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1 Bruno Herberts Sehnem – ATM 2023/2 Anestesiologia ANESTESIA CONDUTIVA Introdução: A anestesia condutiva compreende 3 tipos diferentes de anestesia. São eles: - Anestesia epidural ou peridural. - Anestesia raquimedular. - Anestesia local. A anestesia condutiva caracteriza-se por bloqueio isolado ou combinado de fibras nervosas autônomas simpáticas, sensitivas e motoras. A anestesia condutiva pode ser utilizada tanto para o transoperatório quanto para a analgesia pós-operatória. O bloqueio raquimedular necessita de pequena quantidade de anestésico local e produz analgesia sensitiva rápida, profunda, reprodutível e finita. O bloqueio epidural ou peridural necessita de maior quantidade de anestésico local e produz analgesia sensitiva de início mais lento, duração prolongada e efeitos adversos sistêmicos. A anestesias com bloqueio do neuroeixo (condutivas) são amplamente utilizadas na cirurgia, na obstetrícia, na analgesia da dor pós-operatória e na analgesia da dor crônica. Anestésicos Locais: O anestésico local é uma substância que bloqueia a condução do estímulo nervoso de forma reversível, de forma que seu uso é seguido de recuperação completa da função do nervo. O anestésico local produz perda transitória da função autônoma, sensitiva e motora em determinada região do corpo. Os principais anestésicos locais apresentam estrutura química derivada de amidas e de ésteres. Os anestésicos derivados de amidas são metabolizados no fígado por meio do sistema de microssomal hepático (citocromo P450). Os principais exemplos são lidocaína, bupivacaína, prilocaína e ropivacaína. Os anestésicos derivados de ésteres são metabolizados no plasma sanguíneo por meio das enzimas esterases plasmáticas (pseudolinesterases). Os principais exemplos são benzocaína, procaína e tetracaína. Anestésico pKa Lipossolubilidade Ligação Proteica Duração de Ação Dose Lidocaína 7,6 ++ 64% 120 min 7 mg/kg Bupivacaína 8,1 ++++ 97% 180 min 2 mg/kg Ropivacaína 8,0 ++++ 96% 150 min 3 mg/kg Os anestésicos locais são bases fracas que apresentam uma porção da molécula de natureza hidrofílica, que é ionizada no organismo, sofrendo influência do pH do meio, e outra porção da molécula de natureza lipofílica que não é ionizada. A porção ionizada do anestésico local inibe canais de sódio na superfície celular do neurônio, resultando em diminuição da entrada de sódio no meio intracelular, da despolarização celular e, consequentemente, da condução do estímulo nervoso do SNP para o SNC. O pKa representa o pH necessário para o início da ação do anestésico local. Assim, quanto mais próximo o valor do pKa do anestésico local ao valor do pH do meio, mais rápido é o início de ação da droga. A lipossolubilidade do anestésico local está diretamente relacionada à sua potência e, consequentemente, à sua toxicidade, visto que quanto maior a lipossolubilidade da droga, maior a sua facilidade de atravessar a membrana plasmática e alcançar o meio intracelular, mas também maior a sua toxicidade quando for administrada em altas doses, devido ao prolongado tempo necessário para sua eliminação do organismo. A capacidade de ligação proteica do anestésico local está diretamente associada à duração de ação da droga. Assim, quanto maior a ligação do anestésico local às proteínas plasmáticas circulantes, menor a eliminação da droga do organismo e maior a duração de sua ação. O tempo necessário para o início do bloqueio do nervo e para a recuperação do bloqueio do nervo depende do tipo de fibra nervosa que se deseja bloquear, ou seja, do diâmetro e do grau de mielinização da fibra nervosa exposta ao anestésico local. Assim, quanto maior o diâmetro e quanto maior a 2 Bruno Herberts Sehnem – ATM 2023/2 mielinização da fibra nervosa, maior a dose de anestésico e/ou maior o tempo necessário para produzir o seu bloqueio. A absorção do anestésico depende da dose administrada, das propriedades físico- químicas específicas da droga, do local de administração da droga (endovenoso > endotraqueal > espaço intercostal > epidural ou peridural > plexo braquial > espaço subaracnóideo > subcutâneo). A distribuição da droga depende da perfusão sanguínea de cada tecido, da lipossolubilidade do anestésico, do