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A Comunicação que Não Vemos - Lucrécia D'Alessio Ferrara


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2
SUMÁRIO
Capa
Rosto
APRESENTAÇÃO
CAPÍTULO 1 - COMUNICAÇÃO: SER OU NÃO SER
1. A ideia de comunicação
2. A comunicação além do homem
3. A comunicação diante de si mesma
4. O homem mais humano
CAPÍTULO 2 - OS NOMES NA ARQUEOLOGIA DA COMUNICAÇÃO
1. A ciência dos conceitos
2. Os nomes dos conceitos
3. A mediação e seus nomes
4. Mediação e interação
5. Os rastros arqueológicos da comunicação
CAPÍTULO 3 - OS SIMULACROS DA SIMULAÇÃO
1. Da simulação ao simulacro
2. Simular e dissimular
3. A imagem como representação do mundo
3.1. A imagem como simulação do mundo
3.2. A imagem como simulacro do mundo
4. Simulacro e conhecimento
CAPÍTULO 4 - DOS LUGARES SITUADOS ÀS LUGARIDADES
MIDIATIZADAS
1. Rastros como arquitetura científica
2. Os paradigmas científicos de um geógrafo
3. Milton Santos no século XXI
4. A cidade dos lugares em conexão
CAPÍTULO 5 - COMUNICAÇÃO - RETÓRICA - EPISTEMOLOGIA
1. Como nasce uma ideia?
2. Pensar é achar uma metáfora
3. Comunicar é achar um modo de dizer
4. A comunicação não é um significante vazio
5. O lugar improvável do comunicar
6. Uma epistemologia política da comunicação
CAPÍTULO 6 - A EPISTEMOLOGIA POLÍTICA DA COMUNICAÇÃO
1. A Comunicação como dualidade
2. Epistemologias protetoras
3. Individuação e comunicação
4. A epistemologia trajetiva do comunicar
3
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5. A epistemologia política da comunicação
CAPÍTULO 7 - A MIDIATIZAÇÃO DA ESFERA PÚBLICA
1. O megamundo
2. O declínio do homem público
3. A cultura do espaço público
3.1. O espaço público como cultura do espetáculo
3.2. O espaço público pós-espetáculo
3.3. A midiatização da esfera pública biopolítica
4. A reinvenção da esfera pública
CAPÍTULO 8 - A CIDADE DA MULTIDÃO
1. O espaço enquanto objeto de estudo
2. A cidade como objeto científico
3. A cidade e suas categorias epistemológicas de análise
4. As categorias ontológicas da cidade
CAPÍTULO 9 - A VOZ OBSCURA DAS RUAS
1. A comunicação como significante vazio
2. A possível gênese da atuação massiva dos meios técnicos
3. A multidão nas ruas
4. Da multidão ao público: paradigmas em transformação
5. Política em mudança
6. A subjetividade da multidão
7. A experiência política além da multidão
BIBLIOGRAFIA
FONTES
Coleção
Ficha Catalográfica
4
A
APRESENTAÇÃO
comunicação que não vemos é consequência de pesquisa desenvolvida com apoio do
Conselho Nacional de Pesquisas Científicas (CNPq), a quem agradecemos. Este
trabalho dá continuidade ao estudo da cidade como laboratório de exercícios
comunicativos e como cenário de manifestações políticas, que nela encontram ambiente
adequado ao debate e ao desafio da procura dos interesses coletivos.
Observando essa continuidade, a pesquisa denominada “Por uma Epistemologia Política
da Comunicação” retoma e desenvolve alguns conceitos estudados em Comunicação,
Mediações, Interações (2015) e os entende como elementos vitais para a investigação do
debate político que se desenvolve na cidade. Observando, mas indo além do conflito que
se observa entre mediação e interação, aparentemente considerados e aceitos como
conceitos sinônimos, estuda-se, agora, a natureza política da comunicação como área
científica, a fim de saber até que ponto a comunicação pode superar a dimensão linear da
simples transmissão ou os dispositivos midiáticos que a transformam em dispositivo de
poder, para ser sensível às transformações sociais que dão origem a distintos ambientes
políticos e suas decorrências conceituais. Desse modo, a pesquisa tem como objeto
delinear as dimensões epistemológicas que se voltam para as matrizes políticas da própria
comunicação e a redefinem enquanto essência e consequência, inserindo, na sua
epistemologia, outras esferas de estudo e investigação.
