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A abordagem da interrelação da literatura com outras áreas de conhecimento. APRESENTAÇÃO Você já pensou no que está por trás da estrutura textual do seu livro preferido? As obras literárias surgem de diálogos constantes com o meio social e histórico, tanto do autor quanto do leitor. Está em constante contato com outras áreas do conhecimento como a Sociologia, Filosofia, História, dialoga com as Artes Plásticas, Cinema, Teatro, Música. Quais são as consequências dessa interação? O que surge como objeto de estudo da Literatura Comparada? A intertextualidade vai apresentando outros rumos, surge a hibridez dos textos, a capacidade de articular o cultural por meio de inovações estéticas e possibilidades ilimitadas de compreensão das obras literárias. Nesta Unidade de Aprendizagem você vai conhecer a inter-relação da literatura com outras áreas do conhecimento, vai compreender como se dá a hibridez textual, será capaz de avaliar as questões extratextuais de uma obra literária e, por fim, poderá identificar claramente como se dá o movimento intertextual. Bons estudos. Ao final desta Unidade de Aprendizagem, você deve apresentar os seguintes aprendizados: Reconhecer o diálogo das obras literárias com outras áreas do conhecimento.• Analisar textos literários considerando suas questões extratextuais.• Relacionar as teorias sobre textos híbridos e intertextuais.• DESAFIO Você pode considerar que literatura é absolutamente tudo o que se pode ler desde que tenha um caráter artístico e representativo. É exatamente esse caráter artístico e representativo que diferencia os textos literários dos não literários. Sabemos que os textos dialogam o tempo todo com seu contexto social, histórico, dialogam com o próprio autor, com o leitor, e abre possibilidades para as trocas com outras áreas do conhecimento. Como todo tipo de arte, a literatura está vinculada à sociedade em que se origina e não há artistas completamente indiferentes à realidade. Ao pensarmos nos textos literários sabemos que os pontos de contato entre eles podem ser diversos. Do contato com outras obras, com outros autores, a intertextualidade se faz presente. A intertextualidade pode ser identificada por meio da citação direta e indireta, paráfrase, paródia, pastiche, referência, alusão e tradução. A invenção de Hugo Cabret é uma obra que estimula a intertextualidade, por dialogar com outras histórias – inclusive reais –, com o cinema e com outros livros de linguagem análoga. Traz um movimento intertextual com muitos detalhes. Conteúdo interativo disponível na plataforma de ensino! Conteúdo interativo disponível na plataforma de ensino! A partir das leituras propostas observe algumas características de intertextualidade e hibridez da obra literária. Quais os diálogos do texto com outras áreas, o que está presente na estética, na forma, e na contextualização textual? Coloque-se no lugar de um comparatista e faça uma análise entre a linguagem literária e a cinematográfica. Aponte as principais características de contextos, linguagens e formas. INFOGRÁFICO O olhar de quem leu um livro no século XIII não é o mesmo daquele que lê uma revista em quadrinhos no século XX e nem daquele que, hoje, por meio de um celular vê, ouve, recebe, cria, manipula e transmite textos escritos, sonoros e imagéticos. Juntamente com a portabilidade dos meios e da reconfiguração dos comportamentos do leitor, a hibridização textual revela interlocuções entre diferentes campos do conhecimento, tais como a literatura, a história, as artes e a comunicação, configurando-se em objeto de análise privilegiado para refletir criticamente sobre os desafios e as possibilidades que as transformações culturais e tecnológicas trouxeram para as relações entre as linguagens artísticas e os processos sociais, com consequências imediatas para os estudos sobre a leitura e a Literatura Comparada. No infográfico a seguir, você vai visualizar a dinâmica das relações textuais híbridas. CONTEÚDO DO LIVRO O capítulo A abordagem da inter-relação da literatura com outras áreas de conhecimento indicado para sua leitura, foi retirado do livro "Literatura Comparada", base teórica desta Unidade de Aprendizagem. Neste capítulo você vai conhecer brevemente a inter-relação da literatura com outras áreas do conhecimento, vai compreender como se dá a hibridez textual, será capaz de avaliar as questões extratextuais de uma obra literária e, por fim, poderá identificar claramente como se dá o movimento intertextual. Boa leitura. LITERATURA COMPARADA Francieli Borges Gabriela Semensato Ferreira Karina Regedor Gercke Catalogação na publicação: Poliana Sanchez de Araujo – CRB 10/2094 B732l Borges, Francieli. Literatura comparada / Francieli Borges, Gabriela Semensato Ferreira, Karina Regedor Gercke. – Porto Alegre : SAGAH, 2017. 