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Q uando se fala em mandinga, patuá, sincretismo religioso de m atriz africana, a primeira lembrança que nos ocorre é a Bahia, São Luís do M aranhão, o Brasil, o Haiti, talvez até mesmo as santerías praticadas em algumas ilhas do Caribe. Quem im a ginaria que em plena capital do Reino de Portugal, à época da Inquisição, ali pululasse um grande número de mandingueiros, negros e mestiços, em uma época desditosa em que a Santa Madre Igreja e EI Rei tinham plenos poderes de prender, açoitar e até queimar na fogueira os rebeldes de consciência que ousassem praticar rituais e crenças contrários aos dogmas e costumes da Religião Católica Apostólica Romana! Graças à profunda e exitosa pesquisa de Daniela Buono Calainho temos acesso pela primeira vez, de forma sistemática e ampla, aos subterrâneos das crenças populares de inspiração africana que proliferaram no Reino de Portugal e encantaram a tantos de nossos ancestrais entre os séculos XVI e XVIII. L uiz M ott VISITE-NOS EM www.garamond.com.br ISBN 978-85-7617-153-9 G D aniela Buono Calainho M ETRÓ PO LE D A S M A N D IN G A S DANIELA BUONO CALAINHO METRÓPOLE DAS MANDINGAS RELIGIOSIDADE NEGRA E INQUISIÇÃO PORTUGUESA NO ANTIGO REGIME http://www.garamond.com.br É m uito bem-vindo este M etrópole das mandingas, cujo título, por metáfora, resu me a novidade da pesquisa: a demonstração de que os cultos e ritos africanos, m istu rados ao catolicismo, floresceram não só no Brasil, mas no próprio Portugal. Entre os ritos praticados pelos jambacousses, o mais destacado era a m andinga, melhor dizendo, o uso e tráfico da bolsa de m an dinga. O riginária do reino de Mali, região islamizada, a bolsa era então um saquinho contendo algum versículo do Alcorão. À m edida que o uso da bolsa se expandiu no espaço atlântico, foi aum entando de tam anho e diversificando seu conteúdo: lascas de pedras d ’ara, balas de chumbo, olho de gato, osso de defunto. Túdo para proteger o corpo, entre outros fins. Não raro continha também uns papelitos com orações a São Marcos. D aniela Calainho exam ina em detalhe o sincretismo presen te na m andinga e noutros ritos. Em sua pesquisa chegou mesmo a encontrar uma bolsa ao vivo, apensa a um processo da Inquisição. Coisa de arrepiar. A Inquisição, como é óbvio, perseguiu m uitos m andin gueiros. Alguns foram queimados. Mas o melhor do livro é ver de perto a circulação de crenças entre Brasil, Portugal e África. U m a prova de que há séculos os Exus atuavam em vários continentes. Salve! Ronaldo Vainfas Professor Titular de História Moderna - UFF METRÓPOLE DAS MANDINGAS -kA I -,Q Í S ) 'Cr G a t a m o n d | U N I V E R S I T Á R I A | Coordenação Maria A lzira Brum Lemos Conselho E d ito ria l Bertha K. Becker Cândido Mendes Cristovam Buarque Ignacy Sachs Jurandir Freire Costa Ladislau Dowbor Pierre Salama DANIELA BUONO CALAINHO METRÓPOLE DAS MANDINGAS RELIGIOSIDADE NEGRA E INQUISIÇÃO PORTUGUESA NO ANTIGO REGIME Garamond Copyright © 2008, Daniela Buono Calainho Direitos cedidos para esta edição à E ditora G aram ond Ltda. Rua da Estrela, 79 - 3o andar CEP 20251-021 - R io de Janeiro - Brasil Telefax: (21) 2504-9211 e-mail: editora@garamond.com.br website: www.garamond.com.br Preparação de originais e revisão Carmem Cacciacarro Projeto gráfico, capa e editoração Estúdio Garamond / Anderson Leal Capa a partir de Negro fugitivo , óleo sobre tela de Jean B. Debret (séc. XIX) . CIP-BRA SIL. C A T A L O G A Ç Ã O -N A -FO N TE SIN D IC A TO N A C IO N A L D O S ED IT O R E S D E LIVROS, R J C143m Calainho, Daniela Buono, 1963- Metrópole das mandingas: religiosidade negra e inquisição portuguesa no antigo regime / Daniela Buono Calainho. - Rio de Janeiro: Garamond, 2008. 320p.: il., mapas Inclui bibliografia ISBN 978-85-7617-153-9 I. Negros - Portugal - Religião - História. 2. Inquisição - Portugual - Século XV-XVIII. 3. Portugal - Civilização - Influências africanas. I. Título. II. Título: Religiosidade negra e Inquisição portuguesa no antigo regime. 08-5010. CDD: 946.902 CDU: 94(469)”14/17” 12.11.08 18.11.08 009791 Todos os direitos reservados. A reprodução não-autorizada desta publicação, por qualquer meio, seja total ou parcial, constitui violação da Lei n" 9.610/98. A. M aria H elena B uono Calainho e Luiz C alainho (in m em oriam ), m eus pais. "V Para L uiza Vainfas, m inha filha. I í mailto:editora@garamond.com.br http://www.garamond.com.br S U M Á R I O A gradecim entos 9 Prefácio 13 Introdução 19 I - A fricanos em Portugal 31 II - Jabacousses e gangazambes: feiticeiros negros no reino 69 III - A m andinga de Deus 113 IV - Na ro ta das m andingas 158 V - Lusitânia bruxa 189 VI - Negros hereges, agentes do D iabo 223 Conclusão 261 Fontes e bibliografia 265 Anexo I - Tabelas e gráficos 281 A nexo II - M apas 299 A nexo III - Imagens 305 A G R A D E C I M E N T O S E ste tra b a lh o foi o rig ina lm en te m in h a tese de doutoram ento defendida na U niversidade Federal Flum inense em 2000, e, no percurso que trilhei na época, algumas pessoas e instituições foram fundam entais. Os agradecim entos a elas, renovo-os aqui. À Prof*. D ra. Rachel Soihet, agradeço a orientação e a per tinência de suas sugestões. Aos funcionários da Pós-graduação da UFF, pelo profissionalismo, especialm ente a M iriam Schmidt, que aliou a isso delicadeza e carinho. Sem o auxílio financeiro da CAPES, que me concedeu bolsa de pesquisa nos arquivos portu gueses, en tre fins de 1997 e inícios de 1998, meu estudo teria sido inviável. A o Prof. Dr. F rancisco B ethencourt, da Universidade Nova de Lisboa, tam bém m eu reconhecim ento pela orientação do trabalho em Portugal. A os colegas do D e p a rta m e n to de C iências H um anas da Faculdade de Form ação de Professores da UERJ e ao PROCAD, meus agradecim entos sinceros pelo tempo precioso que me con cederam p ara finalizar o trabalho. A pesquisa em Lisboa foi com partilhada com alguns queridos colegas, com o Bruno Feitler, com quem dividi ótimos momentos em Lisboa e a alegria de descobrir documentos na Torre do Tombo. Dos amigos portugueses que tão bem me acolheram, Luiz Frederico foi inesquecível, com o tam bém o Prof. José Veiga Torres, pelo m odo am abilíssim o com que m e recebeu em Coimbra. 10 A Caio Boschi, meu afeto e gratidão pelo apoio e carinho de muitos anos, pela presteza com que por vezes me trouxe de Portugal livros e documentos esquecidos, pela le itura crítica apurada de uma das versões da tese. Luiz M ott, com o sem pre, indicou-m e documentos, bibliografia e referências po r ele encontradas na vastidão dos “Cadernos do Prom otor”. C om partilhar da sua am i zade é para mim um a grande alegria desde que nos conhecemos, há mais de vinte anos, nas apertadas m esas do antigo prédio do Arquivo da Torre do Tombo, ainda em São Bento. Rogério de Oliveira Ribas, com sua inesquecível acolhida em Portugal, sua alegria, força e afeição, tornou os meses de pesquisa no inverno lisboeta extremamente calorosos e agradáveis. A N irce de Oliveira Ribas, todo o meu carinho por com igo dividir m ais esta vitória. A Iara de Lima e Kléber Tani, por m e ensinarem a ver a vida com mais serenidade e tranquilidade, m inha gratidão por ter podido lidar melhor com o difícil percurso que os anos do doutorado me impuseram. Alguns amigos muitíssimo queridos, com quem tenho o priv i légio de partilhar, há vários anos, um a prazerosa e enriquecedora convivência, meu afeto e reconhecim ento é m ais do que especial pelo apoio ím par que deles recebi: a José R oberto Góes, pela força e pela ajuda preciosa na cõnfecção das tabelas, e a M aria Fernanda Vieira M artins, pela dedicação e em penho afetuoso da últim a leitura. Pedro Pasche de C am pos, tam bém versado nos estudos da Inquisição, pela le itura a ten ta do projeto e por indicações de bibliografia. A Célia C ris tinaTavares, agradeço pela sua incomum generosidade e franqueza, pela paciência, pela contínua disponibilidade em socorrer-me nas artes do computador, pelo carinho com que sempre me ajudou a “m ira r na lua”, e pelos nossos quase 30 anos de am izade. Lem bro tam bém de T ân ia e Rui Bessone, porque, com sua alegria, fazem tudo parecer bem mais fácil do que é. 11 A R onaldo V ainfas, que esteve presente desde o início da elaboração desta M etrópole das M andingas, da idéia do projeto à redação final da tese, m inha gratidão e reconhecim ento pelo estímulo de sempre. D e M aria Helena, m inha mãe, e de Lula e G abri, meus m a ninhos, recebi o am or e o incentivo necessários p ara chegar ao fim. Luiza, felizmente, conseguiu suportar m inhas ausências e humores, sobretudo na fase final da redação. A T itá, onde quer que esteja, na torcida po r m im , um obrigado de longe. A Luiz Calainho, meu pai, que em seu últim o vôo foi exemplo de coragem e determ inação d ian te da vida, dedico este trabalho. f P R E F Á C I O Q uando se fala em m andinga, patuá, sincretism o religioso de m a triz africana, a prim eira lem brança que nos ocorre é a Bahia, São Luís do M aranhão, o Brasil, o Haiti, talvez até mesmo as santerías p raticadas em algum as ilhas do Caribe. Q uem im aginaria que em plena capital do Reino de Portugal, à época da Inquisição, ali pululasse um grande número de mandingueiros, negros e mestiços, em um a época desditosa em que a Santa M adre Igreja e EI Rei tinham plenos poderes de prender, açoitar e até queimar na fogueira os rebeldes de consciência que ousassem praticar rituais e crenças contrários aos dogmas e costumes da Religião Católica Apostólica Romana! Fora da Igreja não há salvação, repetiam os defensores da ortodoxia religiosa, na estrita observância do ensinamento do Filho de Deus: “um só rebanho e um só pastor!” G raças à p ro funda e exitosa pesquisa de Daniela Buono Calainho, docente na U niversidade do Estado do Rio de Janeiro, tem os