grau de ligação às proteínas do plasma sanguíneo e do tipo amida (os anestésicos locais derivados de amidas apresentam maior distribuição). Quando há intoxicação por anestésicos locais, as principais manifestações clínicas são: - Sonolência. - Parestesias na boca e na língua. - Alucinações auditivas. - Espasmos musculares. - Convulsões. - Coma. - PCR. Nos casos de intoxicação por anestésicos locais, deve-se fornecer tratamento com medidas de suporte. As principais medidas de suporte são: - Oxigênio (O2). - Ventilação mecânica invasiva ou não invasiva. - Sedativos. - Drogas vasoativas. - Antiarrítmicos. - Cardioversão. - Emulsão lipídica. Além da intoxicação, também pode haver o desenvolvimento de reações alérgicas aos anestésicos locais. As reações alérgicas são mais comuns em resposta a anestésicos derivados de ésteres. Anatomia da Medula Espinhal e do Canal Vertebral: A medula espinhal é uma estrutura pertencente ao SNC que se estende de forma contínua desde o forame magno (transição entre tronco encefálico e medula espinhal) até a borda inferior da vértebra L1 em adultos. A medula espinhal localiza-se no interior do canal vertebral, sendo protegida pela estrutura óssea da coluna vertebral. Além da coluna vertebral, a medula espinhal também é envolvida por 3 membranas ou meninges. 3 Bruno Herberts Sehnem – ATM 2023/2 As meninges que envolvem a medula espinhal, da mais interna para a mais externa, são pia-máter, aracnoide-máter e dura-máter. O espaço existente entre as meninges aracnoide-máter e pia-máter é denominado espaço subaracnóideo ou intratecal, sendo preenchido por líquido cefalorraquidiano (LCR) ou líquor. O espaço existente entre a meninge dura-máter e a coluna vertebral, sendo delimitado posteriormente pelo ligamento amarelo, é denominado espaço epidural ou peridural. O espaço epidural contém raízes nervosas, gordura, tecido areolar, vasos sanguíneos e vasos linfáticos. O ligamento amarelo, que se estende desde o forame magno até o sacro, é a estrutura que envolve o espaço epidural ou peridural posteriormente. Posteriormente ao ligamento amarelo, localizam-se os ligamentos interespinhosos, que articulam os processos espinhosos das vértebras entre si, e, posteriormente aos ligamentos interespinhosos, localiza-se o ligamento supraespinhoso, que se estende desde a protuberância occipital externa até o cóccix ligando-se aos processos espinhosos das vértebras. A medula espinhal localiza-se no interior do canal vertebral, cujo diâmetro varia quanto ao nível da coluna vertebral, sendo maior na coluna lombar e menor na coluna torácica. Os nervos espinhais são formados por raízes nervosas dorsais (aferentes) e raízes nervosas ventrais (eferentes). As raízes nervosas dorsais e as raízes nervosas ventrais fundem-se distalmente ao gânglio da raiz dorsal para formar os nervos espinhais que, em seguida, dividem-se novamente em ramo eferente (motor) e ramo aferente (sensitivo). As meninges dura- máter, aracnoide-máter e pia-máter, à medida que envolvem os nervos espinhais, transformam-se respectivamente em epineuro, perineuro e endoneuro. As fibras nervosas autônomas simpáticas têm origem das raízes nervosas ventrais entre T1 e L2. Os sítios de ligação alvo do anestésico local estão localizados na medula espinhal e nas raízes nervosas espinhais dos espaços subaracnóideo e epidural/peridural. Os nervos do espaço subaracnóideo são extremamente acessíveis e facilmente anestesiados mesmo com baixas doses de anestésico local, já os nervos do espaço epidural/peridural necessitam de doses maioresde anestésico local, visto que são mais resistentes ao bloqueio. Os principais referenciais anatômicos, que auxiliam na realização da punção lombar para a aplicação do anestésico local na anestesia epidural/peridural e raquimedular, são: - C7: proeminente na base cervical posterior. - T3: espinha da escápula. - T7: borda inferior da escápula. - L4: borda superior da crista ilíaca. - S2: espinha ilíaca posterossuperior. 