem, e algumas que não são explicitamente evolucionárias, revelam sua conexão com a epistemologia ao tornar as impressões sensoriais a fonte imediata da linguagem. As primeiras palavras uma vez pronunciadas foram supostamente substantivos ou nomes produzidos ao imitar-se o som produzido por um animal ou uma cachoeira; ou se o objeto não fazia nenhum ruído, algum método mais arbitrário foi usado para atribuir um substantivo a ele. (Gordon Clark, A racionalidade…) Na verdade, Clark, demonstrando o problema que surge com a procedência sensorial ou bestial da linguagem, simplesmente aponta aquilo que já causara incômodo ao próprio Darwin, em sua famosa carta a William Graham, a 3 de julho de 1881: “De todo modo, tu expressaste minha íntima convicção, embora de modo bem mais vívido e nítido que eu seria alguma vez capaz, a saber, que o Universo não é o resultado do acaso. Sempre surge em mim a horrível dúvida de que as convicções da mente do homem, as quais se desenvolveram a partir da mente de animais inferiores, possuem algum valor ou são dignas de confiança”. Atualmente, no entanto, o consenso acadêmico se pauta na doutrina evolucionista para explicar a origem da linguagem, tendo talvez em Steven Pinker (O instinto da linguagem) seu maior divulgador. A visão de Clark, todavia, é que a linguagem é evidentemente resultado do fato da criação do homem segundo a imagem de Deus. Além disso, para o filósofo, o objetivo principal da linguagem não é primariamente a investigação do mundo sensorial — embora, é claro, também atue nesse sentido —, mas a revelaçãoda verdade divina e a possibilidade do indivíduo se dirigir em oração a Deus. Portanto, aquele que divorcia linguagem e lógica, eventualmente anula sua própria capacidade comunicativa: Se a razão, i.e., a lógica, que torna o discurso possível, é uma faculdade dada por Deus, ela deve ser adequada para sua tarefa divinamente designada. E sua tarefa é a recepção de informação divinamente revelada e a sistematização dessas proposições em teologia dogmática. Resumindo: a linguagem é capaz de transmitir verdades literais porque as leis da lógica são necessárias. Não existem substitutos para elas. Filósofos que as negam reduzem sua própria negação a sílabas sem sentido. Mesmo onde a necessidade da lógica é negada, se a razão é usada em algum outro sentido como uma fonte de verdade, o resultado tem sido ceticismo. (Gordon Clark, A racionalidade…) Esse posicionamento também foi alvo das críticas de Van Til, pois, segundo ele, isto implica em submeter a vontade e revelação divina aos “ditames da lógica” tal como concebida pelo homem caído e natural. Clark defende a racionalidade das Escrituras não no sentido de que todos os eventos narrados precisam de comprovação empírica, mas, sim, de que são lógicos, não contraditórios, e por isso apreensíveis pelo aparato da razão humana: “a lei da contradição, ou razão, não é um teste externo da Escritura. A consistência lógica é exemplificada na Escritura; e assim, esta pode ser uma revelação significativa para a mente racional do homem. Proposições autocontraditórias seriam absurdas, irracionais e não poderiam constituir uma revelação” (Gordon Clark, A racionalidade…, grifo nosso). Ora, o filósofo esclarece que a lógica não é uma superestrutura que impomos sobre a massa das Escrituras; pelo contrário, a Bíblia é inerentemente lógica, já que não contém contradições ou ilogismos ou impossibilidades. Todavia, Cornelius Van Til, surpreendentemente, interpreta a posição de Clark como sendo o oposto do que é dito, pois afirma que a mente racional do homem é o critério objetivo que analisa e julga a revelação: Então [para Clark], é a “mente racional do homem”, isto é, a mente racional do descrente que determina quais proposições feitas por Deus em Cristo têm sentido. Portanto, se Deus deseja transmitir sentido ao homem, ele deve falar de acordo com as exigências da lei da contradição tal como concebida pelo homem natural. E o homem natural a concebe como se ela operasse num universo não criado ou governado pelo acaso. O homem natural, hoje, talvez siga o exemplo de Aristóteles e pense acerca da lei lógica como sendo, de algum modo, completamente compreensível, em operação num universo de acaso. O homem natural pode, hoje, seguir Kant, e afirmar que as leis do pensamento constituem um equipamento a priori da mente humana, com o qual ele constrói a ordem no material puramente contingente que o envolve. Em todo caso, é ao homem natural que é virtualmente concedido o direito de estabelecer aquilo que Deus pode ou não pode fazer. E, de todo modo, o homem natural concebe as leis da lógica como se constituíssem princípios abstratos que operavam em relação correlativa ao material factual, bruto e puro da experiência. Como um pensador cristão, Clark sustenta que as leis da lógica são o equipamento do homem tal como criado à imagem de Deus. Se Clark levar a cabo sua convicção cristã consistentemente, ele argumentará que a lei da contradição pode operar apropriadamente somente num universo que é aquilo que é devido ao plano de Deus com relação a ele. (Van Til, The Protestant Doctrine of Scripture) Curiosamente, as leis da lógica não foram deduzidas a partir de