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Meios Adequados de Resolução de Conflitos Unidade 1 – Aportes introdutórios aos meios adequados de resolução de conflitos Autor: Guilherme Pavan Machado Revisão técnica: Ana Carolina Quintela Iniciar Introdução Seja bem-vindo à primeira Unidade da nossa disciplina sobre Meios Adequados de Resolução de Con�itos. Nessa oportunidade, iremos aprofundar a nossa compreensão sobre o con�ito e a importância de se pensar modos de resolução mais bené�cos às partes. Nosso objetivo é possibilitar o desenvolvimento de uma visão crítica sobre o con�ito e reconhecer a necessidade de sua resolução adequada, conhecer os meios adequados de resolução de con�itos vigentes e regulamentados no Brasil, além de trazer um suporte teórico a essa disciplina. No mundo jurídico brasileiro, especi�camente, há um crescimento constante no número de con�itos humanos que surgem a partir das relações sociais. Essa dinâmica implica, muitas vezes, em um chamamento do Judiciário para a resolução da lide. Convoca-se, portanto, terceira pessoa estranha à relação entre as partes, o juiz, para decidir a maneira como será solucionado o problema. Esse modelo está saturado. O Poder Judiciário encontra-se abarrotado de processos, o que gera uma lentidão na resolução dos processos, sendo essa demora da prestação jurisdicional uma das principais queixas que sofre. Nesse sentido, os meios adequados de resolução de con�itos surgem como alternativa mais qualitativa para solução de problemas que, na maioria das vezes, ultrapassa a esfera técnica-documental. Isso signi�ca que muitos processos judiciais podem possibilitar uma resposta mais bené�ca para as partes se a solução do problema não partir do juiz, mas sim delas próprias. Essa disciplina tem como intuito, portanto, despertar no aluno o interesse para os meios adequados de resolução de con�ito, além de fazer compreender a sua importância para o cenário judicial brasileiro. Aproveite! Bons Estudos! 1. Sistema integrado de meios adequados de resolução de conflitos Nesse primeiro tópico analisaremos dois principais temas: um primeiro diz respeito ao con�ito, no qual iremos desmisti�car o caráter negativo geralmente atribuído a ele. Posteriormente, compreenderemos brevemente o cenário sobre o qual surgiram os meios adequados de resolução de con�itos e sua inserção no contexto jurídico- normativo brasileiro. 1.1 Desmistificando o conflito O que move o Poder Judiciário brasileiro? O que faz com que tenhamos tramitando milhões de processos em inúmeras varas do país, seja na Justiça Estadual, Federal ou Especializada? A resposta é o con�ito, a lide, um problema que surge a partir de uma relação social. Esse é gatilho para começarmos a falar nos meios adequados de resolução de con�itos. Você já parou para pensar no que signi�ca Con�ito? Você já teve con�itos com alguém? Com certeza, todos nós já tivemos con�itos, pois estamos cercados e amarrados em rede por relações sociais. Primeiramente, importante desmisti�carmos a visão negativa sobre o con�ito, ou seja, ele não pode ser visto de maneira pejorativa. A forma como se busca resolvê-lo é que vai delimitar se será traumático para a vida da pessoa (DORECKI, 2017, p. 18- 19). O que é então o con�ito? O Con�ito, na visão de Dorecki (2017, p. 18-19), é a discordância sobre determinado assunto. Seu início, portanto, parte de visões ou entendimentos diferentes sobre determinado ponto analisado. O que determina as proporções que o con�ito irá tomar são as próprias pessoas. Em outras palavras, pode ser que da discordância política se resulte em agressões verbais e físicas. Em contrapartida, podem existir con�itos que tragam como resultado uma solução ou até mesmo crescimento, é o caso, por exemplo, da discordância de sócios de uma empresa sobre determinada tática a ser adotada e, após discussão e debate, resulte num bom caminho para a empresa seguir (DORECKI, 2017, p. 18-20). Desse modo, é importante que consigamos perceber que nem sempre o con�ito é algo negativo ou resulta em algo ruim. Os con�itos são normais nas relações humanas, o que determina se podemos caracterizá-lo