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CALAINHO, Daniela_Metrópole das mandingas religiosidade negra e inquisição portuguesa no Antigo Regime

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Q uando se fala em mandinga, patuá, sincretismo religioso de 
m atriz africana, a primeira lembrança que nos ocorre é a Bahia, 
São Luís do M aranhão, o Brasil, o Haiti, talvez até mesmo as 
santerías praticadas em algumas ilhas do Caribe. Quem im a­
ginaria que em plena capital do Reino de Portugal, à época da 
Inquisição, ali pululasse um grande número de mandingueiros, 
negros e mestiços, em uma época desditosa em que a Santa Madre 
Igreja e EI Rei tinham plenos poderes de prender, açoitar e até 
queimar na fogueira os rebeldes de consciência que ousassem 
praticar rituais e crenças contrários aos dogmas e costumes da 
Religião Católica Apostólica Romana!
Graças à profunda e exitosa pesquisa de Daniela Buono Calainho 
temos acesso pela primeira vez, de forma sistemática e ampla, 
aos subterrâneos das crenças populares de inspiração africana 
que proliferaram no Reino de Portugal e encantaram a tantos 
de nossos ancestrais entre os séculos XVI e XVIII.
L uiz M ott
VISITE-NOS EM 
www.garamond.com.br ISBN 978-85-7617-153-9
G
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aniela Buono Calainho 
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DANIELA BUONO CALAINHO
METRÓPOLE DAS MANDINGAS
RELIGIOSIDADE NEGRA E INQUISIÇÃO 
PORTUGUESA NO ANTIGO REGIME
http://www.garamond.com.br
É m uito bem-vindo este M etrópole das 
mandingas, cujo título, por metáfora, resu­
me a novidade da pesquisa: a demonstração 
de que os cultos e ritos africanos, m istu­
rados ao catolicismo, floresceram não só 
no Brasil, mas no próprio Portugal. Entre 
os ritos praticados pelos jambacousses, o 
mais destacado era a m andinga, melhor 
dizendo, o uso e tráfico da bolsa de m an­
dinga. O riginária do reino de Mali, região 
islamizada, a bolsa era então um saquinho 
contendo algum versículo do Alcorão. À 
m edida que o uso da bolsa se expandiu 
no espaço atlântico, foi aum entando de 
tam anho e diversificando seu conteúdo: 
lascas de pedras d ’ara, balas de chumbo, 
olho de gato, osso de defunto. Túdo para 
proteger o corpo, entre outros fins. Não 
raro continha também uns papelitos com 
orações a São Marcos. D aniela Calainho 
exam ina em detalhe o sincretismo presen­
te na m andinga e noutros ritos. Em sua 
pesquisa chegou mesmo a encontrar uma 
bolsa ao vivo, apensa a um processo da 
Inquisição. Coisa de arrepiar. A Inquisição, 
como é óbvio, perseguiu m uitos m andin­
gueiros. Alguns foram queimados. Mas o 
melhor do livro é ver de perto a circulação 
de crenças entre Brasil, Portugal e África. 
U m a prova de que há séculos os Exus 
atuavam em vários continentes. Salve!
Ronaldo Vainfas 
Professor Titular de 
História Moderna - UFF
METRÓPOLE DAS MANDINGAS
-kA
I -,Q
Í S ) 'Cr
G a t a m o n d
| U N I V E R S I T Á R I A |
Coordenação
Maria A lzira Brum Lemos
Conselho E d ito ria l
Bertha K. Becker 
Cândido Mendes 
Cristovam Buarque 
Ignacy Sachs 
Jurandir Freire Costa 
Ladislau Dowbor 
Pierre Salama
DANIELA BUONO CALAINHO
METRÓPOLE DAS MANDINGAS
RELIGIOSIDADE NEGRA E INQUISIÇÃO 
PORTUGUESA NO ANTIGO REGIME
Garamond
Copyright © 2008, Daniela Buono Calainho
Direitos cedidos para esta edição à
E ditora G aram ond Ltda.
Rua da Estrela, 79 - 3o andar
CEP 20251-021 - R io de Janeiro - Brasil
Telefax: (21) 2504-9211
e-mail: editora@garamond.com.br
website: www.garamond.com.br
Preparação de originais e revisão 
Carmem Cacciacarro
Projeto gráfico, capa e editoração 
Estúdio Garamond / Anderson Leal
Capa a partir de Negro fugitivo , óleo sobre tela de Jean B. Debret (séc. XIX) .
CIP-BRA SIL. C A T A L O G A Ç Ã O -N A -FO N TE 
SIN D IC A TO N A C IO N A L D O S ED IT O R E S D E LIVROS, R J
C143m
Calainho, Daniela Buono, 1963-
Metrópole das mandingas: religiosidade negra e inquisição portuguesa no 
antigo regime / Daniela Buono Calainho. - Rio de Janeiro: Garamond, 2008. 
320p.: il., mapas
Inclui bibliografia 
ISBN 978-85-7617-153-9
I. Negros - Portugal - Religião - História. 2. Inquisição - Portugual - Século 
XV-XVIII. 3. Portugal - Civilização - Influências africanas. I. Título.
II. Título: Religiosidade negra e Inquisição portuguesa no antigo regime.
08-5010. CDD: 946.902
CDU: 94(469)”14/17”
12.11.08 18.11.08 009791
Todos os direitos reservados. A reprodução não-autorizada desta publicação, por 
qualquer meio, seja total ou parcial, constitui violação da Lei n" 9.610/98.
A. M aria H elena B uono Calainho e Luiz 
C alainho (in m em oriam ), m eus pais.
"V
Para L uiza Vainfas, m inha filha.
I
í
mailto:editora@garamond.com.br
http://www.garamond.com.br
S U M Á R I O
A gradecim entos 9 
Prefácio 13 
Introdução 19
I - A fricanos em Portugal 31
II - Jabacousses e gangazambes: feiticeiros negros no reino 69
III - A m andinga de Deus 113
IV - Na ro ta das m andingas 158
V - Lusitânia bruxa 189
VI - Negros hereges, agentes do D iabo 223 
Conclusão 261
Fontes e bibliografia 265
Anexo I - Tabelas e gráficos 281
A nexo II - M apas 299
A nexo III - Imagens 305
A G R A D E C I M E N T O S
E ste tra b a lh o foi o rig ina lm en te m in h a tese de doutoram ento 
defendida na U niversidade Federal Flum inense em 2000, e, no 
percurso que trilhei na época, algumas pessoas e instituições foram 
fundam entais. Os agradecim entos a elas, renovo-os aqui.
À Prof*. D ra. Rachel Soihet, agradeço a orientação e a per­
tinência de suas sugestões. Aos funcionários da Pós-graduação 
da UFF, pelo profissionalismo, especialm ente a M iriam Schmidt, 
que aliou a isso delicadeza e carinho. Sem o auxílio financeiro da 
CAPES, que me concedeu bolsa de pesquisa nos arquivos portu­
gueses, en tre fins de 1997 e inícios de 1998, meu estudo teria sido 
inviável. A o Prof. Dr. F rancisco B ethencourt, da Universidade 
Nova de Lisboa, tam bém m eu reconhecim ento pela orientação 
do trabalho em Portugal.
A os colegas do D e p a rta m e n to de C iências H um anas da 
Faculdade de Form ação de Professores da UERJ e ao PROCAD, 
meus agradecim entos sinceros pelo tempo precioso que me con­
cederam p ara finalizar o trabalho.
A pesquisa em Lisboa foi com partilhada com alguns queridos 
colegas, com o Bruno Feitler, com quem dividi ótimos momentos 
em Lisboa e a alegria de descobrir documentos na Torre do Tombo. 
Dos amigos portugueses que tão bem me acolheram, Luiz Frederico 
foi inesquecível, com o tam bém o Prof. José Veiga Torres, pelo 
m odo am abilíssim o com que m e recebeu em Coimbra.
10
A Caio Boschi, meu afeto e gratidão pelo apoio e carinho de 
muitos anos, pela presteza com que por vezes me trouxe de Portugal 
livros e documentos esquecidos, pela le itura crítica apurada de 
uma das versões da tese. Luiz M ott, com o sem pre, indicou-m e 
documentos, bibliografia e referências po r ele encontradas na 
vastidão dos “Cadernos do Prom otor”. C om partilhar da sua am i­
zade é para mim um a grande alegria desde que nos conhecemos, 
há mais de vinte anos, nas apertadas m esas do antigo prédio do 
Arquivo da Torre do Tombo, ainda em São Bento.
Rogério de Oliveira Ribas, com sua inesquecível acolhida em 
Portugal, sua alegria, força e afeição, tornou os meses de pesquisa 
no inverno lisboeta extremamente calorosos e agradáveis. A N irce 
de Oliveira Ribas, todo o meu carinho por com igo dividir m ais 
esta vitória. A Iara de Lima e Kléber Tani, por m e ensinarem a 
ver a vida com mais serenidade e tranquilidade, m inha gratidão 
por ter podido lidar melhor com o difícil percurso que os anos 
do doutorado me impuseram.
Alguns amigos muitíssimo queridos, com quem tenho o priv i­
légio de partilhar, há vários anos, um a prazerosa e enriquecedora 
convivência, meu afeto e reconhecim ento é m ais do que especial 
pelo apoio ím par que deles recebi: a José R oberto Góes, pela 
força e pela ajuda preciosa na cõnfecção das tabelas, e a M aria 
Fernanda Vieira M artins, pela dedicação e em penho afetuoso 
da últim a leitura. Pedro Pasche de C am pos, tam bém versado 
nos estudos da Inquisição, pela le itura a ten ta do projeto e por 
indicações de bibliografia. A Célia C ris tinaTavares, agradeço 
pela sua incomum generosidade e franqueza, pela paciência, pela 
contínua disponibilidade em socorrer-me nas artes do computador, 
pelo carinho com que sempre me ajudou a “m ira r na lua”, e pelos 
nossos quase 30 anos de am izade. Lem bro tam bém de T ân ia e 
Rui Bessone, porque, com sua alegria, fazem tudo parecer bem 
mais fácil do que é.
11
A R onaldo V ainfas, que esteve presente desde o início da 
elaboração desta M etrópole das M andingas, da idéia do projeto 
à redação final da tese, m inha gratidão e reconhecim ento pelo 
estímulo de sempre.
D e M aria Helena, m inha mãe, e de Lula e G abri, meus m a­
ninhos, recebi o am or e o incentivo necessários p ara chegar ao 
fim. Luiza, felizmente, conseguiu suportar m inhas ausências e 
humores, sobretudo na fase final da redação. A T itá, onde quer 
que esteja, na torcida po r m im , um obrigado de longe.