raciocínios áridos por parte de Aristóteles, mas sim a partir da observação e classificação dos entes da realidade, mais especificamente, animais e plantas. As leis da lógica não são condições para a possibilidade apenas do raciocínio humano, mas, sim, da própria existência dos entes. Antes de serem essenciais para a organização do pensamento, as leis da lógica são demandas ontológicas; afinal, para que um círculo exista, é impossível que seja um quadrado. Dizer que um ímpio “concebe como se ela operasse num universo não criado ou governado pelo acaso” é um flatus vocis, pois independente da interpretação descrente acerca da natureza ou a fonte da lógica, sua própria existência e, portanto, pensamento, se submetem, ainda que contra sua vontade, à lógica. Nenhum homem pode invalidar ou transgredir a lei da contradição ou a lei da identidade, por maior que seja sua insurreição contra Deus. Clark, assim como os pensadores escolásticos, aboliram qualquer falso dilema ao dizer que a lógica é um análogo do modo pelo qual a própria mente divina trabalha. Deus pensa logicamente, e por isso nada que seja logicamente impossível (um círculo quadrado, por exemplo) pode vir à existência. Até o mais depravado dos homens, por fim, submete-se à lógica, já que não pode estar vivo e morto simultaneamente e num mesmo sentido. Clark simplesmente aponta para uma obviedade — se não houvesse coerência interna nas Escrituras, e se estas fossem repletas de autocontradições, definitivamente não constituíram uma revelação, mas uma nuvem do não saber, trevas e ilogismos. Como poderíamos compreender a salvação efetuada por Cristo na cruz do Calvário se, numa situação hipotética, lêssemos um versículo dizendo que Cristo morreu e, logo em seguida, outro versículo que, contradizendo o anterior, afirmasse que Cristo não morrera? A razão não é um teste ou critério de credibilidade das Escrituras, mas certamente é um pressuposto para compreendê-la adequadamente. Tal fato é de uma obviedade estonteante que sua própria reafirmação é embaraçante. Entretanto, Van Til, talvez com fins piedosos de marcar nitidamente a distância entre criatura e Criador, invalida por completo a razão humana: “Em nenhum lugar as Escrituras apelam para a razão irregenerada como um juiz qualificado… Quando a Bíblia diz: ‘Vinde, pois, e arrazoemos’ (Isaías 1.18), geralmente o faz com relação ao povo de Deus, não se dirige aos outros, jamais os vê como iguais a Deus ou como verdadeiramente competentes para julgar” (Cornelius Van Til, Introduction to Systematic Theology). E também: “Destarte, não podemos sujeitar os pronunciamentos autoritativos das Escrituras acerca da realidade ao escrutínio da razão, porque é a própria razão que aprende, das Escrituras, suas funções apropriadas”.[4] Se a razão humana não é suficientemente competente para julgar as Escrituras, se o chamado de “vir e arrazoar” é apenas para o povo de Deus, podemos nos indagar como pregaremos o Evangelho aos descrentes. Van Til afirma que o único ponto de contato em comum entre ímpios e crentes é o sensus divinitatis, o já referido “senso da divindade” universal e inerente ao homem. Mas como é possível alcançar esse senso se a via da razão não é capaz de julgar os pronunciamentos das Escrituras? Devemos nos comunicar intuitivamente ao sensus divinitatis? Ademais, se é esse o único ponto de contato, o que dizer acerca da linguagem? Afinal, todo homem (salvo raríssimas exceções) nasce e se desenvolve numa sociedade que detém determinada linguagem por meio da qual vive, comercializa e se relaciona. Cornelius Van Til sem dúvida escreveu suas obras apologéticas em inglês com o intuito de alcançar as pessoas do país onde residia, as quais evidentemente possuíam a mesma língua. Todavia, como Clark argumenta, a linguagem deve ser lógica caso queira ser compreendida; a estrutura sintática é, em si mesma, a organização lógica do discurso. Aparentemente Van Til cria um abismo entre linguagem e lógica, entre a revelação divina e a razão humana. Afinal, como podemos nos certificar de que a expressão “Deus amou o mundo” na verdade significa que “Deus odiou o mundo”; ou que, por “Deus enviou seu Filho, Jesus Cristo”, devemos entender “Deus não enviou seu Filho, Jesus Cristo”? Por fim, as Escrituras nos ordenam a pregação do Evangelho; de semelhante modo, nos ensinam que a fé vem do ouvir a Palavra de Deus. Todavia,segundo o raciocínio vantiliano, não é necessário sequer o uso do vernáculo para a pregação, já que o único ponto de contato é o senso da divindade. Certamente alguns dirão que tal assertiva é um espantalho dos ensinos do teólogo; porém, afirmar a compreensão da linguagem, por parte do ímpio, é corroborar com a ideia de que há um entendimento comum, um mínimo denominador cultural numa sociedade, que é a condição essencial para a pregação do Evangelho. Se fosse o contrário, não haveria a necessidade de missionários aprenderem a língua e parte da cultura de um povo — bastava apelar ao senso da divindade. Portanto, se é necessário o uso da linguagem para a propagação do Evangelho, e uma vez que o uso da linguagem requer o mínimo de capacidade lógica, segue-se que a lógica é um pressuposto para o entendimento, por parte dos homens, acerca do Evangelho. 