222 p. : il. ; 22,5 cm. ISBN 978-85-9502-040-5 1. Literatura comparada. I. Ferreira, Gabriela Semensato. II. Gercke, Karina Regedor. III. Título. CDU 82.091 SER_Literatura_Comparada_Book.indb 2 25/01/2017 16:37:39 A abordagem da inter- relação da literatura com outras áreas do conhecimento Objetivos de aprendizagem Ao final deste texto, você deve apresentar os seguintes aprendizados: � Reconhecer o diálogo das obras literárias com outras áreas do conhecimento. � Analisar textos literários considerando suas questões extratextuais. � Relacionar as teorias sobre textos híbridos e intertextuais. Introdução Você já pensou no que está por trás da estrutura textual do seu livro pre- ferido? As obras literárias surgem de diálogos constantes com o meio social e histórico, tanto do autor quanto do leitor. Está em constante contato com outras áreas do conhecimento como a Sociologia, Filosofia, História, dialoga com as Artes Plásticas, Cinema, Teatro, Música. Quais são as consequências dessa interação? O que surge como objeto de estudo da Literatura Comparada? A intertextualidade vai apresentando outros rumos, surge a hibridez dos textos, a capacidade de articular o cultural por meio de inovações estéticas e possibilidades ilimitadas de compreensão das obras literárias. Neste texto, você vai conhecer a inter-relação da literatura com outras áreas do conhecimento, vai compreender como se dá a hi- bridez textual, será capaz de avaliar as questões extratextuais de uma SER_Literatura_Comparada_Book.indb 139 25/01/2017 16:37:49 obra literária e, por fim, poderá identificar claramente como se dá o movimento intertextual. Literatura, leitura e diálogos Você pode considerar que literatura é absolutamente tudo o que se pode ler, desde que tenha um caráter artístico e representativo. É exatamente esse caráter que diferencia os textos literários dos não literários. Isso deixa tudo um pouco mais claro. Miguel de Cervantes (2005), escritor espanhol e autor de Dom Quixote, considera que uma coisa é escrever como poeta, outra coisa como historiador. O poeta pode contar ou cantar coisas não como foram, mas como deveriam ter sido. Já o historiador deve relatá-las não como deveriam ter sido, mas como foram, sem acrescentar ou subtrair da verdade o que quer que seja. No entanto, sabemos que a literatura dialoga constantemente com outras áreas do conhecimento, como sociologia, filosofia, história, artes plásticas, cinema, teatro e música. Como todo tipo de arte, a literatura está vinculada à sociedade em que se origina, e não há artistas completamente indiferentes à realidade. É partindo exatamente das experiências pessoais e sociais que o artista recria ou transcende essa realidade. A literatura é o resultado das relações humanas entre escritor, leitor e sociedade. Ela é a linguagem carregada de significado. Como outras obras de arte, não só nasce vinculada a fatos reais, mas também interfere na realidade, auxiliando no processo de transformação social. O artista (e o leitor) recria livremente o texto literário que lê. Estudar literaturaé, basicamente, ampliar suas habilidades de leitura do texto literário, da história literária. Para isso, você acompanha a evolução cronológica da literatura de determinado povo e cultura, observando a relação entre suas transformações e os diversos momentos históricos. Ler um livro não é apenas decifrar letra após letra, palavra após palavra. Ler um livro é cotejá-lo com suas convicções sobre as tendências literárias, sobre os paradigmas estéticos e sobre os valores culturais. É sentir o peso da posição do autor no campo literário (sua filiação intelectual, sua condição social e étnica, suas relações políticas) e contrastá-lo com suas próprias ideias sobre ética, política e moral, verificando o quanto ele se aproxima da imagem que você faz do que seja literatura. A experiência literária não só permite a você saber da vida por meio da experiência do outro, como também torna possível vivenciar essa experi- ência. É por possuir essa função maior de tornar o mundo compreensível Literatura comparada140 SER_Literatura_Comparada_Book.indb 140 25/01/2017 16:37:49 transformando sua materialidade em palavras de cores, odores, sabores e formas intensamente humanas que a literatura tem e precisa manter um lugar especial nas sociedades. A Literatura Comparada possui uma base de dados que permite elaborar um método de reflexão e análise dos textos literários. No cruzamento desses dados, pertinentes à trajetória da produção literária de um determinado período, é possível identificar as mudanças ocorridas no processo histórico com relação ao homem e tudo que o envolve. No começo de sua história, a Literatura Comparada atuava mais no sen- tido de aproximar