como positivo ou negativo é o modo como o tratamos. Nesse ponto, podemos destacar uma importante missão dos meios adequados de resolução de con�itos, pois um dos seus objetivos é fazer com que as pessoas cheguem a uma solução que seja bené�ca para ambas, incentivando o diálogo, tornando o con�ito algo não traumático. Por meio dos mecanismos adequados de solução de con�itos, as relações de cidadania são efetivamente alcançadas pois deslocam para as partes a negociação dos seus próprios interesses, na medida em que buscam um entendimento, com autonomia e equilíbrio, não imposta por um terceiro e possibilitando que con�itos se estendam, mesmo diante de uma prestação jurisdicional ( PERPETUO et al, 2018, p. 3 ). Em relação às espécies de con�ito, podemos elencar três principais: a) sociais; b) econômicos e c) políticos. Os primeiros – sociais – derivam de uma causa social, tal como: “[...] con�itos raciais, grupos extremistas que alegam questões religiosas ou, ainda, con�itos motivados por um acontecimento esportivo ou outra atividade social” (DORECKI, 2017, p. 20). De outro lado, os con�itos econômicos estão relacionados a partir da concepção de dinheiro das pessoas, condições sociais, desequilíbrio de classes sociais, divergências trabalhistas e inúmeros outros motivos. O cerne desta espécie de con�ito é seu caráter econômico. Por �m, para encerrarmos esse tópico, os con�itos políticos nascem de divergências de ordem política, a citar, por exemplo, opções partidárias, maculadas na dimensão relacionada ao governo e às escolhas pessoais de defesa ou crítica nessa seara. 1.2 O surgimento dos meios adequados de resolução de conflitos (MARC) Os meios adequados de resolução de con�itos, na forma integrada como são concebidos hoje, não é antiga. Na verdade, o Brasil já tinha previsão de alguns dos meios concebidos de maneira isolada no ordenamento, mas não taxados sobre o viés que são tragados hoje. Um exemplo é que no Código de Processo Civil de 1973, já tínhamos a �gura da conciliação, assim como na Lei dos Juizados Especiais (Lei 9.099/95). Contudo, essas iniciativas pela conciliação �guravam muito dentro do processo judicial, mas constituíam meio de resolver o con�ito do processo judicial por meio do livre ajuste entre as partes. A arbitragem, por exemplo, nasce com a lei 9307/96, ainda vigente, e dava opção para as pessoas capazes de contratar árbitros para “[...]dirimir litígios relativos a direitos patrimoniais disponíveis” (BRASIL, 1996). Ainda assim, um dos impulsos que aceleraram o surgimento e a prática dos meios adequados de resolução de con�itos foi o acúmulo desmedido de demandas ao Poder Judiciário. Parte desse fenômeno deve-se à redemocratização do país e à Constituição Federal de 1988, que deu o acesso ao Judiciário como exercício de cidadania. O que aconteceu, positivamente, foi uma busca maior pelos direitos da pessoas, principalmente aqueles fundamentais. Entretanto, o aparato do Poder Judiciário começou a sentir a in�nidade de demandas e o tempo de resposta aos pleitos dos cidadãos passou a ser moroso. OS MESC’s surgiram, portanto, como alternativas a um sistema judicante repleto de di�culdades materiais, com a ausência de desenvolvimento tecnológico e instrumentais que estivessem de acordo com o crescimento em outras esferas, e talvez como maior problemática do Poder Judiciário em atender a uma elevada demanda de processos que este recebia, de indivíduos ansiosos por respostas céleres e e�cazes ( GUILHERME, 2016, p. 9 ). É nesse cenário, portanto, que os MARC são inseridos, com o objetivo precípuo de possibilitar às pessoas que tenham respostas céleres, e�cazes e qualitativas para os Você sabia? Em razão da massiva judicialização e de alguns empecilhos na própria gestão do Poder Judiciário, são inseridos Meios Adequados de Resolução de Con�itos (MARC) como objetivo de dirimir e resolver, efetivamente, os con�itos a partir da relação entre as partes e o tipo de impasse. problemas que levaram para apreciação jurisdicional. Hoje, os MARC extrapolam a utilização na seara judicial, podendo ser aplicados extrajudicialmente, possibilitando que o con�ito seja resolvido sem a interferência do magistrado. Concluindo nosso primeiro tópico, portanto, conseguimos observar que os meios adequados de resolução de con�itos, ou MARC, possuem muita importância no contexto jurídico brasileiro, atuando, em um primeiro momento, como alternativa à tradicional e sobrecarregada máquina judiciária; e como meio efetivamente mais bené�co e célere para as pessoas resolverem seus con�itos. Você sabia? Em 2017, o Poder Judiciário �nalizou o ano com 80,1 milhões de processos em tramitação. No mesmo ano foram ajuizadas mais 29,1 milhões de novas ações! (CNJ, 2018, p. 73-74). 