7. Após as trevas, a luz Gordon Clark sempre teve em mente a atração que os sistemas filosóficos não cristãos exercem sobre a mente e curiosidade humanas. Nos dias de hoje, o Brasil se vê num falso dilema entre mente e coração, pois ao mesmo tempo em que, perceptivelmente, muitos se voltam para a teologia reformada no afã de suprir suas necessidades intelectuais, de possuir uma sistematização doutrinária racional e harmoniosa, e de montar um aparato apologético para responder às objeções da fé; ao mesmo tempo que percebemos tudo isso, deparamo-nos também com um emocionalismo histérico em nossas liturgias e cultos públicos. Com efeitos, muitos buscam na teologia reformada apenas as conclusões concisas e cristalizadas das doutrinas e, especialmente, a autoridade que advém do apego a uma fé ortodoxa; no entanto, possuem verdadeira aversão ao estudo sistematizado, à disciplina filosófica e ao rigor lógico que caracterizam o pensamento de Gordon Clark e outros. Nossa oração é que esta publicação possa não apenas despertar o povo de Deus para as necessidades de uma formação mais sólida e de um preparo mental mais vigoroso, mas também nos relembrar que, por mais tenebrosos que sejam nossos tempos, e por mais obscuros que sejam nossos pensamentos, a Palavra de Deus reluz fulgurosamente sempre. Post Tenebras Lux — Fabrício Tavares de Moraes Londres, agosto de 2016 I��������� A glória e a obra das mãos de Deus demonstradas pelos céus e pelo firmamento têm sido chamadas de revelação divina geral. Nessa categoria é possível incluir também a constituição da personalidade humana, pois o homem em si é uma criação de Deus e em algum sentido carrega as marcas de seu Criador. Essa “luz da natureza e as obras da criação e da providência manifestem de tal modo a bondade, a sabedoria e o poder de Deus, de modo a deixar os homens inescusáveis, contudo elas não são suficientes para dar aquele conhecimento de Deus e de sua vontade que é necessário à salvação”. É assim que a Confissão de Westminster brevemente nos adverte que a revelação geral é inadequada. Essa inadequação é parcialmente um resultado dos efeitos noéticos do pecado, mas há uma inadequabilidade anterior e inerente também. I. I���������� �� ��������� ����� Os efeitos obscurescedores do pecado sobre a mente à medida que ela tenta descobrir Deus e a salvação na natureza podem ser mais bem vistos nos resultados divergentes obtidos entre as religiões pagãs. Os antigos babilônios, egípcios e romanos olharam para a mesma natureza que é vista pelos modernos muçulmanos, hindus e budistas. Mas as mensagens que eles pretendem receber são consideravelmente diferentes. Isso, que é tão evidente quando essas religiões extremamente distantes são mencionadas, mantém- se verdadeiro na civilização ocidental. O que o humanista e positivista lógico vê na natureza é inteiramente diferente do que o cristão ortodoxo crê sobre a natureza. Mesmo que o humanista professe descobrir na experiência certos ideais morais e valores espirituais, que são no mínimo superficialmente similares àqueles da Bíblia, pode muito bem ser suposto que ele na verdade aprendeu tais coisas de sua herança cristã, e não de um estudo independente da natureza e do homem. A atmosfera gentil do humanitarismo está notavelmente ausente das sociedades nas quais a mensagem cristã não foi levada. A existência de conceitos divergentes de Deus, de ideais morais, e acima de tudo de esquemas de salvação mostram o poder do pecado na mente do homem; mas também mostram a inadequação inerente da revelação geral. Não é por causa somente do pecado que o homem falha em entender a mensagem de Deus. A verdade é que a natureza tem menos mensagem que algumas pessoas, particularmente alguns cristãos, pensam. Os planetas acima e as plantas abaixo mostram algo da sabedoria e poder de Deus; isto é, mostram isso àqueles que já creem que Deus os criou. Mesmo para um cristão devoto, contudo, o universo não mostra o pleno poder e sabedoria de Deus, pois Deus não exauriu a si mesmo em sua criação. Sem dúvida os sistemas estelares demonstram um vasto e inimaginável poder; todavia, um número maior de estrelas com movimentos mais complicados é concebível. Portanto, a onipotência não é uma conclusão necessária a partir das estrelas. Nem é a justiça. Os atributos morais que a Bíblia atribui a Deus são ainda menos dedutíveis a partir de uma observação da natureza. Na verdade, o problema do mal — calamidades físicas como terremotos e tragédias causadas por ímpios – tem levado alguns filósofos a negar completamente a existência de Deus, ou a propor um deus finito. John Stuart Mill pensava que o universo tendia imperfeitamente para a produção do bem; humanistas modernos são mais propensos a dizer que o universo é neutro com respeito às esperanças e aspirações do homem; enquanto Bertrand Russell e Joseph Wood Krutch aconselham a bravura em face da derrota inevitável. Essas várias opiniões, embora parcialmente devidas à pecaminosidade humana, dependem muito, creio eu, da inadequação da revelação geral em si. A mensagem de Deus nos céus simplesmente não é abrangente para cobrir essas questões. Novamente, a visão hebraico-cristã que “os céus declaram