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PRÁTICA EDUCATIVA DA LÍNGUA PORTUGUESA NA EDUCAÇÃO INFANTIL 2 SUMÁRIO LINGUAGEM E INTERAÇÕES HUMANAS ....................................................... 3 A FORMAÇÃO E O DESENVOLVIMENTO DA LINGUAGEM NA CRIANÇA .. 14 A BRINCADEIRA E O DESENHO DA CRIANÇA: A PRÉ-HISTÓRIA DA LINGUAGEM ESCRITA........................................................................................................... 24 LINGUAGEM E GÊNEROS DISCURSIVOS: QUESTÕES PARA A EDUCAÇÃO INFANTIL ......................................................................................................... 38 LETRAMENTO NA EDUCAÇÃO INFANTIL: QUESTÕES PARA PENSAR A PRÁTICA PEDAGÓGICA .................................................................................................. 48 A LITERATURA INFANTIL E AS CRIANÇAS DE ZERO A SEIS ANOS .......... 61 LITERATURA INFANTIL: DA PRODUÇÃO À RECEPÇÃO ............................. 85 LEITURA E ESCRITA: QUESTÕES PARA A EDUCAÇÃO INFANTIL .......... 104 A PSICOGÊNESE DE FERREIRO E TEBEROSKY ...................................... 110 O LETRAMENTO NO COTIDIANO DA EDUCAÇÃO INFANTIL: PERSPECTIVAS PARA A PRÁTICA ............................................................. 123 O LETRAMENTO NO COTIDIANO DA EDUCAÇÃO INFANTIL: PERSPECTIVAS PARA A PRÁTICA (POESIA E QUADRINHOS) .................................................... 135 REFERÊNCIAS ............................................................................................... 143 3 Linguagem e interações humanas No contexto das relações que estabelecemos nas nossas experiências cotidianas, especialmente no interior das escolas, é a presença da linguagem que pode garantir a vida, a troca de experiências, construção de uma história coletiva, comunicação, criação de novos sentidos sobre as coisas e sobre o mundo. A linguagem não é simplesmente algo sobre o que nos debruçamos para apreender suas regras; não é “meio de” contato social, como um veículo, estático e instrumental. Ela é criada pelo homem, ao mesmo tempo em que o cria; modifica-se nas interações humanas, permite que o homem vá além do imediato e dado no mundo, concretizando seu potencial criador de si mesmo e da realidade. É com a linguagem que as crianças têm contato com a cultura do meio social a que pertencem, à medida que estabelecem contato com os adultos e 4 com os objetos culturais próprios desse universo (textos escritos, imagens, objetos, danças, músicas etc.). Interagir com os adultos e o mundo na linguagem implica que ao lado desse contato haja espaço para que a criança possa criar novas formas de interação, novos objetos culturais. O que é linguagem? Mas, afinal de contas: o que é a linguagem? A resposta pode seguir muitos caminhos, percorrer inúmeras teorias, ciências e momentos históricos, mas, independentemente do ponto de vista que se aborde, a linguagem, como capacidade de simbo- lizar, de dizer o mundo, de se expressar e de se comunicar, é o que há de mais humano no homem. A linguagem, seja verbal (pela palavra) ou não verbal (pelo corpo, imagem etc.), encontra-se em todas as esferas da atividade humana, interiormente, em nosso pensamento, na forma como nos organizamos no mundo por meio dos símbolos e exteriormente, em nossas relações com os outros, possibilitando a comunicação. Pela sua diversidade de formas e manifestações e por pertencer ao domínio individual e social, tem um caráter multidisciplinar, sendo estudada por várias ciências como: a Semiologia, a Linguística, a Psicologia, a Antropologia, a Sociologia, a Filosofia, entre outras e sob diferentes enfoques. No diálogo com Benjamin (1993), Bakhtin (1992) e Vygotsky (1989), nos domínios da Filosofia, Filosofia da Linguagem e Psicologia, respectivamente, entendemos a linguagem como capacidade propriamente humana de criação de significados, construção de uma história social, expressão de singularidade. É possível delinear uma visão de linguagem no diálogo com os três porque há expressivas recorrências disso em suas obras. Os três autores desenvolvem suas teorias no início do século XX, contrapondo-se aos regimes políticos ditatoriais e diluidores das singularidades em que viviam. Assim, apostavam em princípios que pudessem restituir ao homem sua qualidade de sujeito transformador da his- tória, ativo e criativo. 5 Nessa perspectiva, abordam a linguagem na sua dimensão expressiva e histórica, trazem os múltiplos sentidos das palavras, têm o homem como sujeito social, produtor de sentido e possibilitam o movimento de repensar o nosso tempo, entendendo a potencialidade da linguagem como a condição da historicidade humana. Segundo Kramer (1993), os três autores veem a linguagem como expressão, fazem críticas ao formalismo, dão ênfase ao riso, às lágrimas, à imaginação criadora, ao sentimento, percebendo a linguagem além do signo arbitrário, negando-a enquanto meio e forma cristalizada. Buscam uma interação viva com a língua, trazem a emoção, o movimento da linguagem na história, percebem a linguagem como experiência criativa ininterrupta. Bakhtin (1992) destaca a centralidade da linguagem na vida do homem. Segundo ele, a palavra é o elemento privilegiado da comunicação na vida cotidiana, e está presente em todos os atos de compreensão e de interpretação. Para esse autor, a palavra tem sempre um sentido ideológico ou vivencial, se relaciona totalmente com o contexto e carrega um conjunto de significados que socialmen- te foram dados a ela. Ao ser pronunciada, cada palavra evoca um significado já estabelecido na história. Ao mesmo tempo, abre-se à criação de novos sentidos a partir do movimento dialógico que a coloca em cena. É no diálogo que a palavra ganha vida. Cada palavra é polissêmica, admite vários sentidos, e plural, uma presença viva da história por conter todos os fios que a tecem, ou seja, os vários significados possíveis construídos ao longo da história das interações humanas. Desse modo, uma mesma palavra assume diferentes significados, dependendo diretamente do contexto em que é enunciada e dos sentidos dados pelo sujeito. Bakhtin considera a palavra a ponte entre o eu e o outro, pois procede de alguém e se dirige para alguém. Portanto, o produto do ato da fala, a enunciação, é de natureza social, e é determinada pela situação mais imediata ou pelo meio social mais amplo. O que torna a compreensão de uma palavra possível é também aquilo que é 6 presumido pelo ouvinte, porque toda palavra usada na fala real possui um acento de valor ou apreciativo, transmitido por meio da entoação expressiva (gestos, expressões faciais, tonalidades, entonações etc.). A compreensão de qualquer enunciação é sempre ativa, orienta-se pelo contexto e já contém o germe de uma resposta. Bakhtin articula que para cada palavra que estamos em processo de compreender, fazemos corresponder uma série de palavras nossas, formando uma réplica. A compreensão seria, então, uma forma de diálogo. Quando compreendemos, res- pondemos com nossa palavra. Benjamin (1993) elabora uma instigante reflexão acerca da linguagem como narrativa. Ele afirma que a arte de narrar está definhando em nossa vida, desde o advento da Modernidade, pois a troca de experiências, o contarem histórias, deu lugar à informação. A narrativa, marcada por um tempo extenso, que possibilita ouvir o outro, conservar a tradição e a memória coletiva, foi perdendo força à medida que a informação ganhou espaço, veloz, fugaz, abreviada e marcada pela força do individualismo. A quantidade de informações presente na vida contemporânea leva-nos às questões: o que é importante de ser guardado? Como cultivar e tecer a história coletiva, criando elos entre passado e presente? Além disso, em seu ensaio Problemas de Sociologia na Linguagem, Benjamin traz uma definiçãode linguagem como gesticulação de instrumentos linguísticos, considerando o gesto anterior ao som. Afirma que o elemento fonético está baseado num elemento mímico-gestual, concluindo que o som da linguagem não é necessariamente uma onomatopeia (formação de uma palavra a partir da reprodução aproximada de um som natural a ela associado), e sim um complemento audível ao gesto mímico visível e totalmente expressivo por si. As palavras foram se “desgrudando” das coisas, não eram mais uma representação delas mesmas ou de seus sons, mas representações arbitrárias de seus significados. Aos poucos, todos os gestos foram acompanhados de um som e como o som é mais econômico (embora menos expressivo), revelando-se menos dispendioso e exigindo menos energia, passou a predominar. 