obras literárias de diferentes nações. Contudo, hoje ela atua cada vez mais como um campo de pesquisas em que o literário dialoga com as demais linguagens artísticas, particularmente as que emergiram no contexto da era do audiovisual. Assim, crescem em número, cada vez mais, as pesquisas voltadas para o estudo dos diálogos entre literatura e cinema e literatura e televisão. Também ganha espaço a problemática decorrente da conjunção do texto literário com outras artes, algo que ocorre tanto na canção popular como no hipertexto. O uso generalizado do computador veio acompanhado de uma forma de textualidade conhecida como hipertexto. Tal modalidade possui semelhanças como o intertexto, ou seja, uma forma de textualidade sem autonomia. Esta existe apenas como parte de uma extensa rede textual e está desde sempre contaminada por um número muito grande de outros textos culturais. Já o hipertexto traz como novidade o fato de ser marcado por uma diferença fundamental em relação a quaisquer outras formas de textualidade do passado. Ele proporciona uma importante alteração para os estudos literários: é que o leitor não está mais diante de apenas um texto, capaz por si mesmo de ampliar sua capacidade interpretativa. Ele tem agora uma ferramenta utilizada para a abertura de novas janelas, por onde pode complementar a narrativa e ter acesso a detalhes sobre a trajetória pessoal de cada personagem, por exemplo. Dessa forma, o texto abre novas possibilidades de informação que vão além do conteúdo básico. Além disso, pode oferecer várias alternativas de conclusão do enredo, cabendo ao leitor escolher uma de sua preferência. O hipertexto, ao incorporar as possibilidades do mundo de hoje, tende a romper com uma visão linear dos fatos, da história e das narrativas ficcionais. 141A abordagem da inter-relação da literatura com outras áreas do conhecimento SER_Literatura_Comparada_Book.indb 141 25/01/2017 16:37:49 Misturas A ambiguidade do termo e do conceito de história nos processos literários tem provocado algumas reflexões. Isso ocorre pois a história designa ao mesmo tempo a dinâmica e o contexto da literatura. Assim, essa ambiguidade se refere às relações da literatura com essa disciplina (história da literatura, literatura na história): são dois caminhos distintos que se complementam. Há algumas décadas, existe uma redução das fronteiras entre o que se designa como gêneros literários. Isso é perceptível nas manifestações culturais contemporâneas. Como consequência inevitável dessa diluição das fronteiras, vem o fortalecimento do hibridismo como necessidade de renovação cultural perante os novos paradigmas estéticos. Também surge a presença de olhares múltiplos, como a cultura de massa, a renovação dos processos da oralidade e a inclusão dos procedimentos hipertextuais. O cânone literário – também referido como clássicos ou obras-primas – é, em uma breve definição, um conjunto de autores e obras consideradas representativas para uma determinada nação ou idioma. Os clássicos são uma relação de obras e autores social e institucionalmente “universais” e “verdadeiros”. Eles transmitem valores humanos e características ideais de um texto, por isso são dignos de reconhecimento de geração a geração. Em outras palavras, os cânones literários apresentam características que os legitimam e os fazem ultrapassar as bar- reiras do tempo e do espaço. Por essa razão são tidos por muitos como verdadeiros modelos a serem seguidos. Você também deve saber, porém, que o que define uma obra como canônica não depende apenas dela, mas das instituições que a evidenciam. As escolas e universidades, por exemplo, têm sido de grande influência para a consagração ou manutenção dessas obras consideradas cânones. Outro fator importante a ser destacado é que o cânone nunca foi imóvel e intocável. Então você pode concluir que obras tanto podem se agregar à lista dos clássicos, como também, dependendo das inovações e da crítica literária, podem perder sua posição de destaque entre eles. Harold Bloom, professor e crítico literário norte-americano, trouxe novas ideias para o conceito de cânone ocidental. Bloom incorpora ideias modernistas a essa definição. Considera que os autores, ao agirem sobre as normas instituídas, não escondem sua preferência por um autor canônico, que aparece de alguma maneira em sua obra. Ao Literatura comparada142 SER_Literatura_Comparada_Book.indb 142 25/01/2017 16:37:49 trabalhar com o cânone, o criador não deixa de revelar suas preferências artísticas; mas, em vez de segui-las, estabelece novas regras de produção, que, oportunamente, serão igualmente questionadas pelos sucessores. Das obras incluídas no cânone fazem parte livros de ficção, poemas épicos, poesias, dramas, novelas e outras formas de literatura, de todas