a glória de Deus” não significa, em minha opinião, que a existência de Deus pode ser formalmente deduzida a partir de um exame empírico do universo. Se baseado em outros fundamentos cremos no Deus de Abraão, Isaque e Jacó, podemos ver que os céus declaram a sua glória; mas isso não é dizer que uma pessoa que não crê nesse Deus poderia demonstrar sua existência a partir da natureza. Referências adicionais a esse ponto serão feitas um pouco adiante. Finalmente, a inadequação da revelação geral é mais óbvia no caso de ideais ou normas éticas. E essa inadequação não é o resultado do pecado somente, mas é uma inadequação inerente. A exposição de infantes na Grécia, a prostituição no templo na Babilônia, o sacrifício humano em Canaã e em outros lugares, não eram práticas que aquelas sociedades condenavam; elas tinham plena sanção social. Essas eram as suas normas, esses eram os seus ideais morais. De semelhante modo, o humanismo contemporâneo, embora alguns dos seus valores sejam superficialmente similares aos preceitos cristãos, diverge mais e mais da identificação bíblica de certo e errado. Jesus não é mais considerado como sem pecado, mas é acusado de minimizar os valores da inteligência científica, de sustentar visões sociológicas inferiores sobre trabalho e propriedade, e mesmo de insistir num padrão sexual muito rígido. Se, agora, alguém deseja argumentar que essa divergência ética não indica a inadequação da revelação geral, mas meramente as trevas da mente pecaminosa, a réplica segura, para um cristão, é que Deus falou com Adão antes da queda e lhe deu mandamentos que ele não poderia ter conhecido de outra forma. Quando Adão foi criado e colocado no Jardim do Éden, ele não sabia o que fazer. Nem um estudo do Jardim teria levado a qualquer conclusão necessária. Seu dever foi imposto sobre ele por uma revelação divina. Deus lhe disse para ser frutífero e se multiplicar, subjugar a natureza, fazer uso dos animais, comerdo fruto das árvores, com uma fatídica exceção. Assim, normas, mandamentos e proibições morais foram estabelecidos por uma revelação especial, e não geral. Somente assim o homem poderia conhecer os requerimentos de Deus, e assim ele poderia aprender mais tarde o plano da salvação. Tal é o ponto de vista cristão. Filósofos seculares hoje afirmam que a história de Adão é um mito e que a ideia de uma revelação especial é irracional. A dependência é colocada sobre a razão, não na revelação. Toda a verdade deve ser obtida por um método, o método da ciência. Alega-se que a Bíblia é autocontraditória e historicamente inexata; seus padrões morais são de uma era ultrapassada; e acredita-se que a evolução refuta a criação. Esses temas têm sido bem publicados e amplamente aceitos. Pode o cristão, portanto, encarar a acusação de desonestidade intelectual, frequentemente trazida contra ele, e refutar a objeção que a revelação é irracional? II. D����� �� ��������� �������� Na história do pensamento cristão, a antítese entre fé e razão tem sido abordada por vários métodos diferentes. O debate, quer entre cristãos ou entre cristãos e secularistas, algumas vezes gera confusão porque os termos não são sempre claramente definidos. Não somente Agostinho e Kant diferem quanto à natureza da fé, mas o próprio termo razão carrega significados diferentes. Após fornecer um pano de fundo histórico mínimo, o escritor espera evitar tal confusão sugerindo uma definição de razão que possa ajudar na defesa da revelação como racional. A tentativa escolástica medieval Nessa breve análise histórica, o primeiro método de relacionar fé e razão a ser discutido será a filosofia tomista da Igreja Católica Romana. À parte do assentimento pessoal do crente, fé, nesse sistema, significa a informação revelada contida na Bíblia, na tradição e presumivelmente na voz viva da Igreja. Fé, então, é verdade revelada. Razão significa a informação que pode ser obtida pela observação sensorial da natureza como interpretada pela intelecção. Enquanto os racionalistas do século XVII contrastavam a razão com a sensação, Tomás contrasta a razão com a revelação. As verdades da razão são aquelas verdades que podem ser obtidas pelo equipamento sensorial e intelectual natural do homem, sem a ajuda de graça sobrenatural. Essas definições de fé e razão tornam a revelação “desarrazoada” somente numa maneira verbal; a revelação não pode ser chamada de desarrazoada ou irracional em nenhum sentido pejorativo. Por vezes suspeita-se que os secularistas se apoderam do verbalismo a fim de sugerir algo mais sinistro. Os tomistas de fato insistem numa incompatibilidade entre fé e razão, mas trata-se de uma incompatibilidade psicológica. Se a Bíblia revela que Deus existe, e se cremos na Bíblia, temos essa verdade da fé. É possível, contudo, de acordo com o tomismo, demonstrar a existência de Deus a partir da observação ordinária da natureza. Aristóteles fez isso. Mas quando uma pessoa tiver demonstrado racionalmente essa proposição, ela não mais “crerá” nela, não mais aceita-a com base na autoridade; ela a “conhece”. É psicologicamente impossível “crer” e “conhecer” a mesma proposição. Um professor pode dizer a um aluno que um triângulo contém 180 graus, e o estudante pode crer