7 Com esses argumentos, Benjamin defende uma teoria mimética da linguagem num sentido lato – o instinto de um movimento expressivo mimético por meio do corpo. A linguagem nasceu do corpo e aos poucos foi se tornando uma representação arbitrária, ligada aos processos mentais, às ideias. Assim, o lado expressivo da linguagem é confirmado, e ela é vista não como um meio, mas como uma manifestação, uma revelação da nossa essência mais íntima. Vygotsky (1989) considera a linguagem um dos instrumentos básicos inventados pelo homem, que tem duas funções fundamentais: a de intercâmbio social – é para se comunicar que o homem cria e utiliza sistemas de linguagem – e de pensamento generalizante – é pela possibilidade da linguagem ordenar o real agrupando uma mesma classe de objetos, eventos e situações, sob uma mesma categoria, que se constroem os conceitos e os significados das palavras. A linguagem, então, atua não só no nível interpsíquico (entre pessoas), mas também no intrapsíquico, influindo diretamente na construção e alteração das funções mentais superiores (imaginação, memória, planejamento de ações, capacidade de solucionar problemas, de fazer análises e sínteses, entre outras). Dessa forma, os sistemas de signos produzidos culturalmente não só interferem na realidade, mas também na consciência do indivíduo sobre esta. Linguagem: comunicação e expressividade Tendo como base as ideias de Vygotsky (1989), podemos dizer que do ponto de vista filogenético (na história da espécie humana) e ontogenético (na história de cada ser humano), o nascimento da linguagem se dá no campo social. Trata-se de um processo “de fora para dentro”, ou seja, a organização externa é internalizada pelo sujeito. Mas isso não significa que ele esteja exposto passiva- mente às formas de linguagem de seu meio. À medida que mergulha no universo sociocultural repleto de palavras e estilos diferentes de comunicação, cada sujeito apropria-se dessas modalidades simbólicas. A 8 combinação que cada um faz das referências que recebe do mundo é sempre singular, própria e irrepetível. Assim, ao expressar-se no mundo, o sujeito humano comunica sempre algo particular, seja nas suas palavras, nos seus gestos ou no seu olhar, sempre em diálogo com as referências sociais e culturais que o envolvem. O trabalho de Bakhtin (1992) esclarece o caráter dialógico e comunicativo da linguagem. Para esse autor, como já adiantamos anteriormente, cada palavra enunciada por um falante faz parte de um diálogo, é uma resposta a um enunciado anterior e evoca uma resposta, outras palavras. Cada enunciado de uma criança está ligado às palavras que já foram a ela comunicadas e faz parte do diálogo com o contexto social no qual está mergulhada. Assim, não há enunciado isolado ou palavras soltas puramente, pois todo enunciado pressupõe aqueles que o antecederão e os que o sucederão. Um enunciado é sempre um elo numa cadeia, e só pode ser compreendido no interior dela. É importante acrescentar que as relações dialógicas são sempre relações de sentido, quer seja entre dois participantes de um diálogo presente e real, quer seja entre dois enunciados distantes no espaço e no tempo. No caso do diálogo e da comunicação presente entre dois interlocutores, é preciso buscar nas palavras, nos gestos e nas entonações, os sentidos negociados, partilhados e construídos. Nessa perspectiva, é importante a crítica que Bakhtin elabora da linguística formal, um modo de abordagem da linguagem numa perspectiva fria e objetiva, ressaltando sua dimensão arbitrária, ou seja, as regras que a compõe, as relações lógicas da língua. Essas relações são importantes e necessárias, mas não dão conta da complexidade que as relações dialógicas impõem. Para a compreensão dessa ideia, Jobim e Souza (1994) cita Lewis Carroll (1982) propondo que observemos o seguinte diálogo de Alice e o seus 9 companheiros de aventura: • Eu sempre digo o que penso – respondeu vivamente Alice – ou pelo menos, penso que digo... É a mesma coisa, vocês sabem. • Não é a mesma coisa, de modo nenhum – disse o Chapeleiro – se fosse assim, “vejo o que como”, seria a mesma coisa que “como o que vejo”. • Se fosse assim, “gosto de tudo o que tenho”, seria a mesma coisa que “tenho tudo o que gosto” – disse a Lebre de Março. • Se fosse assim – disse por sua vez o Rato Silvestre, com uma voz de quem está sonhando alto – “respiro quando durmo” seria a mesma cisa que “durmo quando respiro”. • Para você, é a mesma coisa sim. E a conversa morreu aí. (JOBIM E SOUZA, p. 66, 1994) Fica bastante claro que o sentido ocupa o lugar principal em qualquer enunciado, em qualquer diálogo. A análise da correção ortográfica, sintática e gramatical não dá conta da vida presente no enunciado humano. O humor, a emoção, o contexto da enunciação, os gestos e expressões que acompanham as palavras são fundamentais na explicitação do sentido de cada enunciado e no valor de cada um, que se estabelece nas interações entre as pessoas que os proferem. Na verdade, trata-se de relacionar diálogo, linguagem e vida. Se analisarmos a língua somente em seu aspecto formal e lógico, ela perde a vida que se caracteriza pelo potencial de variabilidade presente no tom emocional, contextual e histórico das palavras em uso nas interações sociais. A realidade, as coisas e o mundo são polifônicos, isto é, não possuem uma única forma de serem vistos, conhecidos e interpretados. A realidade é plural. Portanto, a pluralidade de sua expressão precisa garantir-se na linguagem. A unidade do mundo, ou a construção de uma verdade, só é possível na interação entre as diferentes vozes que compõem essa verdade ou unidade. É importante deixar emergir a tensão entre as diferentes vozes que 10 contribuem na composição de um conhecimento, uma verdade, não deixando esmaecer seu caráter múltiplo e vivo. É no diálogo, presente em nossas interações com as crianças nos espaços educacionais, que a linguagem ganha vida e sentido. Nesses espaços, é fundamental atentarmos para os significados das palavras que variam de acordo com os contextos de enunciação; e para a entonação e emotividade presentes nos enunciados infantis. Linguagem: organizadora da realidade Vygotsky (2000) propõe que a linguagem tem como uma de suas funções a organização do homem na realidade, o que ele chama de pensamento generalizante. Trata-se da orientação da linguagem “para dentro” de cada sujeito humano, como instrumento psicológico, que modifica a capacidade de memorizar, por exemplo. Para explicitar essa função da linguagem, é interessante perceber como ela nasceu na história da humanidade, como uma conquista que permitiu ao homem avançar na comunicação e expansão no mundo. A princípio, os humanos utilizaram-se de instrumentos físicos para modificar a realidade concreta e externa. Inventaram o machado para cortar as árvores, recipientes como vasos para carregar água, varas para alcançar alimentos distantes etc. Com o estreitamento do contato entre eles, com a convivênciaem grupos, além desses instrumentos, os homens passaram a utilizar também instrumentos psicológicos – os signos –, facilitando a vida social, à medida que expandem a memória de cada um, possibilitam o armazenamento da alimentação e atividades como comparar, escolher, entre outras. Por exemplo, a invenção dos calendários, formas de marcar a passagem do tempo; a invenção de formas de contagem, com auxílio de varas ou traçados que facilitaram a organização dos animais que criavam etc. O signo age como instrumento da atividade psicológica, de maneira similar ao instrumento físico que atua sobre a realidade externa, só que o signo interfere no funcionamento psíquico humano, controlando não as ações 11 concretas, mas as ações psicológicas como lembrar, ter atenção etc. O signo é uma marca externa que auxilia o homem em tarefas que exigem memória e atenção, principalmente. O signo representa a realidade e permite ao homem ir além do imediato, de seus recursos não mediados. Por exemplo, com o auxílio de marcas no mundo externo, uma lista de palavras escritas (lista de compras), é possível organizar-se, não esquecer, não se perder. Vygotsky (1989) propõe que ao longo da evolução da espécie humana e da história de cada sujeito humano o uso de signos externos, a mediação da atividade humana pela presença de signos, foi internalizada e desenvolvidos sistemas simbólicos que organizam os signos em sistemas complexos. Pouco a pouco, os signos (palavras, imagens etc.) que representam objetos, pessoas, elementos do mundo real vão sendo internalizados e transformando-se em imagens mentais. Os signos internalizados representam objetos, eventos, situações. Temos conteúdos mentais que tomam o lugar das situações do mundo real (podemos falar deles, atualizá-los em nossa mente, mesmo quando ausentes de nosso campo visual e presente). Essa capacidade de lidar com representações que substituem de certa forma o mundo real permite ao homem fazer relações mentais na ausência das coisas, imaginar, planejar etc. Ao longo da história da espécie humana a utilização de signos é egrada nos sistemas simbólicos dos grupos humanos, formando diferentes culturas, ou seja, formas particulares de cada grupo organizar o real. Os signos são compartilhados pelo conjunto dos membros do grupo social, permitindo comunicação e interação entre esses participantes do grupo. Cada palavra/conceito aprendido por uma pessoa de um grupo remete a uma ideia de um objeto (a que se refere essa palavra); esse significado está enraizado na história desse grupo social. É o grupo no qual cada um está imerso que lhe fornece formas de perceber e organizar a realidade, constituindo os instrumentos psicológicos que possibilitam a mediação entre este sujeito e o mundo. 