acesso pela p rim eira vez, de form a sistem ática e am pla, aos subterrâneos das crenças populares de inspiração africana que proliferaram no Reino de Portugal e encantaram a tantos de nossos ancestrais en tre os séculos XVI e XVIII. M etrópole das mandingas: religiosidade negra e Inquisição portuguesa no Antigo Regime realiza a arqueologia profunda da pré-história das religiões afro-luso-brasileiras, revelando suas variegadas manifestações - e repressão! - e o quão significativa foi a crença nos poderes pre- 14 ternaturais da ritualística de m atriz africana, não apenas entre os colonos da América Portuguesa, mas no próprio Reino e na mesma capital e metrópole onde, im ponente e assustadora, se situava a Casa Negra do Rocio, sede do Santo T ribunal da Inquisição. D aí o inspirado título deste livro, M etrópole das m andingas - origi nalmente tese de doutorado, defendida na U niversidade Federal Fluminense em 2000, da qual tivemos o privilégio de fazer parte da banca exam inadora -, obra tão interessante por suas descobertas e revelações, gostosa de ler, tra tando de tem as pouco conhecidos e muito atuais na discussão contem porânea sobre religiosidade e miscigenação cultural afro-luso-brasileira. E ste é dos ta is livros que têm o poder de nos enfeitiçar, e cujo único exorcismo é ter m inar sua prazerosa leitura! Conheci Daniela em 1986, no antigo prédio do A rquivo da Torre do Tombo, em Lisboa, quando, ainda aprendiz de feiticei ra, iniciava suas pesquisas históricas, p rim eiram en te sobre os familiares do Santo Oficio, tema de sua dissertação de m estrado - publicada em livro pela Edusc em 2006 com o títu lo A gentes da fé. Familiares da Inquisição portuguesa no Brasil colonial estudo pioneiro e fundam ental para a com preensão de com o fun cionava a eficaz e temida rede de funcionários-espiões do Tribunal do Santo Oficio da Inquisição na A m érica Portuguesa, os quais, como pontas-de-lança deste “m onstrum terribilem”, mantiveram os súditos portugueses e estrangeiros sob o perpétuo regime de medo e insegurança, posto que até EI Rei poderia se to rnar potencial mente réu do Tribunal da Fé, caso proferisse algum a proposição suspeita de heresia ou praticasse atos heterodoxos, qualificados como “crimes do conhecimento do Santo O fício”. Do estudo institucional dessa milícia de oficiais responsáveis pela manutenção do bom funcionam ento do Tribunal da Santa Inquisição em todo o vasto im pério lusitano, D aniela C alainho enveredou pelo “submundo” dos réus envolvidos com heterodoxias 15 m arcadas não só pela “im pureza de sangue”, m anifesta na cor negra ou am ulatada da pele de seus praticantes, com o pelo “ne grum e” de sua inspiração diabólica, já que no im aginário judaico- cristão, e universalm ente em toda a cristandade, D eus sem pre foi visto e re tra tado com o branco, com feições m ais para o fenótipo ariano que palestino, e Satanás, p in tado preconceituosam ente como negro retinto. Já em 1535, quando o tráfico negreiro ainda não com pletara um a cen tú ria , um v isitan te estrangeiro assim se referiu à presença negra no Reino: “Os escravos pululam por toda a parte. Todo serviço é feito por negros e m ouros cativos. Portugal está a abarro tar com essa raça de gente. M al pus o pé em Évora, julguei-m e transportado a um a cidade do Inferno: por toda a parte , topava negros”. De fato, Metrópole das m andingas revela o quão significativa foi a presença de negros curandeiros, benzedores, m andingueiros, calunduzeiros e adivinhadores no Reino, que com suas orações fortes, patuás, bolsas e panelas de m andinga, pactos com o diabo e outras “superstições”, m uitas vezes vendidas po r altas somas, prom etiam ventura, saúde, vantagens sexuais ou am orosas, “fe chavam o corpo”, faziam adivinhações ou pressagiavam dúvidas e inquietações as m ais diversas e com ezinhas, com o quem roubara objetos pessoais, onde se escondia o negro fujão, ou a inda se fulano estava vivo ou m orrera, com o conquistar aquela mulher tão cobiçada etc. etc. Çomo bem salienta a pesquisadora, escorada não apenas em sua prolongada perm anência na Torre do Tombo, m as tam bém no depoimento de outros luso-brasileiros e estrangeiros especialistas nas Inquisições, a farta docum entação produzida pelos escribas e notários do Santo Oficio - m ais de 40 mil longos processos e m i lhares de “cadernos”, como os inexauríveis Cadernos do Promotor - constitui riquíssim o m anancial etnográfico, que, pela sua unici dade e riqueza de detalhes, após devidamente depurados, permitem 16 ao pesquisador contem porâneo reconstitu ir bastante fielm ente o universo e o cotidiano de certas categorias sociais, sobretudo a “arraia-m iúda” - sodom itas, feiticeiros, bígamos, blasfemos - , que se não fossem os processos produzidos pela repressão inquisitorial perm aneceriam no lim bo dos desconhecidos. Se hoje em dia, com as garantias constitucionais da liberdade religiosa, persiste fo rte m ente en tre os adeptos do candomblé, um banda e quim banda, a m áxim a de que “o silêncio é a alm a do negócio”, havendo muitos rituais e “ebós” cujo conhecim ento e participação são secretos e privativos apenas de iniciados, im aginem os então, naqueles idos em que as crenças não-católicas eram etnocentricamente rotuladas e penalizadas com o “crim e” de heresia, feitiçaria e diabolism o, quão d ifíc il seria recu p e ra r ta is m anifestações heterodoxas e clandestinas se não fosse a sanha investigatória (inquisição vem de inquérito) e persecutória do T ribunal da Fé, que, apesar do enorm e sofrim ento causado a suas vítim as, produziu um m aterial riquíssim o, não apenas p ara o resgate de nossa história multicul- tural, com o para m elhor entenderm os certos dilemas, neste caso específico do presente e fu turo das religiões de m atriz africana. E constatar o quanto a história pode ser recorrente, obrigando-nosa p restar m ais atenção às lições do passado para não repetirm os os mesmos erros no presente. Q uem im aginaria que, nos finais do século XX, um pai-de- santo baiano abriria seu próprio terreiro em Portugal, adquirindo um a bela e espaçosa chácara em Sintra, a meia hora de trem de Lisboa, reconstruindo a í toda a infra-estrutura peculiar das nossas casas-de-santo da nação Ketu, onde salta aos olhos a m arcante presença do sincretism o afro-índio-cristão. O grande núm ero de filhos e filhas-de-santo portugueses reflete o sucesso deste can domblé ketu-baiano-português. Nos últim os anos, contudo, pari passu a crescente universa lização e a grande diáspora do culto aos orixás, nota-se na Bahia, 17 no Brasil e alhures um a forte tendência à reafricanizaçao da cos mogonia e ritualística dessas religiões, censurando, exorcizando e excomungando todos os elementos híbridos supostamente não afri canos acumulados ao longo de gerações, como se fossem imposição da catequese cristã ou, esperta cam uflagem dos escravos em dar nomes de santos católicos a seus orixás, uma espécie de estratégia de sobrevivência p ara enfren tar a repressão colonizadora. Metrópole das m andingas comprova exatamente o contrário: assim como ocorreu com o cristian ism o e as principais religiões universais, tam bém os africanos e seus descendentes incorporaram livremente novos elementos religiosos de outras culturas em seu panteão, cosmogonia e ritualística. Insisto, o sincretismo católico- afro processou-se livremente, sem im posição dos colonizadores, pois nada obrigava aos calunduzeiros, mandingueiros, jabacous- ses, gangazam bes, quim bandas, e ou tras castas de “feiticeiros”, incluir em seus ritua is secretos ou dentro de seus clandestinos patuás elementos próprios da religião dos dominadores - como as orações fortes de São M arcos ou o Credo às avessas, a hóstia consagrada, um pedacinho da pedra d ’ara dos altares das igrejas, ou arrem edar um a santa m issa nos conventículos diabólicos do Sabá. Se todos esses rituais e “sacram entais” eram realizados longe dos olhos condenatórios dos padres, senhores e inquisidores, por que m anter a presença de tantos elementos cristãos em algo que poderia ter se m antido genuinam ente tribal e africano? Nossa crítica a esse rousseauniano retorno às raízes africanas, com a d iscrim inatória excom unhão de variados sincretismos já existentes na p róp ria Á frica e organicam ente incorporados há quando menos meio milénio pelos africanos e seus descendentes, não só na “m etrópole das m andingas”, mas sobretudo na diáspora do Novo M undo, ta l crítica é ra tificada pela venerável Yalorixá Olga de A laketu, de saudosa m em ória, mãe biológica e de santo do citado B abalorixá de Sintra. A o ser questionada sobre a pre 18 sença de divindades cristãs e indígenas em seu fam oso terreiro em Salvador, do alto de sua sapiência, ela deu resposta definitiva: “Com os orixás da Á frica e os santos de Rom a juntos, a união faz a força!” Metrópole das m andingas consagra D aniela com o m estre feiticeira”, pois, além do resgate criterioso de um a h istó ria fan tástica e fascinante das religiosidades africanas e seu confronto e sincretismo com o catolicismo luso-brasileiro, desvenda mitos, m entiras e intolerâncias. E sobretudo nos m ostra, com muitos episódios dram áticos recolhidos nos processos inqu isito ria is da Torre do Tombo, o quanto as religiões, todas elas, podem ser tanto um feliz motor de solidariedade com o um negativo fator de alienação. L u iz M ott Professor titu lar de A ntropologia, U niversidade Federal da Bahia I N T R O D U Ç Ã O Vários intelectuais brasileiros, após a década de 1930, dedicaram - se a com provar a existência ou frouxidão do preconceito racial no Brasil, a exemplo de G ilberto Freyre, gerando a crença num a democracia racial que se estendeu por algumas décadas. Passível de inúm eras críticas que não cabe aqui desenvolver, a tese de Freyre, no entanto, m ostrou a íntim a convivência entre os portugueses e outros povos, particu larm ente os africanos, em bora sem grande aprofundam ento do tem a.1 A nalisando as bases da colonização portuguesa no Brasil como sendo essencialm ente ag rária na sua estru tu ra , ao menos nos dois prim eiros séculos, Freyre, apesar de não p recisar em detalhes os term os deste convívio, resgatou a predisposição do português p a ra um a colonização h íb rida e escravocrata, ju s ti ficada pela g rande influência da cu ltu ra africana em Portugal. O sucesso da colonização portuguesa em regiões tão d íspares geográfica e culturalm ente, não só a Á frica, m as ainda a Á sia e a A m érica , se ju s tif ic a ria pela m obilidade social do p o r tu guês e, sobretudo, pela sua grande capacidade de se miscigenar. Assim , foi a p a r tir da tendência n a tu ra l à m iscibilidade racial que, segundo G ilberto Freyre, Portugal com pensou-se da falta de 1 FREYRE, G., Casa-grande e senzala. R io de Janeiro: Círculo do Livro, 1980. 