A Luiz Calainho, meu pai, que em seu últim o vôo foi exemplo 
de coragem e determ inação d ian te da vida, dedico este trabalho.
f
P R E F Á C I O
Q uando se fala em m andinga, patuá, sincretism o religioso de m a­
triz africana, a prim eira lem brança que nos ocorre é a Bahia, São 
Luís do M aranhão, o Brasil, o Haiti, talvez até mesmo as santerías 
p raticadas em algum as ilhas do Caribe. Q uem im aginaria que 
em plena capital do Reino de Portugal, à época da Inquisição, ali 
pululasse um grande número de mandingueiros, negros e mestiços, 
em um a época desditosa em que a Santa M adre Igreja e EI Rei 
tinham plenos poderes de prender, açoitar e até queimar na fogueira 
os rebeldes de consciência que ousassem praticar rituais e crenças 
contrários aos dogmas e costumes da Religião Católica Apostólica 
Romana! Fora da Igreja não há salvação, repetiam os defensores 
da ortodoxia religiosa, na estrita observância do ensinamento do 
Filho de Deus: “um só rebanho e um só pastor!”
G raças à p ro funda e exitosa pesquisa de Daniela Buono 
Calainho, docente na U niversidade do Estado do Rio de Janeiro, 
tem os acesso pela p rim eira vez, de form a sistem ática e am pla, 
aos subterrâneos das crenças populares de inspiração africana 
que proliferaram no Reino de Portugal e encantaram a tantos de 
nossos ancestrais en tre os séculos XVI e XVIII. M etrópole das 
mandingas: religiosidade negra e Inquisição portuguesa no Antigo 
Regime realiza a arqueologia profunda da pré-história das religiões 
afro-luso-brasileiras, revelando suas variegadas manifestações - e 
repressão! - e o quão significativa foi a crença nos poderes pre-
14
ternaturais da ritualística de m atriz africana, não apenas entre os 
colonos da América Portuguesa, mas no próprio Reino e na mesma 
capital e metrópole onde, im ponente e assustadora, se situava a 
Casa Negra do Rocio, sede do Santo T ribunal da Inquisição. D aí 
o inspirado título deste livro, M etrópole das m andingas - origi­
nalmente tese de doutorado, defendida na U niversidade Federal 
Fluminense em 2000, da qual tivemos o privilégio de fazer parte da 
banca exam inadora -, obra tão interessante por suas descobertas 
e revelações, gostosa de ler, tra tando de tem as pouco conhecidos 
e muito atuais na discussão contem porânea sobre religiosidade e 
miscigenação cultural afro-luso-brasileira. E ste é dos ta is livros 
que têm o poder de nos enfeitiçar, e cujo único exorcismo é ter­
m inar sua prazerosa leitura!
Conheci Daniela em 1986, no antigo prédio do A rquivo da 
Torre do Tombo, em Lisboa, quando, ainda aprendiz de feiticei­
ra, iniciava suas pesquisas históricas, p rim eiram en te sobre os 
familiares do Santo Oficio, tema de sua dissertação de m estrado 
- publicada em livro pela Edusc em 2006 com o títu lo A gentes 
da fé. Familiares da Inquisição portuguesa no Brasil colonial 
estudo pioneiro e fundam ental para a com preensão de com o fun­
cionava a eficaz e temida rede de funcionários-espiões do Tribunal 
do Santo Oficio da Inquisição na A m érica Portuguesa, os quais, 
como pontas-de-lança deste “m onstrum terribilem”, mantiveram os 
súditos portugueses e estrangeiros sob o perpétuo regime de medo 
e insegurança, posto que até EI Rei poderia se to rnar potencial­
mente réu do Tribunal da Fé, caso proferisse algum a proposição 
suspeita de heresia ou praticasse atos heterodoxos, qualificados 
como “crimes do conhecimento do Santo O fício”.
Do estudo institucional dessa milícia de oficiais responsáveis 
pela manutenção do bom funcionam ento do Tribunal da Santa 
Inquisição em todo o vasto im pério lusitano, D aniela C alainho 
enveredou pelo “submundo” dos réus envolvidos com heterodoxias
15
m arcadas não só pela “im pureza de sangue”, m anifesta na cor 
negra ou am ulatada da pele de seus praticantes, com o pelo “ne­
grum e” de sua inspiração diabólica, já que no im aginário judaico- 
cristão, e universalm ente em toda a cristandade, D eus sem pre foi 
visto e re tra tado com o branco, com feições m ais para o fenótipo 
ariano que palestino, e Satanás, p in tado preconceituosam ente 
como negro retinto. Já em 1535, quando o tráfico negreiro ainda 
não com pletara um a cen tú ria , um v isitan te estrangeiro assim 
se referiu à presença negra no Reino: “Os escravos pululam por 
toda a parte. Todo serviço é feito por negros e m ouros cativos. 
Portugal está a abarro tar com essa raça de gente. M al pus o pé 
em Évora, julguei-m e transportado a um a cidade do Inferno: por 
toda a parte , topava negros”.
De fato, Metrópole das m andingas revela o quão significativa 
foi a presença de negros curandeiros, benzedores, m andingueiros, 
calunduzeiros e adivinhadores no Reino, que com suas orações 
fortes, patuás, bolsas e panelas de m andinga, pactos com o diabo 
e outras “superstições”, m uitas vezes vendidas po r altas somas, 
prom etiam ventura, saúde, vantagens sexuais ou am orosas, “fe­
chavam o corpo”, faziam adivinhações ou pressagiavam dúvidas e 
inquietações as m ais diversas e com ezinhas, com o quem roubara 
objetos pessoais, onde se escondia o negro fujão, ou a inda se 
fulano estava vivo ou m orrera, com o conquistar aquela mulher 
tão cobiçada etc. etc.
Çomo bem salienta a pesquisadora, escorada não apenas em 
sua prolongada perm anência na Torre do Tombo, m as tam bém no 
depoimento de outros luso-brasileiros e estrangeiros especialistas 
nas Inquisições, a farta docum entação produzida pelos escribas e 
notários do Santo Oficio - m ais de 40 mil longos processos e m i­
lhares de “cadernos”, como os inexauríveis Cadernos do Promotor 
- constitui riquíssim o m anancial etnográfico, que, pela sua unici­
dade e riqueza de detalhes, após devidamente depurados, permitem
16
ao pesquisador contem porâneo reconstitu ir bastante fielm ente o 
universo e o cotidiano de certas categorias sociais, sobretudo a 
“arraia-m iúda” - sodom itas, feiticeiros, bígamos, blasfemos - , que 
se não fossem os processos produzidos pela repressão inquisitorial 
perm aneceriam no lim bo dos desconhecidos. Se hoje em dia, com 
as garantias constitucionais da liberdade religiosa, persiste fo rte­
m ente en tre os adeptos do candomblé, um banda e quim banda, a 
m áxim a de que “o silêncio é a alm a do negócio”, havendo muitos 
rituais e “ebós” cujo conhecim ento e participação são secretos e 
privativos apenas de iniciados, im aginem os então, naqueles idos 
em que as crenças não-católicas eram etnocentricamente rotuladas 
e penalizadas com o “crim e” de heresia, feitiçaria e diabolism o, 
quão d ifíc il seria recu p e ra r ta is m anifestações heterodoxas e 
clandestinas se não fosse a sanha investigatória (inquisição vem 
de inquérito) e persecutória do T ribunal da Fé, que, apesar do 
enorm e sofrim ento causado a suas vítim as, produziu um m aterial 
riquíssim o, não apenas p ara o resgate de nossa história multicul- 
tural, com o para m elhor entenderm os certos dilemas, neste caso 
específico do presente e fu turo das religiões de m atriz africana. E 
constatar o quanto a história pode ser recorrente, obrigando-nosa p restar m ais atenção às lições do passado para não repetirm os 
os mesmos erros no presente.
Q uem im aginaria que, nos finais do século XX, um pai-de- 
santo baiano abriria seu próprio terreiro em Portugal, adquirindo 
um a bela e espaçosa chácara em Sintra, a meia hora de trem de 
Lisboa, reconstruindo a í toda a infra-estrutura peculiar das nossas 
casas-de-santo da nação Ketu, onde salta aos olhos a m arcante 
presença do sincretism o afro-índio-cristão. O grande núm ero de 
filhos e filhas-de-santo portugueses reflete o sucesso deste can ­
domblé ketu-baiano-português.
Nos últim os anos, contudo, pari passu a crescente universa­
lização e a grande diáspora do culto aos orixás, nota-se na Bahia,
17
no Brasil e alhures um a forte tendência à reafricanizaçao da cos­
mogonia e ritualística dessas religiões, censurando, exorcizando e 
excomungando todos os elementos híbridos supostamente não afri­
canos acumulados ao longo de gerações, como se fossem imposição 
da catequese cristã ou, esperta cam uflagem dos escravos em dar 
nomes de santos católicos a seus orixás, uma espécie de estratégia 
de sobrevivência p ara enfren tar a repressão colonizadora.
Metrópole das m andingas comprova exatamente o contrário: 
assim como ocorreu com o cristian ism o e as principais religiões 
universais, tam bém os africanos e seus descendentes incorporaram 
livremente novos elementos religiosos de outras culturas em seu 
panteão, cosmogonia e ritualística. Insisto, o sincretismo católico- 
afro processou-se livremente, sem im posição dos colonizadores, 
pois nada obrigava aos calunduzeiros, mandingueiros, jabacous- 
ses, gangazam bes, quim bandas, e ou tras castas de “feiticeiros”, 
incluir em seus ritua is secretos ou dentro de seus clandestinos 
patuás elementos próprios da religião dos dominadores - como 
as orações fortes de São M arcos ou o Credo às avessas, a hóstia 
consagrada, um pedacinho da pedra d ’ara dos altares das igrejas, 
ou arrem edar um a santa m issa nos conventículos diabólicos do 
Sabá. Se todos esses rituais e “sacram entais” eram realizados longe 
dos olhos condenatórios dos padres, senhores e inquisidores, por 
que m anter a presença de tantos elementos cristãos em algo que 
poderia ter se m antido genuinam ente tribal e africano?
Nossa crítica a esse rousseauniano retorno às raízes africanas, 
com a d iscrim inatória excom unhão de variados sincretismos já 
existentes na p róp ria Á frica e organicam ente incorporados há 
quando menos meio milénio pelos africanos e seus descendentes, 
não só na “m etrópole das m andingas”, mas sobretudo na diáspora 
do Novo M undo, ta l crítica é ra tificada pela venerável Yalorixá 
Olga de A laketu, de saudosa m em ória, mãe biológica e de santo 
do citado B abalorixá de Sintra. A o ser questionada sobre a pre­
18
sença de divindades cristãs e indígenas em seu fam oso terreiro 
em Salvador, do alto de sua sapiência, ela deu resposta definitiva: 
“Com os orixás da Á frica e os santos de Rom a juntos, a união 
faz a força!”
Metrópole das m andingas consagra D aniela com o m estre 
feiticeira”, pois, além do resgate criterioso de um a h istó ria fan­
tástica e fascinante das religiosidades africanas e seu confronto 
e sincretismo com o catolicismo luso-brasileiro, desvenda mitos, 
m entiras e intolerâncias. E sobretudo nos m ostra, com muitos 
episódios dram áticos recolhidos nos processos inqu isito ria is 
da Torre do Tombo, o quanto as religiões, todas elas, podem ser 
tanto um feliz motor de solidariedade com o um negativo fator 
de alienação.