2. Acesso à justiça e os meios adequados de resolução de conflitos Passaremos a estudar o acesso à justiça no Brasil e a integração com os meios de resolução de con�itos, além de nos apropriarmos dos conceitos e da contextualização dos MARC’s: autotutela, autocomposição e heterocomposição em âmbito judicial e extrajudicial. 2.1 Acesso à Justiça no Brasil O que é acesso à Justiça? Esse é o nosso primeiro questionamento. Podemos a�rmar, preliminarmente, que a ideia de Acesso à Justiça consiste na possibilidade de o cidadão recorrer ao Judiciário para a garantia dos seus direitos. Isso signi�ca, portanto, que não trata-se apenas da possibilidade de ajuizar demandas, mas também de ter a devida resposta para seus pedidos. O conceito de Acesso à Justiça é mutável conforme o desenvolvimento histórico, a�nal o Direito é produto da história, além de ser algo complexo. Nesse sentido, não se pode a�rmar que esse instituto tenha idêntica noção no século XIX e atualmente, haja vista as mudanças de paradigma. Na verdade, pode-se a�rmar que o Acesso à Justiça que vigorou por volta do século XIX era eminentemente formal, ou seja, a garantia de que a pessoa conseguiria pleitear seus direitos ou contestar uma ação perante o Judiciário garantia a efetividade do seu Acesso à Justiça. Atualmente, o Acesso à Justiça possui um viés material, que signi�ca que a possibilidade de ajuizar ou contestar uma ação já não consolida esse instituto. Deve- se ir além, buscando assegurar direitos garantidos pela Constituição, garantir um andamento processual legal e justo e uma adequada prestação jurisdicional. É com a Constituição Federal de 1988, considerada o carro condutor para o processo de redemocratização do Brasil, que o acesso à Justiça ganha força, principalmente por meio de disposição expressa na Carta Magna, especi�camente no seu art. 5º, inciso XXXV. Esse dispositivo, inserido nos Direitos e Garantias Fundamentais, dispõe Você quer ler? Para saber mais sobre o contexto histórico em que surge o Acesso à justiça, leia a obra CAPPELLETTI, Mauro; GARTH, Bryant. Acesso à justiça. Porto Alegre: Fabris, 1988. que “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito” (BRASIL, 1988). Mauro Capeletti, um dos doutrinadores mais renomados sobre acesso à justiça, na sua obra “Acesso à Justiça” (1988, p. 8), irá a�rmar que conceituar esse instituto é muito difícil, contudo, duas são suas �nalidades básicas: “Primeiro, o sistema deve ser igualmente acessível a todos; segundo, ele deve produzir resultados que sejam individual e socialmente justos”. Nesse sentido, podemos compreender que a noção de Acesso à Justiça prescinde o mero ajuizamento da ação, tampouco uma resposta do Judiciário. É necessário que a prestação jurisdicional esteja alinhada com o espírito da Constituição e que com ele encontre correspondência, devendo respeitar e assegurar o direito das partes envolvidas. O Conselho Nacional de Justiça (CNJ) publica, anualmente, o ebook Justiça em Números, prestando contas à comunidade sobre os principais números que dizem respeito ao Judiciário brasileiro. No tópico Acesso à Justiça (CNJ, 2018, p. 78) são contabilizados casos referentes à “demanda da população pelos serviços da justiça e das concessões de assistência judiciária gratuita nos tribunais”. Rapidamente, uma explicação sobre o que é a Assistência Judiciária Gratuita: consiste em um direito que as pessoas que não possuem condições de pagar custas processuais, emolumentos e sucumbência possuem para ajuizarem e dar seguimento às suas