12 É Oliveira (1994) quem bem exemplifica que faz diferença para a formação de cada sujeito: “se o bebê é colocado para dormir num berço, numa rede ou numa esteira, se quem o alimenta é a mãe ou outro adulto [...] se o alimento sólido é levado à boca com a mão, talheres ou palitos [...]” (p. 38). Essas, entre outras, são situações socioculturais que interferem na forma como cada sujeito poderá ver-se no mundo, organizando-se nele. A experiência com as formas culturalmente organizadas, ou seja, com os signos fornecidos pela cultura, permite ao sujeito constituir seu sistema de signos que funciona como um código ou filtro por meio do qual decifra o mundo. Entretanto, a cultura não é compreendida como algo pronto, estático, ao qual cada sujeito humano se submete, mas como um tipo de palco de negociações, em que os membros da cultura constantemente estão recriando e reinterpretando significados. A vida social é dinâmica e cada sujeito é ativo nela. Mundo cultural e mundo subjetivo interagem e reorganizam-se mutuamente no curso desse processo. Vygotsky (1989) propõe que a realidade interpsíquica (o que ocorre entre os sujeitos humanos, nas experiências culturais) torna-se intrapsíquica, torna- se de cada um, por um processo não de absorção passiva, mas de apropriação, pelo qual cada sujeito torna próprio e singular elementos do mundo mais amplo. Linguagem e cotidiano na Educação Infantil As perspectivas acerca da linguagem sobre as quais discorremos possibilitam que pensemos a respeito da importância dos diálogos e da qualidade de sentido que as palavras e movimentos assumem em nosso dia a dia com as crianças no contexto da Educação Infantil. Tanto nas falas das crianças como nos seus desenhos e dramatizações torna-se fundamental abrirmos espaço para a troca de experiências, a continuidade das histórias e das propostas, a construção de sentidos por parte das crianças. Isso caminha na contramão de um trabalho fragmentado, alienado, no qual a cada dia fala-se de um assunto diferente e as crianças envolvem-se em sequências de atividades que não se relacionam umas com as 13 outras. Por exemplo, as rodas de conversa: podem ser oportunidades de as crianças falarem de si ou partilharem suas impressões sobre algo vivido coletivamente, ou tornam-se momentos burocráticos somente, excessivamente marcados por exigências tais como confecção do calendário, da chamada, da janela do tempo, nos quais só constatamos o que todos já sabemos (como está o dia? quem veio e quem faltou?). O espaço da narrativa pode ser potencializado com fotografias das experiências particulares de cada um e das experiências do grupo, com imagens sobre as quais podemos construir sentidos, com leituras sobre as quais podemos conversar etc. As falas e as produções das crianças precisam ser entendidas como elos numa cadeia discursiva mais ampla. Elas se referem a experiências já vividas por elas e apontam possibilidades de futuro, inclusive possibilidades de transformação. Os autores com quem dialogamos permitem-nos afirmar que as crianças são produzidas na história e na cultura e, ao mesmo tempo, produzem história e cultura. Isso quer dizer que elas carregam marcas do contexto social que participam e, paralelamente, podem transformá-lo, recriando-o com suas ações. Essa perspectiva criadora é muito importante nas nossas práticas cotidianas com as crianças, pois permite a aposta em cada uma delas como seres da expressão, da construção do novo, da emancipação. DICA DE ESTUDO Sugiro a leitura do livro: Infância e Linguagem, de Solange Jobim e Souza. 14 A formação e o desenvolvimento da linguagem na criança Entre gestos e palavras: o surgimento da linguagem Primeiramente, é fundamental que consideremos que as crianças constroem a linguagem na interação com os adultos e com as outras crianças de seu meio social, e também na interação com os objetos da cultura na qual elas estão imersas (livros, brinquedos, utensílios da vida prática, imagens etc.). Linguagem é a apropriação e produção de significados que vão sendo socialmente partilhados, possibilitando comunicação, organização da realidade e criação. Portanto, é no coletivo que a linguagem se constitui na experiência da criança. A princípio, o adulto produz sentido às expressões corporais e sonoras do bebê, constituindo padrões relacionais. Então, o bebê vai experimentando suas possibilidades de afetar o outro agindo com seu corpo no mundo e “observando” os resultados comunicativos de suas reações (como o adulto nomeia o mundo para ele). É olhando o bebê no olho, respondendo às suas ações, povoando seu universo com a nossa fala que incentivamos suas possibilidades de comunicar-se. 15 Bondioli e Mantovani (1998) desenvolvem pesquisas no interior das creches na Itália, destacando comportamentos comunicativos dos bebês, tais como oferta de objetos, troca de sorrisos, conversação frente a frente (o adulto fala e a criança responde com balbucios, olhares e expressões faciais). Conforme o adulto vai atribuindosignificado e intencionalidade às expressões infantis, as crianças vão mergulhando num universo relacional, sendo pouco a pouco capazes de prever e guiar o comportamento adulto por meio de suas reações corporais. Esse movimento permite que a criança se experimente num lugar ativo e criador de possibilidades de interação. Wallon (2005) propõe que as primeiras interações dos bebês com o universo social que os rodeia são caracterizadas pelo que ele chama de um diálogo tônico, no qual a afetividade marca os contatos dos bebês com os adultos que deles cuidam, construindo sentidos pelo tato, pelo olhar, pela disponibilidade à escuta e interação. Vygotsky (1989) expõe o processo de construção de significados sobre mundo nas interações sociais, mostrando como se constitui o gesto de apontar na história da criança pequena. Primeiramente, a criança apresenta o gesto de pegar um objeto que está fora do seu alcance, estendendo o braço em direção a ele. É o adulto quem diz “você quer aquilo?”, nomeando o objeto. Num momento posterior, provavelmente, a criança vai simplesmente apontar para o objeto, olhando para o adulto. Surgiu o gesto de apontar na interação adulto- criança. É assim que muitas formas e significados relacionais são produzidos. As crianças mergulham no universo de significados que compõe nossa vida coletiva, à medida que participam de relacionamentos significativos e afetivos que vão permitindo-lhes compreender os sentidos da vida comum. A compreensão é sempre ativa (não se trata de um processo passivo de absorção do meio), isto é, supõe que as crianças respondam, coloquem-se, expondo suas apropriações desta realidade, isto é, a forma como tornam seus os significados da cultura mais ampla. As palavras do filósofo da linguagem Bakhtin (1992, p. 67) são elucidativas: 16 Tudo quanto a determina em primeiro lugar, a ela e a seu corpo, a criança o recebe da boca da mãe e dos próximos. É nos lábios e no tom amoroso deles que a criança ouve e começa a reconhecer seu nome, ouve denominar seu corpo, suas emoções, seus estados internos. [...] A criança começa a ver- se, pela primeira vez, pelos olhos da mãe, é no seu tom que ela começa também a falar de si mesma; assim ela emprega, para falar de sua vida, as palavras que lhe vêm da mãe. [...] Sua forma parece ter a marca do abraço materno. Contribuímos para a construção da linguagem na criança quando respondemos aos seus sinais (gestos, balbucios, palavras etc.), fazendo-as sentir que são compreendidas; quando nomeamos suas ações e os objetos com os quais interagem; conversamos com elas, lemos histórias para elas, brincamos com fantoches e outros objetos que mobilizam o contato e a conversa entre nós, entre tantas outras situações por meio das quais vamos significando a atuação da criança no mundo, ajudando-a a compreendê-lo e a ser compreendida. É Vygotsky (1989, p. 33) quem afirma: Desde os primeiros dias do desenvolvimento das crianças suas atividades adquirem um significado próprio num sistema de comportamento social e sendo dirigida a objetivos definidos, são refratadas através do prisma do ambiente da criança [...] O caminho do objeto até a criança e desta até o objeto passa através de outra pessoa. Relações entre linguagem e pensamento ao longo do desenvolvimento De fato, Vygotsky (2000) é o autor privilegiado com quem dialogaremos para compreender como surge e se desenvolve a fala na criança; como a linguagem (produção exterior) vai se relacionando com o pensamento (produção interior) ao longo do desenvolvimento. De acordo com esse autor, pensamento e linguagem são dois fenômenos intimamente relacionados, um afetando o outro. Quando falamos, nosso pensamento se modifica; quando concretizamos o pensamento nas palavras, a linguagem se transforma ganha novos contornos não planejados. Mas no início 17 do desenvolvimento da criança, pensamento e linguagem não estão conectados dessa maneira. Para Vygotsky (2000), quando nasce o bebê e ao longo do primeiro ano, há um pensamento pré-verbal (expresso na atividade do corpo no espaço, por meio da coordenação dos movimentos para atingir finalidades – empurrar, puxar, jogar etc.). Por outro lado, há também uma linguagem pré-intelectual (presente nos balbucios, choros, expressões faciais etc.). Por volta dos dois anos, o pensamento une-se à linguagem, ou seja, o pensamento torna-se verbal e a fala torna-se intelectual, quando a criança começa a significar o mundo por meio da palavra, ao mesmo tempo em que acompanha as ações com palavras que as orientam. É o significado expresso na palavra que liga pensamento e linguagem. Esse processo fica evidenciado no seguinte esquema: De acordo com Vygotsky (1989), a expressão do significado na fala é ao mesmo tempo um ato de pensamento e parte inalienável da palavra, pertencendo tanto ao domínio do discurso quanto do pensamento. É preciso esclarecer que a manifestação da linguagem pré-intelectual, ou seja, a expressão da criança por intermédio dos balbucios, manifestações faciais ou choros é comunicativa. A função comunicacional da linguagem é experimentada quando a criança interage com o outro, tendo suas ações significadas pelos pais e pelos companheiros mais próximos. Seu corpo é 18 espaço de comunicação desde o nascimento. Quando a criança começa a significar o mundo por meio da palavra, o gesto e o corpo não param de ser vividos como espaços também de construção de significados. É importante entendermos o entrelaçamento entre corpo e palavra na expressão da criança pequena, no movimento de interiorizar os sentidos socialmente compartilhados e expressar-se no mundo. Ao mesmo tempo, as manifestações do pensamento pré-verbal – o que o autor denomina inteligência prática (capacidade de a criança usar instrumentos físicos para atingir suas finalidades, como