L u iz M ott
Professor titu lar de A ntropologia, 
U niversidade Federal da Bahia
I N T R O D U Ç Ã O
Vários intelectuais brasileiros, após a década de 1930, dedicaram - 
se a com provar a existência ou frouxidão do preconceito racial 
no Brasil, a exemplo de G ilberto Freyre, gerando a crença num a 
democracia racial que se estendeu por algumas décadas. Passível de 
inúm eras críticas que não cabe aqui desenvolver, a tese de Freyre, 
no entanto, m ostrou a íntim a convivência entre os portugueses e 
outros povos, particu larm ente os africanos, em bora sem grande 
aprofundam ento do tem a.1
A nalisando as bases da colonização portuguesa no Brasil 
como sendo essencialm ente ag rária na sua estru tu ra , ao menos 
nos dois prim eiros séculos, Freyre, apesar de não p recisar em 
detalhes os term os deste convívio, resgatou a predisposição do 
português p a ra um a colonização h íb rida e escravocrata, ju s ti­
ficada pela g rande influência da cu ltu ra africana em Portugal. 
O sucesso da colonização portuguesa em regiões tão d íspares 
geográfica e culturalm ente, não só a Á frica, m as ainda a Á sia 
e a A m érica , se ju s tif ic a ria pela m obilidade social do p o r tu ­
guês e, sobretudo, pela sua grande capacidade de se miscigenar. 
Assim , foi a p a r tir da tendência n a tu ra l à m iscibilidade racial 
que, segundo G ilberto Freyre, Portugal com pensou-se da falta de
1 FREYRE, G., Casa-grande e senzala. R io de Janeiro: Círculo do Livro, 
1980.
20
recursos hum anos para a colonização em larga escala e em áreas 
extensas.
A s idéias de G ilberto Freyre inspiraram -nos p ara um olhar 
m ais detalhado sobre essa aprox im ação entre o po rtuguês e o 
negro, resgatando esse universo flu ido en tre Portugal e Á frica 
através de um aspecto específico: aquele que tenta d a r conta da 
religiosidade negra no próprio Reino e da repressão que algum as 
dessas manifestações sofreram por p arte da Inquisição portuguesa 
en tre os séculos XVI a XVIII.
O s negros em P ortugal com puseram , a p a r t i r do século 
XV, um contingente de m ão-de-obra escrava que, em bora quan­
titativam ente não fosse significativo, deixou m arcas na cultura 
po rtuguesa . In teg ra ram o m ovim ento geral de c ris tian ização 
im posta às populações pagãs no Im pério e, em meio a esse pro­
cesso, constitu íram e ali im plem entaram um conjunto de crenças 
e práticas em que ritos originários do continente negro se am alga­
m aram ao catolicismo e às tradições européias. O que tentarem os 
reconstitu ir é o quadro dessas m anifestações, ten tando resgatar, 
quando possível, as raízes africanas de algumas dessas crenças e 
práticas, bem com o os m ecanism os através dos quais elas foram 
associadas à feitiçaria e, portanto, passíveis de perseguições por 
parte da Inquisição portuguesa.
O período que estudam os foi vasto: de meados do século XV, 
quando os prim eiros africanos desem barcaram em Portugal, até 
fins do século XVIII, quando o Regim ento Inquisitorial de 1774, 
em meio às transform ações em preendidas por Pombal, não mais 
associou as cham adas “superstições” e feitiçarias a um pacto com 
o Diabo, dim inuindo assim o número de incriminados. Essa última 
baliza cronológica se deve à natureza das fontes que elegemos para 
analisar as manifestações de religiosidade dos negros em Portugal: 
a docum entação inquisitorial, particu larm ente os processos e as 
denúncias dos réus negros e m ulatos incrim inados por feitiçaria.
21
O historiador italiano Cario G inzburg dimensionou m uito 
bem as possib ilidades e tnog ráficas dessas fontes. A pesar de 
aplicarem m étodos diferentes, inquisidores e antropólogos têm 
rigorosam ente os mesmos objetivos: desvendar um determinado 
universo de crenças, símbolos e valores que emergiriam mediante 
o testem unho de indivíduos incrim inados.2 “Espreitar por cima 
dos om bros do inquisidor”, ansiando por um a confissão revela­
dora, era a expectativa de G inzburg quando se debruçou sobre 
os autos processuais do m oleiro italiano Mennochio, condenado 
como herege e queim ado pela Inquisição no século XVI.3
A busca de um a “verdade” p rópria do Santo Ofício levou à 
produção desta docum entação, detu rpada em vários casos m e­
dian te a pressão psicológica e física a que por vezes os réus eram 
submetidos nas sessões de to rtu ra .4 A Inquisição tentava filtrar 
as falas e atos dos incrim inados objetivandoajustá-los aos seus 
estereótipos e considerando-os hereges em função dos códigos mo- 
ralizantes, do ideário e das prerrogativas da instituição. Embora o 
discurso dos réus, em muitos casos, soasse como eco das perguntas 
dos inquisidores, por vezes gerava um real diálogo entre ambos, 
como no estudo dos bennandanti - indivíduos praticantes de um 
culto agrário de fertilidade na região do Friuli (Itália) entre fins 
do século XVI e meados do XVII. Nesse sentido, eram descritas 
as batalhas noturnas que os cam poneses, em espírito, travavam 
contra as bruxas para o bom sucesso das colheitas.5 Na concepção
2 GINZBURG, C., “O inquisidor como antropólogo. Uma analogia e suas im­
plicações”. In: A micro-história e outros ensaios. Rio de Janeiro: Difel, 1989,
p.206.
3 Idem. O queijo e os vermes. O cotidiano e as idéias de um moleiro perseguido 
pela Inquisição. São Paulo: Companhia das Letras, 1987.
4 Idem. “O inquisidor como antropólogo...”, p.207. De todos os processos que 
lemos e analisamos, foram raros os casos em que os negros não foram tortu­
rados.
5 Idem. Os andarilhos do bem. Feitiçaria e cultos agrários nos séculos XVI e
22
dos inquisidores tais descrições eram claros indícios de sabats, 
mas, em termos etnográficos, configuravam -se como riquíssim os 
relatos de práticas meticulosamente registradas.
Esses “antropólogos mortos”, portanto, ao tentarem arrancar 
as confissões dos réus, deixavam entrever traços significativos 
da religiosidade dos negros em P ortugal. N essa d im ensão , e 
apropriando-se da proposta in terpretaiiva de G inzburg, poder- 
se-ia dizer que os “arquivos da repressão”, em bora “fragm entários 
e deform ados”, são um a via através da qual a cu ltu ra popu lar 
chega até nós.6
O Tribunal do Santo Ofício português produziu fontes bas­
tante ricas para a análise de sociedades que foram fustigadas pelo 
seu ím peto persecutório, racial, religioso e moral. Portugal e seu 
im pério ultram arino foram vasculhados incessantem ente, origi­
nando considerável m assa de processos e denúncias, a p a rtir dos 
quais se revelaram múltiplos aspectos de um a h istória que pode 
ser social, política, cultural, da vida privada e até económica.
Dos porões dos tribunais inquisitoriais de Lisboa, Coim bra, 
Évora e Goa, as narrativas dessas vidas e a docum entação relativa 
à estru tu ra organizacional do Santo O fício transferiram -se há 
algumas décadas para o A rquivo N acional da Torre do Tombo, 
em Lisboa. Lá, procedemos ao levantam ento dos processados nas 
cham adas “listas de autos-de-fé”, onde se registravam os dados 
pessoais dos réus e as respectivas sentenças, lidas em público 
nos autos-de-fé.7 Em seguida, ao localizam os no banco de dados
XVII. São Paulo: Companhia das Letras, 1988.
6 Idem. O queijo e os vermes... p.28.
7 O auto-de-fé inquisitorial era evento da maior importância no sentido de
explicitar à sociedade o poder repressivo do Santo Ofício. Reunindo os altos 
dignitários da Inquisição e todos os réus acusados, era um espetáculo público 
meticulosamente preparado, realizando-se em Igrejas ou praças. Seu clímax 
era a leitura pública das sentenças dos acusados e a subsequente condenação 
de alguns deles à fogueira. SARAIVA, A. J., Inquisição e cristãos-novos. Lisboa:
23
do arquivo os respectivos processos, passam os à análise dessas 
fontes.
O volume de denúncias relativas à feitiçaria recebidas pelos 
diversos tribunais era imenso, bem m aior que o núm ero de réus 
efetivam ente processados. O s núcleos docum entais que u tiliza­
mos para levantar esses denunciados foram principalm ente os 
Livros de visitações e denúncias , 8 e os C adernos do Promotor, 
onde pudem os localizar, dentre outras, várias referências a ne­
gros curandeiros, benzedores, calunduzeiros e adivinhadores. A 
p artir dessas acusações, o Santo O fício deliberava sobre aqueles 
que de fa to se riam in c rim in ad o s. D o to ta l de 369 C adernos 
do Prom otor, referentes aos tr ib u n a is inquisitoriais de Lisboa, 
Coim bra e Évora, um a pequena am ostragem foi consultada em 
função do pouco tem po de pesquisa de que dispúnham os, pois 
privilegiamos a consulta aos processos já levantados nos autos- 
de-fé.
A lém da docum entação do S an to O fício, consultam os: a 
legislação portuguesa e inquisitorial; narrativas de viajantes e cro­
nistas, onde encontram os referências pontuais sobre os negros em 
Portugal; algumas crónicas descritivas das comunidades africanas 
no século XVII e, por fim, os volumes da M onum ento Missionário 
Africana, im portante coletânea de documentos relativos à presença 
portuguesa na Á frica entre os séculos XV e XVII.
D e um m odo geral, a produção historiográfica sobre os a fri­
canos em Portugal pareceu-nos bastante limitada. Nos clássicos da 
história portuguesa e na obra dos folcloristas, as culturas negras 
aparecem, quando muito, através de vestígios e traços fragm en-
Estampa, 1985, cap. “O que era um auto-de-fé?”
8 As visitações inquisitoriais eram instrumento fundamental para o vascu­
lhar de hereges no Império Português, dele originando enormes listagens de 
confidentes e denunciados. BETHENCOURT, F, História das Inquisições: 
Portugal, Espanha e Itália. Lisboa: Círculo de Leitores, 1994, p. 167-191.
tários, em regra atreladas ao m ovim ento de expansão lusitana em 
direção à Á frica, restringindo-se assim aos séculos XV e XVI. Em 
relação às m anifestações religiosas dos negros, então, a om issão 
é o que prevalece.
D estaca ríam o s, no en tan to , a lguns trab a lh o s que fo ram 
fundam entais para situarm os os africanos em Portugal. O estudo 
mais sistem ático a respeito da escravidão em terras lusitanas foi 
publicado na Inglaterra em 1982 por A. C. de C. M. Saunders, A 
Social H istory o f B lack Slaves and Freedm en in Portugal - 1441- 
1555, posteriorm ente traduzido para a língua portuguesa, onde 
o autor aborda tem as com o o tráfico negreiro, a dem ografia, as 
atividades económicas, a legislação e as alforrias, embora dedique 
poucas páginas à relação entre os negros e o cristianism o.