Ao discriminar as dimensões da comunicação que interferem na própria constituição
política das transformações sociais, a pesquisa procurou apreender suas consequências a
fim de verificar as relações que se estabelecem entre a epistemologia e o objeto científico
da comunicação, na definição da sua prática empírica; estudar limites e fronteiras
ambivalentes da comunicação como território científico que se dispersa entre políticas
midiáticas, e aquelas que constroem alternativas de valores e comportamentos; avaliar,
naquela ambivalência, a possibilidade de rever a definição da comunicação como área
científica.
Da relação entre esses procedimentos metodológicos de observação, destaca-se a
relevância da pesquisa voltada para a possibilidade de construção de uma epistemologia
que supera a comunicação midiática, para atingir a complexidade e as consequências do
comunicar.
A matriz política da comunicação transforma a própria natureza da cidade ao
possibilitar a criação de outros atores sociais, prontos a transformarem-se em personagens
da própria dimensão histórica da cidade. Nessa história, redesenham-se não só o papel
social da cidade, mas a atenção da comunicação para aquele papel que a afasta do
espetacular poder de sedução dos dispositivos midiáticos e lhe permite atingir o
comunicar, que, em princípio, disperso, efêmero e invisível, se redefine na rede de
processos interativos metacontextuais presentes na descoberta da ação política que
possibilita superar as instâncias do sujeito, para que o indivíduo da modernidade se
redescubra nos domínios do coletivo.
Como consequência, constata-se que a comunicação não faz uso da política nem está a
serviço das suas estratégias e dispositivos, mas pode propor-se à construção política,
quando se permite rever seu objeto científico e exercício pragmático, elementos
5
constitutivos da epistemologia, que define a comunicação como ciência. Ou seja, a cidade
é protagonista da ação, que, por meio do comunicar, permite que se reconheça como a
política se revela em valores e comportamentos sociais, ao mesmo tempo que propõe o
reconhecimento de apelos sensíveis, que, muito mais do que simplesmente visuais,
ocorrem através de impactos mais próximos e íntimos ao volume dos corpos coletivos, na
clivagem de escolhas e ações.
A cidade nos faz políticos e nos ensina outro modo de produzir conhecimento que,
mediante escolhas conceituais, metodológicas e empíricas, revela como pensamos e
produzimos conhecimento. Somos políticos ao viver na cidade e, por ela inspirados,
produzimos inferências políticas que revelam nosso modo de conhecer. A cidade
contemporânea é autora da sua política e das evidências que impõe à consideração
cognitiva. Desse modo, o foco pesquisado não pretendeu desenvolver explicações daquela
dimensão política, ao contrário, procurou comparar as dimensões políticas que podem
estar presentes no ambiente da cidade e permitem entender o modo como estudamos a
comunicação, ou como nos adaptamos às suas limitações vinculadas a efeitos espetaculares
e midiáticos.
A dimensão política da comunicação como área de conhecimento leva à superação da
polaridade de conceitos em oposição, que constroem um conhecimento conceitual e
metodologicamente ordenado, para permitir a revisão dos limites do conhecimento como
polaridades e redescoberta da dinâmica das diferenças, que, ao aproximarem diversas áreas
de conhecimento, ressoam entre seus paradigmas teóricos e conceituais. Nessa dinâmica, a
comunicação não se descobre como área interdisciplinar, mas se manifesta como
antidisciplinar e, assim, se coloca no horizonte mais otimista da ciência contemporânea.
Dividido em dois blocos de ensaios especulares, porque se retomam ou se remetem uns
aos outros, o livro apresenta dez ensaios que se voltam, de um lado, para o estudo da
dimensão epistemológica que a política revela para a comunicação como área científica e,
de outro, para a análise do exercício político que encontra, na cidade contemporânea, seu
cenário mais adequado e sua interlocução mais própria e convergente. Entre a política e a
cidade, a comunicação constrói outras bases cognitivas e abre outros cenários para a
ciência da atualidade.
Ao primeiro bloco, pertencem os ensaios denominados: Comunicação: ser ou não ser; Os
nomes na arqueologia da comunicação;Dos lugares situados às lugaridades midiatizadas; Os
simulacros da simulação. No segundo bloco, registram-se: Comunicação – retórica –
epistemologia; A epistemologia política da comunicação; A midiatização da esfera pública; A cidade
da multidão; A voz obscura das ruas.
Este trabalho poderá atrair a atenção e alimentar a reflexão de todos aqueles que se
interessam pela dimensão cognitiva do exercício político, que se manifesta na atividade
profissional de comunicólogos, filósofos, sociólogos, historiadores, geógrafos,
urbanistas/arquitetos e artistas.