usar um banco para pegar algo que está no alto, um pano para puxar algo distante etc.) – apresentam-se como forma de organização da experiência que será potencializada quando a criança começar a falar. Com o desenvolvimento, são os símbolos, especialmente as palavras, os instrumentos psicológicos que serão utilizados para organizar a criança no mundo, dando origem ao pensamento verbal. Trata-se de quando a criança começa a controlar o ambiente por meio da fala, o que é uma forma de comportamento caracteristicamente humano. O momento de maior significado no curso de desenvolvimento intelectual que dá origem às formas puramente humanas de inteligência prática e abstrata acontece quando a fala e a atividade prática, então duas linhas completamente independentes de desenvolvimento, convergem [...] assim que a fala e o uso de signos são incorporados a qualquer ação, esta se transforma e se organiza ao longo de linhas inteiramente novas. (VYGOTSKY, 1989, p. 29) A fala possibilita que a criança controle a si mesma, também afetando o outro. Com ela, as crianças tornam-se sujeito e objeto de seu próprio comportamento. À medida que o enunciam vão encontrando novas formas de atualizá-lo. Fala egocêntrica: fala para si ou fala para o outro? Quando começam a falar, as crianças falam enquanto agem e agem 19 enquanto falam. Se observarmos as crianças pequenas em suas tarefas práticas (empilhando cubos, colocando objetos numa caixa, dando comidinha para um boneco etc.) veremos que as suas ações são impulsionadas por palavras. Elas falam como que para si mesmas. Vygotsky (1989) afirma que a fala funciona como um auxílio para a ação. Trata-se da fala egocêntrica. Esse fenômeno foi inicialmente observado por Piaget, que percebia as crianças falando enquanto agiam. Esse autor propunha que a fala somente acompanhava a ação e, com o desenvolvimento, desaparecia. Vygotsky, pelo contrário, propunha que a fala egocêntrica ou o monólogo coletivo (várias crianças falandoao mesmo tempo num ambiente coletivo, sem estarem necessariamente falando umas com as outras) é um fenômeno social, fruto da indistinção entre fala para si e fala para o outro. Com o desenvolvimento ela não desaparece, mas transforma-se em pensamento (interiorizado). Ao falarem, é como se as crianças buscassem ajuda para solucionar o que estão resolvendo, é como se estivessem controlando o fazer com a palavra; mais tarde, elas compreendem que não precisam falar para irem se organizando nas suas experiências, o que gera o pensamento (fala interiorizada). Vygotsky (1989) fez vários experimentos nos quais provocou nas crianças a impressão de que não estavam sendo escutadas (colocando som alto, diminuindo a presença de outras pessoas no ambiente). Nessas situações, o potencial de fala egocêntrica diminuiu. De outro modo, quando ele intensificou a impressão de que eram ouvidas, ou quando dificultou a tarefa a ser realizada, as crianças falavam mais enquanto agiam. Isso significa que a quantidade de fala egocêntrica relaciona-se com a dificuldade das tarefas e com a impressão de que podem ser ajudadas. Ao usarem as palavras, as crianças realizam um número maior de atividades, utilizando como instrumentos não somente os objetos à mão, mas procurando e preparando tais objetos de forma a torná-los úteis para a solução da questão e para o planejamento de ações futuras. A palavra sofistica a ação. 20 Na perspectiva de Vygotsky (2000), ao longo do desenvolvimento, a palavra vai assumindo funções diferentes à medida que se relaciona de modo diferente com a ação. Primeiro, ela acontece junto com a ação, organizando-a e controlando-a, como o que foi descrito anteriormente; depois, desloca-se para o início da ação, servindo para planejá-la. A função planejadora da fala vai se articulando com a função comunicativa, permitindo que a fala não só modele a experiência, mas também a transforme. É importante acrescentar que Vygotsky (2000) propõe que a fala egocêntrica concretiza a indistinção na criança pequena entre a fala para si e a fala para o outro. Quando a criança se vê diante de uma tarefa difícil num ambiente onde há a presença do adulto, ela fala como que se dirigindo a ele, mesmo sem que isso fique explicitado. Se ele sai do ambiente, ela continua a falar, no sentido de buscar auxílio/organização da sua ação com a fala. Com o desenvolvimento, essa fala organizadora interioriza-se, transformando-se em pensamento. A criança compreende com a experiência que a externalização ou vocalização da fala é imprescindível à comunicação e que para se organizar ou controlar a ação não precisa necessariamente verbalizar. O seguinte esquema explicita essa construção: 21 Quando começa a falar, a criança vive o entrelaçamento dessas duas funções da linguagem – a organização da realidade e a comunicação. Quando fala, significa o mundo, negocia significados com os outros que participam da mesma cena social, impulsiona suas próprias ações, expressando-se nesse mundo e constituindo a si mesma. Geralmente, quando começam a falar, as crianças usam o que chamamos de palavras soltas ou isoladas. É importante notar que cada palavra proferida é intensa em significação; numa só palavra as crianças expressam muitos significados. Por exemplo, a palavra “mamãe” é usada para diversas situações diferentes: fome, sono, alegria etc. Uma palavra generaliza um mundo de sentidos. Com o desenvolvimento, a criança passa a “precisar” de mais palavras para expressar uma ideia e diversas ideias passam a não caber numa palavra isolada. Ao longo do desenvolvimento linguístico da criança, os dois planos da fala – interior (semântico e significativo) e exterior (fonético) –, embora formem uma unidade, seguem direções opostas em relação ao pensamento. No plano fonético, a criança começa a falar uma palavra, depois relaciona duas, três palavras, forma frases simples, depois mais complexas e chega à fala corrente, indo da parte para o todo. Porém, no plano semântico, vai do todo para as partes, pois a primeira palavra pronunciada é uma frase completa que contém o significado de um todo e só aos poucos é que a criança vai compreendendo o significado das unidades menores. A relação entre pensamento e palavra é um processo, um movimento contínuo, um vaivém do pensamento para a palavra e vice-versa. Nesse processo, a relação entre o pensamento e a palavra passa por transformações. De acordo com Vygotsky (2000), o pensamento não é simplesmente expresso em palavras, mas é por meio delas que passa a existir. Quando se materializa em palavra o pensamento ganha sempre nova forma. 22 Gestos, expressões corporais e palavras no cotidiano da Educação Infantil Em nosso dia a dia com as crianças no contexto da Educação Infantil, é muito importante valorizarmos os movimentos e falas que compõem a expressão das crianças. A cena de um grupo de crianças na Educação Infantil é sempre uma cena repleta de sons, vocalizações, balbucios e palavras. A presença da fala das crianças enquanto montam um jogo, fazem um desenho ou dramatizam é fundamental para a organização e sofisticação dessas experiências. É comum percebermos que as crianças ficam em pé quando querem falar algo significativo, gesticulando, mostrando com o corpo o que querem dizer. Esticam-se querem falar de algo grande, fazem uma bola com os braços se querem falar de algo gordo, encolhem-se para significar o que é pequeno. É como se a palavra não bastasse e o corpo funcionasse como apoio na expressão e significados. Possibilitar essa expressão é muito importante. Alguns espaços escolares, voltados prioritariamente para o desenvolvimento intelectual – no sentido da extrema atenção à racionalidade – desde a Educação Infantil, têm muita dificuldade em lidar com a movimentação e a expressão corporal da criança. Além de não cultivar a linguagem corporal e de ouvir pouco o que cada corpo expressa, vão gradativamente formando corpos dóceis, restritos aos gestos homogêneos das rotinas disciplinares. Quanto maiores as crianças vão ficando, mais aprisionado é o corpo. Mas a criança sempre encontra uma forma de romper e transgredir. É comum, numa fila, por exemplo, vermos as crianças brincando entre elas, dando um peteleco, mexendo no cabelo do outro etc. E é também a escola que, caminhando na contramão do excesso de racionalidade, pode ser um lugar de expressão desse corpo, propondo a troca de afeto, jogos e dramatizações, reorganizando espaços e tempos. Ouvindo as vozes do corpo que fala, se cala, sente sabores e dissabores, mostra e revela, buscamos o reencontro do gesto revelador da nossa essência mais íntima. 23 Como vimos aos poucos a fala desloca-se do curso da ação para o seu início, planejando o que vai acontecer. Geralmente, a criança pequena vai falando o que está desenhando e enquanto o faz, dá significado a um objeto enquanto o explora, faz com o corpo o que quer representar. Somente com o desenvolvimento é capaz de planejar o que vai desenhar, ou combinar papéis de um teatro antes de dramatizá-lo. Em nossas interações cotidianas com as crianças, é importante acompanharmos e desafiarmos as diferentes relações entre fala e ação. É fundamental que haja espaço tanto para a fala que organiza e planeja a experiência (geralmente mais presente), quanto para a fala enquanto fazemos algo, que abre espaço para a criação, para a diferença, para o não previamente elaborado. À medida que entendemos a centralidade da significação na produção de linguagem das crianças, é importante valorizarmos a expressão de significado nos seus desenhos, falas e todas as expressões, dialogando com o que produzem, escutando-as, perguntando e dando relevo ao que quiseram manifestar. Ao mesmo tempo, é na participação em diálogos com seus pares e adultos do seu contextosociocultural que as crianças vão vivendo a função comunicativa da linguagem. Portanto, é muito importante o envolvimento em conversas nas quais se abra espaço para a colocação particular de cada criança em interação com os sentidos socialmente partilhados. DICA DE ESTUDOS Sugiro a leitura de Vygotsky: Aprendizado e Desenvolvimento um Processo Sócio-Histórico, da autora Marta Kohl Oliveira. 