O livro de A ntônio Brásio Os pretos em Portugal, de 1944, 
é bem m enos denso, em bora seja d igno de referência p o r ser 
um a das poucas obras específicas sobre o tem a na historiografia 
portuguesa.
Utilizamo-nos ainda do trabalho de José Ramos Tinhorão, Os 
negros em Portugal, onde tam bém encontram os um a panorâm ica 
geral acerca da presença africana na sociedade portuguesa, na 
literatura de cordel, nos textos teatrais e no m ercado de trabalho, 
embora tam bém aborde superficialmente aspectos da religiosidade 
negra em Portugal.
M aria do Rosário Pimentel, em trabalho intitulado Coroação 
do rei do Congo, apresentado no VIII Congresso Internacional “A 
Festa”, organizado pela Sociedade Portuguesa de Estudos do Século 
XVIII (novembro de 1992), destacou um aspecto interessante da 
religiosidade africana em Portugal ao estudar a teatralização que 
os negros de Lisboa realizavam um a vez por ano na capela da 
igreja de Nossa Senhora do Rosário a p a rtir de meados do século 
XVI. O rganizadas por irm andades negras, as festas de “coroação 
de reis congos” em tudo lembram as congadas da Colónia, festas a
25
um só tem po expressivas de um catolicismo negro (talvez banto) 
e da p rópria religiosidade africana.
N o caso da feitiçaria e religiosidade popular em Portugal, 
os estudos m ais com pletos sobre o tem a são os de Francisco 
B ethencourt - O im aginário da magia. Feiticeiras, saludadores 
e n igrom antes n o século X V I (1987) - e de José Pedro Paiva - 
Bruxaria e superstição num país sem “caça às bruxas”. 1600-1774 
(1998) - , que forneceram subsídios fundam entais para as questões 
que procuram os desenvolver ao longo do trabalho, mesmo sem 
tra ta r especificam ente das m anifestações da população africana 
e seus descendentes.
A poiam o-nos, po r fim , em trab a lh o s referentes ao Brasil, 
com o O diabo e a terra de Santa C ruz. Feitiçariae religiosidade 
popu lar no Brasil colonial e O in ferno atlântico, de Laura de 
Mello e Souza, e os vários artigos de Luiz M ott, que muito auxi­
liaram nossas reflexões sobre as crenças e devoções dos africanos 
em Portugal.
E ste trabalho se inscreve no cham ado cam po da história cul­
tural, especialm ente na vertente desenvolvida por Cario Ginzburg. 
Em seu O queijo e os vermes, o au tor definiu cultura como uma 
“m assa de discursos, form as de consciência, crenças e hábitos 
relacionados a determ inado grupo historicam ente determinado”.9 
Cuidou, portanto, inspirado em B akth in , de distinguir a chama­
da “cultura popular” ou “oral” da “cultura erud ita” ou “letrada”, 
dim ensionando o intercâm bio que se estabelece entre esses níveis 
culturais e introduzindo o conceito de circularidade cultural para 
defin ir essa dinâm ica.
A dotam os essa perspectiva de circularidade cultural de tipo 
vertical entre as categorias sociais, m as acrescentaremos a idéia 
de circu laridade horizontal sugerida pelo p róprio Ginzburg no
9 GINZBURG, C. O queijo e os vermes..., p.15-33.
26
seu História noturna. Referim o-nos aqui ao seu estudo sobre a 
construção do estereótipo do sabbat, que o au to r concebe não 
como pura invenção dos dem onólogos, nem tam pouco com o 
expressão de um a autêntica e p u ra “religiosidade popu lar”, mas 
como um resultado h íbrido de diversas culturas, espalhadas no 
espaço e no tempo.
A propósito do complexo cu ltural do sabbat, construído na 
Europa a p a rtir da difusão, justaposição e mescla de ingredien­
tes culturais heterogéneos e, não raro, assincrônicos, G inzburg 
sugeriu o conceito deform ação cultural híbrida de compromisso, 
que orientou esta pesquisa e a reflexão sobre a cu ltura luso-afro- 
brasileira que se forjou em Portugal no A ntigo Regime.
Além disso, consideramos as ponderações de Edward Thompson 
quando adverte que o uso indiscriminado do termo “cultura popular” 
pode sugerir uma homogeneidade, um consenso entre agentes que a 
protagonizam. Para Thompson, o próprio term o “cultura” deve ser 
relativizado, pois “com sua evocação confortável de um consenso, 
pode distrair nossa atenção das contradições sociais e culturais, 
das fraturas e oposições existentes dentro do conjunto”.10
Nessa perspectiva, o trabalho de Peter Burke, Cultura p o ­
pular na Idade M oderna, foi im portan te tam bém para enfatizar 
a diversidade interna da cu ltu ra po p u la r e a heterogeneidade 
que para ele a caracteriza. Burke cham a a atenção para a tênue 
fronteira entre as várias culturas de um a sociedade, sendo m uito 
mais proveitoso estudar a interação entre elas. Para este autor, a 
noção de cultura possui um espectro amplo, que integra as ações 
da vida cotidiana, onde se incluem os costumes, com portam entos, 
conhecimentos e crenças. A ssim , as tradições cu lturais de um a 
sociedade englobariam uma “grande trad ição”, de um a m inoria
10 THOMPSON, E.P. Costumes em comum. São Paulo: Companhia das Letras, 
1998, p.17.
27
culta e letrada, e a “pequena trad ição”, referente aos dem ais, que 
interagiam entre si.11
A s reflexões desses autores foram fundam entais p ara com ­
preenderm os a com plexidade das relações que se estabeleceram 
entre as p ráticas e crenças dos negros, a clientela de brancos de 
todas as condições sociais que faziam uso de suas artes de curas 
e “feitiços” e a in d a o m odo pelo qual as cam adas le tradas da 
sociedade, p articu la rm en te os eclesiásticos, perceberam essas 
m anifestações. Vale destacar, por fim , o fenômeno de circulação 
desses saberes pelo Império colonial português, envolvendo negros 
em Portugal, na Á frica e no Brasil.
A lguns conceitos relativos às a rte s m ágicas, fe itiça rias e 
b ruxarias precisam aqui se definir. O s trabalhos antropológicos 
e históricos são inúmeros, e seria impossível nos lim ites do nosso 
tem a analisá-los adequadam ente. Desse modo, restringim o-nos a 
algum as definições e elegemos certos autores que consideram os 
centrais para a abordagem pretendida.
C aro Baroja entende a m agia com o um a ação baseada num 
vínculo de afin idade entre certos indivíduos e “certas potências 
sobrenaturais ou divindades, pela entrega de um a parte de seu ser 
ou a sua totalidade, às mesm as potências, m alignas ou não, mas 
que sem pre têm um caráter especificam ente ligado com algum 
aspecto da ‘psique hum ana’: am or, ódio, desejos em geral”.11 12 Tais 
foram as motivações que consideram os nortea r as práticas dos 
africanos no Reino.
A utores com o N orm an C ohn preocuparam -se em d istinguir 
os conceitos de b ruxaria e feitiçaria, considerando a p rim eira 
como designadora de práticas que induziam ao mal, e a segunda
11 BURKE, P., Cultura popular na Idade Moderna. São Paulo: Companhia das
Letras, 1998, p.21; 51.
12 BAROJA, C., Vidas mágicas y Inquisición. Madrid: 1967, p.24-25. Apud
NOGUEIRA, C.R.F., Bruxaria e história. São Paulo: Ática, 1991, p.23.
28
com o um fenôm eno cuja p rópria pessoa é a fonte do mal. Tal 
qual Laura de Mello e Souza, ancorada em autores com o Keith 
Thom as, utilizarem os indistintam ente os dois conceitos, diferen­
ciando apenas o de feitiçaria da noção de práticas mágicas, onde 
no prim eiro caso há pacto dem oníaco.13
Por fim, é im portante enfatizar a lacuna apontada por Cario 
G inzburg nos estudos sobre a h istória da feitiçaria, ressaltando 
este autor que a m aioria das pesquisas se voltou sobretudo para 
as perseguições a que a b ruxaria foi subm etida, em detrim ento 
das práticas propriam ente ditas, bem como dos com portam entos 
dos perseguidos.
-a- • * * *
E ste trabalho se inicia ao tem po da expansão u ltram arina por­
tuguesa, do tráfico dos negros e de sua chegada com o escravos 
no Reino. O prim eiro capítulo, “A fricanos em Portugal”, expõe 
sum ariam ente o cam inhar em direção à costa ocidental africana, 
m as sobretudo a inserção do a fricano nas diversas ativ idades 
económ icas em Portugal nos séculos XV e XVI. A ausência de 
bibliografia sobre o tem a referente aos séculos seguintes foi uma 
lacuna que não conseguim os superar.
O segundo capítulo, “Jabacousses e gangazambes: feiticeiros 
negros no R eino”, tra ta da descrição das crenças e devoções dos 
escravos e forros em função das m otivações que os levaram a 
praticá-las: curas de doenças e “feitiços”; interferências nos rela­
cionamentos pessoais e busca de proteção. Para tanto, valeram-se 
de procedim entos diversos, como o uso de ervas, bebidas, excre­
mentos, sangue de anim ais, defumações, fervedouros, adorações
13 SOUZA, L. de M.. O diabo e a terra de Santa Cruz: feitiçaria e religiosidade 
popular no Brasil colonial. São Paulo: Companhia das Letras, 1986, p.154- 
155.
29
a ídolos, orações e uso de patuás, sobretudo as chamadas “bolsas 
de m andinga”. N a m edida do possível, tentam os buscar as raízes 
africanas dessas m anifestações.
No terceiro capítulo, “A m andinga de D eus”, faz-se esforço 
no sentido de entender o processo de cristianização dos africanos 
na p rópria Á frica e em Portugal, e das manifestações desse cato­
licismo tan to na organização de confrarias religiosas, firm ando 
sociabilidades, com o nas p róprias m anifestações de feitiçaria, 
através de orações, evocação de santos e uso de objetos de culto 
da Igreja, como hóstias e pedra d’ara.
O quarto capítulo, “Na rota das m andingas”, tratou das possí­
veis transmutações sofridas por certas práticas africanas, a exemplo 
das bolsas de m andinga, em função dos contatos estabelecidos 
en tre os negros em meio ao tráfico interno na Á frica e o tráfico 
atlântico. Observam os um notável intercâm bio de saberes entre 
os negros portadores dessas bolsas em Portugal e no Brasil.
Finalm ente, os dois últim os capítulos, “Lusitânia bruxa” e 
“N egros hereges, agentes do D iabo”, abordaram a repressão in- 
quisitorial às m anifestações dos africanos, tidas por feitiçarias, 
p o rtan to heréticas, m ed ian te a pro jeçãoda idéia de pacto de­
m oníaco observada nas inquirições aos réus. Nesse contexto, foi 
notório o processo de dem onização dos africanos e de seus cultos 
e práticas, promovendo o Santo Ofício um movimento inequívoco 
de aculturação da população aqui considerada.