6
Capítulo 1
COMUNICAÇÃO: SER OU NÃO SER
“O que comunica a língua? Ela comunica a essência espiritual que lhe corresponde. É fundamental saber
que essa essência espiritual se comunica na língua e não através da língua” (Benjamin, 2011: 52).
7
O
1. A IDEIA DE COMUNICAÇÃO
que é comunicável na comunicação? A resposta a essa pergunta, exageradamente
simples, tem sido motivo de muitos debates nas últimas décadas do século XX
até os dias atuais com o advento, sobretudo, das novas tecnologias da
informação. Se a questão é quase óbvia de tão simples, por que dá origem a debates
frequentes que não encontram uma base aceitável de resposta? A dificuldade estaria na
pergunta ou no modo como podemos entendê-la? A raiz da questão poderá estar naquilo
que Benjamin chamou de “essência espiritual” ao se referir ao verbal? Como comunica a
comunicação? Poderíamos responder que ela comunica um modo de vida que, na
atualidade, se confunde com aquilo que tem sido chamado bios midiático e, nesse sentido,
a comunicação seria simples transporte de um modo de vida. Confundimos a experiência
de vida propiciada pela comunicação com sua própria essência e, nesse sentido, bios
midiático seria outro nome para a comunicação contemporânea? Os homens estariam
sujeitos a um jeito de ser que se confunde com o modo como se comunicam?
As possíveis respostas exigem, conforme Benjamin, procurar a “essência espiritual” da
comunicação. Entretanto, o conceito de comunicação é confuso e ambíguo ou talvez nos
tenhamos acostumado com o sentido de uma prática que, cotidiana e invasiva de todos os
espaços, se tornou habitual e sem definição que a conceitue. A atual tecnologia da
informação transformou ou confundiu a comunicação com os dispositivos tecnológicos
que invadiram os lares e instituições através de consequências que, sem percebermos,
tomaram conta de valores, comportamentos e práticas habituais, midiatizando-nos.
Enquanto hábito, a comunicação supõe um modo de ser refratário a qualquer
possibilidade conceitual. Já não sabemos o que é comunicação ou o que a define como área
de estudo. Temos uma ideia de comunicação, mas não conhecemos sua definição.
Se no início das tecnologias que sustentaram a imprensa como meio comunicativo, era
possível entender, como sua consequência fundamental, a possibilidade de, diretamente,
democratizar a informação e, indiretamente, patrocinar o acesso de todos àquele saber que,
até então, era privilégio de poucos; depois da Primeira e, sobretudo, durante a Segunda
Grande Guerra, a comunicação se transformou em instrumento adequado à divulgação de
valores e ações que mal encobriam interesses políticos hegemônicos. A comunicação era
um instrumento a serviço de interesses de poder, e seus meios técnicos se ampliaram e se
diversificaram.
Com o final da Segunda Guerra, compreender a comunicação como uma consequência
natural dos meios técnicos levou à impossibilidade de pensar sobre suas causas e ela surgia
natural porque, através dos meios, tudo era passível de comunicação, até mesmo a
ausência imediata de um agente emissor. Com as tecnologias digitais, a informação está ao
alcance de todos e a comunicação perdeu, parece, definitivamente sua possibilidade de ser
independente dos dispositivos técnicos que a sustentam. Engolida pela tecnologia, a
comunicação se confunde com ela e já não sabemos em que consiste comunicar. Estamos
ante uma realidade que surge definitiva na concepção radical que supera o homem, porque
a comunicação se dá, espontaneamente, através da máquina, que já não necessita saber
quem a inventa ou a instrumentaliza. A comunicação é maquínica e inteligente por si
mesma, e o homem atingiu o ápice da sua possibilidade de ser humano; agora, é pós-
humano. Essa percepção surge como asserção, ameaça ou desafio?
8
2. A COMUNICAÇÃO ALÉM DO HOMEM
A epígrafe de Benjamin nos leva a refletir que, para proteger o homem e sua capacidade
de pensar, fez-se a linguagem e, além dela, a comunicação, a quem caberia resguardar
aquela capacidade e patrocinar a multiplicação do homem como capacidade pensante.
Desse modo, a comunicação pensa a linguagem e protege o homem, mas não parece
elucidar em que consiste essa proteção. Entretanto, ela se apoia em, pelo menos, três
distintas premissas que constituem obstáculos à construção de uma epistemologia da
comunicação, que seja capaz de definir o que é comunicação. Analisemos essas premissas.
9
A.