20 recursos hum anos para a colonização em larga escala e em áreas extensas. A s idéias de G ilberto Freyre inspiraram -nos p ara um olhar m ais detalhado sobre essa aprox im ação entre o po rtuguês e o negro, resgatando esse universo flu ido en tre Portugal e Á frica através de um aspecto específico: aquele que tenta d a r conta da religiosidade negra no próprio Reino e da repressão que algum as dessas manifestações sofreram por p arte da Inquisição portuguesa en tre os séculos XVI a XVIII. O s negros em P ortugal com puseram , a p a r t i r do século XV, um contingente de m ão-de-obra escrava que, em bora quan titativam ente não fosse significativo, deixou m arcas na cultura po rtuguesa . In teg ra ram o m ovim ento geral de c ris tian ização im posta às populações pagãs no Im pério e, em meio a esse pro cesso, constitu íram e ali im plem entaram um conjunto de crenças e práticas em que ritos originários do continente negro se am alga m aram ao catolicismo e às tradições européias. O que tentarem os reconstitu ir é o quadro dessas m anifestações, ten tando resgatar, quando possível, as raízes africanas de algumas dessas crenças e práticas, bem com o os m ecanism os através dos quais elas foram associadas à feitiçaria e, portanto, passíveis de perseguições por parte da Inquisição portuguesa. O período que estudam os foi vasto: de meados do século XV, quando os prim eiros africanos desem barcaram em Portugal, até fins do século XVIII, quando o Regim ento Inquisitorial de 1774, em meio às transform ações em preendidas por Pombal, não mais associou as cham adas “superstições” e feitiçarias a um pacto com o Diabo, dim inuindo assim o número de incriminados. Essa última baliza cronológica se deve à natureza das fontes que elegemos para analisar as manifestações de religiosidade dos negros em Portugal: a docum entação inquisitorial, particu larm ente os processos e as denúncias dos réus negros e m ulatos incrim inados por feitiçaria. 21 O historiador italiano Cario G inzburg dimensionou m uito bem as possib ilidades e tnog ráficas dessas fontes. A pesar de aplicarem m étodos diferentes, inquisidores e antropólogos têm rigorosam ente os mesmos objetivos: desvendar um determinado universo de crenças, símbolos e valores que emergiriam mediante o testem unho de indivíduos incrim inados.2 “Espreitar por cima dos om bros do inquisidor”, ansiando por um a confissão revela dora, era a expectativa de G inzburg quando se debruçou sobre os autos processuais do m oleiro italiano Mennochio, condenado como herege e queim ado pela Inquisição no século XVI.3 A busca de um a “verdade” p rópria do Santo Ofício levou à produção desta docum entação, detu rpada em vários casos m e dian te a pressão psicológica e física a que por vezes os réus eram submetidos nas sessões de to rtu ra .4 A Inquisição tentava filtrar as falas e atos dos incrim inados objetivandoajustá-los aos seus estereótipos e considerando-os hereges em função dos códigos mo- ralizantes, do ideário e das prerrogativas da instituição. Embora o discurso dos réus, em muitos casos, soasse como eco das perguntas dos inquisidores, por vezes gerava um real diálogo entre ambos, como no estudo dos bennandanti - indivíduos praticantes de um culto agrário de fertilidade na região do Friuli (Itália) entre fins do século XVI e meados do XVII. Nesse sentido, eram descritas as batalhas noturnas que os cam poneses, em espírito, travavam contra as bruxas para o bom sucesso das colheitas.5 Na concepção 2 GINZBURG, C., “O inquisidor como antropólogo. Uma analogia e suas im plicações”. In: A micro-história e outros ensaios. Rio de Janeiro: Difel, 1989, p.206. 3 Idem. O queijo e os vermes. O cotidiano e as idéias de um moleiro perseguido pela Inquisição. São Paulo: Companhia das Letras, 1987. 4 Idem. “O inquisidor como antropólogo...”, p.207. De todos os processos que lemos e analisamos, foram raros os casos em que os negros não foram tortu rados. 5 Idem. Os andarilhos do bem. Feitiçaria e cultos agrários nos séculos XVI e 22 dos inquisidores tais descrições eram claros indícios de sabats, mas, em termos etnográficos, configuravam -se como riquíssim os relatos de práticas meticulosamente registradas. Esses “antropólogos mortos”, portanto, ao tentarem arrancar as confissões dos réus, deixavam entrever traços significativos da religiosidade dos negros em P ortugal. N essa d im ensão , e apropriando-se da proposta in terpretaiiva de G inzburg, poder- se-ia dizer que os “arquivos da repressão”, em bora “fragm entários e deform ados”, são um a via através da qual a cu ltu ra popu lar chega até nós.6 O Tribunal do Santo Ofício português produziu fontes bas tante ricas para a análise de sociedades que foram fustigadas pelo seu ím peto persecutório, racial, religioso e moral. Portugal e seu im pério ultram arino foram vasculhados incessantem ente, origi nando considerável m assa de processos e denúncias, a p a rtir dos quais se revelaram múltiplos aspectos de um a h istória que pode ser social, política, cultural, da vida privada e até económica. Dos porões dos tribunais inquisitoriais de Lisboa, Coim bra, Évora e Goa, as narrativas dessas vidas e a docum entação relativa à estru tu ra organizacional do Santo O fício transferiram -se há algumas décadas para o A rquivo N acional da Torre do Tombo, em Lisboa. Lá, procedemos ao levantam ento dos processados nas cham adas “listas de autos-de-fé”, onde se registravam os dados pessoais dos réus e as respectivas sentenças, lidas em público nos autos-de-fé.7 Em seguida, ao localizam os no banco de dados XVII. São Paulo: Companhia das Letras, 1988. 6 Idem. O queijo e os vermes... p.28. 7 O auto-de-fé inquisitorial era evento da maior importância no sentido de explicitar à sociedade o poder repressivo do Santo Ofício. Reunindo os altos dignitários da Inquisição e todos os réus acusados, era um espetáculo público meticulosamente preparado, realizando-se em Igrejas ou praças. Seu clímax era a leitura pública das sentenças dos acusados e a subsequente condenação de alguns deles à fogueira. SARAIVA, A. J., Inquisição e cristãos-novos. Lisboa: 23 do arquivo os respectivos processos, passam os à análise dessas fontes. O volume de denúncias relativas à feitiçaria recebidas pelos diversos tribunais era imenso, bem m aior que o núm ero de réus efetivam ente processados. O s núcleos docum entais que u tiliza mos para levantar esses denunciados foram principalm ente os Livros de visitações e denúncias , 8 e os C adernos do Promotor, onde pudem os localizar, dentre outras, várias referências a ne gros curandeiros, benzedores, calunduzeiros e adivinhadores. A p artir dessas acusações, o Santo O fício deliberava sobre aqueles que de fa to se riam in c rim in ad o s. D o to ta l de 369 C adernos do Prom otor, referentes aos tr ib u n a is inquisitoriais de Lisboa, Coim bra e Évora, um a pequena am ostragem foi consultada em função do pouco tem po de pesquisa de que dispúnham os, pois privilegiamos a consulta aos processos já levantados nos autos- de-fé. A lém da docum entação do S an to O fício, consultam os: a legislação portuguesa e inquisitorial; narrativas de viajantes e cro nistas, onde encontram os referências pontuais sobre os negros em Portugal; algumas crónicas descritivas das comunidades africanas no século XVII e, por fim, os volumes da M onum ento Missionário Africana, im portante coletânea de documentos relativos à presença portuguesa na Á frica entre os séculos XV e XVII. D e um m odo geral, a produção historiográfica sobre os a fri canos em Portugal pareceu-nos bastante limitada. Nos clássicos da história portuguesa e na obra dos folcloristas, as culturas negras aparecem, quando muito, através de vestígios e traços fragm en- Estampa, 1985, cap. “O que era um auto-de-fé?” 8 As visitações inquisitoriais eram instrumento fundamental para o vascu lhar de hereges no Império Português, dele originando enormes listagens de confidentes e denunciados. BETHENCOURT, F, História das Inquisições: Portugal, Espanha e Itália. Lisboa: Círculo de Leitores, 1994, p. 167-191. tários, em regra atreladas ao m ovim ento de expansão lusitana em direção à Á frica, restringindo-se assim aos séculos XV e XVI. Em relação às m anifestações religiosas dos negros, então, a om issão é o que prevalece. D estaca ríam o s, no en tan to , a lguns trab a lh o s que fo ram fundam entais para situarm os os africanos em Portugal. O estudo mais sistem ático a respeito da escravidão em terras lusitanas foi publicado na Inglaterra em 1982 por A. C. de C. M. Saunders, A Social H istory o f B lack Slaves and Freedm en in Portugal - 1441- 1555, posteriorm ente traduzido para a língua portuguesa, onde o autor aborda tem as com o o tráfico negreiro, a dem ografia, as atividades económicas, a legislação e as alforrias, embora dedique poucas páginas