4 Bruno Herberts Sehnem – ATM 2023/2 Bloqueios epidural/peridural e raquimedular: Os bloqueios epidural/peridural e raquimedular caracterizam-se por interrupção da condução do impulso nervoso por meio da administração de anestésico local próximo às fibras nervosas da medula espinhal de forma temporária e reversível. As principais vantagens da anestesia condutiva em relação à anestesia geral são: - Menor alteração do nível de consciência e confusão mental. - Maior analgesia pós-operatória. - Menor interferência na função cardiovascular e na função pulmonar. - Menor risco de sangramentos. - Menor incidência de TEP. - Menor resposta endócrino-metabólica ao trauma. Os principais efeitos fisiológicos das anestesias epidural/peridural e raquimedular são: - Efeitos Cardiovasculares: → Bloqueio de fibras do sistema nervoso simpático, resultando em diminuição da atividade simpática e em atividade parassimpática livre. → Vasodilatação arterial e venosa, redução da resistência vascular sistêmica, do retorno venoso e do débito cardíaco. → Reflexo de Bezold-Jarisch: bradicardia e hipotensão arterial. → Bradicardia: mais comum em jovens do sexo masculino, ASA I e com nível de bloqueio sensitivo > T7; o tratamento baseia- se na administração de atropina, adrenalina, noradrenalina e/ou volume. → Hipotensão arterial: mais comum em mulheres com idade > 45 anos e com nível de bloqueio sensitivo > T7; o tratamento baseia-se na administração de efedrina, fenilefrina, noradrenalina e/ou volume. - Efeitos Respiratórios: → Redução da capacidade vital relacionada à paralisia dos músculos abdominais. → Efeitos mais significativos em pacientes obesos ou com doença respiratória grave. - Efeitos no SNC: → Diminuição do fluxo sanguíneo cerebral, principalmente em idosos e em pacientes com hipotensão arterial preexistente. - Efeitos Gastrointestinais: → Aumento do peristaltismo do TGI. → Náuseas e vômitos. A anestesia raquimedular ou raquianestesia baseia-se na administração de anestésico local no espaço subaracnóideo, no líquido cefalorraquidiano. A raquianestesia tem início de ação rápido e produz bloqueio motor e sensitivo profundos. As principais vantagens da anestesia raquimedular são a facilidade de execução, o rápido início de ação, o baixo risco de sangramento, o bloqueio motor, a analgesia pós-operatória, o relaxamento abdominal e o tratamento da dor aguda. A raquianestesia está indicada em procedimentos diagnósticos e cirúrgicos de membros inferiores e abdômen inferior, podendo ser utilizada em todas as faixas etárias, inclusive em crianças com via aérea difícil e em neonatos, devido ao risco de apneia após anestesia geral principalmente 5 Bruno Herberts Sehnem – ATM 2023/2 em prematuros. A anestesia raquimedular é muito utilizada em cirurgias de hérnias e de membros inferiores. A raquianestesia é a técnica de escolha na obstetrícia para a realização de cesarianas. A analgesia raquimedular com uso de opioides também é muito utilizada na prática clínica, principalmente para tratamento da dor aguda pós-operatória, pois possibilita deambulação precoce e recuperação mais rápida do procedimento cirúrgico. Ao realizar a punção lombar para a aplicação da anestesia raquimedular, o paciente deve estar sentado ou posicionado em decúbito lateral. A agulha geralmente é inserida no espaço intervertebral entre L2-L3, L3-L4 ou L4-L5 atravessando pele, tecido celular subcutâneo, ligamento supraespinhoso, ligamento interespinhoso, ligamento amarelo e, finalmente, dura-máter, quando percebe- se um “clique”. Neste momento, o mandril da agulha é removido e deve-se observar a saída de líquido cefalorraquidiano (LCR). Após a confirmação do fluxo livre de LCR, a dose do anestésico local é injetada. A anestesia epidural ou peridural baseia-se na administração de anestésico local no espaço peridural, podendo ser realizada nos níveis cervicais, torácicos e lombares. A anestesia peridural no nível sacral é denominada bloqueio caudal. A anestesia epidural tem início de ação mais lento e produz bloqueio motor menos profundo que a anestesia raquimedular. Esta técnica é muito utilizada associada à passagem de cateter peridural para analgesia perioperatória (intraoperatória + pós- operatória). A anestesia peridural é indicada para anestesia cirúrgica, analgesia obstétrica e controle da dor aguda e crônica. A anestesia peridural, associada ou não à sedação, pode ser utilizada como técnica única ou combinada à anestesia geral. Assim, a anestesia epidural é muito utilizada em