demandas. A Assistência Judiciária Gratuita, ou AJG, possui regramento especí�co no Código de Processo Civil de 2015, de modo que a parte declara que não possui condições para arcar com as despesas processuais. Há, ao redor desse instituto, uma construção jurisprudencial sobre parâmetros para concessão do benefício, em relação especi�camente à renda da pessoa que o pleiteia. A título exempli�cativo, alguns tribunais consideram dois salários mínimos e outros cinco salários mínimos. O magistrado pode pedir documentos para comprovar a situação de hipossu�ciência à pessoa para condicionar o deferimento do benefício. A ideia de Acesso à Justiça que o CNJ traz para seu relatório consiste no número de ações que tiveram concedido a Assistência Judiciária Gratuita, onde pode se veri�car, conforme a �gura disponibilizada abaixo, que a Justiça Estadual, está no topo do ranking com maior número de processos que tramitam com AJG, seguida da Justiça Federal e Justiça do Trabalho (CNJ, 2018, p. 81). No ano-base de 2017, sob o qual se confeccionou o documento, contabilizou-se que no Poder Judiciário tramitaram com concessão de AJG um total de 272.587 processos (CNJ, 2018, p. 81). Figura 1 - Fonte: CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Justiça em números 2018:ano-base 2017. Brasília: CNJ, 2018, p. 81. 2.2 Conceito e contextualização dos MARCʼs Nesse tópico iremos abordar as estruturas clássicas de meios de resolução de con�itos, tais como a autotutela, autocomposição e heterocomposição, e localizar a Mediação, Conciliação, Negociação e Arbitragem em cada uma dessas estruturas. Antes, o que podemos a�rmar é que o sistema jurídico brasileiro evoluiu consideravelmente para organizar um aparato normativo para consolidação dos meios alternativos de resolução de con�itos. Atualmente, temos como principais parâmetros legais a Resolução 125/2010, que versa sobre a Política Pública de tratamento adequado dos con�itos de interesses, o Código de Processo Civil de 2015, a Lei 13.140/2015, que regulamenta a mediação, e a Lei 9.307/96, sobre Arbitragem. Inicialmente, podemos considerar a Autotutela como um meio desproporcional para resolução dos con�itos, no qual “[...] não havia interferência de terceiros e nem do Estado, e era praticada com as próprias mãos” (PERPETUO et al, 2018, p. 8). Ou seja, quem realmente resolvia o con�ito era o mais forte. Atualmente a autotutela é considerada crime pelo artigo 345 do Código Penal brasileiro, que a dispõe como “fazer justiça pelas próprias mãos, para satisfazer pretensão, embora legítima, salvo quando a lei o permite” (BRASIL, 1940). Como meio de autotutela vigente no Brasil hoje está o Direito Constitucional de Greve, conforme aponta o art. 9º da Constituição Federal de 1988. Nenhum dos meios adequados de resolução de con�itos que serão abordados – mediação, conciliação, arbitragem e negociação – se enquadram nessa estrutura clássica. A Autocomposição, por sua vez, tem como seu principal destaque o consenso. Nessa estrutura, podemos nos deparar com a negociação direta, onde não há a interferência de terceiros nem do Estado, e a negociação indireta, com a presença de terceiros neutros e imparciais como o Conciliador e Mediador. De qualquer forma, a solução do con�ito é alçada a partir das próprias partes. Essa modalidade é composta por três formas distintas, quais sejam: a) a desistência, quando há renúncia da pretensão requerida; b) a submissão, quando se aceita a solução para o con�ito proposta pelaparte contrária; e c) transação, quando há o diálogo entre as partes a partir do cotejo de ambos os interesses para chegar a um acordo comum. Perpetuo et al (2018, p. 8) irá destacar que na autocomposição estão inseridas a negociação, a mediação e a conciliação. No Brasil, a autocomposição pode ser dividida em três modalidades, quais sejam, a negociação: quando o acordo é �rmado entre as partes, sem que haja a intervenção de terceiros, mediação: quando o acordo é �rmado na presença de um terceiro imparcial, que ajudará na manutenção da ordem e do diálogo, e a conciliação: quando existe a presença de um terceiro imparcial, interferindo