O títu lo M etrópole das m andingas: religiosidade negra e 
Inquisição no A ntigo Regim e justifica-se porque, de todas as ou­
tras m anifestações da religiosidade negra e mulata em Portugal, a 
que sem dúvida pareceu ter um a origem claramente africana - ao 
lado dos calundus - foi a confecção e porte das chamadas “bol­
sas de m andingas”, am uletos de proteção. A lém disso, os termos 
“m andinga” e “m andingueiro” significavam, para as instâncias de 
poder, em particu lar o Santo Ofício, feitiçaria e feiticeiro.
30
O título também é um a forma de sugerir que Portugal, longe 
de estar invulnerável a estas religiosidades, foi cenário im portante 
de um complexo cultural h íbrido envolvendo a Á frica e o Brasil, 
ou seja, metrópole das colónias e de suas m andingas, o que nos 
leva, no lim ite, a substitu ir a expressão “afro -b rasile iro” pela 
“luso-afro-brasileiro” para exprim ir o complexo religioso-cultural 
vigente no mundo português e ultram arino.
C A P Í T U L O I
AFRICANOS EM PORTUGAL
Os escravos pululam por toda a parte. Todo serviço 
é feito por negros e mouros cativos. Portugal está a 
abarrotar com essa raça de gente. Mal pus o pé em 
Évora, julguei-me transportado a uma cidade do 
Inferno: por toda a parte, topava negros.
Clenardo, 1535.
EM D IREÇÃO À Á FRICA
Em sua H istória general de las ín d ia s, publicada em 1552, o 
cronista F rancisco López de G óm arra, dedicando sua obra ao 
monarca espanhol Carlos V, percebe os descobrimentos m arítimos 
como “o m aior acontecim ento desde a criação do m undo, depois 
da encarnação e da m orte d ’A quele que o criou”.1 Sem som bra 
de dúvida, o pioneirism o ibérico na aventura incerta e corajosa 
do desbravam ento de m ares, oceanos e te rra s desconhecidas 
transform ou pro fundam ente o cenário de um a pen ínsu la que 
vivenciava inúm eras dificuldades, herdadas de um a conjuntura 
extrem am ente problem ática no século XIV. Os ares do oceano 
A tlântico tam bém bafejaram outros estados nacionais que, a seu 
tempo e lugar, desfrutaram do conhecim ento desse novo espaço,
l Charles Boxer. O império colonial português (1415/1825). Lisboa: Edições 70, 
1969, p.25.
32
tam bém responsável pelo descortinar de um outro tem po que se 
iniciava no quatrocentos.
Em baladas pelo im aginário fan tástico europeu, as navega­
ções fluíram , no decorrer do século XV, sob o legado dos homens 
do ocidente medieval. A s incursões de viajantes, m ercadores e 
m issionários pela Á sia e pelo oceano índico, ao longo da Baixa 
Idade M édia, p roduziram relatos e crónicas onde se m isturava 
às descrições geográficas um a percepção onírica, fantasiosa, m a­
ravilhada daquelas terras, im pregnando a m entalidade medieval. 
M undo repleto de riquezas variadas, raras especiarias, com ilhas 
de ouro, governado por reis cobertos de pérolas e pedras preciosas, 
era local de abundância e exotismo.
“Homens com pés voltados para trás, cinocéfalos que ladram , 
vivendo m uito além do tem po norm al p ara a existência hum ana e 
cujo pêlo, na velhice, escurece em vez de branquear, m onópodes 
que se abrigam à sombra do único pé levantado, ciclopes, homens 
sem cabeça, com olhos nas espáduas e dois buracos no peito à 
guisa de nariz e boca, homens que vivem apenas do perfum e de 
um a só espécie de fru to e m orrem quando já o não podem respi­
ra r”, são exemplos de seres escandalosos e monstruosos, hum anos 
ou anim ais, que povoaram a im aginação dos homens, além ainda 
dos m itos do Paraíso Terrestre, do reino de Gog e M agog e do 
Preste João.2
A cartografia medieval descreveu um m undo conhecido por 
algumas regiões bem definidas. A lém da Europa, via-se a Á sia 
e a Á frica, esta últim a circunscrita ao M agreb e Egito e ligada à 
índia, levando à crença de um oceano índico fechado, a refletir 
a concepção ptolom aica de um m ar interior.3
LE GOFF, J. “Ocidente medieval e o oceano Indico: um horizonte onírico”. 
In: Para um novo conceito de Idade Média. Tempo, trabalho e cultura no 
Ocidente. Lisboa: Estampa, 1979, p.75.
SUTTO, C. “L’image du monde à la fin du Moyen-Age ». In: ALLARD, G.H.
33
“Viveiros de todas as m arav ilhas”, nas palavras de Sérgio 
Buarque de H olanda, a índ ia e a E tiópia, e depois o Atlântico e o 
Novo M undo, foram palco de transm igrações desse universo len­
dário e místico.4 O m ito indiano, construído desde a Antiguidade 
no mundo ocidental, desfez-se paulatinam ente a partir da presença 
efetiva dos po rtugueses na Á sia. D ispersaram -se para outras 
regiões lendas como, por exemplo, a do Preste João - que seria o 
soberano de um suposto reino cristão no Oriente. Laura de Mello e 
Souza aponta-a como bastante ilustrativa no sentido de se perceber 
a idéia de m igração geográfica do im aginário europeu, e ainda 
por relacionar-se estritam ente às navegações portuguesas e aos 
descobrim entos. D a índia, o poderoso, rico e populoso reinado 
desse m onarca cristão teria m igrado para a Etiópia no século XIV, 
situando-se supostam ente nos lim ites de domínios islâmicos, do 
M arrocos até o M ar Negro.5
Em bora menos entusiasm ados e fantasiosos do que os espa­
nhóis no im aginário diante do novo, os portugueses viram nessa 
busca um im portan te estím ulo p ara o desvendamento da África. 
A lcançar as terras desse governante estava entre as aspirações de 
navegantes e aventureiros, crentes em tê-lo com o ferrenho aliado 
con tra os infiéis.6 D iria a inda o fam oso cronista dos descobri­
mentos Gomes Eanes Z urara , traduzindo as intenções do Infante 
D. H enrique, que:
(Org.), Aspects de la marginalité au Moyen-Age. Montreal: L’Aurore, s/d, p.63. 
Apud. MELLO E SOUZA, L. O Diabo e a terra de Santa Cruz. Feitiçaria e 
religiosidade popular no Brasil colonial. São Paulo: Companhia das Letras, 
1986, p.24. Jacques Le Goff arrola também uma vasta literatura acerca da 
geografia medieval. Op. cit., p. 263.
4 MELLO E SOUZA, L. de, op. cit., p.26.
5 Idem, p.27. Ver ainda HOLANDA, Sérgio Buarque de, Visão do Paraíso - 
Os motivos edênicos no descobrimento e colonização do Brasil. São Paulo: 
Nacional, 1969.
6 BOXER, C.R., op. cit., p.43.
34
(...) se dizia que o poderio dos mouros daquela terra de África era 
muito maior do que se comumente se pensava, e que não havia 
entre eles cristãos nem outra alguma geração (...). Queria saber se 
achariam em aquelas partes alguns príncipes cristãos em que a 
caridade e amor de Cristo fossem tão esforçados que o quisesse 
ajudar contra aqueles inimigos da fé.7
A expansão m arítim a portuguesa inspirou algum as polêm icas 
em relação ao complexo rol de suas motivações. A historiografia 
portuguesa, rica nesse debate, oscilou desde a ênfase nos aspectos 
económ icos até os científicos e religiosos enquan to im pulsio­
nadores dos descobrim entos.8 A s versões que tendem para um 
certo equilíbrio entre esses fatores, a exemplo dos trabalhos de 
Jaime Cortesão e Vitorino de M agalhães Godinho, preponderam 
nas pesquisas recentes.9 D e um m odo geral, situam a génese da 
expansão m arítim a não apenas no cenário português, m as ainda 
no conjunto de transform ações europeias ocorridas na Baixa 
Idade Média.
O pioneirism o lusitano nos descobrim entos europeus dos 
séculos XV e XVI configurou-se, portan to , como um a prim eira 
fase de um processo bem mais amplo da expansão ocidental. Mas 
sua precocidade nesse movimento se situou como um fenômeno
7 ZUR AR A, G. E., Crónica dos descobrimentos e conquista da Guiné (1463/1468). 
Porto: Livraria Civilização, 1937, cap.VIII.
8 Vitorino de Magalhães Godinho faz um interessante balanço bibliográfico 
sobre o tema, arrolando autores como Oliveira Martins, Antônio Sérgio, 
Joaquim Bensaúde, Jaime Cortesão eoutros. Ver A economia dos descobri­
mentos henriquinos. Lisboa: Sá da Costa, 1962, p.37-50.
9 “Se o espírito de Cruzada, mais persistente na Península, em consequência
da Reconquista, foi o impulso iniciador, a verdade é que os descobrimentos
resultaram do complexo de condições económico-geográficas e científico-
religiosas”. GODINHO, V. de M., op. cit., p.42; CORTESÀO, J., Os descobrimentos
portugueses. Lisboa: Arcádia, 1958-1961, 2 v.
35
aparentem ente atípico. Região m arginal, pobre, carente de con­
dições económ icas favoráveis, solos acidentados, de qualidade 
p recá ria , clim a irregular, escassez populacional. Para alguns, 
Portugal lançar-se-ia ao m ar fugindo de sua pobreza.10 * * *
No entanto, a em preitada em direção ao além-mar deveu-se a 
outras circunstâncias, fundam entais para seu sucesso. Remontemo- 
nos ao Ocidente europeu a partir do século XI, momento importante 
de transform ação, quando o crescim ento dem ográfico, o desen­
volvim ento tecnológico no cam po, a revitalização do com ércio 
e da vida u rbana e a em ergência dos interesses cada vez m ais 
vivos da burguesia m ercantil redim ensionaram as relações entre 
as diversas regiões. O litoral e os portos portugueses, sobretudo 
Lisboa, fo ram tragados pelo increm ento do com ércio en tre o 
M editerrâneo e o M ar do N orte, d irecionando um acúm ulo de 
capital significativo.11
A inda nesses tempos, desenvolveu-se a m arinha portuguesa 
e as técnicas e instrum entos de navegação, legado dos árabes e 
dos italianos, que com seus saberes ajudaram a im pulsionar as 
em barcações portuguesas p a ra o A tlân tico . Tarefa facilitada , 
inclusive, pelo próprio territó rio , projetado para o oceano. Por 
fim, a reestru turação do E stado português, com a ascensão dos 
Avis, en tre 1383 e 1385, viabilizou um quadro político que pôde 
coordenar e estru tu ra r a expansão.