24 A brincadeira e o desenho da criança: a pré-história da linguagem escrita De início, ao refletirmos sobre a construção da linguagem escrita pela criança e sobre o ensino da escrita, torna-se importante dizer que esse tipo de linguagem não se esgota no desenho de letras. O ensino da linguagem escrita implica no ingresso por parte da criança em um universo de códigos arbitrários (relação entre sons e grafias das letras; conquista de habilidades motoras etc.), mas isso não configura o que é fundamental na formação da criança como escritora. De acordo com Vygotsky, a escrita não é somente um conjunto complexo de técnicas que devem ser impostas à criança, mas “um sistema particular de signos e símbolos cuja dominação prenuncia um ponto crítico em todo o desenvolvimento cultural da criança” (1989, p. 120). Portanto, é importante que a criança possa tomar contato com ela nessa dimensão simbólica, ou seja, como uma forma possível de representação do mundo, de seus desejos, emoções e ideias. A escrita é um ato cognitivo, um espaço de construção de significados, expressão e criação. 25 Vygotsky (1989) afirma que essa perspectiva simbólica da escrita acontece em íntima relação com outras ações simbólicas que acompanham a vida da criança, como brincar e desenhar. É importante, então, analisarmos a pré-história da linguagem escrita, ou seja, como a qualidade simbólica e criativa que a constitui é prenunciado na brincadeira e no desenho da criança. A construção de significados na brincadeira A brincadeira na vida da criança é muito mais do que fonte de prazer. A brincadeira preenche uma necessidade, entendida como tudo o que é motivo para a ação. Em diferentes momentos do desenvolvimento, as necessidades são diferentes, ao mesmo tempo em que as ações sobre as coisas também. Em certos momentos, o movimento é de explorar, descobrir; em outros, de imaginar e fantasiar. Na brincadeira, a criança coloca-se ativamente na relação com a realidade, recriando-a, construindo sentido sobre ela (VYGOTSKY, 1989). As necessidades das crianças e seus motivos para a ação variam ao longo do desenvolvimento, mas a intervenção ativa da criança explorando possibilidades de objetos e relacionamento está sempre presente no movimento de constituir significados sobre eles e com eles. Assim, no início do desenvolvimento, a relação das crianças pequenas com o mundo é marcada por certas restrições situacionais e suas ações sobre as coisas são pontuadas pelas funções das próprias coisas, pelas condições nas quais as atividades ocorrem, ou seja, uma porta é para abrir, uma bola para jogar etc. As necessidades imediatas e a inteligência prática (coordenação de meios concretos para atingir certas finalidades) dominam a relação da criança pequena com o mundo. A exploração física dos objetos permite-lhe “compreendê-los” por meio do uso. O imediato marca a ação da criança. Aos poucos, surgem tendências, necessidades e desejos não realizáveis 26 de forma imediata, o que gera o movimento de realizá-los de alguma forma (na brincadeira). De acordo com Vygotsky (1989), quando aparecem as necessidades que não podem ser realizadas de modo imediato e, ao mesmo tempo, a tendência a realizá-las imediatamente, surge a brincadeira, como espaço imaginário de realização dos desejos. A criação de uma situação imaginária é um aspecto definidor do que se pode chamar de brincadeira. Na brincadeira, as crianças agem sobre os objetos numa “esfera cognitiva” em vez de numa “esfera visual externa”, somente. Isso significa que em vez de os objetos terem uma força motivadora e determinadora como no início do desenvolvimento (uma escada é para subir, uma campainha para tocar etc.), eles perdem essa força e a ação da criança passa a ser guiada pelo significado que ela dá aos objetos. A criança vê um objeto mas age de maneira diferente em relação ao que vê. [...] A ação numa situação imaginária ensina a criança a dirigir seu comportamento não somente pela percepção imediata dos objetos ou pela situação que a afeta de imediato, mas pelo significado dessa situação. (VYGOTSKY, 1989, p. 110) Dessa forma, um pedaço de madeira pode se tornar um boneco, assim como um cabo de vassoura pode se tornar um cavalo. A ação surge das ideias, das intenções, da necessidade de dar sentido às coisas, de tornar presente algo ausente, de realizar de modo imediato algo não possível de ser realizado na vida concreta. A relação com a brincadeira é fundamental, pois possibilita que a criança experiencie a operação com significados, a criação de sentidos possíveis sobre as coisas. Na brincadeira, a criança lida principalmente com significados dos objetos, desligados das funções que eles costumam assumir no cotidiano (por exemplo, uma caneta que serve para escrever em nosso dia a dia pode transformar-se num avião). Esse movimento promove a experiência da autoria e da autonomia. A partir da interação com objetos da vida cotidiana, com usos marcados pelas regras sociais, as crianças inventam novas possibilidades de ação sobre eles, 27 fazendo com que se submetam às suas vontades e necessidades. É importante observar que nem todo objeto serve para significar qualquer coisa para a criança pequena. Por exemplo, é preciso poder fazer o movimento de um cavalo, ser montado e cavalgado, para um objeto ser transformado num cavalo. Um cabo de vassoura serviria para essa finalidade mas, provavelmente, uma bola não serviria. Somente pouco a pouco, com o desenvolvimento da criança, há certo descolamento da estrutura do objeto ou da ação que se pode fazer com ele, na produção de seus possíveis significados. A brincadeira também abre espaço para a experiência da criança em papéis diferentes do que ela ocupa na vida real, ampliando sua experiência sobre si mesma e sobre o mundo, possibilitando outras visões da realidade que não a sua possível em sua situação concreta. A brincadeira é um espaço de deslocamento de seu lugar na vida cotidiana, para se colocar num lugar de outro. Distanciando-se de seu papel concreto e real, ela experimenta outras formas de ser no mundo (quando brinca de ser a professora, a princesa ou a bruxa, por exemplo): “o brinquedo cria na criança uma nova forma de desejos; ensina-a a desejar, relacionando seus desejos a um ‘eu’ fictício, ao seu papel no jogo” (VYGOTSKY, 1989, p. 114). No brincar, regras e imaginação: espaço de autonomia e autoria 28 Vygotsky (1989) afirma que a característica definidora da brincadeira da criança é a criação de uma situação imaginária. O autor afirma que, mesmo nas situações de regra, há um conteúdo imaginário subjacente. Na verdade, para ele, as brincadeiras claramente imaginárias estão sempre calcadas em situações reais, ou seja, baseadas em regras de comportamento. Por exemplo, quando brincam de mãe e filha, de polícia e ladrão, ou de professora, as regras de comportamento dessas figuras da vida real inspiram a atuação da criança na brincadeira. As crianças desempenham esses papéis buscando o referencial social que possuem deles. É interessante notar – tal como faz Vygotsky (1989) – o que acontece quando duas irmãs na vida real brincam de ser irmãs (brincam do que é verdadeiro). Ao brincar, a criança tenta ser o que ela pensa que uma irmã deveria ser aos olhos dos outros (o que sempre é diferente do que ela é na realidade, quando envolvida no papel de irmã, de fato). Navida real, a criança comporta-se sem pensar que é irmã de sua irmã, sem buscar um olhar para o conceito de irmã. Na brincadeira, ela busca regras de comportamento, aquilo que faz com que o outro reconheça as duas como irmãs. Ou seja, “o que na vida real passa despercebido pela criança, torna-se uma regra de comportamento no brinquedo” (VYGOTSKY, 1989, p. 108). Na verdade, somente com o distanciamento é possível à criança perceber de uma nova forma o lugar cotidiano que ocupa, por isso o valor de brincar dos papéis sociais que realmente experimenta em sua vida. É Bakhtin (1992) quem nos alerta a respeito da importância do distanciamento para a produção de conhecimento. Ele se refere à produção do conhecimento sobre o outro, mas se pensamos na criança que está se constituindo subjetivamente, discernindo quem é ela e quem é o outro, conhecendo a si mesma também, brincar de ser filha da sua mãe, de ser irmã de sua irmã, ou amiga de suas amigas, permite-lhe distanciar-se do que é na realidade, lidando com o “conceito” de filha, irmã ou amiga. Ao voltar à vida diária, envolvida de fato nesses papéis, estará compreendendo-os de outra maneira. 