com fatos e informações relevantes sobre o litígio, buscando a melhor forma de solucionar o impasse. Nesse sentido, como expressão da autocomposição, está a solução do con�ito entre as partes, podendo se dar de maneira direta, sem intervenção de terceiros, e indireta, através do auxílio de terceiros imparciais. De qualquer sorte, o objetivo é galgar a solução do con�ito a partir da vontade das partes. Um grande exemplo, que será abordado no momento adequado dessa disciplina, são os Centros Judiciários de Solução de Con�itos e Cidadania (CEJUSC), onde se prioriza a tentativa de conciliação nos mais diversos processos para resolução do con�ito. Os CEJUSC estão presentes na Justiça Estadual, na Justiça Federal e até mesmo na Justiça do Trabalho. Ao contrário da autocomposição, a Heterocomposição é o meio de resolução de con�ito no qual um terceiro intervém para resolver o con�ito entre as partes. As formas mais clássicas são a Arbitragem e o Processo Judicial. A Jurisdição é o ingresso de um pedido judicial a partir de um con�ito entre as partes, momento no qual se provoca o Estado-Juiz, na �gura do magistrado, para resolução da lide. De outro lado, a Arbitragem, regulamentada pela Lei 9.307/96, é o meio de resolução de con�ito extrajudicial, no qual as partes ajustam cláusula compromissória em contrato para que eventual con�ito que poderá vir a surgir entre elas seja decidido por um árbitro. Art. 3º As partes interessadas podem submeter a solução de seus litígios ao juízo arbitral mediante convenção de arbitragem, assim entendida a cláusula compromissória e o compromisso arbitral. Art. 4º A cláusula compromissória é a convenção através da qual as partes em um contrato comprometem-se a submeter à arbitragem os litígios que possam vir a surgir, relativamente a tal contrato ( BRASIL, 1996 ). Em resumo, a heterocomposição não prescinde a presença de um terceiro, convocado pelas partes em litígio, para resolução do con�ito que se instaurou a partir da relação entre elas. A tabela abaixo lhe ajudará a compreender o que estudamos nesse tópico, pois sintetiza as estruturas clássicas apresentadas e onde estão localizados os meios adequados de resolução de con�itos. Tabela 1 - Síntese das estruturas clássicas Fonte: Elaborado pelo autor, 2019 3. Teoria geral do conflito Como vimos anteriormente, o con�ito deriva das próprias relações humanas, sendo oriundo da divergência de interesses, opiniões, convicções entre as pessoas, devendo ser encarado como algo normal em uma primeira análise. Nos dias de hoje essa percepção negativa do con�ito cedeu lugar ao reconhecimento de sua ambiguidade, ou seja: tanto pode o con�ito ser algo negativo como uma experiência positiva, ou até mesmo (o que parece frequente), uma ocorrência capaz a um só tempo de ocasionar perdas e de possibilitar ganhos. Assim, pode representar para os sujeitos nele envolvidos e para a sociedade uma ocorrência dolorosa e desagregadora ou virtuosa e transformadora; tudo a depender da aptidão para lidar com ele ( FREITAS JR, 2016, p. 326 ). Desse modo, não é possível suprimir o con�ito da vida sociedade, ele é inerente às relações humanas. Ademais, Freitas Jr. (2016, p. 327) ressalta que o con�ito “é característico das sociedades abertas e democráticas. Para essas, as diferenças na forma de ser, de crer, de pensar e de agir são não apenas toleradas como enaltecidas”. Ademais, fazendo uma análise comparativa entre uma visão tradicional e moderna do con�ito, podemos perceber que sob um viés tradicionalista, o con�ito é compreendido como um jogo de forças, de perde e ganha, associado à violência, muitas vezes. Agora, sob um viés moderno, o con�ito é compreendido como algo normal das relações sociais, a partir da ideia de que as pessoas possuem interesses e necessidades diversas e que possuem direito em manifestá-las. A opção de discordar do outro é, hoje, uma atitude democrática. Conforme falamos anteriormente, o manejo do con�ito é que irá determinar se será compreendido como um processo construtivo ou destrutivo. Além disso, um desa�o para as partes envolvidas em um con�ito torna-se descobrir o real motivo para a