O século XIV trouxe anos difíceis, tem po de peste e alta 
m ortalidade, tem po de escassez e de procura de terras por parte 
da nobreza depauperada, cujos rendim entos decresciam cada vez 
mais. Tempo em que a burguesia m ercantil portuguesa procurava
10 THOMAZ, L. F. R., “Expansão portuguesa e expansão européia: reflexões em 
torno da génese dos descobrimentos”. In: D e Ceuta a Timor. Rio de Janeiro: 
Difel, 1994, p.5.
11 MARQUES, A.H. de O., H istória de Portugal. México: Fondo de Cultura 
Económica, 1983, v. I, p.106/112.
36
novos mercados, assoberbada pelo monopólio veneziano e genovês 
das especiarias asiáticas. A tra íd a pelo brilho do ouro sudanês, 
buscava ainda os cereais m arroquinos de que carecia o Reino.
E n tre fins do século XIII e inícios do XIV, a chegada dos 
produtos asiáticos ao O cidente pelas mãos dos m ercadores das 
cidades italianas se viu progressivamente dificultada pelo processo 
de desintegração do Im pério M ongol, que garan tia não apenas 
a segurança das ro tas, com o tam bém os preços das m ercado­
rias. A tom ada de C onstan tinop la pelos tu rcos o tom anos em 
1453 agravou sobrem aneira esse comércio, m ajorando os preços 
enorm em ente e apontando, assim, p ara a necessidade de outras 
opções de acesso aos produtos orientais. D istanciavam -se, pois, 
os portugueses, das riquezas do Levante, e o progressivo avanço 
tu rco am eaçava o comércio ocidental e abalava as estru tu ras da 
cristandade européia.12
O peso desse aspecto económ ico nos descobrim entos por­
tugueses variou na h istoriografia , ensejando as posições m ais 
d iscutíveis, desde considerá-lo com o ún ico d e te rm in a n te a té 
negar-lhe qualquer im portância, como já o dissemos.13
O s fatores religiosos e ideológicos expressos na busca do 
reinado do Preste João, na expansão da fé e no espírito cruzadís- 
tico foram traços relevantes desse processo. O ideal de C ruzada, 
que tam bém moveu a expansão m arítim a portuguesa, enraizado 
desde os tem pos da presença efetiva dos m ouros no conjunto 
da Península, aparece alargado quanto ao seu objeto, ganhando
12 GODINHO, V. de M., op. cit., p.80.
13 “Nunca, nem no período de D. Henrique, nem no de D. João II, existiu a am­
bição desregrada das riquezas. Paira, sobre as duas grandes figuras e sobre 
todos os heróis da epopéia, um ideal superior de abnegação, de aspirações 
nobres e puras, um fogo sagrado de sacrifício e de sinceridade que ficarão 
para sempre na história como o traço mais profundo e belo das glórias na­
cionais.” Ver BENSAÚDE, J., A cruzada do Infante D. Henrique. Lisboa: s/n, 
1943. Apud GODINHO, V. de M., op. cit., p.40.
37
nova versão: m uito m ais do que a libertação da cidade sagrada de 
Jerusalém, o com bate ao Islão se generalizava, congregando, sob 
a noção de “guerra san ta”, vários estratos da população.
A discussão sobre a personalidade e o caráter do Infante 
D. H enrique foi tam bém tem a largam ente frequentado pela his­
toriografia portuguesa. Visto como um cruzado em seu tempo, 
levado pela fé ou pelo espírito científico, ou então pelos ganhos 
com erciais e pela cobiça, as intenções do Infante suscitaram di­
versas interpretações, atestadas pelas fontes quatrocentistas de 
cronistas e viajantes, com o Z u rara , D uarte Pacheco ou Diogo 
Gomes: curiosidade geográfica, busca do ouro, salvação da alma, 
com bate ao infiel. Todas estas inspirações, juntas, compuseram, 
na verdade, as motivações não só do Infante, mas tam bém dos 
m onarcas subsequentes, mercadores e aventureiros.14 A expansão 
fora fruto de um a pluralidade de iniciativas que convergiram num 
contexto m edieval e m oderno ao m esm o tempo. Servir a Deus 
pelas arm as, com batendo o infiel e a inda articulando ganhos 
m ercantis eram os im pulsos dos “cavaleiros-mercadores” de que 
falou G odinho.15
* * *
A presença dos portugueses no A tlântico, num primeiro momento, 
destacou-se pela ocupação do litoral norte marroquino e ocidental 
da Á frica na busca de ouro, especiarias e escravos.
A té m eados do século XV, o in teresse pelo M arrocos em 
detrim ento da Á frica negra era evidente. A nobreza m ilitar por­
tuguesa, cerceada nos seus privilégios, enxergava o Magrebe como 
horizonte de possíveis realizações: enriquecim ento pela pilhagem, 
dom ínios fundiários, prém ios e honrarias d ’El-Rei. As tensões
14 Idem, p.42.
15 Idem, p.213.
38
sociais emergentes na fidalguia portuguesa, a turbulência latente 
de sua condição, desviavam-se para aquela região, servindo aos 
interesses da Coroa.
A conquista de Ceuta, situada no extremo norte do Marrocos, 
marca o início, em 1415, da travessia portuguesa em direção ao 
Atlântico. A rtífice e principal im pulsionador dos prim eiros m o­
mentos das conquistas africanas, o Infante D. Henrique (1394/1460), 
filho do então monarca D. João I, moveu-se inicialm ente m uito 
mais pelo ardor cruzadístico de com bate ao infiel do que propria­
mente por um projeto m ercantil.16 São discutíveis as motivações 
económicas e estratégicas desse em preendim ento, um a vez que 
alguns autores relativizaram a im portância da região m arroqui­
na enquanto produtora de cereais, e a própria cidade como zona 
estratégica de combate à p ira taria e ponto im portan te da ro ta do 
comércio do ouro transaariano.17 No entanto, o dom ínio de Ceuta 
facultou aos portugueses inform ações em relação às terras do 
A lto Níger e do Senegal, já anteriorm ente esboçadas num mapa 
catalão de 1375, onde se tinha conhecim ento da região ocidental 
do Sudão e de rotas das caravanas de m ercadores orig inárias do 
N orte da Á frica, passando pelo Saara e chegando até a região 
da Guiné.18
A conquista de algumas ilhas do Atlântico integrou esta etapa 
inicial de novas descobertas: a M adeira, em 1419, o arquipélago
16 “Parece ficar claro que, pelas suas motivações como pelo seu caráter, pela 
sua continuidade com a Reconquista como pela ideologia que a informa, 
pelo espaço geográfico em que se desenrola, pela base social, a expansão 
portuguesa em Marrocos antes de D. João II é muito mais um derradeiro 
episódioda história medieval que o primeiro episódio da moderna. O seu 
nexo lógico com a revolução comercial do século XI e com a ascensão da 
burguesia é mais que tênue.” THOMAZ, L. F., op. cit., p.28.
17 SARAIVA, J. H., História concisa de Portugal. Lisboa: Europa-América, 1996, 
p. 125-126; BOXER, C., op. cit., p.42.
BOXER, C., op. cit., p.40.
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18
39
dos Açores, em 1427, colonizados respectivam ente em 1427 e 1439, 
e por fim , já ao térm ino da década de 50, foi a vez de C abo Verde. 
A efetiva ocupação dessas ilhas se constituiu como um verdadeiro 
ensaio da colonização u ltram arina portuguesa, inaugurando o 
sistem a da g rande lavoura açucareira que no século XVI seria 
instituído no Brasil.
Prosseguindo o cam inho em direção à costa ocidental africana, 
ultrapassava-se, em 1435, o tão tem ido Cabo do Bojador, suposta- 
mente o lim ite sul do A tlântico no im aginário europeu, região de 
correntes torm entosas, clima difícil, certeza de um a viagem sem 
volta. E n tre 1441 e 1448, a expansão seguiu rápida, já im pulsio­
nada pela força das caravelas. Transform ando-se num a em presa 
m ais elaborada, voltada p ara o com ércio e contatos pacíficos 
em detrim ento do corso violento, inaugurava um novo modelo 
de expansão. O navegador N uno Tristão atingia o C abo Branco, 
nordeste da atual M auritânia, A rguim , Cabo Verde e por fim a 
desem bocadura do Senegal, fronteira que separava os azenegues, 
ou zanagas, das te rra s dos negros africanos. N esse m om ento, 
a costa da G uiné tornava-se um foco económ ico lucrativo por 
excelência, adensando-se a procura de mercadores particu lares a 
se lançarem nesse negócio, reunindo capital e arm ando navios.19 
N ovam ente foi Z u rara quem acentuou a persistência do Infante 
na em pre itada a fric an a não apenas pelos aspectos religiosos, 
mas agora tam bém pelas perspectivas de com ercialização.20 Em 
1445, a fundação da praça de A rguim visava o desvio do com ér­
cio transaariano do Sudão, que se consolidava, pouco a pouco, 
com o en trep o sto im p o rta n te onde os p o rtugueses tro cav am 
cavalos, tecidos, m anufaturas de cobre e trigo por ouro em pó, 
escravos e m arfim . E sta praça a frican a se tornou um modelo
19 THOMAZ, L.F., op. cit., p.34.
20 ZURARA, G.E., op. cit., cap.VII.
40
de feitoria para as tan tas outras fundadas nas costas da Á frica 
e da Á sia.21
Nos anos 50 e 60, os italianos Cadam osto e U sodim are e o 
português Diogo Gomes exploravam o litoral desde a G âm bia 
até o rio Geba, iniciando o comércio das especiarias, sobretudo a 
pim enta m alagueta, com excelente m ercado na Europa. Em 1460, 
quando falecia o obstinado Infante, Pedro de Sintra chegava até 
Serra Leoa. Para além dessa região, D. A fonso V concedeu a res­
ponsabilidade de exploração a particulares, como foi o caso notável 
de F ernão Gomes, rico m ercador lisboeta de grossos cabedais, 
que a p a rtir de 1469 pôde navegar e com ercializar naquela área 
por cinco anos, chegando até o golfo da Guiné, em troca de um a 
renda anual ao rei.22 Foi nessa região, vale lembrar, outro achado 
precioso aos portugueses: a ilha de São Tomé, descoberta em 1471, 
m as colonizada apenas na década seguinte. Das principais ilhas 
no golfo, São Tomé destacou-se pelo cultivo da cana e fabricação 
do açúcar, cujas técnicas e organização se transp lan tariam para 
os engenhos nordestinos brasileiros a p a r tir de meados do século 
XVI.
Sob o reinado de D. João II (1481/1495) ocorreu a construção 
da im portante feitoria fortificada de São Jorge da M ina (1482), na 
Costa do Ouro da Baixa Guiné, representando o esforço inequívoco 
da continuidade do desvio do com ércio do ouro para o litoral.23 
Sem conseguirem p en e tra r no in terior, fonte do tão cobiçado 
produto, perm aneciam os portugueses à espera dos mercadores
21 BOXER, C., op. cit., p.48.
22 GODINHO, V. de M., op. cit., p.206.
23 “Mas a luta das caravelas portuguesas contra as caravanas mouras de camelos 
do Saara teve como resultado a predominância das primeiras no comércio
do ouro, por um período de cerca de cem anos, de 1450 a 1550. Durante o
reinado de D. Manuel I (1496/1521) importou-se, só de São Jorge da Mina, um
valor médio anual de 170000 dobras de ouro e, nalguns anos, a quantia foi
ainda superior.” BOXER, C., op. cit., p.51.