as origens e consideradas influenciadas pela cultura ocidental ou influentes. Muitas obras de não ficção também estão nessas listas, sobretudo obras das áreas de religião, mitologia, filosofia, política, história, ciência e economia. Veja alguns exemplos de obras consideradas cânones da literatura brasileira (com certeza você já leu alguma delas, ou, pelo menos, ouviu falar): Título Autoria Data Memórias de um sargento de milícias Manuel Antônio de Almeida 1852 Iracema José de Alencar 1865 Dom Casmurro Machado de Assis 1899 Memórias Póstumas de Brás Cubas Machado de Assis 1881 Triste Fim de Policarpo Quaresma Lima Barreto 1915 Os Sertões Euclides da Cunha 1902 Libertinagem Manuel Bandeira 1930 Grande Sertão: Veredas Guimarães Rosa 1956 Macunaíma Mário de Andrade 1928 Vidas Secas Graciliano Ramos 1938 O Quinze Rachel de Queiroz 1930 O Tempo e o Vento Erico Verissimo 1949 a 1962 A Paixão segundo G.H. Clarice Lispector 1964 Olhai os lírios do campo Erico Verissimo 1938 143A abordagem da inter-relação da literatura com outras áreas do conhecimento SER_Literatura_Comparada_Book.indb 143 25/01/2017 16:37:49 Você percebe que isso tudo dá uma nova dimensão às obras literárias? Por isso, a Literatura Comparada não pode fechar os olhos para a convivência de fatores múltiplos e diversos nas obras literárias. Eles não renovam apenas as questões da historiografia, mas o próprio cânone tradicional de textos nacionais, continentais e universais.É fato que a história da literatura também se faz por meio de textos que parodiam e dialogam com textos anteriores. Para isso, eles retiram das fronteiras discursivas o fio de novas possibilidades, com frequência transgressivas. Os debates atuais sobre a globalização, o multiculturalismo, o transnacional e as migrações, como pontos de contato entre os textos, tornaram indispensável re- tomar a discussão sobre a multiplicidade narrativa, etnográfica e antropológica. Os debates e trocas permitem a constituição de comunidades interliterá- rias, com sistemas plurais por definição, que podem se reunir por natureza geográfica, política, cultural, artística. Ideias e definições sobre literatura nacional ou espaço da tradição oral e do literário devem ser examinadas em uma articulação não nacional, sem fronteiras. O que se considera literatura nacional hoje pode se tornar, ao longo de seu desenvolvimento histórico, um componente de várias comunidades interliterárias, com seus sistemas abertos e variáveis. A literatura se manifesta por meio de partes que se integram e atuam na construção do imaginário: discurso, ficção, narratividade, poética, estilo, temas e o texto por sua natureza. Esses são os elementos básicos da experi- ência da comunicação literária. Os gêneros – que por muito tempo a história da literatura considerou modelos fixos, extremamente coesos e, sobretudo, impenetráveis – participam de novas experiências e, de certa forma, da quebra de regras dos padrões literários. Literatura comparada144 SER_Literatura_Comparada_Book.indb 144 25/01/2017 16:37:49 Os gêneros literários informam ao leitor as características da obra. Também indicam como ele deverá abordar o texto e como deverá buscar o seu entendimento, assegu- rando dessa maneira a sua máxima compreensão. Um texto poético, por exemplo, possui vários elementos que identificam essa poesia e permitem que o leitor faça sua opção, ou não, por esse gênero. Os gêneros literários reúnem nas mesmas categorias obras com características semelhantes. Os textos são organizados conforme suas características formais (coerência, coesão, estrutura, figuras de linguagem, entre outras). Apesar das variações nos gêneros literários, eles partem de uma classificação básica, adotada desde a Antiguidade: gênero lírico, narrativo ou épico e dramático. Dentro dessa classificação principal, surgem as subdivisões, ou seja, os subgêneros (espécies literárias). Todo texto está classificado em um dos gêneros considerados básicos, mas isso não significa que há fidelidade exclusiva às características inerentes de forma e função desse gênero. A partir das teorias bakhtinianas, as mais utilizadas nos dias de hoje, os gêneros passam a ser compreendidos também por meio das interpretações ligadas a condições socioculturais específicas e a grupos sociais determi- nados. Esses grupos se utilizam de discursos recorrentes e fundamentados em determinadas bases linguísticas, teorias de construção e interpretação de texto. Eles se apropriam de conteúdos, formas e funções adequadas aos seus objetivos específicos na literatura que querem produzir. Seria impensável uma teoria dos gêneros, hoje, na qual eles não fossem compreendidos como organismos vivos, produtores e reprodutores de estéticas diferentes. Os gêneros literários se configuram como estruturas classificatórias que pertencem a um espaço cultural global e, ao mesmo tempo, fragmentado. Eles funcionam como dinâmicas do contexto e como geradores de novas realidades. 