divergência. Na Teoria do Con�ito, um aspecto que merece atenção, até mesmo para os futuros pro�ssionais que irão atuar nos meios adequados de resolução de con�ito, são as espirais do con�ito. As espirais do con�ito consistem na ideia de que para cada ação, há uma reação no interior de uma relação social. Na verdade, parte de uma causa originária para o con�ito, que gera uma reação da outra pessoa envolvida, e assim sucessivamente, gerando um ciclo vicioso. O problema dos espirais de con�ito está na di�culdade, quanto maior for esse espiral, de identi�car a causa originária do atrito, uma vez que causas secundárias se sobrepõem constantemente. E isso acontece não raras vezes, pois di�cilmente uma divergência seguida de ações mais ásperas encerram em apenas um episódio. O pro�ssional que atuar em mediações, por exemplo, irá se deparar com essa realidade. Inúmeras vezes, o relato da pessoa que está na sessão de mediação é super�cial, encobrindo uma série de outros sentimentos que estão relacionados com a causa originária do con�ito entre as pessoas. E o mediador tem papel fundamental nesse aspecto, pois, através da provocação do diálogo e das técnicas que serão expostas na unidade cabível, conseguirá possibilitar a exposição do real motivo do con�ito, abrindo uma possibilidade maior de resolução. Compreender os espirais de con�ito signi�ca entender, portanto, que nem sempre o con�ito resume-se a um episódio de divergência, mas a causa originária (ação) gera inúmeras outras causas secundárias (reação e novas ações), que criam um ciclo. Esse modelo, denominado de espirais de con�ito, sugere que com esse crescimento (ou escalada) do con�ito, as suas causas originárias progressivamente tornam‑se secundárias a partir do momento em que os envolvidos mostram‑se mais preocupados em responder a uma ação que imediatamente antecedeu sua reação. Por exemplo, se em um dia de congestionamento, determinado motorista sente‑se ofendido ao ser cortado por outro motorista, sua resposta inicial consiste em pressionar intensamente a buzina do seu veículo. O outro motorista responde também buzinando e com algum gesto descortês. O primeiro motorista continua a buzinar e responde ao gesto com um ainda mais agressivo. O segundo, por sua vez, abaixa a janela e insulta o primeiro. Este, gritando, responde que o outro motorista deveria parar o carro e “agir como um homem”. Este, por sua vez, joga uma garrafa de água no outro veículo. Ao pararem os carros em um semáforo, o motorista cujo veículo foi atingido pela garrafa de água sai de seu carro e chuta a carroceria do outro automóvel. Nota‑se que o con�ito desenvolveu‑se em uma espiral de agravamento progressivo das condutas con�ituosas ( CNJ, 2015, p. 48 ). O exemplo acima extraído do Manual de Mediação do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) demonstra um exemplo comum de possível espiral de con�ito a partir de uma sucessão de ações e reações. Outro aspecto que merece destaque na Teoria do Con�ito está em classi�car os processos de resolução de con�itos, que podem ser de duas ordens: a) construtivos; ou b) destrutivos. Iniciemos abordando essa segunda modalidade, os processos destrutivos.Os processos destrutivos implicam em um enfraquecimento da relação social, suscitando até mesmo a ampliação do con�ito entre as pessoas e a fragilidade dos laços. Desse modo, “as partes quando em processos destrutivos de resolução de disputas concluem tal relação processual com esmaecimento da relação social preexistente à disputa e acentuação da animosidade decorrente da ine�ciente forma de endereçar o con�ito” (CNJ, 2015, p. 49). De outro lado, os processos construtivos de resolução de con�itos são aqueles que fortalecem as relações sociais preexistentes, nos quais as pessoas conseguem solucionar as divergências, possibilitando a empatia com o outro. O Manual de Mediação do CNJ (2015, p. 49-50) elenca algumas características do processo construtivo. [...] processos construtivos caracterizam‑se: i) pela capacidade de estimular as partes a desenvolverem soluções criativas que permitam a compatibilização dos interesses aparentemente