41
itinerantes africanos para concretizarem as transações. A Coroa 
portuguesa exerceu um verdadeiro monopólio da importação de 
ouro, escravos, especiarias e marfim, embora com o tempo cedesse 
a alguns particu lares o comércio destes três últimos artigos.24 * * *
A idéia de se dob rar a p o n ta m erid ional da Á frica para 
a tin g ir a ín d ia ganhou colorações defin itivas no reinado da­
quele m onarca, obstinado pela idéia de travar contatos com o 
lendário Preste João. Ele confiou a Diogo Cão o prosseguimento 
da exploração, que atingiu a desem bocadura do Zaire em 1483, 
estabelecendo contatos com o reino do Congo e chegando ao Cabo 
de Santa M aria, na atual Angola. A conquista do tão almejado 
lim ite sul da Á frica, ponta extrem a do continente, foi obra de 
Bartolom eu Dias: o Cabo das Torm entas, transform ado em Boa 
Esperança, assim cham ado por facultar a passagem direta para 
o índico, façanha pouco depois reputada a Vasco da Gama em 
1498. A bria-se cam inho ao com ércio das especiarias asiáticas 
pelo A tlântico, m onopolizadas pelos portugueses até a segunda 
m etade do século XVI.
A tra je tó r ia p o rtu g u esa na e tap a a fric an a da expansão 
desdobrou-se, portanto, em dois momentos diversos: para o Norte 
da Á frica, tendendo a se afirm ar como um a expansão m ilitar e 
cruzadística, e depois para a costa ocidental, onde os interesses 
económ icos se evidenciaram m ais fortemente.
Construía-se, assim, o império colonial português, percebido 
pela sensibilidade do cronista D am ião de Góis em 1554:
Hoje em dia, este mesmo Tejo dá leis e normas através de todas as
costas do Oceano, na África e na Ásia. A essas leis, se submeteu,
24 Segundo os arquivos de contabilidade do forte, o número de escravos aí 
negociados quase triplicou entre 1504 e 1522. Ver ALBUQUERQUE, L. de, 
Dicionário de história dos descobrimentos portugueses. Lisboa: Caminho, 
1993, v. I, p.379.
42
livremente ou à força, reis e príncipes dessas províncias, os quais 
prestam vassalagem aos portugueses, e muitos deles em número 
sempre crescente, vivem na obediência e na fé de Cristo. 25
O COMÉRCIO NEGREIRO PORTUGUÊS
O comércio de escravos no m undo m ed iterrân ico era intenso 
em finais da Idade Média, destacando-se as cidades italianas de 
Génova e Veneza, articuladoras de um considerável mercado, e 
regiões circunvizinhas do m ar Negro. A Península Ibérica era 
abastecida por cativos muçulmanos, obtidos através das guerras 
contra os cristãos, que em crescente aum ento a p a rtir do século 
XIII eram fonte constante de escravos. M as existiam escravos 
das mais diversas nacionalidades, sobretudo na Espanha: gregos, 
caucasianos, sardos e russos.26
As referências que designaram os cativos se atinham às na­
cionalidades, surgindo como “sarracenos”, “mouros”, “etíopes” ou 
“esclavos”, oriundos da Esclavonia, feitos prisioneiros do rei Otão, 
o Grande, rei da Germânia no século X. Acabou-se por im por 
e difundir o termo “escravo”, embora o próprio Z urara, em sua 
Crónica da Guiné (1463-1468), ofereça-nos palavras como “servo”, 
“m ouro”, “mouro-negro”, “cativo” e “alm a”.27
A s sequelas desastrosas da Peste N egra não p o u p aram , 
evidentemente, o mercado de m ão-de-obra, escasseando-o. Os 
portugueses e castelhanos valeram-se de incursões para o norte
25 GÓIS, D., Descrição da cidade de Lisboa. Lisboa: Livros Horizontes, 1988, 
p.59.
26 VERLINDER, C., L’esclavage dans VEurope médievale. Brugge: De Tempel, 
1949; GODINHO, V. de M., op. cit., p.151-152; HERRS, J., Escravos e servidão 
doméstica na Idade Média. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1983, p.24.
27 PIMENTEL, M.do R., Viagem ao fundo das consciências. O tráfico de escravos 
na Época Moderna. Lisboa: Colibri, 1995, p.20.
43
da Á frica, objetivando interceptar tam bém a navegação m oura 
m agrebina-granadina, e o arquipélago das C anárias, conhecido 
desde fins do século XIII, onde os rendosos resgates de cativos 
foram intensos, sob a forma de p ira taria e corso, fossem para uso 
nas atividades urbanas, fossem para exportar para outras regiões. 
Particularm ente o estreito de G ib raltar e a região do M agrebe 
eram pontos estratégicos, cruzando sobre si várias rotas mercantis 
importantes. Os portugueses, entrando em contato com os mouros 
do norte da Á frica, com a instalação em Ceuta em 1415, deram o 
passo inicial para o cam inho em direção à costa sul.28
* * *
D atam do início da década de 40 os prim eiros resgates na região 
do Rio do Ouro, fruto de contatos comerciais pacíficos e alianças 
locais. Contou-nos Z urara, em sua Crónica da G uiné (1463-1468), 
que A ntão Gonçalves trocara alguns jovens azenegues cap tura­
dos por escravos negros e ouro em pó, dando partida assim aos 
sucessivos resgates que daí se seguiram .29 Os prim eiros momentos 
dessas negociações foram tam bém descritos por outras narra ti­
vas, a exemplo do m ercador veneziano Cadamosto, m orador em 
Portugal en tre 1454 e 1463, e o navegador Diogo Gomes, cujas 
memórias foram registradas pelo alem ão M artin Behaim entre 
1484 e 1490.30 * * *
Em 1443, o Infante autorizava particulares a partir do Algarve
28 Já existiam negros em Granada, na Catalunha, em Aragão e em Maiorca 
desde o século XIII. GODINHO, V. de M., op. cit., p.153-155.
29 ZURARA, G.E., op. cit., cap.XII e XIII.
30 Cadamosto vai assistir à passagem aos novos enlaces comerciais em detri­
mento das guerras de apresamento quando descreve sua viagem pela terra
dos azenegues, mouros nómades habitantes da costa e explorados por ricos 
mercadores árabes, chefes das caravanas de comércio. Ver CADAMOSTO, L.,
Navegações. In: GARCIA, J. M., Viagens dos descobrimentos. Lisboa: Presença, 
1983, p.73-128.
44
para a costa africana e, no ano seguinte, Nuno Tristão apresava 
negros na região do Senegal. A inda nesse ano, o escudeiro de D. 
Henrique apanhou cerca de duzentos de uma só vez, provando as 
possibilidades lucrativas desse novo empreendimento, aglutinador 
de um intenso intercâm bio de produtos. Vindos do interior do 
continente, o ouro e os escravos eram trocados por cereais, panos e 
cavalos adquiridos nas praças marroquinas.31 A rguim foi um ponto 
im portante desse comércio, constituindo-se como entreposto de 
escambo com os chefes das com unidades africanas e meréadores 
locais.32 Na região da A lta Guiné, entre o rio Senegal e o Cabo das 
Palmas, houve casos de mercadores reinóis que penetravam nas 
tribos atuando como interm ediários das negociações, facilitando 
o comércio de prisioneiros intertribais e criminosos, feitos cativos 
nas com unidades negras. A lguns portugueses, inclusive, integra- 
ram-se completamente aos costumes e rituais daquelas sociedades, 
conhecidos por isso como “tangom ãos” ou “lançados”.33
O brilho do ouro, a ofuscar os olhos dos portugueses; o 
exotismo das especiarias e dos anim ais, aguçando a curiosidade 
e excitando o consumo de artigos como a pim enta-m alagueta, a 
pim enta-do-rabo, o m arfim , a m irra , tecidos, algodão, pedras 
preciosas, m adeiras, cestos, couros de anta, macacos, papagaios, 
canários, os gatos da Algália, lobos-marinhos e, por fim, o co-
31 O cavalo era especialmente apreciado, particularmente as crinas e os rabos, 
sendo até medida de preço de escravos. Segundo J. Munzer, passando por 
Portugal entre 1494 e 1495, até 1460 um cavalo velho valia de 25 a 30 escravos; 
depois os preços subiram, trocando-se cada escravo por 12 cavalos, e em inícios 
do XVI, chegava-se a, no máximo, cinco. MUNZER, J. “Do descobrimento 
da África marítima e ocidental, isto é, da Guiné, pelo Infante D. Henrique 
de Portugal”. In: BRASIO, A., Monumento missionário africana. Lisboa: 
Agência Geral do Ultramar, 1953.
32 AZEVEDO, J.L., Épocas de Portugal económico. Lisboa: Livraria Clássica 
1929, p.72.
BOXER, C., op. cit., p.53.33
45
mércio de negros, enriqueciam cada vez mais os cofres da Coroa 
e dos mercadores particulares.
A aparição pública dos etíopes - designação dos africanos 
encontrados a partir do rio Senegal - foi emblemática, marcando um 
novo momento da cam inhada pela Á frica, quando as navegações 
adquiriram um caráter de empresa comercial. Em outubro de 1451, 
casar-se-iam a infanta D. Leonor com Frederico III, monarca do 
Sacro Império Rom ano-G erm ânico, e a corte portuguesa prepa­
rava cuidadosamente as comemorações do enlace. Inaugurando as 
festividades que se desenrolariam por alguns dias, um majestoso 
banquete no palácio real. D entre os vários divertimentos que se 
seguiram até a m adrugada, ura espetáculo notável estarreceu 
os presentes: dançavam , alegres, trajados à moda de seu povo, 
entoando cantigas em ritm o febril, ao som de seus instrumentos 
típicos, numerosos negros, a saudar a jovem imperatriz. O tio 
de D. Leonor era ninguém menos do que o Infante D. Henrique, 
que há pouco descortinara outra porção do continente africano, 
chegando até a zona setentrional da Guiné, a terra dos negros.34
O comércio que se estabeleceu era exercido tanto pela coroa 
quanto pela iniciativa particular, fosse de mercadores ou senhores, 
desde que pagassem o tributo do quinto ao monarca para terem o 
direito de realizar viagens e resgates de alguns produtos. Em fins 
do século XV, no entanto, o ouro, os escravos e as especiarias da 
Guiné eram monopólio da coroa, restringindo-se aos particulares 
artigos secundários, em bora m uitas das vezes im perasse uma 
flexibilidade m ediante concessões ocasionais.35 *
34 Descrição do padre Nicolau Langmann de Falkenstein, reproduzida em 
SOUSA, A.C., Provas de História Genealógica. Lisboa, 1739, tomo I. Apud 
TINHORÃO, J. R., Os negros em Portugal. Uma presença silenciosa. Lisboa. 