145A abordagem da inter-relação da literatura com outras áreas do conhecimento SER_Literatura_Comparada_Book.indb 145 25/01/2017 16:37:50 Podemos definir a crônica literária como relatos de um ou mais acontecimentos em um determinado tempo. Ela traduz acontecimentos do dia a dia com uma linguagem informal e sucinta. A quantidade de personagens é reduzida, podendo, inclusive, não haver personagens. É um texto narrativo sobre um fato do cotidiano, algo que naturalmente acontece com muitas pessoas. Esse fato é incrementado com pitadas de humor, ironia e crítica, fazendo com que as pessoas vejam fatos corriqueiros com outro olhar. A característica mais relevante de uma crônica é o objetivo com que ela é escrita. Sua temática sempre gira em torno de uma realidade social, política ou cultural. Essa mesma realidade é avaliada pelo autor da crônica, que transmite uma opinião, quase sempre com um tom de protesto ou de argumentação. Esse tipo de crônica pode ser simplesmente argumentativa e dispensar o uso da narração. A crônica está na fronteira entre o jornalismo e a literatura. O hibridismo da crônica está justamente nessa intersecção entre o discurso jornalístico, ancorado no referente, e o literário, que lhe atribui características de ficção. A crônica pode pertencer a ambos os discursos ou a nenhum. Pode tornar a realidade um fim, mas modificá-la esteticamente por meio da linguagem. Certamente, a “contaminação”, ou pontos de contato, descreve o dinamismo da produção literária. A dinâmica de temas e motivos de um gênero ao outro e as marcas comuns a gêneros distintos constituem a autenticidade do fazer literário. Os pontos de contato entre literaturas influenciam o próprio autor. Uti- lizando certos elementos e escolhendo lugares específicos do imaginário, o autor modifica, renova, inventa gêneros novos (até inconscientemente), muda as relações interliterárias e interdisciplinares. Ele faz isso por meio de alargamentos, restrições e deslocamentos. A hibridez dos gêneros é uma dinâmica vibrante. O híbrido mistura cores, ideias e textos sem anulá-los (SCHÜLER, 1995, p. 11), permitindo que o discurso, que não aceita a lógica, viva nas margens e das margens. É possível dizer que o híbrido procura uma “terceira margem”, tomando emprestada uma expressão do escritor Guimarães Rosa. Um primeiro fenômeno que surge dessa configuração híbrida dos gêneros é uma textualidade vivenciada e enriquecida pelas linguagens da oralidade. Isso dá origem a uma forma de transcendência e superação do escrito como estilo puro. Literatura comparada146 SER_Literatura_Comparada_Book.indb 146 25/01/2017 16:37:50 Daqui surge, por exemplo, a codificação da música popular brasileira como canção e, ao mesmo tempo, como discurso poético de protesto e de presença cultural esteticamente elevado; também é notória a recuperação da simbolização oral entre culturas. A pluralidade étnica incorpora oralidade, língua e costumes que superam as fronteiras do regional. Por meio disso, se aproxima, de maneira interdisciplinar, da antropologia e da poesia como campos de conhecimento influenciáveis e já não padronizados de maneira rígida. É o caso das narrativas do escritor brasileiro Guimarães Rosa e do escritor moçambicano Mia Couto, só para citar alguns nomes de destaque. Identificando as misturas Macunaíma, de Mario de Andrade, é um herói da literatura brasileira, muito famoso, que participa da composição do gênero híbrido. Esse personagem contribui para criar o símbolo nacional por meio de uma mistura cômica e carnavalesca, paródica e antropológica. Em Macunaíma (ANDRADE, 2008), o gênero literário é, desde o começo, impuro, misturado, plurilíngue, mestiço, errático e gerador de culturas em constante movimento. São gêneros híbridos, hoje particularmente em destaque, a literatura e a escrita de viagem, com a sua variante de nomadismo, e as escritas marginais, como o romance gótico. Este oscila, apesar de seu modelo se manter sempre uniformizado, entre ideais românticos, ruptura com o racionalismo e inquie- tações do passado medieval. Uma ficção utópica e científica também vem surgindo e se abre às recentes tecnologias, trazendo personagens inovadores. Todo ato de paródia ou de hibridismo corresponde sempre a um momento explícito de crise, de ruptura com o tradicional, com os cânones. O hibridismo favorece o entendimento entre pessoas e povos desde que não se reduza a um pastiche sem história.Pastiche é um tipo de intertextualidade, uma junção de outros vários textos. Ele lembra uma colcha de retalhos textuais. Você pode considerar que pastiche é uma função de um texto 1 com um texto 2, originando um texto literário 3. 