no professor; mas se o estudante aprende a prova, ele não mais aceita o teorema com base na palavra do professor: ele conhece-o por si mesmo. Nem todas as proposições da revelação podem ser demonstradas na filosofia racional; mas, por outro lado, algumas verdades capazes de demonstração também foram reveladas ao homem, pois Deus bem sabia que nem todos os homens têm a capacidade intelectual de Aristóteles; portanto, Deus revelou algumas verdades, embora demonstráveis, por causa da maior parte da humanidade. O conteúdo não demonstrável da revelação (tais como a doutrina da Trindade e os sacramentos), embora fora do alcance da razão como definida, não é irracional ou sem sentido. Os muçulmanos medievais e os humanistas modernos podem alegar que a Trindade é irracional; mas a razão é bem competente para mostrar que essa doutrina não contém nenhuma autocontradição e as objeções a ela são falaciosas. As verdades mais altas da fé não violam nenhuma das conclusões da razão; pelo contrário, as doutrinas da revelação completam o que a razão não poderia terminar. As duas séries de verdades, ou, melhor, as verdades obtidas por esses dois métodos diferentes são complementares. Longe de ser um obstáculo à razão, a fé pode advertir um pensador que ele está cometendo um erro estúpido. Não deveríamos retratar o crente como um prisioneiro da sua fé que deve ser libertado; a fé restringe apenas do erro. Dessa forma, fé e razão estão em harmonia. Somente uma crítica dessa construção será feita, mas é uma que os tomistas e objetores concordarão ser crucial. Se o argumento cosmológico para a existência de Deus é uma falácia lógica, o tomismo e sua visão da relação entre fé e razão não podem permanecer de pé.[5] As dificuldades com o argumento cosmológico lembram os comentários anteriores sobre a inadequação da revelação geral. Se for assumido que todo o conhecimento começa na experiência sensorial e que, portanto, uma pessoa olha para a natureza em ignorância de Deus, as calamidades manifestas dos homens e a finitude e mudança da natureza — vastas quanto possam ser as galáxias — impedem qualquer conclusão necessária da existência de um Deus onipotente que também seja bom. A essas objeções que Hume declarou vigorosamente podem ser adicionadas críticas específicas da formulação aristotélica de Tomás. Três serão mencionadas. Primeiro, o tomismo não pode sobreviver sem os conceitos de potencialidade e atualidade;[6] todavia, Aristóteles nunca teve sucesso em defini-los. Em vez disso, ele ilustrou-os pela mudança de fenômeno, e então definiu mudança ou movimento em termos de atualidade e potencialidade. Justificar essa objeção requereria excessivo aparato técnico para o presente propósito; e se o leitor desejar, não precisa colocar nenhuma ênfase sobre esse primeiro ponto. Em segundo lugar, Tomás argumenta que se rastrearmos as causas dos movimentos, mesmo esse regresso não pode ir ao infinito. A razão explicitamente dada na Summa Theologica para se negar um regresso infinito é que em tal caso não poderia haveria um primeiro movedor. Mas essa razão, que é usada como uma premissa para concluir a negação, é precisamente a conclusão que Tomás coloca no final do argumento completo. Supõe-se que o argumento prova a existência de um primeiro movedor, mas esse primeiro movedor é pressuposto para se negar um regresso infinito. Obviamente, portanto, o argumento é uma falácia. Há uma terceira e ainda mais complicada crítica. Visto envolver material que se tornou recentemente um assunto de debate generalizado, é digno de atenção mais detalhada. Para Tomás de Aquino há duas formas de se conhecer a Deus; primeiro, o caminho da teologia negativa, que não discutiremos; e segundo, o método da analogia. Uma vez que Deus é um ser puro, sem partes, cuja essência é idêntica à sua existência, os termos aplicados a ele não podem ser usados precisamente no mesmo sentido em que se aplicam às coisas criadas. Se é dito que um homem é sábio e Deus é sábio, deve ser lembrado que a sabedoria do homem é uma sabedoria adquirida, enquanto Deus nunca aprendeu. A mente humana está sujeita à verdade; a verdade é seu superior. Mas a mente de Deus é a causa da verdade por pensá-la, ou, talvez, Deus é a verdade. Dessa forma, o termo “mente” não significa precisamente a mesma coisa no caso de Deus e o homem. Não somente esses termos, mas a noção de existência, também, não é a mesma. Visto que a existência de Deus é a sua essência, uma identidade sem duplicação em qualquer outro caso, mesmo a palavra “existência” não se aplica univocamente a Deus e ao mundo da criação. Ao mesmo tempo, Tomás não deseja admitir que esses termos são equívocos. Quando se diz que os limpos de coração verão a Deus, enquanto o verão tem um calor insuportável,[7]a palavra não tem nenhum significado em comum. Embora as letras e a pronúncia sejam a mesma, o conteúdo intelectual nos dois casos é completamente diverso. Entre tal equívoco e univocidade estrita, Tomás afirma que palavras podem ter um uso analógico; e que no caso de Deus e o homem, os predicados são aplicados analogicamente. Ora, se o significado analógico de “sábio” ou de “existência” tem uma área comum de significado, essa área comum poderia ser