à relação entre os negros e o cristianism o. O livro de A ntônio Brásio Os pretos em Portugal, de 1944, é bem m enos denso, em bora seja d igno de referência p o r ser um a das poucas obras específicas sobre o tem a na historiografia portuguesa. Utilizamo-nos ainda do trabalho de José Ramos Tinhorão, Os negros em Portugal, onde tam bém encontram os um a panorâm ica geral acerca da presença africana na sociedade portuguesa, na literatura de cordel, nos textos teatrais e no m ercado de trabalho, embora tam bém aborde superficialmente aspectos da religiosidade negra em Portugal. M aria do Rosário Pimentel, em trabalho intitulado Coroação do rei do Congo, apresentado no VIII Congresso Internacional “A Festa”, organizado pela Sociedade Portuguesa de Estudos do Século XVIII (novembro de 1992), destacou um aspecto interessante da religiosidade africana em Portugal ao estudar a teatralização que os negros de Lisboa realizavam um a vez por ano na capela da igreja de Nossa Senhora do Rosário a p a rtir de meados do século XVI. O rganizadas por irm andades negras, as festas de “coroação de reis congos” em tudo lembram as congadas da Colónia, festas a 25 um só tem po expressivas de um catolicismo negro (talvez banto) e da p rópria religiosidade africana. N o caso da feitiçaria e religiosidade popular em Portugal, os estudos m ais com pletos sobre o tem a são os de Francisco B ethencourt - O im aginário da magia. Feiticeiras, saludadores e n igrom antes n o século X V I (1987) - e de José Pedro Paiva - Bruxaria e superstição num país sem “caça às bruxas”. 1600-1774 (1998) - , que forneceram subsídios fundam entais para as questões que procuram os desenvolver ao longo do trabalho, mesmo sem tra ta r especificam ente das m anifestações da população africana e seus descendentes. A poiam o-nos, po r fim , em trab a lh o s referentes ao Brasil, com o O diabo e a terra de Santa C ruz. Feitiçariae religiosidade popu lar no Brasil colonial e O in ferno atlântico, de Laura de Mello e Souza, e os vários artigos de Luiz M ott, que muito auxi liaram nossas reflexões sobre as crenças e devoções dos africanos em Portugal. E ste trabalho se inscreve no cham ado cam po da história cul tural, especialm ente na vertente desenvolvida por Cario Ginzburg. Em seu O queijo e os vermes, o au tor definiu cultura como uma “m assa de discursos, form as de consciência, crenças e hábitos relacionados a determ inado grupo historicam ente determinado”.9 Cuidou, portanto, inspirado em B akth in , de distinguir a chama da “cultura popular” ou “oral” da “cultura erud ita” ou “letrada”, dim ensionando o intercâm bio que se estabelece entre esses níveis culturais e introduzindo o conceito de circularidade cultural para defin ir essa dinâm ica. A dotam os essa perspectiva de circularidade cultural de tipo vertical entre as categorias sociais, m as acrescentaremos a idéia de circu laridade horizontal sugerida pelo p róprio Ginzburg no 9 GINZBURG, C. O queijo e os vermes..., p.15-33. 26 seu História noturna. Referim o-nos aqui ao seu estudo sobre a construção do estereótipo do sabbat, que o au to r concebe não como pura invenção dos dem onólogos, nem tam pouco com o expressão de um a autêntica e p u ra “religiosidade popu lar”, mas como um resultado h íbrido de diversas culturas, espalhadas no espaço e no tempo. A propósito do complexo cu ltural do sabbat, construído na Europa a p a rtir da difusão, justaposição e mescla de ingredien tes culturais heterogéneos e, não raro, assincrônicos, G inzburg sugeriu o conceito deform ação cultural híbrida de compromisso, que orientou esta pesquisa e a reflexão sobre a cu ltura luso-afro- brasileira que se forjou em Portugal no A ntigo Regime. Além disso, consideramos as ponderações de Edward Thompson quando adverte que o uso indiscriminado do termo “cultura popular” pode sugerir uma homogeneidade, um consenso entre agentes que a protagonizam. Para Thompson, o próprio term o “cultura” deve ser relativizado, pois “com sua evocação confortável de um consenso, pode distrair nossa atenção das contradições sociais e culturais, das fraturas e oposições existentes dentro do conjunto”.10 Nessa perspectiva, o trabalho de Peter Burke, Cultura p o pular na Idade M oderna, foi im portan te tam bém para enfatizar a diversidade interna da cu ltu ra po p u la r e a heterogeneidade que para ele a caracteriza. Burke cham a a atenção para a tênue fronteira entre as várias culturas de um a sociedade, sendo m uito mais proveitoso estudar a interação entre elas. Para este autor, a noção de cultura possui um espectro amplo, que integra as ações da vida cotidiana, onde se incluem os costumes, com portam entos, conhecimentos e crenças. A ssim , as tradições cu lturais de um a sociedade englobariam uma “grande trad ição”, de um a m inoria 10 THOMPSON, E.P. Costumes em comum. São Paulo: Companhia das Letras, 1998, p.17. 27 culta e letrada, e a “pequena trad ição”, referente aos dem ais, que interagiam entre si.11 A s reflexões desses autores foram fundam entais p ara com preenderm os a com plexidade das relações que se estabeleceram entre as p ráticas e crenças dos negros, a clientela de brancos de todas as condições sociais que faziam uso de suas artes de curas e “feitiços” e a in d a o m odo pelo qual as cam adas le tradas da sociedade, p articu la rm en te os eclesiásticos, perceberam essas m anifestações. Vale destacar, por fim , o fenômeno de circulação desses saberes pelo Império colonial português, envolvendo negros em Portugal, na Á frica e no Brasil. A lguns conceitos relativos às a rte s m ágicas, fe itiça rias e b ruxarias precisam aqui se definir. O s trabalhos antropológicos e históricos são inúmeros, e seria impossível nos lim ites do nosso tem a analisá-los adequadam ente. Desse modo, restringim o-nos a algum as definições e elegemos certos autores que consideram os centrais para a abordagem pretendida. C aro Baroja entende a m agia com o um a ação baseada num vínculo de afin idade entre certos indivíduos e “certas potências sobrenaturais ou divindades, pela entrega de um a parte de seu ser ou a sua totalidade, às mesm as potências, m alignas ou não, mas que sem pre têm um caráter especificam ente ligado com algum aspecto da ‘psique hum ana’: am or, ódio, desejos em geral”.11 12 Tais foram as motivações que consideram os nortea r as práticas dos africanos no Reino. A utores com o N orm an C ohn preocuparam -se em d istinguir os conceitos de b ruxaria e feitiçaria, considerando a p rim eira como designadora de práticas que induziam ao mal, e a segunda 11 BURKE, P., Cultura popular na Idade Moderna. São Paulo: Companhia das Letras, 1998, p.21; 51. 12 BAROJA, C., Vidas mágicas y Inquisición. Madrid: 1967, p.24-25. Apud NOGUEIRA, C.R.F., Bruxaria e história. São Paulo: Ática, 1991, p.23. 28 com o um fenôm eno cuja p rópria pessoa é a fonte do mal. Tal qual Laura de Mello e Souza, ancorada em autores com o Keith Thom as, utilizarem os indistintam ente os dois conceitos, diferen ciando apenas o de feitiçaria da noção de práticas mágicas, onde no prim eiro caso há pacto dem oníaco.13 Por fim, é im portante enfatizar a lacuna apontada por Cario G inzburg nos estudos sobre a h istória da feitiçaria, ressaltando este autor que a m aioria das pesquisas se voltou sobretudo para as perseguições a que a b ruxaria foi subm etida, em detrim ento das práticas propriam ente ditas, bem como dos com portam entos dos perseguidos. -a- • * * * E ste trabalho se inicia ao tem po da expansão u ltram arina por tuguesa, do tráfico dos negros e de sua chegada com o escravos no Reino. O prim eiro capítulo, “A fricanos em Portugal”, expõe sum ariam ente o cam inhar em direção à costa ocidental africana, m as sobretudo a inserção do a fricano nas diversas ativ idades económ icas em Portugal nos séculos XV e XVI. A ausência de bibliografia sobre o tem a referente aos séculos seguintes foi uma lacuna que não conseguim os superar. O segundo capítulo, “Jabacousses e gangazambes: feiticeiros negros no R eino”, tra ta da descrição das crenças e devoções dos escravos e forros em função das m otivações que os levaram a praticá-las: curas de doenças e “feitiços”; interferências nos rela cionamentos pessoais e busca de proteção. Para tanto, valeram-se de procedim entos diversos, como o uso de ervas, bebidas, excre mentos, sangue de anim ais, defumações, fervedouros, adorações 13 SOUZA, L. de M.. O diabo e a terra de Santa Cruz: feitiçaria e religiosidade popular no Brasil colonial. São Paulo: Companhia das Letras, 1986, p.154- 155. 29 a ídolos, orações e uso de patuás, sobretudo as chamadas “bolsas de m andinga”. N a m edida do possível, tentam os buscar as raízes africanas dessas m anifestações. No terceiro capítulo, “A m andinga de D eus”, faz-se esforço no sentido de entender o processo de cristianização dos africanos na p rópria Á frica e em Portugal, e das manifestações desse cato licismo tan to na organização de confrarias religiosas, firm ando sociabilidades, com o nas p róprias m anifestações de feitiçaria, através de orações, evocação de santos e uso de objetos de culto da Igreja, como hóstias e pedra d’ara. O quarto capítulo, “Na rota das m andingas”, tratou das possí veis transmutações sofridas por certas práticas africanas, a exemplo das bolsas de m andinga, em função dos contatos estabelecidos en tre os negros em meio ao tráfico interno na Á frica e o tráfico atlântico. Observam os um notável intercâm bio de saberes entre os negros portadores dessas bolsas em Portugal e no Brasil. Finalm ente, os dois últim os capítulos, “Lusitânia bruxa” e “N egros hereges, agentes do D iabo”, abordaram a repressão in- quisitorial às m anifestações dos africanos, tidas por feitiçarias, p o rtan to heréticas, m ed ian te a pro jeçãoda idéia de pacto de m oníaco observada nas inquirições aos réus. Nesse contexto, foi notório o processo de dem onização dos africanos e de seus cultos e práticas, promovendo o Santo Ofício um movimento inequívoco de aculturação da população aqui considerada. O títu lo M etrópole das m andingas: religiosidade negra e Inquisição no A ntigo Regim e justifica-se porque, de todas as ou tras m anifestações da religiosidade negra e mulata em Portugal, a que sem dúvida pareceu ter um a origem claramente africana - ao lado dos calundus - foi a confecção e porte das chamadas “bol sas de m andingas”, am uletos de proteção. A lém disso, os termos “m andinga” e “m andingueiro” significavam, para as instâncias de poder, em particu lar o Santo Ofício, feitiçaria e feiticeiro. 