147A abordagem da inter-relação da literatura com outras áreas do conhecimento SER_Literatura_Comparada_Book.indb 147 25/01/2017 16:37:50 O que vai além dos textos? Você deve saber que as questões extratextuais são fundamentais para a análise da situação de comunicação da obra literária como um todo. Ela também é fundamental para a análise dos participantes dessa interação e do contexto social e histórico. Ler é interagir. O ato de ler implica diálogo entre sujeitos históricos. A leitura literária, em especial, desenvolve competências para compreender um texto como manifestação de um ponto de vista autoral, assumido a partir de determinado contexto histórico. Nesse sentido, ler literatura sempre supõe uma atitude responsiva, cons- tituída de reações ao texto por meio de novas ações, de linguagem verbal ou não, que caracterizem recepção ativa do leitor. A produção da obra literária também é interação, e são essas interações que tanto interessam à Literatura Comparada. A literatura é uma prática social, e o livro é um suporte concebido para se comunicar com o leitor. O texto literário que é produzido tem origem no contexto social. Ele quer dizer alguma coisa a respeito do que o autor pensa sobre si ou sobre os outros. A literatura está presente em nossas vidas e não tem como existir a não ser a partir de uma intensa relação que seu autor estabelece com a realidade, seja para interrogá-la ou para fantasiá-la. A partir do uso da língua, as pessoas agem na sociedade, constituem a si mesmas como sujeitos e constroem uma compreensão de mundo. O autor apresenta elementos do contexto social das obras, do movimento cultural da época, do público e das ideias que circulavam quando foram produzidas. Assim, ele habilita o leitor a questioná-las e a aproximá-las do presente. O leitor estabelece relações com outros textos, verbais e não verbais, literários e não literários, da mesma época ou de outras, colocando-os em diálogo. Todas essas interações, reações e suas consequências são objetos de estudo da Literatura Comparada, e é possível defini-las por meio de teorias que norteiam as pesquisas e análises. Observe: Literatura comparada148 SER_Literatura_Comparada_Book.indb 148 25/01/2017 16:37:50 � Teorias centradas no autor: aqui encontramos as bases para estudar um texto literário partindo da biografia do autor, das características psicológicas, da função do autor no texto, das suas intenções (o que o autor quis dizer), das relações entre a personalidade do autor e a obra (ou vice-versa). É possível analisar os assuntos recorrentes no contexto das obras de um mesmo autor. � Teorias fundamentadas no texto: todas as teorias que tratam do con- teúdo literário distinguem os gêneros literários e cada obra pertencente a eles. Com as definições de gêneros, você pode perceber as diferenças textuais e suas funções. Mas o contexto literário também tem papel importante em uma análise fundamentada nos textos. Aqui você pode considerar as teorias narrativas, os modelos de estruturação de uma trama, a teoria do drama (que define personagens), a teoria da lírica e, claro, a própria teoria dos gêneros e todas as ferramentas que ela disponibiliza. Não se esqueça de que um gênero pode assumir a função de outro e caracterizar o hibridismo da obra. Nesse sentido, você também deve considerar a teoria da intertextualidade, que acon- tece quando o texto literário dialoga com outros textos precedentes ou contemporâneos. � Teorias centradas no leitor: teorias que tratam das consequências ou das intenções da literatura são modelos que analisam a estética da recepção. Ela pretende valorizar o leitor ou receptor do texto. Assim, sem eleger uma espécie de leitor ideal, os adeptos dessa teoria visam a analisar as múltiplas interpretações de um texto e as diversas consti- tuições de sentido sugestionadas por ele. Além disso, esses elementos direcionam o interesse dessas pesquisas para questões de natureza histórica e sociológica. � Teorias centradas no contexto: teorias que entendem o texto não em sua estrutura primária e óbvia, mas de uma maneira secundária, com características históricas e sociais. Movimento intertextual A intertextualidade representa um fenômeno estético-literário que ocorre com assiduidade em toda a literatura moderna desde o Renascimento, um movimento intertextual por definição. A intertextualidade é uma característica muito presente na literatura e tem a ver com o extravasamento de limites que se colocam para as linguagens e 149A abordagem da inter-relação da literatura com outras áreas do conhecimento SER_Literatura_Comparada_Book.indb 149 25/01/2017 16:37:50 as artes em geral. É um diálogo entre textos e está ligada ao conhecimento de mundo compartilhado por seus produtores e receptores. Ela