Em inúmeras conferências e artigos, Benjamin se ocupa da questão da linguagem e se
debate entre o caráter expressivo e aquele comunicativo, que parecem garantir a
possibilidade de definir a linguagem. Entretanto, o texto de juventude, produzido em
1916 e do qual se extraiu a epígrafe a este trabalho, parece evidenciar uma tensão
permanente para as tentativas, sempre parciais, de definir a linguagem. Essa dificuldade
parece dar origem a uma indecidibilidade da linguagem que a faz se confundir, de um
lado, com aquilo para que ela serve e, de outro, com sua essência espiritual, que também
conserva paralela indefinição.
Entretanto, no texto em questão, “Sobre a linguagem em geral e sobre a linguagem do
homem”, o autor procura um caminho metafísico para definir aquela essência que estaria
definitivamente relacionada com a capacidade de nomear ou atribuir nomes às coisas que
distinguiria o ser humano, entre todas as demais espécies vivas, orgânicas ou inorgânicas.
O espiritual do homem não é outro senão sua capacidade de usar a linguagem, cuja
essência estaria na capacidade e direito de nomear. Mas, enquanto linguagem, o que é um
nome? Seria a capacidade de, distinguindo por meio do nome, ser capaz de produzir
conhecimento? Portanto, o nome se confundiria com a própria condição epistemológica
do homem de produzir conhecimento. O nome é uma inferência em comunicação?
Dessa forma, a anterior indecidibilidade pode tornar-se ainda mais radical, salvo se
entendermos que a linguagem é a comunicação que distingue o homem. É, antes de tudo,
um meio. Porém, no mesmo texto, encontra-se uma nota que chama a atenção para dois
sentidos subjacentes ao meio: de um lado, o meio (do alemão mittel) estaria a serviço de
uma função e desempenharia um papel, no mínimo, instrumental, o segundo designaria o
próprio meio material da comunicação ou o modo como ela atua:
O homem é aquele que nomeia, nisso reconhecemos que por sua boca fala a pura língua. Toda natureza, desde
que se comunica, se comunica na língua, portanto, em última instância, no homem. Por isso, ele é o senhor da
natureza e pode nomear as coisas. É somente através da essência linguística das coisas que ele, a partir de si
mesmo, alcança o conhecimento delas – no nome. A criação divina completa-se no momento em que as coisas
recebem seu nome do homem, a partir de quem, no nome, somente a língua fala. Pode-se designar o nome
como a língua da língua, a linguagem da linguagem desde que o genitivo não designe uma relação de “meio”
(Mittel), mas de “meio” (Medium) e, nesse sentido com certeza, porque ele fala no nome, o homem é o
falante da linguagem –, e por isso mesmo, seu único falante (Benjamin, 2013: 56).
Reencontramo-nos com o litígio inicial: a comunicação ou o nome das coisas que retém
o espaço da linguagem teriam uma essência própria, ou seriam instrumentos voltados para
a consecução de um fim? O homem se comunica porque a ele cabe nomear as coisas ou se
torna um instrumento comunicante que desloca sua capacidade de nomear, para ser um
instrumento transmissivoque nada nomeia, mas tudo determina?
De um lado, a comunicação como instrumento seria utilitária e a serviço de interesses
exógenos à sua essência, de outro, seria nomeação do mundo, mas indecidível enquanto
definição imediata, pois só seria apreensível através do modo de nomear que se comunica
de modo indeterminado, mas essencial.
10
B.
Em outro texto antológico, Benjamin dá, de certa forma, continuidade à reflexão
anterior, refiro-me ao texto “A doutrina das semelhanças”, que, divulgado em 1933,
constitui base teórica fundamental para uma epistemologia da comunicação. A primeira
frase do artigo é esclarecedora:
Um olhar lançado à esfera do “semelhante” é de importância fundamental para a compreensão de grandes
setores do saber oculto. Porém esse olhar deve consistir menos no registro de semelhanças encontradas que na
reprodução dos processos que engendram tais semelhanças (Benjamin, 1985: 108).
A citação é clara: registram-se semelhanças ou produzem-se construções de semelhanças.
No primeiro caso – e diretamente relacionado à capacidade desenvolvida pelo advento da
fotografia como registro básico da reprodutibilidade técnica –, a semelhança seria uma
constatação com absoluta fidelidade à realidade que lhe é referência. O registro do
semelhante reduziria a capacidade técnica do meio a uma dimensão primeira e primária de
natureza habitual e absolutamente simétrica ao referente.
No segundo caso, a produção de semelhanças suporia uma síntese perceptiva que,
dinâmica e indeterminada, produziria imagens, sem reprodutibilidade técnica necessária,
mas apenas possível como arquivo tecnológico de produzir imagens sem referências. Uma
atividade transdutora que, mais do que tradução, leva a reconhecer, ou conhecer outra vez,
a realidade e o mundo.