contrapostos; ii) pela capacidade de as partes ou do condutor do processo (e.g. magistrado ou mediador) motivarem todos os envolvidos para que prospectivamente resolvam as questões sem atribuição de culpa; iii) pelo desenvolvimento de condições que permitam a reformulação das questões diante de eventuais impasses e v) pela disposição de as partes ou do condutor do processo a abordar, além das questões juridicamente tuteladas, todas e quaisquer questões que estejam in�uenciando a relação (social) das partes. Nesse sentido, o mote dos processos construtivos é estimular uma tomada de decisão e solução para o con�ito a partir das próprias partes, incentivando o diálogo e a empatia com o outro, fazendo com que busquem uma solução conjunta para a divergência que gerou o con�ito. O nosso modelo de processo judicial, majoritariamente, não auxilia no desenvolvimento de processos construtivos, uma vez que organização lógica processual obscurece o despertar de questões mais emocionais. As partes, quando buscam auxílio do Estado para solução de seus con�itos, frequentemente têm o con�ito acentuado ante procedimentos que abstratamente se apresentam como brilhantes modelos de lógica jurídica‑processual – contudo, no cotidiano, acabam por muitas vezes se mostrar ine�cientes na medida em que enfraquecem os relacionamentos sociais preexistentes entre as partes em con�ito ( CNJ, 2015, p. 51 ). O que se pode concluir, em relação à Teoria do Con�ito estudada, é que deve ser dada adequada atenção para o manejo do con�ito, com o objetivo de torná-lo um processo construtivo, no qual exista um aprendizado positivo para as partes, além do fortalecimento da relação social. O papel do pro�ssional que atua com os meios adequados de resolução de con�itos é compreender o con�ito como algo natural e estar preparado para incentivar um diálogo que alcance a causa originária da divergência. Com isso, as possibilidades de uma resolução construtiva são aumentadas e o benefício para as pessoas também. 4. Teoria da comunicação e a comunicação não violenta Após análise sobre a Teoria do Con�ito, passamos a abordar a Teoria da Comunicação, com ênfase para a comunicação não violenta. Saber se comunicar é uma etapa importante para que o con�ito se torne um processo construtivo e não destrutivo. Marshall Rosenberg é um dos expoentes quando se fala em Comunicação Não Violenta (CNV), e a�rma que se trata de “uma abordagem especí�ca da comunicação - falar e ouvir – que nos leva a nos entregarmos de coração, ligando-nos a nós mesmos e aos outros de maneira tal que permite que nossa compaixão natural �oresça” (ROSENBERG, 2006). Nesse sentido, a Comunicação Não Violenta (CNV) busca rememorar os seres humanos comunicantes da qualidade de humanos que são, e que o outro também possui a mesma qualidade que nós, motivo pelo qual devemos agir com respeito, responsabilidade e empatia. A CNV nos ajuda a reformular a maneira pela qual nos expressamos e ouvimos os outros. Nossas palavras, em vez de serem reações repetitivas e automáticas, tornam-se respostas conscientes, �rmemente baseadas na consciência do que estamos percebendo, sentindo e desejando. Somos levados a nos expressar com honestidade e clareza, ao mesmo tempo que damos aos outros uma atenção respeitosa e empática. Em toda troca, acabamos escutando nossas necessidades mais profundas e as dos outros. A CNV nos ensina a observarmos cuidadosamente (e sermos capazes de identi�car) os comportamentos e as condições que estão nos afetando. Aprendemos a identi�car e a articular claramente o que de fato desejamos em determinada situação ( ROSENBERG, 2006 ). A Comunicação Não Violenta (CNV), a partir dessa compreensão do seu objetivo, é composta por quatro componentes, que são: 1. Observação; 2. Sentimento; 3. Necessidades e 4. Pedido. A grande conexão entre os componentes está em observar o que os outros estão dizendo e como nos sentimos diante das falas, se tristes, alegres, chateados, irritados, etc. Após, é necessário identi�car quais de nossas necessidades estão ligadas aos nossos sentimentos. Pode parecer um tanto difícil exercitar a CNV no nosso dia a dia, e podemos