enriquece a leitura e a relação do texto com os contextos de produção. Amplia também a possibilidade de atribuição de sentidos. As questões ligadas à intertextua- lidade influenciam tanto o processo de produção como o de compreensão dos textos literários. O conceito de intertextualidade assegura, a um só tempo, renovação e inte- ração com a história já construída do leitor. Isso ocorre pois supõe ultrapassar a compreensão linear de um texto e lançar mão da história pessoal da leitura para atribuir sentido à produção simbólica constituída por um novo texto. É importante que você considere que a intertextualidade pode ocorrer entre textos de mesma natureza ou de naturezas diferentes. Figura 1. Exemplo de intertextualidade. Fonte: Souza (c2000-2015). O cartum de Caulos tem como texto fonte o poema “No Meio do Caminho”, de Carlos Drummond de Andrade, escrito em 1930. No meio do caminho tinha uma pedra Tinha uma pedra no meio do caminho Tinha uma pedra No meio do caminho tinha uma pedra. Aqui você pode perceber a apropriação do poema por uma arte gráfica: a história em quadrinhos. O movimento intertextual acontece nas mais diferentes formas e linguagens. Literatura comparada150 SER_Literatura_Comparada_Book.indb 150 25/01/2017 16:37:50 ANDRADE, Mário de. Macunaíma: o herói sem nenhum caráter. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2008. CERVANTES, Miguel de. Do divertido arrazoamento que houve entre D. Quixote, Sancho Pança e o bacharel Sansão Carrasco. In: CERVANTES, Miguel de. D. Quixote de La Mancha, segunda parte. [S.l.]: eBooksBrasil.org, 2005. v. 2, cap. III. SCHÜLER, Donaldo. Do homem dicotômico ao homem híbrido. In: BERND, Zilá; DE GRANDIS, Rita (Org.). Imprevisíveis Américas: questões de hibridação cultural nas Américas. Porto Alegre: Sagra Luzzatto, 1995. p. 11-20. SOUZA, Elaine Brito. Intertextualidade. Rio de Janeiro: Globo.com, c2000-2015. Dis- ponível em: <http://educacao.globo.com/portugues/assunto/estudo-do-texto/ intertextualidade.html>. Acesso em: 13 dez. 2016. Leituras recomendadas CARVALHAL, Tania Franco. Literatura comparada. 5. ed. São Paulo: Ática, 2010. (Prin- cípios, v. 58). CARVALHAL, Tania Franco; COUTINHO, Eduardo de Faria. Literatura comparada: textos fundadores. Rio de Janeiro: Rocco, 1994. COMPAGNON, Antoine. O demônio da teoria: literatura e senso comum. Belo Hori- zonte: UFMG, 2006. COUTINHO, Eduardo. Literatura comparada: reflexões. São Paulo: Annablume, 2013. NITRINI, Sandra. Literatura comparada: história, teoria e crítica. 2. ed. São Paulo: EDUSP, 2000. SILVA, Ana Valéria C. “Vou-me embora pra Pasárgada”: intertextualidades. Vozes dos Vales, Teófilo Otoni, ano I, n. 2, oct. 2012. Disponível em: <http://site.ufvjm.edu.br/ revistamultidisciplinar/files/2011/09/Vou-me-embora-pra-Pas%C3%A1rgada-inter- textualidades_ana-val%C3%A9ria.pdf>. Acesso em: 13 dez. 2016. SOUZA, Lynn Mario T. Hibridismo e tradução cultural em Bhabha. In: ABDALA JUNIOR,Benjamin (Org.). Margens da cultura: mestiçagem, hibridismo e outras misturas. São Paulo: Boitempo, 2004. p. 113-133. 153A abordagem da inter-relação da literatura com outras áreas do conhecimento SER_Literatura_Comparada_Book.indb 153 25/01/2017 16:37:50 DICA DO PROFESSOR No vídeo a seguir, você vai descobrir o que está por trás da estrutura textual do seu livro e quais os diálogos possíveis com outras áreas do conhecimento. Conteúdo interativo disponível na plataforma de ensino! EXERCÍCIOS 1) A respeito do conceito de hipertexto e de seu impacto na vida literária, não existe dúvida alguma de que: A) Vivemos um tempo em que as novidades tecnológicas estão levando o ser humano a um patamar civilizatório jamais visto antes, tanto que no futuro a literatura se tornará desnecessária. A humanidade poderá ser mais feliz sem papel e tinta. B) O hipertexto é a modalidade de texto que tem sua existência diretamente relacionada à máquina. Ou seja, precisamos sempre de um computador para ler o que é escrito para a realidade desta máquina. Todavia, não podemos fazer uso criativo e imaginativo deste recurso. Ou seja, o hipertexto pode ser usado como veículo para a literatura. C) Vivemos um tempo em que as novidades tecnológicas estão levando o ser humano a um patamar civilizatório jamais visto antes, tanto que no futuro a literatura continuará sendo indispensável, o que equivale a dizer que precisaremos sempre de papel e tinta. D) Hipertexto é uma figura de linguagem. E) O hipertexto é a modalidade de texto que tem sua existência diretamente relacionada à máquina. Ou seja, precisamos sempre de um computador para ler o que é escrito para a realidade desta máquina. Todavia, podemos fazer uso criativo e imaginativo deste recurso. Ou seja, o hipertexto pode ser usado como veículo para a literatura. 