30 O título também é um a forma de sugerir que Portugal, longe de estar invulnerável a estas religiosidades, foi cenário im portante de um complexo cultural h íbrido envolvendo a Á frica e o Brasil, ou seja, metrópole das colónias e de suas m andingas, o que nos leva, no lim ite, a substitu ir a expressão “afro -b rasile iro” pela “luso-afro-brasileiro” para exprim ir o complexo religioso-cultural vigente no mundo português e ultram arino. C A P Í T U L O I AFRICANOS EM PORTUGAL Os escravos pululam por toda a parte. Todo serviço é feito por negros e mouros cativos. Portugal está a abarrotar com essa raça de gente. Mal pus o pé em Évora, julguei-me transportado a uma cidade do Inferno: por toda a parte, topava negros. Clenardo, 1535. EM D IREÇÃO À Á FRICA Em sua H istória general de las ín d ia s, publicada em 1552, o cronista F rancisco López de G óm arra, dedicando sua obra ao monarca espanhol Carlos V, percebe os descobrimentos m arítimos como “o m aior acontecim ento desde a criação do m undo, depois da encarnação e da m orte d ’A quele que o criou”.1 Sem som bra de dúvida, o pioneirism o ibérico na aventura incerta e corajosa do desbravam ento de m ares, oceanos e te rra s desconhecidas transform ou pro fundam ente o cenário de um a pen ínsu la que vivenciava inúm eras dificuldades, herdadas de um a conjuntura extrem am ente problem ática no século XIV. Os ares do oceano A tlântico tam bém bafejaram outros estados nacionais que, a seu tempo e lugar, desfrutaram do conhecim ento desse novo espaço, l Charles Boxer. O império colonial português (1415/1825). Lisboa: Edições 70, 1969, p.25. 32 tam bém responsável pelo descortinar de um outro tem po que se iniciava no quatrocentos. Em baladas pelo im aginário fan tástico europeu, as navega ções fluíram , no decorrer do século XV, sob o legado dos homens do ocidente medieval. A s incursões de viajantes, m ercadores e m issionários pela Á sia e pelo oceano índico, ao longo da Baixa Idade M édia, p roduziram relatos e crónicas onde se m isturava às descrições geográficas um a percepção onírica, fantasiosa, m a ravilhada daquelas terras, im pregnando a m entalidade medieval. M undo repleto de riquezas variadas, raras especiarias, com ilhas de ouro, governado por reis cobertos de pérolas e pedras preciosas, era local de abundância e exotismo. “Homens com pés voltados para trás, cinocéfalos que ladram , vivendo m uito além do tem po norm al p ara a existência hum ana e cujo pêlo, na velhice, escurece em vez de branquear, m onópodes que se abrigam à sombra do único pé levantado, ciclopes, homens sem cabeça, com olhos nas espáduas e dois buracos no peito à guisa de nariz e boca, homens que vivem apenas do perfum e de um a só espécie de fru to e m orrem quando já o não podem respi ra r”, são exemplos de seres escandalosos e monstruosos, hum anos ou anim ais, que povoaram a im aginação dos homens, além ainda dos m itos do Paraíso Terrestre, do reino de Gog e M agog e do Preste João.2 A cartografia medieval descreveu um m undo conhecido por algumas regiões bem definidas. A lém da Europa, via-se a Á sia e a Á frica, esta últim a circunscrita ao M agreb e Egito e ligada à índia, levando à crença de um oceano índico fechado, a refletir a concepção ptolom aica de um m ar interior.3 LE GOFF, J. “Ocidente medieval e o oceano Indico: um horizonte onírico”. In: Para um novo conceito de Idade Média. Tempo, trabalho e cultura no Ocidente. Lisboa: Estampa, 1979, p.75. SUTTO, C. “L’image du monde à la fin du Moyen-Age ». In: ALLARD, G.H. 33 “Viveiros de todas as m arav ilhas”, nas palavras de Sérgio Buarque de H olanda, a índ ia e a E tiópia, e depois o Atlântico e o Novo M undo, foram palco de transm igrações desse universo len dário e místico.4 O m ito indiano, construído desde a Antiguidade no mundo ocidental, desfez-se paulatinam ente a partir da presença efetiva dos po rtugueses na Á sia. D ispersaram -se para outras regiões lendas como, por exemplo, a do Preste João - que seria o soberano de um suposto reino cristão no Oriente. Laura de Mello e Souza aponta-a como bastante ilustrativa no sentido de se perceber a idéia de m igração geográfica do im aginário europeu, e ainda por relacionar-se estritam ente às navegações portuguesas e aos descobrim entos. D a índia, o poderoso, rico e populoso reinado desse m onarca cristão teria m igrado para a Etiópia no século XIV, situando-se supostam ente nos lim ites de domínios islâmicos, do M arrocos até o M ar Negro.5 Em bora menos entusiasm ados e fantasiosos do que os espa nhóis no im aginário diante do novo, os portugueses viram nessa busca um im portan te estím ulo p ara o desvendamento da África. A lcançar as terras desse governante estava entre as aspirações de navegantes e aventureiros, crentes em tê-lo com o ferrenho aliado con tra os infiéis.6 D iria a inda o fam oso cronista dos descobri mentos Gomes Eanes Z urara , traduzindo as intenções do Infante D. H enrique, que: (Org.), Aspects de la marginalité au Moyen-Age. Montreal: L’Aurore, s/d, p.63. Apud. MELLO E SOUZA, L. O Diabo e a terra de Santa Cruz. Feitiçaria e religiosidade popular no Brasil colonial. São Paulo: Companhia das Letras, 1986, p.24. Jacques Le Goff arrola também uma vasta literatura acerca da geografia medieval. Op. cit., p. 263. 4 MELLO E SOUZA, L. de, op. cit., p.26. 5 Idem, p.27. Ver ainda HOLANDA, Sérgio Buarque de, Visão do Paraíso - Os motivos edênicos no descobrimento e colonização do Brasil. São Paulo: Nacional, 1969. 6 BOXER, C.R., op. cit., p.43. 34 (...) se dizia que o poderio dos mouros daquela terra de África era muito maior do que se comumente se pensava, e que não havia entre eles cristãos nem outra alguma geração (...). Queria saber se achariam em aquelas partes alguns príncipes cristãos em que a caridade e amor de Cristo fossem tão esforçados que o quisesse ajudar contra aqueles inimigos da fé.7 A expansão m arítim a portuguesa inspirou algum as polêm icas em relação ao complexo rol de suas motivações. A historiografia portuguesa, rica nesse debate, oscilou desde a ênfase nos aspectos económ icos até os científicos e religiosos enquan to im pulsio nadores dos descobrim entos.8 A s versões que tendem para um certo equilíbrio entre esses fatores, a exemplo dos trabalhos de Jaime Cortesão e Vitorino de M agalhães Godinho, preponderam nas pesquisas recentes.9 D e um m odo geral, situam a génese da expansão m arítim a não apenas no cenário português, m as ainda no conjunto de transform ações europeias ocorridas na Baixa Idade Média. O pioneirism o lusitano nos descobrim entos europeus dos séculos XV e XVI configurou-se, portan to , como um a prim eira fase de um processo bem mais amplo da expansão ocidental. Mas sua precocidade nesse movimento se situou como um fenômeno 7 ZUR AR A, G. E., Crónica dos descobrimentos e conquista da Guiné (1463/1468). Porto: Livraria Civilização, 1937, cap.VIII. 8 Vitorino de Magalhães Godinho faz um interessante balanço bibliográfico sobre o tema, arrolando autores como Oliveira Martins, Antônio Sérgio, Joaquim Bensaúde, Jaime Cortesão eoutros. Ver A economia dos descobri mentos henriquinos. Lisboa: Sá da Costa, 1962, p.37-50. 9 “Se o espírito de Cruzada, mais persistente na Península, em consequência da Reconquista, foi o impulso iniciador, a verdade é que os descobrimentos resultaram do complexo de condições económico-geográficas e científico- religiosas”. GODINHO, V. de M., op. cit., p.42; CORTESÀO, J., Os descobrimentos portugueses. Lisboa: Arcádia, 1958-1961, 2 v. 35 aparentem ente atípico. Região m arginal, pobre, carente de con dições económ icas favoráveis, solos acidentados, de qualidade p recá ria , clim a irregular, escassez populacional. Para alguns, Portugal lançar-se-ia ao m ar fugindo de sua pobreza.10 * * * No entanto, a em preitada em direção ao além-mar deveu-se a outras circunstâncias, fundam entais para seu sucesso. Remontemo- nos ao Ocidente europeu a partir do século XI, momento importante de transform ação, quando o crescim ento dem ográfico, o desen volvim ento tecnológico no cam po, a revitalização do com ércio e da vida u rbana e a em ergência dos interesses cada vez m ais vivos da burguesia m ercantil redim ensionaram as relações entre as diversas regiões. O litoral e os portos portugueses, sobretudo Lisboa, fo ram tragados pelo increm ento do com ércio en tre o M editerrâneo e o M ar do N orte, d irecionando um acúm ulo de capital significativo.11 A inda nesses tempos, desenvolveu-se a m arinha portuguesa e as técnicas e instrum entos de navegação, legado dos árabes e dos italianos, que com seus saberes ajudaram a im pulsionar as em barcações portuguesas p a ra o A tlân tico . Tarefa facilitada , inclusive, pelo próprio territó rio , projetado para o oceano. Por fim, a reestru turação do E stado português, com a ascensão dos Avis, en tre 1383 e 1385, viabilizou um quadro político que pôde coordenar e estru tu ra r a expansão. O século XIV trouxe anos difíceis, tem po de peste e alta m ortalidade, tem po de escassez e de procura de terras por parte da nobreza depauperada, cujos rendim entos decresciam cada vez mais. Tempo em que a burguesia m ercantil portuguesa procurava 10 THOMAZ, L. F. R., “Expansão portuguesa e expansão européia: reflexões em torno da génese dos descobrimentos”. In: D e Ceuta a Timor. Rio de Janeiro: Difel, 1994, p.5. 