pensar, num primeiro momento, que todas as pessoas que nos cercam e com quem nos comunicamos também devam saber dessa técnica. Contudo, Marshall (2006) assevera que “para usarmos a CNV, as pessoas com quem estamos nos comunicando não precisam conhecê-la”. A questão é que nós devemos estar compromissados com os princípios da CNV. Outro importante aspecto da CNV é que ela é uma via de mão dupla, o que signi�ca que devemos “expressar-se honestamente por meio dos quatro componentes”, assim como “receber com empatia por meio dos quatro componentes” (ROSENBERG, 2006). Você, aluno, pode estar se perguntando: eu utilizo a CNV apenas na mediação ou conciliação? A resposta é não! A CNV tem espaço em todos os ambientes que frequentamos, e pode ser utilizada na família, nos relacionamentos conjugais, em escolas, até mesmo em negociações empresariais. Em resumo, a CNV é um processo de vida, no qual a pessoa compromete-se em comunicar-se e receber a comunicação conforme os quatro componentes – observar, sentir, identi�car necessidades e pedidos. A CNV nos ajuda a nos ligarmos uns nos outros e a nós mesmos, possibilitando que nossa compaixão natural �oresça. Ela nos guia no processo de reformular a maneira pela qual nos expressamos e escutamos os outros, mediante a concentração em quatro áreas: o que observamos, o que sentimos, do que necessitamos, e o que pedimos para enriquecer nossa vida. A CNV promove maior profundidade no escutar, fomenta o respeito e a empatia e provoca o desejo mútuo de nos entregarmos de coração. Algumas pessoas usam a CNV para responder compassivamente a si mesmas; outras, para estabelecer maior profundidade em suas relações pessoais; e outras, ainda, para gerar relacionamentos e�cazes no trabalho ou na política. No mundo inteiro, utiliza-se a CNV para mediar as disputas e con�itos em todos os níveis ( ROSENBERG, 2006 ). Uma utilização imprescindível da CNV, entretanto, está nas mediações, pois o mediador deve incentivar um diálogo baseado no respeito mútuo, em escutar o outro e ser escutado, e fazer com que as partes identi�quem os seus sentimentos e os sentimentos do outro. O mediador, portanto, deve ser guiado pela Comunicação Não Violenta. Síntese Em resumo, nessa unidade, visitamos quatro tópicos: 1. Sistema integrado de meios adequados de resolução de con�itos; 2. Acesso à justiça e os meios adequados de resolução de con�itos; 3. Teoria Geral do Con�ito; e 4. Teoria Geral da Comunicação e comunicação não-violenta. Desse modo, compreendemos: A importância dos meios adequados de resolução de con�itos (MARC) para o contexto jurídico brasileiro diante do sobrecarregamento do Judiciário; A doutrina do Acesso à Justiça e o seu papel na redemocratização com a Constituição Federal de 1988; A Teoria Geral do Con�ito, que mostrou-nos que o con�ito deve ser encarado como algo naturaldas relações humanas, mas não signi�ca que seja algo simples, podendo gerar con�itos secundários, di�cultando no conhecimento da causa primeira que o gerou; A Teoria da Comunicação e a Comunicação Não-Violenta (CNJ), que nos mostraram que, para além da técnica, é importante trabalhar com a parte mais sentimental do ser humano, para que consiga comunicar-se a partir do respeito e empatia com o outro. Nessa unidade, portanto, conseguimos trazer alguns aportes introdutórios sobre os meios adequados de resolução de con�itos que irão ser a base para o desenvolvimento das demais unidades desta disciplina e para o aprendizado do acadêmico de maneira global. Até a próxima! Download do PDF da unidade Bibliografia BRASIL. Código Penal. 1940. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del2848compilado.htm . BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm . BRASIL. Lei 9.099, de 26 de setembro de 1995. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/L9099.htm . BRASIL. Lei 9.307, de 23 de setembro de 1996. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9307.htm . BRASIL. Código de Processo Civil. 2015. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/l13105.htm . BRASIL. Lei n. 13.140, de 26 de junho de 2015. 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