29 Por outro lado, as situações imaginárias são o espaço de reinvenção das regras fundamentais da vida social, organizadoras do mundo compartilhado. As situações imaginárias acabam funcionando como possibilidade de reflexão sobre as regras e reorganização delas. Nas brincadeiras, é possível viver a experiência da autoria (por isso as crianças “discutem” tanto, tentando negociar o que vale ou não nas brincadeiras, em seus jogos de bola, tabuleiro etc.). Nessa linha, Vygotsky (1989) também propõe que toda brincadeira mediada por regra possui uma situação imaginária subjacente. Por exemplo, o jogo de xadrez tem uma situação imaginária em sua base. Assim que somente uma possibilidade se cria (uma forma determinada de mover o rei, o cavalo e a rainha, por exemplo) várias outras são eliminadas. É como se o jogo de regras apresentasse em sua raiz uma série de alternativas de ação (o que marca seu nascimento na imaginação) e só uma tenha se cristalizado. Portanto, é possível pensar em uma nova possibilidade de organização, em uma nova alternativa de regras. Enfim, o autor afirma que o desenvolvimento da criança na brincadeira é pontuado pela passagem de uma experiência marcada pelo imaginário às claras, com regras ocultas, para outra na qual há uma situação de regras às claras e um imaginário oculto. Vale acrescentar que ao comportar-se no brinquedo tal qual outras pessoas de seu convívio, baseando-se nas regras de comportamento convencionadas para esses personagens, a criança é impulsionada em seu desenvolvimento. Vive na brincadeira ações, posturas e situações mais sofisticadas do que as que possui na realidade. Para Vygotsky (1989, p. 117), “no brinquedo é como se ela fosse maior do que na realidade”. Esse é um aspecto muito relevante da brincadeira no cotidiano com as crianças, pois podemos dizer que a brincadeira funciona tal como a instrução ou um modelo que um adulto oferece para a criança. A imitação (representação do modelo buscada pela própria criança) não é simples reprodução ou cópia, mas uma forma de apropriar-se das regras do mundo, tornando-as suas, de uma forma 30 particular, sempre. O que a criança faz hoje com o outro, referenciada num modelo, amanhã fará sozinha. Assim, a brincadeira é entendida como um espaço de aprendizagem. Enfim, num texto no qual se dedica essencialmente a pensar a importância da atividade imaginadora, Vygotsky (1987) afirma o quanto é importante à qualidade das experiências reais, o acúmulo delas, no sentido de favorecer a imaginação. Criar o novo significa recombinar o que existe em novas configurações. Portanto, as experiências vividas e o universo conhecido são fundamentais como “matérias-primas” por meio das quais a atividade combinadora poderá agir. Assim, é fundamental entendermos o lugar criativo e potencializador de autonomia que tem o brincar na vida da criança, favorecendo as experiências nas quais elas possam transformar-se em diversos personagens, modificar a função das coisas, criar o novo a partir da sua relação com o que já existe, recriando significados cristalizados. Também é muito importante abrirmos espaço para o contato com o que existem, as produções culturais dos nossos tempos, a partir das quais as crianças terão elementos para criar as suas. Na brincadeira, há produção de significados, mais do que submissão às regras. O objeto-brinquedo funciona como possibilidade representativa, modificando-se pelo impacto do significado que a criança dá a ele, ganha função de signo (inclusive, independentemente do movimento que é possível fazer sobre ele – aos poucos, qualquer objeto torna-se qualquer coisa). É exatamente o desenvolvimento do ato de significar que nos permite dizer que a brincadeira prenuncia a conquista da linguagem escrita. Assim como o ato de brincar, o ato de escrever é uma possibilidade de criar sentidos sobre o mundo. A construção de significados no desenho e na escrita Na reflexão a respeito do que leva as crianças a escrever, é fundamental pensarmos no papel do gesto. Nas palavras de Vygotsky: “os gestos são a 31 escrita no ar e signos escritos são gestos que foram fixados” (1989, p. 121). Os gestos podem ser entendidos como origem dos signos escritos por várias razões. Primeiramente, constatamos que as primeiras escritas pictográficas (inscrições gráficas dos homens primitivos no interior das cavernas) eram indicações dos objetos ou movimentos a serem representados. Por exemplo, o desenho de um dedo indicador em posição, para indicar o gesto de indicação. Além disso, como já vimos, a utilização dos objetos como brinquedos, inicialmente, está ligada aos gestos e movimentos que são possíveis com esses objetos (por exemplo, para transformar algo em um bebê que será ninado, é importante que o objeto possa ser colocado no colo e balançado, como uma trouxa de roupa ou uma almofada). Por fim, são nos rabiscos das crianças que podemos observar uma importante ligação entre os gestos, os movimentos corporais e os primeiros atos representativos no papel. As crianças pequenas marcam na superfície onde desenham os movimentos que desejam representar. Geralmente, apoiam o lápis sobre o papel e vão falando e fazendo com o corpo uma história que vai sendo ao mesmo tempo marcada. Por exemplo, podem ir dizendo “a borboleta 32 subiu, subiu” (enquanto fazem linhas espirais em direção ao alto do papel) e “depois caiu lá do alto” (fazendo um forte risco para baixo). O traço indica o movimento. No desenho (da mesma maneira que no brinquedo, como já vimos), o significado está colado no gesto, a princípio. Está ligado ao imediato, ao presente, ao que se produz no curso de uma ação. O significado independente do gesto, só acontece mais tarde, quando a criança diz o que vai desenhar, nomeia o que vai fazer, e só depois desenha. Ela planeja e antecipa o que vai produzir. O desenho, então, ganha status de representação. Esse momento é parecido com o que acontece com a escrita, na qual a criança vai pouco a pouco se deslocando da designação das coisas para a representação da fala. Quando desenha, a criança não representa o que vê, mas o que conhece do mundo. Isso fica evidente na forma de raio X que seus desenhos apresentam. Se quer desenhar alguém em um carro, a criança pode desenhá- lo com as pernas aparecendo dentro do veículo. Os desenhos das crianças designam o mundo mais do que o representam de forma fidedigna. Por outro lado, é importante notar que o desenho, enquanto uma linguagem gráfica, surge tendo como base a linguagem verbal. Geralmente, a criança movimenta-se, marca o movimento no papel e fala o que está fazendo, ao mesmo tempo. Como já dissemos,o desenho ganha a qualidade de uma representação quando a criança começa a dizer o que vai fazer antes de desenhar. A nomeação independente da ação e da fala no curso da ação marca um salto no sentido da possibilidade de representar o mundo no desenho. No caso da escrita acontece um processo semelhante. Inicialmente, quando as crianças escrevem espontaneamente, os traços que marcam no papel estão colados nas coisas, na qualidade dos objetos. Para escrever o nome de algo grande, provavelmente colocarão muitos traços (mesmo que ainda não grafem as letras convencionais); para escrever o nome de algo pequeno, colocarão poucas letras ou traços. Aos poucos, a criança percebe 33 que a escrita relaciona-se com os sons da fala e não com os objetos da vida real. A conquista da escrita é o movimento de passagem do desenho das coisas para o desenho das palavras. No entanto, pouco a pouco, as crianças deixam de precisar pensar na correspondência entre som e grafia a cada palavra que vão escrever. Isso se torna “automático” e a dimensão significativa, a produção de um conteúdo na escrita toma lugar central. De qualquer maneira, mesmo quando as crianças estão descobrindo que as letras representam os sons, é importante lidar com a escrita no cotidiano como ato de significar. Essa é sua qualidade fundamental. De acordo com Vygotsky (1989), o contato com a escrita deve ser vivido como uma necessidade da criança e não como atividade mecânica. Trata-se de abrir oportunidades para experiência da representação como construção de significados no campo da escrita (escrever bilhetes, cartas, um livro, o nome num trabalho, ou seja, uso da escrita em situações de necessidade real). O autor propõe que a escrita deve ter significado para as crianças, [...] uma necessidade intrínseca deve ser despertada nelas e a escrita deve ser incorporada a uma tarefa necessária e relevante para a vida. Só então podemos estar certos de que ela se desenvolverá não como hábito de mãos e dedos, mas como uma nova e complexa forma de linguagem [...] o que se deve fazer é ensinar às crianças a linguagem escrita e não apenas a escrita das letras. (VYGOTSKY, 1989, p. 133) Relações entre a brincadeira, o desenho e a escrita na Educação Infantil No cotidiano da Educação Infantil, presentifica-se a necessidade de lidarmos com a dimensão técnica da escrita, o que diz respeito à produção de formas (das letras), mas, especialmente, é importante lidarmos com sua significação. Na verdade, trata-se de pensarmos na qualidade das experiências com a 34 linguagem que produzimos no dia a dia com as crianças, entendendo não só a escrita como linguagem, mas o desenho e a brincadeira também. A princípio, é preciso compreender a experiência com o desenho e com a brincadeira como produção de significados que prenunciam o processo vivido no âmbito da linguagem escrita. Geralmente, a brincadeira é vivida como o tempo livre da criança, sem a presença e o olhar atento do professor. No entanto, se entendemos o brincar como ato de significação e criação, torna-se necessário potencializá-lo. Por exemplo, se percebemos que as crianças brincam de cachorro e dono (um assume a função de dono e o outro de cachorro), podemos favorecer a presença de objetos que possam ser as coleiras ou as comidas, ou podemos sugerir enredos (onde os cachorros vão passear?), ou uma pesquisa que amplie o conhecimento das crianças (quais tipos de cachorro existem?). Possibilitar a presença de objetos que possam se transformar em outras coisas é sempre uma perspectiva interessante para a prática. Objetos tais como panos, almofadas, pedaços de madeira, caixas de papelão, quando organizados de modo sugestivo, sugerem uma série de brincadeiras. Do ponto de vista do trabalho com o desenho, é fundamental valorizá-lo na sua força expressiva. Quando