11 MARQUES, A.H. de O., H istória de Portugal. México: Fondo de Cultura Económica, 1983, v. I, p.106/112. 36 novos mercados, assoberbada pelo monopólio veneziano e genovês das especiarias asiáticas. A tra íd a pelo brilho do ouro sudanês, buscava ainda os cereais m arroquinos de que carecia o Reino. E n tre fins do século XIII e inícios do XIV, a chegada dos produtos asiáticos ao O cidente pelas mãos dos m ercadores das cidades italianas se viu progressivamente dificultada pelo processo de desintegração do Im pério M ongol, que garan tia não apenas a segurança das ro tas, com o tam bém os preços das m ercado rias. A tom ada de C onstan tinop la pelos tu rcos o tom anos em 1453 agravou sobrem aneira esse comércio, m ajorando os preços enorm em ente e apontando, assim, p ara a necessidade de outras opções de acesso aos produtos orientais. D istanciavam -se, pois, os portugueses, das riquezas do Levante, e o progressivo avanço tu rco am eaçava o comércio ocidental e abalava as estru tu ras da cristandade européia.12 O peso desse aspecto económ ico nos descobrim entos por tugueses variou na h istoriografia , ensejando as posições m ais d iscutíveis, desde considerá-lo com o ún ico d e te rm in a n te a té negar-lhe qualquer im portância, como já o dissemos.13 O s fatores religiosos e ideológicos expressos na busca do reinado do Preste João, na expansão da fé e no espírito cruzadís- tico foram traços relevantes desse processo. O ideal de C ruzada, que tam bém moveu a expansão m arítim a portuguesa, enraizado desde os tem pos da presença efetiva dos m ouros no conjunto da Península, aparece alargado quanto ao seu objeto, ganhando 12 GODINHO, V. de M., op. cit., p.80. 13 “Nunca, nem no período de D. Henrique, nem no de D. João II, existiu a am bição desregrada das riquezas. Paira, sobre as duas grandes figuras e sobre todos os heróis da epopéia, um ideal superior de abnegação, de aspirações nobres e puras, um fogo sagrado de sacrifício e de sinceridade que ficarão para sempre na história como o traço mais profundo e belo das glórias na cionais.” Ver BENSAÚDE, J., A cruzada do Infante D. Henrique. Lisboa: s/n, 1943. Apud GODINHO, V. de M., op. cit., p.40. 37 nova versão: m uito m ais do que a libertação da cidade sagrada de Jerusalém, o com bate ao Islão se generalizava, congregando, sob a noção de “guerra san ta”, vários estratos da população. A discussão sobre a personalidade e o caráter do Infante D. H enrique foi tam bém tem a largam ente frequentado pela his toriografia portuguesa. Visto como um cruzado em seu tempo, levado pela fé ou pelo espírito científico, ou então pelos ganhos com erciais e pela cobiça, as intenções do Infante suscitaram di versas interpretações, atestadas pelas fontes quatrocentistas de cronistas e viajantes, com o Z u rara , D uarte Pacheco ou Diogo Gomes: curiosidade geográfica, busca do ouro, salvação da alma, com bate ao infiel. Todas estas inspirações, juntas, compuseram, na verdade, as motivações não só do Infante, mas tam bém dos m onarcas subsequentes, mercadores e aventureiros.14 A expansão fora fruto de um a pluralidade de iniciativas que convergiram num contexto m edieval e m oderno ao m esm o tempo. Servir a Deus pelas arm as, com batendo o infiel e a inda articulando ganhos m ercantis eram os im pulsos dos “cavaleiros-mercadores” de que falou G odinho.15 * * * A presença dos portugueses no A tlântico, num primeiro momento, destacou-se pela ocupação do litoral norte marroquino e ocidental da Á frica na busca de ouro, especiarias e escravos. A té m eados do século XV, o in teresse pelo M arrocos em detrim ento da Á frica negra era evidente. A nobreza m ilitar por tuguesa, cerceada nos seus privilégios, enxergava o Magrebe como horizonte de possíveis realizações: enriquecim ento pela pilhagem, dom ínios fundiários, prém ios e honrarias d ’El-Rei. As tensões 14 Idem, p.42. 15 Idem, p.213. 38 sociais emergentes na fidalguia portuguesa, a turbulência latente de sua condição, desviavam-se para aquela região, servindo aos interesses da Coroa. A conquista de Ceuta, situada no extremo norte do Marrocos, marca o início, em 1415, da travessia portuguesa em direção ao Atlântico. A rtífice e principal im pulsionador dos prim eiros m o mentos das conquistas africanas, o Infante D. Henrique (1394/1460), filho do então monarca D. João I, moveu-se inicialm ente m uito mais pelo ardor cruzadístico de com bate ao infiel do que propria mente por um projeto m ercantil.16 São discutíveis as motivações económicas e estratégicas desse em preendim ento, um a vez que alguns autores relativizaram a im portância da região m arroqui na enquanto produtora de cereais, e a própria cidade como zona estratégica de combate à p ira taria e ponto im portan te da ro ta do comércio do ouro transaariano.17 No entanto, o dom ínio de Ceuta facultou aos portugueses inform ações em relação às terras do A lto Níger e do Senegal, já anteriorm ente esboçadas num mapa catalão de 1375, onde se tinha conhecim ento da região ocidental do Sudão e de rotas das caravanas de m ercadores orig inárias do N orte da Á frica, passando pelo Saara e chegando até a região da Guiné.18 A conquista de algumas ilhas do Atlântico integrou esta etapa inicial de novas descobertas: a M adeira, em 1419, o arquipélago 16 “Parece ficar claro que, pelas suas motivações como pelo seu caráter, pela sua continuidade com a Reconquista como pela ideologia que a informa, pelo espaço geográfico em que se desenrola, pela base social, a expansão portuguesa em Marrocos antes de D. João II é muito mais um derradeiro episódioda história medieval que o primeiro episódio da moderna. O seu nexo lógico com a revolução comercial do século XI e com a ascensão da burguesia é mais que tênue.” THOMAZ, L. F., op. cit., p.28. 17 SARAIVA, J. H., História concisa de Portugal. Lisboa: Europa-América, 1996, p. 125-126; BOXER, C., op. cit., p.42. BOXER, C., op. cit., p.40. W .;V •• Á 18 39 dos Açores, em 1427, colonizados respectivam ente em 1427 e 1439, e por fim , já ao térm ino da década de 50, foi a vez de C abo Verde. A efetiva ocupação dessas ilhas se constituiu como um verdadeiro ensaio da colonização u ltram arina portuguesa, inaugurando o sistem a da g rande lavoura açucareira que no século XVI seria instituído no Brasil. Prosseguindo o cam inho em direção à costa ocidental africana, ultrapassava-se, em 1435, o tão tem ido Cabo do Bojador, suposta- mente o lim ite sul do A tlântico no im aginário europeu, região de correntes torm entosas, clima difícil, certeza de um a viagem sem volta. E n tre 1441 e 1448, a expansão seguiu rápida, já im pulsio nada pela força das caravelas. Transform ando-se num a em presa m ais elaborada, voltada p ara o com ércio e contatos pacíficos em detrim ento do corso violento, inaugurava um novo modelo de expansão. O navegador N uno Tristão atingia o C abo Branco, nordeste da atual M auritânia, A rguim , Cabo Verde e por fim a desem bocadura do Senegal, fronteira que separava os azenegues, ou zanagas, das te rra s dos negros africanos. N esse m om ento, a costa da G uiné tornava-se um foco económ ico lucrativo por excelência, adensando-se a procura de mercadores particu lares a se lançarem nesse negócio, reunindo capital e arm ando navios.19 N ovam ente foi Z u rara quem acentuou a persistência do Infante na em pre itada a fric an a não apenas pelos aspectos religiosos, mas agora tam bém pelas perspectivas de com ercialização.20 Em 1445, a fundação da praça de A rguim visava o desvio do com ér cio transaariano do Sudão, que se consolidava, pouco a pouco, com o en trep o sto im p o rta n te onde os p o rtugueses tro cav am cavalos, tecidos, m anufaturas de cobre e trigo por ouro em pó, escravos e m arfim . E sta praça a frican a se tornou um modelo 19 THOMAZ, L.F., op. cit., p.34. 20 ZURARA, G.E., op. cit., cap.VII. 40 de feitoria para as tan tas outras fundadas nas costas da Á frica e da Á sia.21 Nos anos 50 e 60, os italianos Cadam osto e U sodim are e o português Diogo Gomes exploravam o litoral desde a G âm bia até o rio Geba, iniciando o comércio das especiarias, sobretudo a pim enta m alagueta, com excelente m ercado na Europa. Em 1460, quando falecia o obstinado Infante, Pedro de Sintra chegava até Serra Leoa. Para além dessa região, D. A fonso V concedeu a res ponsabilidade de exploração a particulares, como foi o caso notável de F ernão Gomes, rico m ercador lisboeta de grossos cabedais, que a p a rtir de 1469 pôde navegar e com ercializar naquela área por cinco anos, chegando até o golfo da Guiné, em troca de um a renda anual ao rei.22 Foi nessa região, vale lembrar, outro achado precioso aos portugueses: a ilha de São Tomé, descoberta em 1471, m as colonizada apenas na década seguinte. Das principais ilhas no golfo, São Tomé destacou-se pelo cultivo da cana e fabricação do açúcar, cujas técnicas e organização se transp lan tariam para os engenhos nordestinos brasileiros a p a r tir de meados do século XVI. Sob o reinado de D. João II (1481/1495) ocorreu a construção da im portante feitoria fortificada de São Jorge da M ina (1482), na Costa do Ouro da Baixa Guiné, representando o esforço inequívoco da continuidade do desvio do com ércio do ouro para o litoral.23 Sem conseguirem p en e tra r no in terior, fonte do tão cobiçado produto, perm aneciam os portugueses à espera dos mercadores 21 BOXER, C., op. cit., p.48. 22 GODINHO, V. de M., op. cit., p.206. 