Nos dois casos, encontramos distintas bases arqueológicas da comunicação: um
instrumento utilitário que operaria através da linguagem, ou uma inferência que, na
linguagem, produziria imagens à maneira de um caleidoscópio cognitivo, ou seja, nesse
caso, produzir semelhanças exige recriar/rever a realidade e o mundo. Entretanto, nos dois
casos, operaríamos com dimensões analógicas, mas de distintas naturezas: no primeiro
caso, reconheceríamos dimensões simétricas, no segundo, produziríramos, sem métodos
coercitivos, imagens que, operando sobre aquelas simetrias, não produziriam assimetrias
que seriam também simetrias com sinais trocados, mas diferenças que permitiriam
evidenciar outra dimensão arqueológica.
A relevância dessa última dimensão arqueológica foi amplamente estudada por
Agamben (2004), quando, prefaciando importante obra sobre a analogia e revendo a
célebre referência ao anjo da história de Benjamin (cf. 1985: 226) retoma, desde Valéry
(cf. 1991: 147), o célebre conceito de analogia. Ao lado de Benjamin, preveríamos o
futuro como se progredíssemos ou andássemos para a frente, impulsionados pelo passado,
mas o autor prefaciado por Agamben, Melandri (2004), em sentido oposto, propõe uma
volta ao passado para poder ver o futuro:
Come osserva Valéry, nous entrons dans l´avenir à reculons... per capire il passato, dovremmo parimenti
risalirlo à reculons. L´immagine di uma processione nel tempo che volge le spalle allá meta si trova, come è noto,
anche in Benjamin... La regressione “dionisíaca” do Melandri è immagine inversa dell´angelo benjaminiano. Se
questi avanza verso il futuro tenendo fisso lo sguardo nel passato, l´angelo di Melandri regredisce nel passato
guardando al futuro (Agamben, 2004: XXII).
Essa raiz arqueológica, presente na possibilidade da semelhança como “regressão
dionisíaca”, assinala, com clareza, a diferença entre a analogia como imitação (cf.
Benjamin, 1985: 108), em que a linguagem é usada como instrumento, e aquela que
produz inferências na linguagem e sobre suas próprias possibilidades de criar o
11
conhecimento na medida em que o comunica. No primeiro caso, a semelhança seria um
instrumento de identificação ou de identidade filogenética, no segundo, a semelhança
seria possibilidade de ver para inferir de modo cognitivo e produzir uma ontogênese da
própria comunicação como conhecimento, que, percebida de modo irregular, é capaz de
produzir regularidades cognitivas que, contínuas, identificam os rastros epistemológicos
da comunicação.
Superar a avassaladora dimensão instrumental daquela semelhança constitui o segundo
obstáculo para a construção de uma epistemologia da comunicação que possa ir além da
simples utilidade transmissiva.
12
C.
A terceira premissa é consequência das anteriores e traça o parâmetro que parece
distinguir, de modo definitivo, os elementos que as identificam. Trata-se da necessidade
que, presente em distintas ações comunicativas, parecem designar a comunicação como
um modelo uniforme e previsível responsável pela modelagem do mundo. Entre modelo
como identidade de si mesma e modelagem como função pragmática, a comunicação
poderia ser, sobretudo, um programa que, estabelecido a priori, evidenciaria o que deve ser
a comunicação que se transmite de modo uniforme, porque assegurada por uma
linguagem hábil para executar a função que, através dela, se modela. A comunicação seria
um programa e assumiria a garantia de um contrato amparado pelo discurso.
Enquanto programa, essa comunicação instrumental apresenta, desde os experimentos
planejados e executados pelo empiricismo desenvolvido na Universidade de Columbia por
Lazarsfeld, um destino demarcado por um “efeito fraco”, não como consequência, mas
como infiel ao plano que lhe foi traçado de antemão por um emissor que, na pilotagem de
um modo de ser previsto, esperaria a consecução total do plano estabelecido.
Essa dimensão programática, que pressupõe que a mídia deve estar a serviço de um
interesse exógeno à própria essência comunicativa, se opõe, evidentemente, ao caráter da
comunicação que ocorre na linguagem, com ela e além dela, mas sem pressupostos ou
planos. Opõem-se programa e projeto comunicativos.