a criança faz e fala enquanto produz suas formas, seu movimento produtivo intensifica-se se há interlocutores, outras pessoas que escutem, mesmo que elas não falem diretamente para essas pessoas. Colocar-se ao lado, mostrar interesse, observar o caminho dos “rabiscos” é uma postura in- teressante do professor. Por outro lado, quando a criança começa a nomear, antecipar e planejar o que vai desenhar, é importante que haja espaço para contar o que fez depois de acabado, ou para planejar com um amigo um desenho coletivo. Desenhar uma história contada antes, ou contar uma história que desenhamos permite que se possa experimentar a relação entre linguagem verbal e linguagem gráfica. O desenho condensa significados e ao mesmo tempo permite que sejam guardados e retomados posteriormente (funcionam como apoio à 35 memória), de forma semelhante ao que a escrita vai fazer também. Ao mesmo tempo, o desenho lida com símbolos subjetivos, enquanto a escrita vai possibilitar a produção de significados na inte- ração com símbolos arbitrários. À medida que tem no seu dia a dia espaço garantido para a brincadeira, a possibilidade de transformar objetos em brinquedos, além de espaço para o desenho como produção de significados, memória coletiva, forma de contar histórias, registrar o vivido, a criança vai podendo aproximar-se da escrita e experimentá-la também como expressão de vida, outra forma de expor-se e marcar seus desejos e ideias no mundo. Assim, pode aparecer a escrita no cotidiano na produção de um convite de aniversário de alguém, na construção de uma carta para um amigo que viajou, na produção de histórias (sempre tão adoradas!) e em tantas outras ocasiões em que se torne de fato necessária e relevante. Vejamos a poesia do educador italiano Loris Malaguzzi a respeito das possibilidades da linguagem da criança e da operação de subtração que a escola produz quando valoriza somente a escrita como fundamental: As cem existem! Loris Malaguzzi A criança é feita de cem. A criança tem cem mãos cem pensamentos cem modos de pensar de jogar e de falar. Cem sempre 36 cem modos de escutar, as maravilhas de amar. Cem alegrias para cantar e compreender. Cem mundos para descobrir. Cem mundos para inventar. Cem mundos para sonhar. A criança tem cem linguagens (e depois cem cem cem), mas roubaram-lhe noventa e nove. A escola e a cultura lhe separam a cabeça do corpo. Dizem-lhe: De descobrir o mundo que já existe E de cem Roubaram-lhe noventa e nove Dizem-lhe: Que o jogo e o trabalho, A realidade e a fantasia, A ciência e a imaginação, O céu e a terra, A razão e o sonho, são coisas que não andam juntas. 37 Dizem-lhe que as cem não existem A criança diz: Ao contrário, as cem existem. Assim, juntamente com o autor italiano, podemos dizer que é importante valorizarmos a construção de significados pela criança, em todas as suas linguagens, que são múltiplas e diversas: a modelagem, o desenho, a produção com sucata, a dramatização etc. A escola e a educação, quando valorizam sobremaneira a escrita, acabam destituindo a criança de suas formas mais genuínas de expressão. Aprender a ler e escrever é integrar mais recursos a todos os outros que já temos, na busca de interpretar o mundo e recriá-lo! DICAS DE ESTUDO Sugiro a leitura do livro As Cem Linguagens da Criança, de Carolyn Edwards et al. 38 Linguagem e gêneros discursivos: questões para a Educação Infantil A língua penetra na vida através dos enunciados concretos que a realizam, e é também através dos enunciados concretos que a vida penetra na língua. Mikail Bakhtin Considerações iniciais Este texto parte da relação recíproca entre linguagem e vida anunciada por Bakhtin e das consequências desse pressuposto para a ação pedagógica na Educação Infantil. Em outras palavras, a compreensão da linguagem enquanto espaço de enunciaçãoque se realiza numa situação comunicativa concreta – portanto inserida num território comum de pessoas em interação, o qual engloba os ditos e também os não ditos, o verbal e o extraverbal – têm consequências para o trabalho pedagógico pelo entendimento de que qualquer atividade de e com a linguagem não pode ser descontextualizada. Linguagem e vida se atravessam mutuamente. As esferas da vida são espaços de produção de linguagem, e cada enunciação atualiza-se num determinado tempo e espaço em que a vida circula. Inicialmente, discuto a concepção de linguagem e de gêneros do discurso a partir de algumas questões levantadas pelo linguista e filósofo da linguagem Mikail Bakhtin (1992a, 1992b), e depois trago algumas reflexões para se pensar a leitura e a escrita na Educação Infantil. Linguagem como espaço de interação humana Bakhtin e seus colaboradores elaboraram uma teoria enunciativo- discursiva da linguagem. Para o autor, o produto da fala – a enunciação – é de natureza social. A fala se dirige, isto é, parte de alguém, numa dada situação e tem como intenção chegar a outro sujeito. Nesse processo é preciso que locutor e ouvinte, falantes de uma mesma língua, estejam integrados a uma situação e com lugares sociais definidos, pois não há interlocutor abstrato. Nas 39 palavras do autor: Assim como, para observar o processo de combustão, convém colocar o corpo no meio atmosférico, da mesma forma, para observar o fenômeno da linguagem, é preciso situar os sujeito – emissor e receptor do som –, bem como o próprio som, no meio social em situações de troca social. Com efeito, é indispensável que locutor e ouvinte pertençam à mesma comunidade linguística, a uma sociedade claramente organizada. E mais, é indispensável que esses dois indivíduos estejam integrados na unicidade da situação social imediata, quer dizer, que tenham uma relação de pessoa para pessoa num terreno bem definido. (BAKHTIN, 1992, p. 70) A linguagem supõe uma situação de troca social. São sujeitos em interação que produzem enunciados concretos que, por sua vez, são determinados pelas condições reais de enunciação – a situação social mais imediata, incluindo os gestos, a entoação, vontades, afetos, ditos e não ditos – e também o horizonte social definido – o contexto social mais amplo responsável pela criação ideológica de um grupo social, numa determinada época. O enunciado é de “natureza constitutivamente social, histórica e, por isso, liga-se a enunciações anteriores e a enunciações posteriores produzindo e fazendo circular discursos” (BRAIT, 2005, p. 68). A linguagem também constitui a consciência porque permite pensar as ações e a si própria e só é possível graças ao auditório social que existe dentro e fora de cada um. Para Bakhtin, “o mundo interior e a reflexão de cada indivíduo têm um auditório social próprio bem estabelecido em cuja atmosfera se constroem suas deduções interiores, suas motivações, apreciações etc.” (1992, p. 112). São muitas as vozes que vão constituindo a consciência do sujeito. No processo interativo, a palavra do outro vai sendo internalizada tornando-se, gradativamente, a palavra própria do sujeito. Por sua vez, os enunciados se dirigem e os sujeitos em interação podem falar de muitos lugares, assumindo vozes distintas. A linguagem é polifônica porque se abre à possibilidade de diferentes vozes se colocarem em relação mútua, e porque toda compreensão é 40 uma réplica – na relação entre as diferentes vozes se instaura o dialogismo. A linguagem é também dialógica. A palavra, por sua vez, por ser um acontecimento que se atualiza em cada enunciação, comporta muitos sentidos: O sentido da palavra é totalmente determinado pelo seu contexto. Há tantas significações possíveis quantos contextos possíveis. No entanto, nem por isso a palavra deixa de ser una. Ela não se desagrega em tantas palavras quantos forem os contextos nos quais ela pode se inserir. (BAKHTIN, 1992, p. 106) Para Bakhtin, a polissemia da palavra vai para além dos significados dicionarizáveis, que dão uma unicidade à palavra e permitem que falantes de uma mesma língua partilhem uma comunidade linguística. São os contextos de enunciação que abrem a palavra à produção de sentido. Uma mesma palavra pronunciada em contextos diferentes ganha sentido diferente dependendo da situação, dos interlocutores, do acento apreciativo, do tom de voz, do gestual etc. Locutor e ouvinte articulam seus discursos conforme os desejos, as intenções, o conteúdo, o interlocutor, as situações. As relações interativas produzem discursos. Bakhtin, analisando a polifonia e o dialogismo no romance, dá uma outra versão ao quadro tipológico das criações literárias introduzindo o conceito de gênero discursivo que será abordado a seguir. Gêneros do discurso Todas as esferas da atividade humana, por mais variadas que sejam, estão sempre relacionadas com a utilização da língua. Não é de se surpreender que o caráter e os modos dessa utilização sejam tão variados como as próprias esferas da atividade humana. [...] Qualquer enunciado considerado isoladamente é, claro, individual, mas cada esfera de utilização da língua elabora seus tipos relativamente estáveis de enunciados, sendo isso que denominamos gêneros do discurso. [...] A riqueza e a variedade dos gêneros do discurso são infinitas, 41 pois a variedade virtual da atividade humana é inesgotável, e cada esfera dessa atividade comporta um repertório de gêneros do discurso que vai diferenciando-se e ampliando-se à medida que a própria esfera se desenvolve e fica mais complexa. (BAKHTIN, 1992, p. 278-279) Sujeitos em interação verbal, nas suas diferentes esferas de atividades produzem discursos também variados. Uma esfera caracteriza-se por ser um espaço social de experiências partilhadas que definem tipos relativamente estáveis de enunciados: os gêneros do discurso. Estes, por sua vez, se caracterizam