designada por um termo unívoco. Esse termo então poderia ser aplicado univocamente a Deus e ao homem. Mas Tomás insiste que nenhum termo pode ser aplicado assim. Isto, com efeito, remove todos os vestígios de significado idêntico nos dois casos. Mas se é assim, como pode um argumento, o argumento cosmológico, ser formalmente válido, quando suas premissas usam termos num sentido e a conclusão usa aqueles termos num sentido completamente diferente? As premissas do argumento cosmológico falam de existência de movedores dentro do espectro da experiência humana; a conclusão diz respeito a existência de um primeiro movedor. Mas se esses termos não podem ser tomados univocamente, o argumento é uma falácia. Portanto, a tentativa tomista de relacionar fé e razão — mais devido à sua visão da razão, do que sua visão da fé — deve ser considerada como um fracasso, e outra tentativa deve ser feita para defender a racionalidade da revelação. O ataque renascentista O domínio do ponto de vista escolástico medieval, do qual Tomás foi o exemplo mais brilhante, cessou com a Reforma e a Renascença. Visto que este artigo pretende defender a posição da Reforma, a da Renascença será discutida primeiramente. A discussão deve ser extremamente breve; pois, visto que a Renascença deu origem à filosofia secular moderna, o assunto é muito vasto; a filosofia moderna, além disso, não é um método de harmonizar fé e razão, mas de negar a fé em favor da razão. Todavia, algo deve ser dito para indicar que esse ataque moderno sobre revelação não foi completamente bem-sucedido. Certos detalhes sobre o ataque, tais como as alegações que Moisés não poderia ter escrito o Pentateuco pois a escrita não tinha sido inventada em seus dias, e que os hititas nunca existiram, são mais apropriadamente tratadas sob o tópico da alta crítica. Aqui somente os princípios norteadores de sua filosofia podem ser mantidos à vista. Esses princípios norteadores foram aqueles empregados no problema crucial do conhecimento. Epistemologia é a tentativa de mostrar que o conhecimento é possível; e a filosofia moderna é fortemente epistemológica. Será que essas escolas tiveram sucesso em estabelecer o conhecimento racional à parte da fé ou revelação? A primeira escola importante foi a escola do racionalismo do século XVII. Sua crença básica era que todo conhecimento é derivado da lógica somente. Dever-se-ia observar que, por razão, esses homens queriam dizer a lógica em oposição à sensação. A experiência, na opinião deles, era a fonte do erro. Somente aquilo que pudesse ser demonstrado como teoremas da geometria, i.e., sem apelo à experimentação, demonstraria ser confiável. Em geral, esses pensadores, dos quais Descartes, Espinoza e Leibniz foram de longe os maiores, dependiam do argumento ontológico para provar a existência de Deus. O argumento ontológico alega que Deus tem o atributo de justiça assim como um triângulo tem o atributo de conter 180 graus. Negar que Deus existe é tão autocontraditório quanto negar o teorema geométrico. Dessa forma, a existência de Deus é provada pela razão somente, isto é, pela lógica pura, sem apelo à experiência sensorial. Então, a partir da existência de Deus, os racionalistas tentam deduzir as leis da ciência. Poucos filósofos contemporâneos pensam que o argumento ontológico é válido; nenhum pensador contemporâneo admite que Descartes ou Espinoza tiveram sucesso em deduzir os conteúdos da ciência da maneira indicada. Não importa quão estimulantes possam ser os racionalistas, não importa quão instrutivos sejam com relação a alguns pontos, eles são universalmente julgados como tendo falhado na matéria principal de mostrar que o conhecimento é possível. Portanto, um cristão pode legitimamente alegar que o ataque deles sobre a revelação colapsa com o sistema deles como um todo. Esse é um tratamento breve e resumido do racionalismo, sem dúvida, mas ninguém esperará uma história completa da filosofia moderna nessas páginas. O empirismo permanece hoje como uma filosofia viva. Portanto, não pode ser dito que Locke, Berkeley e Hume são universalmente considerados como fracassos completos. Sim, o empirismo de hoje é notoriamente diferente da variedade do século XVIII; e em alguns casos nos quais se apresenta maior similaridade, alguém se pergunta que respostas o empirista daria às objeções padrões contra Hume. Há três objeções principais ao empirismo. Primeiro, a impossibilidade de descobrir qualquer “conexão necessária” entre eventos ou ideias (i.e., a negação da causalidade) torna a investigação histórica e científica fútil. Na melhor das hipóteses, o conhecimento não poderia se estender além das impressões presentes de alguém e seus traços na memória. Segundo, a desintegração do “ego” resulta num mundo de percepções que nenhuma pessoa perceptiva percebe. Isto na prática aniquila a memória. Terceiro e fundamental, o empirismo faz uso do espaço e tempo sub-repticiamente no começo do processo de aprendizagem, enquanto explicitamente esses processos são aprendidos somente no final. Dessa forma, objeções empíricas à revelação, e em particular o argumento de Hume contra os milagres, são destituídos de todo fundamento. Immanuel Kant tentou bravamente remediar os