23 “Mas a luta das caravelas portuguesas contra as caravanas mouras de camelos do Saara teve como resultado a predominância das primeiras no comércio do ouro, por um período de cerca de cem anos, de 1450 a 1550. Durante o reinado de D. Manuel I (1496/1521) importou-se, só de São Jorge da Mina, um valor médio anual de 170000 dobras de ouro e, nalguns anos, a quantia foi ainda superior.” BOXER, C., op. cit., p.51. 41 itinerantes africanos para concretizarem as transações. A Coroa portuguesa exerceu um verdadeiro monopólio da importação de ouro, escravos, especiarias e marfim, embora com o tempo cedesse a alguns particu lares o comércio destes três últimos artigos.24 * * * A idéia de se dob rar a p o n ta m erid ional da Á frica para a tin g ir a ín d ia ganhou colorações defin itivas no reinado da quele m onarca, obstinado pela idéia de travar contatos com o lendário Preste João. Ele confiou a Diogo Cão o prosseguimento da exploração, que atingiu a desem bocadura do Zaire em 1483, estabelecendo contatos com o reino do Congo e chegando ao Cabo de Santa M aria, na atual Angola. A conquista do tão almejado lim ite sul da Á frica, ponta extrem a do continente, foi obra de Bartolom eu Dias: o Cabo das Torm entas, transform ado em Boa Esperança, assim cham ado por facultar a passagem direta para o índico, façanha pouco depois reputada a Vasco da Gama em 1498. A bria-se cam inho ao com ércio das especiarias asiáticas pelo A tlântico, m onopolizadas pelos portugueses até a segunda m etade do século XVI. A tra je tó r ia p o rtu g u esa na e tap a a fric an a da expansão desdobrou-se, portanto, em dois momentos diversos: para o Norte da Á frica, tendendo a se afirm ar como um a expansão m ilitar e cruzadística, e depois para a costa ocidental, onde os interesses económ icos se evidenciaram m ais fortemente. Construía-se, assim, o império colonial português, percebido pela sensibilidade do cronista D am ião de Góis em 1554: Hoje em dia, este mesmo Tejo dá leis e normas através de todas as costas do Oceano, na África e na Ásia. A essas leis, se submeteu, 24 Segundo os arquivos de contabilidade do forte, o número de escravos aí negociados quase triplicou entre 1504 e 1522. Ver ALBUQUERQUE, L. de, Dicionário de história dos descobrimentos portugueses. Lisboa: Caminho, 1993, v. I, p.379. 42 livremente ou à força, reis e príncipes dessas províncias, os quais prestam vassalagem aos portugueses, e muitos deles em número sempre crescente, vivem na obediência e na fé de Cristo. 25 O COMÉRCIO NEGREIRO PORTUGUÊS O comércio de escravos no m undo m ed iterrân ico era intenso em finais da Idade Média, destacando-se as cidades italianas de Génova e Veneza, articuladoras de um considerável mercado, e regiões circunvizinhas do m ar Negro. A Península Ibérica era abastecida por cativos muçulmanos, obtidos através das guerras contra os cristãos, que em crescente aum ento a p a rtir do século XIII eram fonte constante de escravos. M as existiam escravos das mais diversas nacionalidades, sobretudo na Espanha: gregos, caucasianos, sardos e russos.26 As referências que designaram os cativos se atinham às na cionalidades, surgindo como “sarracenos”, “mouros”, “etíopes” ou “esclavos”, oriundos da Esclavonia, feitos prisioneiros do rei Otão, o Grande, rei da Germânia no século X. Acabou-se por im por e difundir o termo “escravo”, embora o próprio Z urara, em sua Crónica da Guiné (1463-1468), ofereça-nos palavras como “servo”, “m ouro”, “mouro-negro”, “cativo” e “alm a”.27 A s sequelas desastrosas da Peste N egra não p o u p aram , evidentemente, o mercado de m ão-de-obra, escasseando-o. Os portugueses e castelhanos valeram-se de incursões para o norte 25 GÓIS, D., Descrição da cidade de Lisboa. Lisboa: Livros Horizontes, 1988, p.59. 26 VERLINDER, C., L’esclavage dans VEurope médievale. Brugge: De Tempel, 1949; GODINHO, V. de M., op. cit., p.151-152; HERRS, J., Escravos e servidão doméstica na Idade Média. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1983, p.24. 27 PIMENTEL, M.do R., Viagem ao fundo das consciências. O tráfico de escravos na Época Moderna. Lisboa: Colibri, 1995, p.20. 43 da Á frica, objetivando interceptar tam bém a navegação m oura m agrebina-granadina, e o arquipélago das C anárias, conhecido desde fins do século XIII, onde os rendosos resgates de cativos foram intensos, sob a forma de p ira taria e corso, fossem para uso nas atividades urbanas, fossem para exportar para outras regiões. Particularm ente o estreito de G ib raltar e a região do M agrebe eram pontos estratégicos, cruzando sobre si várias rotas mercantis importantes. Os portugueses, entrando em contato com os mouros do norte da Á frica, com a instalação em Ceuta em 1415, deram o passo inicial para o cam inho em direção à costa sul.28 * * * D atam do início da década de 40 os prim eiros resgates na região do Rio do Ouro, fruto de contatos comerciais pacíficos e alianças locais. Contou-nos Z urara, em sua Crónica da G uiné (1463-1468), que A ntão Gonçalves trocara alguns jovens azenegues cap tura dos por escravos negros e ouro em pó, dando partida assim aos sucessivos resgates que daí se seguiram .29 Os prim eiros momentos dessas negociações foram tam bém descritos por outras narra ti vas, a exemplo do m ercador veneziano Cadamosto, m orador em Portugal en tre 1454 e 1463, e o navegador Diogo Gomes, cujas memórias foram registradas pelo alem ão M artin Behaim entre 1484 e 1490.30 * * * Em 1443, o Infante autorizava particulares a partir do Algarve 28 Já existiam negros em Granada, na Catalunha, em Aragão e em Maiorca desde o século XIII. GODINHO, V. de M., op. cit., p.153-155. 29 ZURARA, G.E., op. cit., cap.XII e XIII. 30 Cadamosto vai assistir à passagem aos novos enlaces comerciais em detri mento das guerras de apresamento quando descreve sua viagem pela terra dos azenegues, mouros nómades habitantes da costa e explorados por ricos mercadores árabes, chefes das caravanas de comércio. Ver CADAMOSTO, L., Navegações. In: GARCIA, J. M., Viagens dos descobrimentos. Lisboa: Presença, 1983, p.73-128. 44 para a costa africana e, no ano seguinte, Nuno Tristão apresava negros na região do Senegal. A inda nesse ano, o escudeiro de D. Henrique apanhou cerca de duzentos de uma só vez, provando as possibilidades lucrativas desse novo empreendimento, aglutinador de um intenso intercâm bio de produtos. Vindos do interior do continente, o ouro e os escravos eram trocados por cereais, panos e cavalos adquiridos nas praças marroquinas.31 A rguim foi um ponto im portante desse comércio, constituindo-se como entreposto de escambo com os chefes das com unidades africanas e meréadores locais.32 Na região da A lta Guiné, entre o rio Senegal e o Cabo das Palmas, houve casos de mercadores reinóis que penetravam nas tribos atuando como interm ediários das negociações, facilitando o comércio de prisioneiros intertribais e criminosos, feitos cativos nas com unidades negras. A lguns portugueses, inclusive, integra- ram-se completamente aos costumes e rituais daquelas sociedades, conhecidos por isso como “tangom ãos” ou “lançados”.33 O brilho do ouro, a ofuscar os olhos dos portugueses; o exotismo das especiarias e dos anim ais, aguçando a curiosidade e excitando o consumo de artigos como a pim enta-m alagueta, a pim enta-do-rabo, o m arfim , a m irra , tecidos, algodão, pedras preciosas, m adeiras, cestos, couros de anta, macacos, papagaios, canários, os gatos da Algália, lobos-marinhos e, por fim, o co- 31 O cavalo era especialmente apreciado, particularmente as crinas e os rabos, sendo até medida de preço de escravos. Segundo J. Munzer, passando por Portugal entre 1494 e 1495, até 1460 um cavalo velho valia de 25 a 30 escravos; depois os preços subiram, trocando-se cada escravo por 12 cavalos, e em inícios do XVI, chegava-se a, no máximo, cinco. MUNZER, J. “Do descobrimento da África marítima e ocidental, isto é, da Guiné, pelo Infante D. Henrique de Portugal”. In: BRASIO, A., Monumento missionário africana. Lisboa: Agência Geral do Ultramar, 1953. 32 AZEVEDO, J.L., Épocas de Portugal económico. Lisboa: Livraria Clássica 1929, p.72. BOXER, C., op. cit., p.53.33 45 mércio de negros, enriqueciam cada vez mais os cofres da Coroa e dos mercadores particulares. A aparição pública dos etíopes - designação dos africanos encontrados a partir do rio Senegal - foi emblemática, marcando um novo momento da cam inhada pela Á frica, quando as navegações adquiriram um caráter de empresa comercial. Em outubro de 1451, casar-se-iam a infanta D. Leonor com Frederico III, monarca do Sacro Império Rom ano-G erm ânico, e a corte portuguesa prepa rava cuidadosamente as comemorações do enlace. Inaugurando as festividades que se desenrolariam por alguns dias, um majestoso banquete no palácio real. D entre os vários divertimentos que se seguiram até a m adrugada, ura espetáculo notável estarreceu os presentes: dançavam , alegres, trajados à moda de seu povo, entoando cantigas em ritm o febril, ao som de seus instrumentos típicos, numerosos negros, a saudar a jovem imperatriz. O tio de D. Leonor era ninguém menos do que o Infante D. Henrique, que há pouco descortinara outra porção do continente africano, chegando até a zona setentrional da Guiné, a terra dos negros.34 O comércio que se estabeleceu era exercido tanto pela coroa quanto pela iniciativa particular, fosse de mercadores ou senhores, desde que pagassem o tributo do quinto ao monarca para terem o direito de realizar viagens e resgates de alguns produtos. Em fins do século XV, no entanto, o ouro, os escravos e as especiarias da Guiné eram monopólio da coroa, restringindo-se aos particulares artigos secundários, em bora m uitas das vezes im perasse uma flexibilidade m ediante concessões ocasionais.35 * 34 Descrição do padre Nicolau Langmann de Falkenstein, reproduzida em SOUSA, A.C., Provas de História Genealógica. Lisboa, 1739, tomo I. Apud TINHORÃO, J. R., Os negros em Portugal. Uma presença silenciosa. Lisboa. Caminho, 1988, p.114. 