pelo conteúdo temático, estilo da linguagem e construção composicional. No processo de interação verbal, o sujeito escolhe um gênero – o possível entre os que ele conhece – para atingir a sua intenção comunicativa. O sujeito não cria o gênero: eles são dados pelo contexto social e são escolhidos e utilizados conforme as necessidades da temática, o conjunto de participantes e as intenções comunicativas. O gênero é prescritivo, o sujeito não o cria. Mesmo considerando o caráter criativo dos enunciados, eles não são combinações inteiramente livres dos elementos da língua. O gênero é organizador das enunciações porque já tem minimamente definidos o tratamento do conteúdo; o tratamento comunicativo e o tratamento linguístico. “Falamos em gêneros e aprender a falar é aprender a estruturar enunciados e a pressentir o gênero na fala do outro, desde as primeiras falas ouvidas” (AMO- RIM, 2001, p. 112). No processo de socialização, as crianças vão ampliando progressivamente as suas esferas sociais e, consequentemente, vão tendo a oportunidade de ir se apropriando dos discursos que circulam em cada uma. Na medida em que fazem uso dos diferentes gêneros, respondendo às demandas sociais, muitas ampliações poderão se suceder. O maior ou menor grau de familiaridade com interlocutores e com a temática, a maior ou menor contextualização, a complexidade da temática, a extensão dos textos etc., tudo isso vai determinar as ampliações. Nesse sentido, a escola, como esfera social na qual circula inúmeros textos, se constitui como um importante lugar de produção, recepção e ampliação discursivas. 42 Cabe ressaltar que o conceito bakhtiniano de gênero discursivo permite uma extensão às formações discursivas não restritas à palavra falada ou impressa, o que abre essa compreensão a outras linguagens e codificações, à pluralidade de sistemas de signos da cultura e também ao hibridismo de gêneros.É minha intenção nesse texto, porém, abordar os gêneros produzidos em situações de uso da linguagem oral e da linguagem escrita, como veremos a seguir. Gêneros primários e gêneros secundários Bakhtin distingue gêneros primários – que “se constituíram em circunstâncias de uma comunicação verbal espontânea” – e gêneros secundários – que “aparecem em circunstâncias de uma comunicação cultural, mais complexa e re- lativamente mais evoluída, principalmente escrita artística, científica, sociopolítica“ (1992, p. 281). No seu processo e formação, os gêneros secundários absorvem e transmutam os gêneros primários que, por sua vez, ao se tornarem componentes dos gêneros secundários, transformam-se também. Vejamos a seguir um trecho da história da Branca de Neve, dos irmãos Grimm como exemplo dessa transmutação: Há muito tempo, num reino distante, viviam um rei, uma rainha e sua filhinha, a princesa Branca de Neve. Sua pele era branca como a neve, os lábios vermelhos como o sangue e os cabelos pretos como o ébano. Um dia, a rainha ficou muito doente e morreu. O rei, sentindo- se muito sozinho, casou-se novamente. O que ninguém sabia é que a nova rainha era uma feiticeira cruel, invejosa e muito vaidosa. Ela possuía um espelho mágico para o qual perguntava todos os dias: •Espelho, espelho meu! Há no mundo alguém mais bela do que eu? •És a mais bela de todas as mulheres, minha rainha! – respondia ele. 43 Nesse pequeno trecho é possível observar, por exemplo, a forma condensada como o relato escrito enumera os personagens e suas características, como ocorre o emprego dos pronomes (sentindo-se, para o qual), como a fala do narrador se sucede à do personagem e, especialmente, como o diálogo das personagens é bem distinto de uma conversa do cotidiano. O discurso direto nessa história não é uma transcrição de um diálogo, ele é uma elaboração da linguagem escrita, com a presença de rima (meu-eu) tratamento literário dado ao vocativo (espelho, espelho meu!), entre outros. Um outro exemplo são as cenas do filme Central do Brasil, de Walter Salles, em que os adultos analfabetos ditam cartas para a personagem Dora escrever. Ao ditarem, aquelas pessoas fazem uso de estrutura textual típica do gênero epistolar. Para ditar as cartas, o locutor elabora o seu discurso para ser escrito: as cartas apresentam uma saudação ao remetente, logo após anunciam as intenções do locutor, as informações e notícias que querem dar ao leitor e fazem perguntas ao interlocutor com a mesma intenção comunicativa, depois fecham com a despedida e a assinatura. Algumas chegam a usar expressões só empregadas na escrita como venho por meio desta. O fato das cartas serem oralizadas não destitui os textos das transmutações feitas aos diálogos cotidianos para se tornarem uma comunicação escrita. Para Bakhtin, não se pode entender a natureza dos enunciados sem se levar em conta as inter-relações entre os gêneros primário e o secundário. Numa sociedade letrada, os gêneros secundários perpassam a oralidade e vice-versa; há uma influência recíproca pela circularidade entre as diferentes manifestações culturais e discursivas. Textos escritos são oralizados e textos tipicamente orais são transpostos para a escrita. Oralidade e escrita se interrelacionam e são até mesmo indissociáveis na sociedade grafocêntrica. Embora gêneros primários e secundários sofram influências mútuas, podemos pensar em características de cada um e fazer comparações entre eles. Vejamos algumas: 44 Características dos gêneros Gêneros primários Gêneros secundários Controlados diretamente pela situação. Mantém uma certa autonomia em relação ao contexto imediato. A regulação se dá na e pela própria ação de linguagem. O contexto é linguisticamente criado pelo texto exigindo a criação de instrumentos linguísticos reguladores – regras convencionadas – que garantam a coerência interna do texto. Acontecem no nível real com o qual a criança é confrontada nas múltiplas práticas de linguagem cotidiana. Acontecem no nível linguístico. Exigem um maior ou menor grau de explicitação, de formalidade, de planejamento do discurso. Acontecem na comunicação verbal espontânea. São formações complexas porque é elaborações da comunicação cultural organizada em sistemas específicos, como a arte, a filosofia, a ciência, a política. Cabe sempre lembrar que os gêneros discursivos estão vinculados a enunciados concretos que se manifestam nas interações sociais. São as possibilidades de uso da língua – seja oral ou escrita – que vai permitir a diferenciação e a apropriação dos diferentes gêneros. Ou seja, é no interior das práticas sociais, contextualizados e exercendo funções enunciativas, que os diferentes gêneros se colocam aos sujeitos. Na medida em que as esferas sociais se alargam, também aumentam a demanda por produção e recepção de discursos. Nesse processo há diferenças entre as possibilidades de circulação das crianças, seja pelos limites e possibilidades de cada faixa etária, seja pelo acesso às diferentes manifestações culturais e seu grau de elaboração, bem como das práticas discursivas que as acompanham. 45 Educação Infantil: textos, suportes, contextos e práticas dos gêneros discursivos Os enunciados das crianças (orais e escritos) são formas concretas de realização da língua e, simultaneamente, a vida que atravessa a língua. As condições, situações, práticas, usos, funções e significações da linguagem escrita são contextuais, se modificam historicamente e se colocam de forma diferente para cada sujeito e seu grupo. As interações com enunciados de discursos de diferentes naturezas possibilitam apropriações também diversas. É a participação da criança em situações de utilização da língua que vai permitir a apropriação e o uso. É no contato da criança com a língua escrita que elas vão estabelecendo relações e observando que as diferenças entre as línguas oral e escrita dizem respeito às condições de produção do discurso como, por exemplo, de que a comunicação oral acontece no imediato e local enquanto a escrita permanece no tempo, ganha outros espaços e tem regras convencionadas, o contexto da enunciação determina o grau de explicitação textual, mas, por sua vez, o nível de formalidade vai exigir um maior ou menor planejamento do que se diz etc. Mesmo estando imersas na cultura letrada, o domínio da escrita – um sistema cultural complexo – depende dos processos de interação e da mediação de outros indivíduos, o que incluiu a própria intervenção pedagógica. As crianças levantam inúmeras hipóteses sobre esse elemento da cultura e é na troca com pessoas mais experientes e que detêm maior conhecimento do que elas sobre a língua escrita que vão podendo obter informações, questionar suas hipóteses, reformulá-las, buscar soluções, entender e usar regras e convenções etc. Cabem então algumas questões para se pensar um trabalho de leitura e escrita em Educação Infantil: em quais esferas sociais as crianças circulam? Que gêneros discursivos primários e secundários estão presentes nessas esferas? Quais os que não fazem parte, mas que podem passar a fazer? Que situações comunicativas reais podem favorecer a apropriação de diferentes gêneros discursivos? Que textos interessam as crianças? Como eles se tornam espaços de interação verbal? 46 Além dessas questões é importante que desde a Educação Infantil haja uma reflexão sobre o lugar da escola no processo de produção, recepção e apropriação de gêneros discursivos. Pois na escola os textos não têm apenas a função enunciativa, mas são também objetos de aprendizagem. Além dos gêneros produzidos na esfera escolar – listas de materiais e de atividades, enunciados de atividades, definições, textos de diferentes áreas de conhecimento, livro didático, boletins e
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