Enquanto programa, a comunicação emerge na instância do emissor que, hegemônico,
estabelece o que se comunica na docilidade da linguagem instrumental e à distância de
contextos, realidades ou histórias receptivas; enquanto projeto, a comunicação é processo
integrado no contexto histórico do receptor e, sobretudo, na concepção de
desenvolvimento cognitivo da comunicação inserida na história e na ciência como área de
conhecimento. Opõem-se, portanto, nas suas bases arqueológicas, a transmissão como
mídia e a comunicação como meio que ocorre porque se constrói na interatividade entre
contextos, histórias e projetos distintos do emissor e receptor, que, em comunicabilidade,
se autorreconhecem, embora possivelmente, sem identidade, porque em constante, mas
indeterminado, processo construtivo. Opõem-se programa e projeto, mídia e meio
comunicativo, mediação e interação e, entre essas instâncias, não cabem adesões
epistemológicas. Nessa dimensão, mais uma vez surge “o meio é a mensagem” (Mcluhan,
1969), como aforismo arqueológico da comunicação.
13
3. A COMUNICAÇÃO DIANTE DE SI MESMA
A análise das três premissas anteriores nos encaminha para uma evidência perturbadora.
Supondo-se que a comunicação só ocorre por intermédio da linguagem e que sua
programação assegura a execução de um contrato, pode-se admitir a tese de que ela nada é
senão um programa material para edificar um homem e uma sociedade estáveis, porque
definidos de antemão por um modo de ser programado. Simétricos em irreparáveis
semelhanças habituais e cotidianas, já não se distinguem emissões e recepções, códigos
estabelecidos ou decodificações possíveis, porque tudo se resolve na fidelidade receptiva
que se apoia na autoridade do próprio processo de emissão. Uma cultura uniforme,
estruturalmente construída por um equilíbrio simétrico e definitivo.
Nessa tese, podemos verificar que a comunicação se exaure nas características da
visualidade que a transforma em notícia da sua própria espetacularidade. Performática,
essa comunicação é estável e de durável percepção, porque comandadapela redundância
que assegura uma contiguidade comunicativa desenhada pela rotina do tempo e do espaço
que configuram a comunicação de alguns para muitos, no registro de um modo de vida
produzido em série, conforme o padrão industrial que está na arqueologia da técnica e na
crença dos seus efeitos, atualmente considerados definitivos e vetores do progresso
tecnológico. Um programa que, na ordem inversa da própria produção da técnica, coloca o
homem ao seu serviço e, de modo presumível, ultrapassado pela própria inteligência
artificial da máquina. Esse programa é uma ameaça e um desafio que demanda passarmos
da consideração de uma tecnologia soberana, para entender a dimensão de uma
tecnicidade que constitui outro projeto para o contemporâneo:
Existe algo viviente en un conjunto técnico, y la función integradora de la vida solo puede ser asegurada por
seres humanos; el ser humano tiene la capacidad de comprender el funcionamiento de la máquina, por una
parte, y de vivir, por la otra: se puede hablar de la vida técnica como aquello que realiza en el hombre esta
puesta en relación de las dos funciones. El hombre es capaz de asumir la relación entre lo viviente que es y la
máquina que fabrica; la operación técnica exige una vida técnica y natural...Unicamente el mediador de la
relación entre las máquinas puede descubrir esta forma particular de sabiduria (Simondon, 2007: 143 e 165).
Considerando a proposta visionária de Simondon, observa-se que a tecnicidade ocorre
com e através da tecnologia da máquina, mas insurgindo-se contra ela, subordina-a ao uso
da técnica que faz do homem senhor da sua criatura: restitui-se ao homem sua capacidade
de nomear e comunicar na tecnologia, por meio dela e além dela. Superando qualquer
ingenuidade que nos levaria a desconsiderar o contemporâneo progresso da capacidade do
homem para inventar a tecnologia e as máquinas, também parece adequado e natural que,
como o homem nomeava e, agora, inventa, nada ocupará seu lugar comunicativo e tudo o
faz ir além da máquina como artificialidade instrumental, pois se ele a inventa, ela não o
supera. Recupera-se a ameaça entrevista anteriormente, e nela apreende-se, mais uma vez
e de modo reiterativo, a tendência que nos leva a confundir mídia e meio comunicativo,
simetria/assimétrica e diferença, máquina e utilidade maquínica, tecnologia e tecnicidade.
Entretanto, a própria evolução tecnológica nos impõe considerar outra realidade que se
projeta além da técnica como utilidade:
La continuidad de lo creado, con su doble dimensión de universalidad espacial y de eternidad temporal, solo
parece de manera clara si se hace abstracción del destino de utilidad de los objetos técnicos; una definición por
la utilidad, según las categorias de las necesidades, es inadecuada e inesencial, ya que atrae la atención sobre
14
aquello por ló cual dichos objetos son prótesis del organismo humano; ahora bien, es precisamente bajo esa
relación que la universalidad y la intemporalidad son más directamente trabadas, en la medida en que todo lo
que se adapta al ser humano corre el riesgo de devenir un médio de manifestación y de ser reclutado como
faneras suplementarias. Un gran número de objetos técnicos son revestidos como objetos de manifestación, lo
cual les añade significaciones locales y transitórias que sobrecargan el contenido técnico, lo disimulan y a veces
le imponen una distorción (Simondon, 2013: 185/186).