defeitos do empirismo ao atribuir à mente certas formas a priori. Supunha-se que espaço e tempo preservam o significado para a experiência sensorial, e as categorias a priori deveriam tornar o pensamento possível. As obras de Kant permanecem como um monumento ao seu gênio, mas dificilmente teriam os últimos volumes sido publicados tivesse Jacobi colocado seu dedo num ponto muito dolorido. Para entrar no sistema de Kant é necessário supor “coisas em si mesmas”, mas a teoria completa das categorias torna a suposição impossível. Esse conflito entre as formas a priori da mente e a matéria dada na sensação deu início ao avanço de Hegel. Durante seu tempo de vida, Hegel alcançou o ápice do reconhecimento profissional. E por mais setenta e cinco anos o seu pensamento foi extremamente influente. Todavia, hoje vemos que dois dos seus estudantes, que rejeitaram completamente seu idealismo absoluto, Karl Marx e Soren Kierkegaard, têm vencido a batalha decisiva contra ele. Ainda há idealistas, sem dúvida; e Hegel ainda pode contar com uns poucos seguidores. Mas a afirmação da falência hegeliana não pode ser descartada como um artifício de preconceito cristão para manter a teoria da revelação. Contudo, conquanto Hegel tenha alguns discípulos, e conquanto restos do empirismo ainda permaneçam, alguém poderia insistir que essas filosofias não foram conclusivamente refutadas. Portanto, embora esses pontos de vista não sejam, em minha opinião, a posição característica do século XX, uma defesa cristã da revelação está provavelmente sob alguma obrigação de mostrar como eles deveriam ser tratados. Infelizmente, não mais que um exemplo pode ser incluído. O falecido Edgar Sheffield Brightman (1884-1953) elaborou uma filosofia da religião ao longo de linhas primariamente empíricas, embora retendo algumas ideias de Kant. Valores e ideias religiosos deveriam ser descobertos na experiência; a revelação não desempenha nenhuma parte, ou, se é teoreticamente possível, ainda deve ser julgada sobre a base da razão. A revelação, ele diz, deve ser testada pela razão, não a razão pela revelação. Pelo termo razão, Brightman não quer dizer o processo de lógica como o faziam os racionalistas; para ele, a razão é uma série de princípios empiricamente derivados pelos quais organizamos o universo da nossa experiência. Ele fala da razão empírica concretacomo oposta à mera lógica formal. A revelação, ele afirma, não pode ser usada como o princípio básico pelo qual organizamos a experiência. Historicamente, sem dúvida, a revelação tem sido usada assim; e Brightman nunca demonstrou porque, se existe um Deus vivo, a revelação não poderia nos fornecer informações que nos permitiria compreender o mundo e organizar nossas vidas. Analisei as falhas graves na concepção de Brightman sobre Deus em outro lugar (cf. Uma visão cristã dos homens e do mundo). O que talvez seja a dificuldade básica é uma que Brightman compartilha com os humanistas, embora geralmente ele e eles estejam em discordância radical. A concordância deles sobre esse ponto, portanto, é de importância considerável, pois fornece um teste que se estende além das visões de um homem. O ponto vulnerável do método empírico de Brightman, e de todo empirismo contemporâneo, é a derivação professa de valores genuínos a partir da experiência. Que há fatores na experiência que pessoas de fato gostam não deve ser negado. Mas o problema é ir dos prazeres reais e diversos a valores que tenham uma reivindicação legítima sobre todas as pessoas. Um homem gosta de orar; outro de uísque. Um homem gosta da vida de um erudito aposentado; outro, de ser um ditador brutal. Pode a experiência mostrar que essas são algo mais que preferências pessoais? Pode a experiência fornecer uma base para uma obrigação moral universal? Minha conclusão, apoiada pelo argumento detalhado no volume já citado, é que isso é impossível. Por tais razões, então, essas filosofias restantes falham em minar a revelação bíblica. A filosofia pós-hegeliana é um fator importante para se chegar a esse julgamento negativo sobre a “razão” de Espinoza, Hume e Hegel. As críticas de Marx, Nietzsche e dos instrumentalistas contemporâneos têm depreciado essa razão de forma irremediável. Na medida em que esses homens têm assinalado o fracasso da filosofia moderna para resolver o problema epistemológico, suas conclusões parecem incontroversas. Mas visto se oporem violentamente à revelação, eles têm sido forçados a adotar um ceticismo tão profundo que nem mesmo a razão no sentido das leis da lógica está isenta. Em antecipação de Freud, Nietzsche nos diz que todo pensamento é controlado por funções biológicas. A distinção entre verdade e falsidade como tal não é importante: uma opinião falsa que sustenta a vida é melhor que uma verdade que não o faz. De fato, a verdade poderia muito bem ser definida como o tipo de erro sem o qual uma espécie não pode viver. A lógica com sua lei da contradição é o resultado de uma evolução cega que poderia ter sido diferente. De qualquer forma, a lógica falsifica a natureza; ela coloca coisas diferentes na mesma categoria por ignorar suas diferenças; e quanto mais espesso o órgão, maiores similaridades se vê. O fato que usamos a lógica