cirurgias de membros inferiores, pelve e períneo, abdômen e até mesmo tórax, uma vez que o bloqueio da condução nervosa pode ser realizada em nervos espinhais a qualquer nível da medula espinhal (cervical, torácico, lombar ou sacral). Para a analgesia pós-operatória e o tratamento de síndromes dolorosas crônicas, pode-se utilizar cateter peridural para administração de analgésicos e anestésicos locais de forma contínua e prolongada. O uso do cateter peridural é muito utilizada para a analgesia durante o trabalho de parto. Indicações e Contraindicações: A anestesia do neuroeixo baseia-se na injeção de anestésicos locais nos espaços subaracnóideo (bloqueio raquimedular) ou epidural (bloqueio epidural ou peridural). As principais indicações desta modalidade de anestesia são: - Anestesia epidural/peridural: procedimentos com qualquer duração que envolvam abdômen inferior, pelve ou períneo e extremidades inferiores. - Anestesia raquimedular: procedimentos com duração conhecida que envolvam abdômen inferior, pelve ou períneo e extremidades inferiores, desejo do paciente de permanecer acordado durante a cirurgia e/ou presença de comorbidades que aumentam os riscos da anestesia geral. A analgesia do neuroeixo baseia-se na injeção de anestésicos locais e analgésicos opioides nos espaços subaracnóideo (analgesia raquimedular) ou epidural (analgesia epidural ou peridural). Esta modalidade de analgesia tem sido cada vez mais utilizada atualmente e as principais indicações são: - Analgesia intraoperatória. - Analgesia pós-operatória. - Analgesia de pacientes com dor crônica intensa. As contraindicações absolutas à realização da anestesia condutiva são: - Recusa do paciente. - Infecção local. - Alergia a alguma das drogas. - Hipertensão intracraniana. - Anormalidades anatômicas. - Distúrbios da coagulação ou alto risco de sangramento. As contraindicações relativas à realização da anestesia condutiva são: - Infecção generalizada/sepse. 6 Bruno Herberts Sehnem – ATM 2023/2 - Incapacidade do paciente de permanecer imóvel durante a punção lombar. - Doenças neurológicas e/ou psiquiátricas. Complicações: As principais complicações associadas ao bloqueio do neuroeixo são: - Abcesso peridural: complicação rara da anestesia peridural; os principais fatores de risco são imunossupressão, administração de corticoides no espaço peridural, DM, infecções locais, sepse e cateterização do espaço peridural por período prolongado. - Hematoma peridural: complicação rara da anestesia peridural; associa-se a alguma coagulopatia não diagnosticada ou à falta de atenção do anestesista durante a avaliação pré-anestésica, que não observou o uso de anticoagulantes pelo paciente. - Injeção intravascular de anestésico local: complicação possível da anestesia peridural; como a dose de anestésico local administrada é alta,as alterações hemodinâmicas e respiratórias necessitam de intervenção imediata com suporte hemodinâmico e ventilatório. - Injeção inadvertida de anestésico local no espaço subaracnóideo: complicação possível da anestesia peridural; como a dose de anestésico local administrada é alta, as alterações hemodinâmicas e respiratórias necessitam de intervenção imediata com suporte hemodinâmico e ventilatório. - Lesão neurológica direta por agulha ou cateter: complicação comum causada por contato direto entre agulha ou cateter e tecido nervoso; a lesão geralmente não é permanente, mas pode causar dor ou parestesia em determinado dermátomo durante o procedimento cirúrgico. - Sintomas neurológicos transitórios: complicação frequente nos casos de uso de lidocaína como anestésico local; as possíveis causas são os efeitos nefrotóxicos dos anestésicos locais e o contato direto entre agulha ou cateter e tecido nervoso; caracterizam-se por dor ou disestesias após a reversão do bloqueio aracnoide ou raquimedular. - Cefaleia pós-punção aracnoide: complicação frequente da anestesia raquimedular; os principais fatores de risco são sexo feminino, gestação, maior calibre da agulha e múltiplas punções. - Aracnoidite adesiva: doença inflamatória de etiologia desconhecida; lesão induzida por substâncias químicas, quando estas são introduzidas no espaço subaracnóideo ou próximo a ele, devido a trauma mecânico ou infecção.