Situado nos limites de uma prótesis do humano que a ele se adapta, estamos aquém da
possibilidade mediativa da técnica, que, em tecnicidade, não pode ser dissimulada pela
utilidade, mas, ao contrário, exige ser reconhecida no seu papel que a faz não uma prótesis,
mas uma extensão daquela própria capacidade mediativa que caracteriza o homem, como
construtor e transformador de linguagens e tecnologias. O próprio progresso da tecnologia
insinua que já é tempo de superarmos a ameaça da máquina que substitui o homem, a fim
de aprendermos a ser mais humanos.
15
4. O HOMEM MAIS HUMANO
Entretanto, o desafio subjacente à ameaça deve considerar, de um lado, a capacidade
dialógica da interlocução (cf. Bakhtin, 2011) que constitui, de um lado, sua marca de
liberdade comunicativa que se concretiza no seu próprio modo de fazer-se e, de outro lado,
é imprescindível notar que, sob a instrumentalidade, está outro modo de entender a
comunicação e de produzir sua epistemologia.
Nesse sentido e em obra que parece secundar o texto de Benjamin, do qual se extraiu a
epígrafe que deu origem e inspiração a este trabalho, Agamben (2010) estuda a
linguagem e o poder, entendidos, ambos, como sacramentos que perfazem a arqueologia
de um juramento. É evidente que o título desse trabalho de Agamben é, além de
metafórico, provocativo. Mas em que consiste essa provocação que pode fazer eco àquela
ameaça que subjaz à técnica, e se apresenta como consequência do seu progresso?
Entre a linguagem e o poder, se articulam, também, o sacramento e o juramento e entre
eles se encontram a arqueologia e o desafio do presente compreendidos na dimensão
política da comunicação.
Sob o juramento está a base judicativa que confirma a linguagem como pacto de
fidelidade que, sob a proteção de um código de emissão e recepção, garante a confiança em
sua verdade elocutiva e se transforma em sacramento inviolável.
Essa confiança é responsável pela ação inquestionável da mídia, que se realiza como um
sacramento ou juízo de um modo de ser e impõe valores e comportamentos redundantes
que, estáveis, se mantêm, confirmando seu caráter contratual e coercitivo. Nesse sentido,
o caráter instrumental-utilitário está presente na arqueologia da comunicação midiática,
assim como o diálogo está presente na comunicação interativa como seu arché original.
Nos dois casos, a comunicação é atravessada por um conjunto de forças que mantêm,
simultaneamente, a mídia e seu avesso, a interação:
Con el logos se dan juntos – cooriginariamente pero de modo tal que nunca pueden coincidir a la perfección –
los nombres y el discurso, la verdad y la mentira, el juramento y el perjúrio, la ben-dicción y la mal-dicción, la
existência y la non existência del mundo, el ser y la nada... En esta perspectiva, la tajante distinción entre el
juramento asertorio y el juramento promisorio corresponde al extravío de la experiência de la palabra que está
en cuestión en el juramento (Agamben, 2010: 89/90).
A superposição entre a linguagem que se constrói a si própria e aquela que se faz
instrumento de outro interesse leva a uma confusão habitual, não distinguindo mídia e
comunicação, mediação e interação, linguagem e discurso, considerando a capacidade de
nomear como origem da comunicação e sua transformação em código assertivo.
Essa mistura supõe um paradoxo a ser considerado. De um lado, impede que
distingamos os paradigmas originais de uma epistemologia da comunicação, que, se não
for vista como um conjunto de princípios judicativos e validativos do que é comunicação,
pode aventurar-se a propor outro juramento mais falível e mais instigante. De outro lado,
impõe considerar que a comunicação midiativa é domínio de um poder de pensar e agir e,
como instrumento de controle, mantém sob sua guarda política a ação, que, submissa às
ameaças, se amedronta e não reage. Uma comunicação que nos impede de pensar e atuar
como seres comunicantes; uma mídia que, coercitiva, nos impõe uma “vida nua”
dominada pela anticomunicação, comandada pelo dispositivo técnico-midiático e pelo
16
poder que tudo parece imunizar, a fim de poder atuar na dimensão de uma política
hegemônica, mais interesseira do que interessada. Uma vida nua como estado de exceção
(cf. Agamben, 2005: 129) inerente à comunicação midiática que, se de um lado, parece
inclusão social mediante sua capacidade tecnológica de informar, é também exclusão, na
medida em que manipula a informação conforme seus interesses e impede o acesso à
matriz original do conhecimento, que, operativa, intensifica-se como vetor produtivo de
outras informações. Esse obstáculo à informaçãoé claramente excludente.