significa meramente a nossa incapacidade de examinar mais de perto; e o resultado é que a lógica é válida somente para existências assumidas que criamos e não para o mundo real. F. C. S. Schiller, A. J. Ayer, Jean Paul Sartre, cada um deles a seu modo ataca a necessidade da lógica. Assim, a posição filosófica típica do século XX não deve ser tanto designada como ceticismo, mas como irracionalismo total. A transigência neo-ortodoxa Embora esses homens sejam abertamente anticristãos, há também uma forma de irracionalismo no século XX, derivada diretamente de um estudante de Hegel, Kierkegaard, que se veste com terminologia cristã e tenta evitar os excessos de Nietzsche mediante um apelo à revelação. Algumas vezes ela alega ser um retorno ao ponto de vista da Reforma. É preciso se indagar não somente se essa alegação pode ser historicamente justificada, mas, mais particularmente, se essa filosofia fornece uma validação adequada do conceito cristão de revelação. O assim chamado movimento neo-ortodoxo ou existencial admite de bom grado que a razão fracassou terrivelmente. Mesmo a natureza inanimada está além do entendimento intelectual porque não há nenhum movimento na lógica e nenhuma lógica no movimento. O devir está em aberto e a realidade é puro acaso. Se a lógica naufraga no movimento físico, ela é ainda mais impotente nas questões da vida. O que é necessário não são conclusões lógicas, mas decisões. Devemos, portanto, dar um salto de fé e aceitar uma revelação de Deus. Para muitas pessoas devotas, perturbadas pela popularidade do cientificismo secular, oprimidas pela influência sufocante do modernismo, e (injustificadamente) assustadas pelas negações da alta crítica, a neo-ortodoxia parece um maná do alto. A revelação agora foi salva; a razão foi derrotada! Contudo, antes que os herdeiros de Lutero e Calvino possam propriamente se regozijar, eles devem saber precisamente o que é essa revelação, que tipo de fé se quer dizer, e se alguma coisa de valor permanece depois da derrota da razão. O fracasso do racionalismo do século XVII não causa alarme algum; pode-se conformar com o destino de Hume e Hegel; a razão concreta e empírica de Brightman pode muito bem ser dispensada; mas o que resta se a razão, no sentido das leis da lógica, precisa ser abandonada? De que valor seria uma revelação irracional ou ilógica? A principal lei da lógica é a lei da contradição, e essa é a lei que mantém a distinção entre verdade e falsidade. Se essa distinção não pode ser mantida, então como os antigos sofistas mostraram, todas as opiniões são verdadeiras e todas as opiniões são falsas. Qualquer proposição é tão crível quanto qualquer outra. E, portanto, Nietzsche ou Freud usaram o raciocínio para chegar às suas posições, e se o raciocínio distorce a realidade, e se uma teoria não é mais verdadeira que a outra, segue-se que esses homens não têm nenhum bom fundamento para afirmar suas teorias. Negar a razão, no sentido das leis da lógica, é esvaziar a conversa ou o argumento de todo significado. Ora, isso é o que a neo-ortodoxia bem como Nietzsche fazem. Em seu Concluding Unscientific Postscript [Post-scriptum conclusivo não científico], Kierkegaard havia dito que não há diferença alguma se um homem ora a Deus ou a um ídolo, conquanto ore com paixão. A verdade, disse, reside no Como interior, e não no O que exterior. Se somente o Como da relação do indivíduo é “verdade”, então o indivíduo está na verdade, mesmo que ele esteja, desse modo, relacionado com a inverdade. Brunner também abole a distinção entre verdade e falsidade. Primeiro, ele se refere a um tipo de “verdade” que não pode ser expressa em palavras ou apreendida em conceitos intelectuais. O que essa verdade é, ninguém pode dizer. Segundo, as palavras, sentenças e conteúdo intelectual que “apontam para” essa verdade oculta podem ou não serem verdadeiras. Deus pode revelar a si mesmo (Wahrheit als Begegnung, p. 88) por meio de proposições falsas, bem como verdadeiras. Nunca podemos estar certos, portanto, se o que Deus nos diz é verdade. Falsidade e verdade têm igual valor. Certamente tal valor deve ser muito pequeno. Por um lado, nos alivia da responsabilidade de sermos consistentes. Nosso credo pode conter artigos contraditórios. Brunner argumenta que a “inferência direta” deve ser refreada. Não ousamos seguir nossos princípios até suas conclusões lógicas. Nem sempre, de qualquer forma. Brunner, de fato, aponta a contradição de Schleiermacher em insistir tanto no caráter absoluto do cristianismo como na descoberta de um elemento comum em todas as religiões. Ele é consistente também quando argumenta que o homem deve ter sido criado justo, pois de outra forma não teria havia nenhuma Queda. Mas quando Brunner chega a Romanos 9 e considera seu significado repugnante, ele declara que a eleição é ilógica e que se extrairmos inferências a partir dela, concluiremos que Deus não é amor. Não se pode ter amor e lógica. Portanto, a Bíblia é consistentemente ilógica. [8] Mas se a Bíblia é ilógica e se Brunner é ilógico, não temos um direito lógico de ignorá-los, visto não haver nenhuma necessidade ilógica de que nossa fé deva saltar na direção
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