2) De acordo com as ideias do pensador russo Mikhail Bakhtin, pode-se considerar que: A) De todos os discursos, somente os literários podem ser totalmente originais, uma vez que neles não se observa a presença de outros discursos em diálogo. B) Nenhum discurso é inteiramente original, uma vez que todos eles resultam de uma interação social, fazendo repercutir muitos outros, que estão em constante diálogo. C) De todos os discursos, somente os escritos podem ser totalmente originais, uma vez que a presença de outras vozes, em diálogo, é marca característica dos discursos orais. D) Todo e qualquer discurso pode ser inteiramente original, desde que seu autor consiga ultrapassar as concepções dos demais discursos que porventura cite. E) Nenhum texto é original, pois carrega fortes marcas de plágio. 3) Podemos entender por hibridismo: A) Presença maciça da influência de populações de origens variadas, o que dá origem a um intenso processo de miscigenação. B) Presença marcante da produção cultural de diferentes povos, que juntos contribuem para o processo de formação cultural de possíveis comunidades interliterárias. C) Presença intensa de elementos oriundos de religiões as mais diversas, que dá origem ao processo de sincretismo religioso, que é um dos traços marcantes de várias culturas. Principalmente da cultura latino-americana. Presença maciça da influência de populações de origens variadas, presença marcante da produção cultural de diferentes povos e presença intensa de elementos oriundos de religiões as mais diversas, contribuem para a riqueza multicultural que dá origem ao D) hibridismo. Ajudam a compor sua definição. E) Hibridismo é a influência de um texto no outro. 4) O emprego de imagens associadas aos textos está presente nos livros impressos muito antes do advento da era digital. Isso significa que: A) Esse recurso é exclusivo da era da tecnologia digital, tanto que agora pode ser usado de modo mais intenso, com uma quantidade maior de variáveis. B) Esse recurso não é exclusivo da era da tecnologia digital, mas somente agora pode ser usado, graças aos avanços tecnológicos de nossos tempos. C) Esse recurso não é exclusivo da era da tecnologia digital, mas agora pode ser usado de modo mais intenso, com uma quantidade maior de variáveis. D) Esse recurso é exclusivo da era da tecnologia digital, e somente agora pode ser usado, graças aos avanços tecnológicos de nossos tempos. E) Sempre estiveram nas obras para chamar a atenção do leitor. 5) Pensando no diálogo entre as linguagens, a adaptação de uma obra literária para a televisão sofre diversas alterações no texto original. Ao transferir para a tela uma cena presente em um romance, é comum que o roteirista e o diretor promovam: A) Um acréscimo de diálogos para melhor compreensão do espectador. B) A criação de um narrador que explique em detalhes o transcorrer da cena. A supressão de passagens explicativas da cena literária, tendo em vista que o espectador é C) capaz de inferir os acontecimentos pelas imagens transmitidas. D) O uso de cores fortes não presentes no texto literário, devido ao fato de a televisão ser um meio visual de comunicação. E) A inserção de expressões coloquiais como as gírias, a fim de que a obra se popularize e atinja maior número de espectadores. NA PRÁTICA Diálogos entre a Literatura e a Música Sabemos que a literatura dialoga constantemente com outras áreas do conhecimento como Sociologia, Filosofia, História, com Artes Plásticas, Cinema, Teatro e Música. Como todo tipo de arte, a literatura está vinculada à sociedade em que se origina e não há artistas completamente indiferentes à realidade. É partindo exatamente das experiências pessoais e sociais que o artista recria ou transcende a essa realidade. A literatura é o resultado das relações humanas entre escritor, leitor e sociedade. Ela é a linguagem carregada de significado. Como outras obras de arte, não só nasce vinculada a fatos reais, mas também interfere nessa realidade, auxiliando no processo de transformação social. Observe os diálogos entre o conto A terceira margem do rio, de Guimarães Rosa, e a música Terceira margem do rio, com letra de Caetano Veloso e Milton Nascimento. Conteúdo interativo disponível na plataforma de ensino! SAIBA MAIS Para ampliar o seu conhecimento a respeito desse assunto, veja abaixo as sugestões do professor: Ariano Suassuna – Autor por autor (diálogos das obras de Suassuna) Conteúdo interativo disponível na plataforma de ensino! O hibridismo cultural em Guimarães Rosa e Mia Couto Conteúdo interativo disponível na plataforma de ensino! A crônica literária: um gênero híbrido por excelência Conteúdo interativo disponível na plataforma de ensino! A invenção de Hugo Cabret Conteúdo interativo disponível na plataforma de ensino!
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