Caminho, 1988, p.114.
35 É exemplo o caso do florentino Bartolomeu Marchione, que obteve licença
para o tráfico escravista e de marfim, além do monopólio da exportação dos
r
O tráfico de escravos em seu prim eiro meio século dirigiu-se 
sobretudo para o Algarve e para a cidade de Lisboa, cujo porto 
ostentava a pujança das caravelas carregadas de riquezas africa­
nas, das exóticas especiarias orientais e até do açúcar oriundo da 
Madeira, Cabo Verde e São Tomé em fins do século XV. O total de 
africanos saídos das principais feitorias fornecedoras ao Reino é 
difícil de ser quantificado exatamente. Particularm ente em relação 
a Lisboa, esta contagem se torna complexa, pois o terrem oto de 
1755 pôs abaixo os registros fiscais e comerciais existentes desde 
meados do XV, tendo-se portan to um a idéia aproxim ada a partir 
de outras fontes dispersas.36
Entre 1441 e 1448, é mais um a vez Z urara que contabiliza 
quase mil cativos negros desembarcados. A p a rtir de meados do 
século, estabelecidos os tratos pacíficos, de 700 a 800 chegavam 
anualmente a Portugal, segundo Cadamosto; ao fim do período, 
entre 1475 a 1495, a média elevava-se para 3.500 por ano só na 
região da A lta Guiné, mas no início do século XVI esse tráfico 
declinava, como se observa na Tabela 1 anexa.37
Paralelamente, entretanto, o núm ero de escravos negociados 
na região das ilhas do Golfo da G uiné só fez aum entar ao longo 
do século XVI. Destaque-se especialm ente a ilha de São Tomé e 
Príncipe como entreposto im portante do comércio de escravos para 
a América espanhola e o Brasil.38 Sua proxim idade em relação à 
costa oeste da África, sobretudo das feitorias São Jorge da M ina e
46
cativos para a Espanha e Itália. Ver GODINHO, V. de M., op. cit., p.204-207.
36 SAUNDERS, A.C. de C.M. História social dos escravos e libertos negros em 
Portugal (1441-1555). Lisboa: Imprensa Nacional/Casa da Moeda, 1982, p.40. 
Este trabalho, dentre a bibliografia sobre o tema, foi o queconsideramos 
mais completo, atualizado e documentado sobre os negros em Portugal no 
período a que se propõe analisar.
37 Idem, p.40-43. Ver também GODINHO, V. de M., op. cit., p.198.
38 BOXER, C., Relações raciais no império colonial português. Rio de Janeiro: 
Tempo Brasileiro, 1967, p.47.
47
A xim , fizeram -na atuar como aglutinadora do tráfico oriundo da 
A lta e Baixa Guiné, levando inclusive a Coroa a estabelecer, em 
1519, um a regulam entação específica acerca do tráfico destinado 
a São Tomé. E ntre 1525 e 1527, estimava-se um a cifra entre dois e 
três mil indivíduos por ano.39 Em 1554, por exemplo, enquanto a 
população escrava se com punha de cerca de dois mil, a de bran­
cos chegava a seiscentos, sem contar os cerca de cinco a seis mil 
escravos em trânsito, m antidos em galpões.40 A ilha de Santiago, 
no arquipélago cabo-verdiano, tam bém era foco de um tráfico 
intenso nesse século, chegando tam bém a um a m édia anual de 
cerca de 3.500 originários da M auritân ia e do Sahel.41
A p a rtir da segunda m etade do século XVI, os principais 
m ercados do trá fico foram o reino do Congo, descoberto em 
1482/83, e A ngola, que por m ais de dois séculos foi a principal 
fornecedora de escravos para o império português no A tlântico sul, 
sobretudo o Brasil, e em menor escala para a A m érica espanhola. 
O comércio angolano era realizado em mercados no interior - os 
“pum bos” - , por interm édio dos “pom beiros”, elementos mulatos 
em sua m aioria, negros livres e até escravos de confiança, que 
traz iam para a costa caravanas de cativos a serem negociados e 
embarcados da costa africana.42
A s m ercadorias adquiridas na Á frica negra eram freqúen- 
tem ente ex p o rtad as p ara ou tras regiões européias. A lgum as 
especiarias, com o a pim enta m alagueta, iam para Flandres; os 
escravos, para Castela e A m érica, ocasionando um movimento 
de subida de preços p articu la rm en te decorren te do m ercado 
am ericano, que não cessava de crescer a partir de meados dos 
quinhentos. Em bora não fosse significativo, o mercado italiano
39 SAUNDERS, A., op. cit., p.41.
40 LOPES, E.C., A escravatura: subsídios para sua história. Lisboa: 1944, p.29.
41 SAUNDERS, A., op. cit., p.41.
42 BOXER, C., O império colonial português (1415-1825), p.112.
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cresceu, sobretudo após 1453, quando os turcos bloquearam o 
fluxo de escravos originários do M ar Negro.43
O com ércio negreiro p ara fora de Portugal já era prática 
desde meados do século XV. A lucratividade certa e garantida 
fez o m onarca D. A fonso V desdenhar o apelo das cortes de 
1472/1473 para que se restringissem as exportações de escravos 
berberes e guineenses, necessários à agricultura in terna, embora 
ordenasse a vinda dos cativos da G uiné para o R eino antes de 
seguirem para outros portos estrangeiros.44 De Lisboa seguiam 
para Guadalquivir, Toledo, Valadolid, M edina del Campo, Sevilha, 
Barcelona, Valença.45 E sta últim a, em fins do século XV, tornara- 
se particularm ente um atraente mercado de escravos negros, mais 
caros do que em Lisboa, e obtidos por pertinazes comerciantes, 
dentre os quais o florentino Bartolomeu M archionni, arrendatário 
desse comércio.
O segundo quartel do século XVI m arcou o início de uma 
desp ropo rção en tre o núm ero de cativos desem barcados em 
Portugal e aqueles que eram repassados ao exterior. C ada vez 
m ais o m ercado in terno se reduzia d ian te das altas c ifras de 
exportação para a Espanha e suas colónias. Em 1510, a A m érica 
espanhola recebia seu prim eiro grande carregam ento de cativos, 
cerca de 250 africanos.
A organização desse comércio envolvia mercadores espanhóis 
acordados a arrendatários portugueses que faziam o percurso 
Á frica - Lisboa - Sevilha para depois, finalm ente, chegarem a 
seu destino último, via A tlântico. Depois de 1530, no entanto, os
43 SAUNDERS, A., op. cit., p.50.
44 “Portugal era, assim, o fornecedor de escravos no despontar do mundo 
moderno, tal como Veneza e Génova o tinham sido no mundo dos finais da 
Idade Média.” AZEVEDO, J.L., op. cit., p.76.
45 As cifras dessa exportação são muito pouco conhecidas, salvo em certos 
casos, como o de Valença. SAUNDERS, A., op. cit., p. 50.
49
escravos passaram a ser enviados diretam ente de Cabo Verde ou 
São Tomé p ara o Novo M undo, d im inuindo sobremaneira seu 
percurso, bem como a m ortalidade a bordo dos negreiros.46
O m ercado brasileiro adquiriu , pouco a pouco, um peso 
expressivo nesse comércio em finais do século XVI. A transição 
da m ão-de-obra indígena escravizada para a africana se fez gra­
dativamente nos engenhos açucareiros nordestinos. Diz-nos Stuart 
Schwartz que em 1572 o engenho baiano de Sergipe, propriedade 
do Conde de Linhares, possuía apenas 7% de escravos africanos. 
Já em 1591, esta proporção cresceu para 37%, e em inícios do 
XVII, praticam ente 100%. O volume do comércio negreiro para o 
Brasil ensejou algumas variações de estimativas. Fréderic M auro 
contabilizou cerca de cem m il exportados a partir de meados do 
XVI, num a média de mil por ano, incluindo os oriundos da Guiné, 
que eram a imensa maioria nesse período, e ainda os provenientes 
de São Tomé e Cabo Verde. Nas últim as décadas dos quinhentos 
esse volum e dobrou pelo fluxo de cativos vindos do reino do 
Congo e de A ngola,47 e ao se iniciar o século XVII esses números 
não cessaram de crescer, tornando-se Angola o foco principal 
das im portações coloniais.48 Inaugurava-se a í um momento de 
grande expansão da atividade açucareira brasileira: altos preços
46 Para o aprofundamento do conhecimento desse comércio, ver os trabalhos de 
SCELLE, G., Histoire Politique de la traite négrière aux Indes de Castille e 
BROWSER, F.P., The african slave in colonial Peru (1524/1650). Apud Idem,
p.61.
47 De 1575 a 1591, estima-se que vieram de Angola cerca de 52 mil escravos. Ver 
SERRÃO, J. (Org.), Dicionário da Historia de Portugal. Lisboa: Iniciativas 
Editoriais, 1963/71, v. II, p.78.
48 MAURO, E, Le Portugal et VAtlantique au XVII siecle. Paris, 1960, p. 147-52. 
Ver ainda os seguintes trabalhos: LOVEJOY, P.E., Transformations in Slavery. 
Cambridge, 1983; KLEIN, H.S., The M iddle Passage (Comparative Studies in 
the Atlantic Slave Trade). Princeton: Princeton University Press, 1978; CURTIS, 
P.D., The Atlantic Slave Trade: a Census. Madison, Wisconsin: University 
Press, 1969.
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no mercado europeu, aumento do consumo e utilização maciça do 
braço africano nos canaviais pernam bucanos e baianos.49
O comércio africano organizou-se institucionalmente a partir 
de 1486, quando a Vedoria da Fazenda da Guiné, criada em 1461 
no Algarve, foi transformada em Casa da M ina e Tratos da Guiné 
e transferida para Lisboa.50 A operacionalização do tráfico dos 
africanos coube à Casa dos Escravos, repartição da Casa da Guiné, 
tendo por função o recebimento dos cativos, a organização das 
vendas, a concessão de licenças e contratos a particulares para 
exercerem o tráfico na costa africana e nas ilhas de Cabo Verde 
e São Tomé, e o recolhimento de impostos variados, que incidiam 
sobre os escravos e outros artigos oriundos da Á frica Negra. Do 
desembarque à venda, o africano submetia-se a inspeções físicas, 
avaliação de preço etc. O escrivão da Casa dos Escravos registrava 
o número de escravos chegados, seu valor e a em barcação que os 
trouxera. Infelizmente, não se encontraram registros da proce­
dência desses cativos, salvo esporadicamente, como ocorreu entre 
1482 e 1516, quando a imensa m aioria dos negros que chegaram a 
Valência vindos de Lisboa eram wolofs da Senegâmbia.51
Não foi à toa que um largo do bairro da A lfam a, em Lisboa, 
ganhava o nome de Praça dos Escravos. E ra nesse local - ou ain ­
da no Pelourinho Velho, onde vários crim inosos eram punidos -, 
que os africanos sacramentavam sua transform ação em cativos, 
ao serem vendidos ao modo de cavalos, bois ou quaisquer outros 
animais domésticos. Os escravos eram adquiridos da

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