35 É exemplo o caso do florentino Bartolomeu Marchione, que obteve licença para o tráfico escravista e de marfim, além do monopólio da exportação dos r O tráfico de escravos em seu prim eiro meio século dirigiu-se sobretudo para o Algarve e para a cidade de Lisboa, cujo porto ostentava a pujança das caravelas carregadas de riquezas africa nas, das exóticas especiarias orientais e até do açúcar oriundo da Madeira, Cabo Verde e São Tomé em fins do século XV. O total de africanos saídos das principais feitorias fornecedoras ao Reino é difícil de ser quantificado exatamente. Particularm ente em relação a Lisboa, esta contagem se torna complexa, pois o terrem oto de 1755 pôs abaixo os registros fiscais e comerciais existentes desde meados do XV, tendo-se portan to um a idéia aproxim ada a partir de outras fontes dispersas.36 Entre 1441 e 1448, é mais um a vez Z urara que contabiliza quase mil cativos negros desembarcados. A p a rtir de meados do século, estabelecidos os tratos pacíficos, de 700 a 800 chegavam anualmente a Portugal, segundo Cadamosto; ao fim do período, entre 1475 a 1495, a média elevava-se para 3.500 por ano só na região da A lta Guiné, mas no início do século XVI esse tráfico declinava, como se observa na Tabela 1 anexa.37 Paralelamente, entretanto, o núm ero de escravos negociados na região das ilhas do Golfo da G uiné só fez aum entar ao longo do século XVI. Destaque-se especialm ente a ilha de São Tomé e Príncipe como entreposto im portante do comércio de escravos para a América espanhola e o Brasil.38 Sua proxim idade em relação à costa oeste da África, sobretudo das feitorias São Jorge da M ina e 46 cativos para a Espanha e Itália. Ver GODINHO, V. de M., op. cit., p.204-207. 36 SAUNDERS, A.C. de C.M. História social dos escravos e libertos negros em Portugal (1441-1555). Lisboa: Imprensa Nacional/Casa da Moeda, 1982, p.40. Este trabalho, dentre a bibliografia sobre o tema, foi o queconsideramos mais completo, atualizado e documentado sobre os negros em Portugal no período a que se propõe analisar. 37 Idem, p.40-43. Ver também GODINHO, V. de M., op. cit., p.198. 38 BOXER, C., Relações raciais no império colonial português. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1967, p.47. 47 A xim , fizeram -na atuar como aglutinadora do tráfico oriundo da A lta e Baixa Guiné, levando inclusive a Coroa a estabelecer, em 1519, um a regulam entação específica acerca do tráfico destinado a São Tomé. E ntre 1525 e 1527, estimava-se um a cifra entre dois e três mil indivíduos por ano.39 Em 1554, por exemplo, enquanto a população escrava se com punha de cerca de dois mil, a de bran cos chegava a seiscentos, sem contar os cerca de cinco a seis mil escravos em trânsito, m antidos em galpões.40 A ilha de Santiago, no arquipélago cabo-verdiano, tam bém era foco de um tráfico intenso nesse século, chegando tam bém a um a m édia anual de cerca de 3.500 originários da M auritân ia e do Sahel.41 A p a rtir da segunda m etade do século XVI, os principais m ercados do trá fico foram o reino do Congo, descoberto em 1482/83, e A ngola, que por m ais de dois séculos foi a principal fornecedora de escravos para o império português no A tlântico sul, sobretudo o Brasil, e em menor escala para a A m érica espanhola. O comércio angolano era realizado em mercados no interior - os “pum bos” - , por interm édio dos “pom beiros”, elementos mulatos em sua m aioria, negros livres e até escravos de confiança, que traz iam para a costa caravanas de cativos a serem negociados e embarcados da costa africana.42 A s m ercadorias adquiridas na Á frica negra eram freqúen- tem ente ex p o rtad as p ara ou tras regiões européias. A lgum as especiarias, com o a pim enta m alagueta, iam para Flandres; os escravos, para Castela e A m érica, ocasionando um movimento de subida de preços p articu la rm en te decorren te do m ercado am ericano, que não cessava de crescer a partir de meados dos quinhentos. Em bora não fosse significativo, o mercado italiano 39 SAUNDERS, A., op. cit., p.41. 40 LOPES, E.C., A escravatura: subsídios para sua história. Lisboa: 1944, p.29. 41 SAUNDERS, A., op. cit., p.41. 42 BOXER, C., O império colonial português (1415-1825), p.112. 48 cresceu, sobretudo após 1453, quando os turcos bloquearam o fluxo de escravos originários do M ar Negro.43 O com ércio negreiro p ara fora de Portugal já era prática desde meados do século XV. A lucratividade certa e garantida fez o m onarca D. A fonso V desdenhar o apelo das cortes de 1472/1473 para que se restringissem as exportações de escravos berberes e guineenses, necessários à agricultura in terna, embora ordenasse a vinda dos cativos da G uiné para o R eino antes de seguirem para outros portos estrangeiros.44 De Lisboa seguiam para Guadalquivir, Toledo, Valadolid, M edina del Campo, Sevilha, Barcelona, Valença.45 E sta últim a, em fins do século XV, tornara- se particularm ente um atraente mercado de escravos negros, mais caros do que em Lisboa, e obtidos por pertinazes comerciantes, dentre os quais o florentino Bartolomeu M archionni, arrendatário desse comércio. O segundo quartel do século XVI m arcou o início de uma desp ropo rção en tre o núm ero de cativos desem barcados em Portugal e aqueles que eram repassados ao exterior. C ada vez m ais o m ercado in terno se reduzia d ian te das altas c ifras de exportação para a Espanha e suas colónias. Em 1510, a A m érica espanhola recebia seu prim eiro grande carregam ento de cativos, cerca de 250 africanos. A organização desse comércio envolvia mercadores espanhóis acordados a arrendatários portugueses que faziam o percurso Á frica - Lisboa - Sevilha para depois, finalm ente, chegarem a seu destino último, via A tlântico. Depois de 1530, no entanto, os 43 SAUNDERS, A., op. cit., p.50. 44 “Portugal era, assim, o fornecedor de escravos no despontar do mundo moderno, tal como Veneza e Génova o tinham sido no mundo dos finais da Idade Média.” AZEVEDO, J.L., op. cit., p.76. 45 As cifras dessa exportação são muito pouco conhecidas, salvo em certos casos, como o de Valença. SAUNDERS, A., op. cit., p. 50. 49 escravos passaram a ser enviados diretam ente de Cabo Verde ou São Tomé p ara o Novo M undo, d im inuindo sobremaneira seu percurso, bem como a m ortalidade a bordo dos negreiros.46 O m ercado brasileiro adquiriu , pouco a pouco, um peso expressivo nesse comércio em finais do século XVI. A transição da m ão-de-obra indígena escravizada para a africana se fez gra dativamente nos engenhos açucareiros nordestinos. Diz-nos Stuart Schwartz que em 1572 o engenho baiano de Sergipe, propriedade do Conde de Linhares, possuía apenas 7% de escravos africanos. Já em 1591, esta proporção cresceu para 37%, e em inícios do XVII, praticam ente 100%. O volume do comércio negreiro para o Brasil ensejou algumas variações de estimativas. Fréderic M auro contabilizou cerca de cem m il exportados a partir de meados do XVI, num a média de mil por ano, incluindo os oriundos da Guiné, que eram a imensa maioria nesse período, e ainda os provenientes de São Tomé e Cabo Verde. Nas últim as décadas dos quinhentos esse volum e dobrou pelo fluxo de cativos vindos do reino do Congo e de A ngola,47 e ao se iniciar o século XVII esses números não cessaram de crescer, tornando-se Angola o foco principal das im portações coloniais.48 Inaugurava-se a í um momento de grande expansão da atividade açucareira brasileira: altos preços 46 Para o aprofundamento do conhecimento desse comércio, ver os trabalhos de SCELLE, G., Histoire Politique de la traite négrière aux Indes de Castille e BROWSER, F.P., The african slave in colonial Peru (1524/1650). Apud Idem, p.61. 47 De 1575 a 1591, estima-se que vieram de Angola cerca de 52 mil escravos. Ver SERRÃO, J. (Org.), Dicionário da Historia de Portugal. Lisboa: Iniciativas Editoriais, 1963/71, v. II, p.78. 48 MAURO, E, Le Portugal et VAtlantique au XVII siecle. Paris, 1960, p. 147-52. Ver ainda os seguintes trabalhos: LOVEJOY, P.E., Transformations in Slavery. Cambridge, 1983; KLEIN, H.S., The M iddle Passage (Comparative Studies in the Atlantic Slave Trade). Princeton: Princeton University Press, 1978; CURTIS, P.D., The Atlantic Slave Trade: a Census. Madison, Wisconsin: University Press, 1969. 50 no mercado europeu, aumento do consumo e utilização maciça do braço africano nos canaviais pernam bucanos e baianos.49 O comércio africano organizou-se institucionalmente a partir de 1486, quando a Vedoria da Fazenda da Guiné, criada em 1461 no Algarve, foi transformada em Casa da M ina e Tratos da Guiné e transferida para Lisboa.50 A operacionalização do tráfico dos africanos coube à Casa dos Escravos, repartição da Casa da Guiné, tendo por função o recebimento dos cativos, a organização das vendas, a concessão de licenças e contratos a particulares para exercerem o tráfico na costa africana e nas ilhas de Cabo Verde e São Tomé, e o recolhimento de impostos variados, que incidiam sobre os escravos e outros artigos oriundos da Á frica Negra. Do desembarque à venda, o africano submetia-se a inspeções físicas, avaliação de preço etc. O escrivão da Casa dos Escravos registrava o número de escravos chegados, seu valor e a em barcação que os trouxera. Infelizmente, não se encontraram registros da proce dência desses cativos, salvo esporadicamente, como ocorreu entre 1482 e 1516, quando a imensa m aioria dos negros que chegaram a Valência vindos de Lisboa eram wolofs da Senegâmbia.51 Não foi à toa que um largo do bairro da A lfam a, em Lisboa, ganhava o nome de Praça dos Escravos. E ra nesse local - ou ain da no Pelourinho Velho, onde vários crim inosos eram punidos -, que os africanos sacramentavam sua transform ação em cativos, ao serem vendidos ao modo de cavalos, bois ou quaisquer outros animais domésticos. Os escravos eram adquiridos da
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