Entretanto, na inadequação epistemológica entre mídia e comunicação está presente
uma alternativa que deve ser considerada: a comunicação pode produzir uma resistência
política à ameaça da técnica, transformando a linguagem na técnica, que pode devolver ao
homem sua capacidade de nomear as coisas, enquanto se descobre comunicante.
17
Capítulo 2
OS NOMES NA ARQUEOLOGIA DA COMUNICAÇÃO
“O intelecto é a nossa única avenida de acesso à realidade, e essa única avenida está interditada pela
intelectualização do intelecto. Daí o nosso niilismo” (Flusser, 1999: 59).
18
A
1. A CIÊNCIA DOS CONCEITOS
obra na qual se colheu a sugestiva epígrafe de Flusser chama-se A dúvida,
sugerindo reflexão não menos perturbadora e inquieta do que a própria epígrafe.
A obra e sua epígrafe nos remetem ao domínio da produção de conhecimento e,
nele, ao seu arquétipo mais significativo definido como conceito ou paradigma,
entendidos como definidores da autonomia de uma área científica e como clichês da sua
identidade. Quanto mais estáveis e duradouros forem seus paradigmas ou persuasivos seus
conceitos, mais pródiga será a eficiência de uma área científica para diversificar, catalogar
e classificar operações entendidas como matrizes da própria ciência em suas operações
produtivas. Porém, aquela eficiência é liderada por dois fundamentos decisivos: a clareza e
precisão do conceito e o nome persuasivo que o designa.
A clareza depende de um modo de pensar, tanto mais eficiente, quanto melhor se
prestar para a geração de categorias de análise entendidas como matrizes de regularidade
que as aproxima de estruturas modelares; nesse sentido, a arquitetura conceitual da ciência
exata é exemplar como capacidade de pensar e, como consequência, tem livre curso em
quase todas as modalidades daquela produção científica.
Porém, a sedimentação de um conceito depende de paciente processo histórico e
definidos limites geográfico-contextuais para que seja reconhecido como parâmetro de
uma área científica, ou seja, um conceito tem sua sobrevida diretamente relacionada ao
seu reconhecimento. Para tanto, o nome de um conceito constitui chave mestra para sua
codificação científica (cf. Ferrara, 2012).
19
2. OS NOMES DOS CONCEITOS
O nome de um conceito é uma forma de dizer que exige atenta relação designativa, a
fim de que o nome corresponda ao seu objeto e assuma a dimensão de um conceito. No
caso das ciências humanas, entre elas, a comunicação, o objeto científico se apresenta
sempre cambiante, em constante movimento e indeterminação, porque sujeito a intenso
processo de transformação contextual. Para aquelas ciências, designar, dar nome a um
conceito constitui grande dificuldade porque os nomes se apresentam, quase sempre,
eufóricos como modos de dizer, mas disfóricos, como capacidade designativa. Ou seja, nas
ciências humanas, a arte de nomear não supõe apenas um nome próprio que corresponda
ao cientista cujo trabalho deu origem a uma descoberta teórica, científico-pragmática ou
metodológica, como frequentemente ocorre na área das ciências exatas.
Ao contrário, na comunicação, a arte de nomear corresponde a um modo inusitado de
dizer e criar uma metáfora que seja capaz de produzir um impacto, quase performático, a
fim de corresponder a um modo inusitado de nomear um fato que, frequentemente, já se
tornou hábito perceptivo. Ou seja, para a comunicação, a arte de nomear corresponde a
um nome inusitado para designar uma realidade já vivida. Desse modo, um nome
constitui um reconhecimento, um “re-conhecer”, conhecer outra vez aquela realidade, e o
nome parece arbitrário em relação ao conceito e, mais do que nomear, atua à maneira de
um código.
Metafóricos, os nomes frequentemente operacionalizados na comunicação são estranhos
ao conceito que designam e podem não corresponder ao interesse designativo que os deve
acompanhar, porém são numerosos.
Se entendermos que comunicação supõe mediação entre uma fonte emissora para atingir
um receptor sempre pronto para uma atuação de acolhida da mensagem transmitida, os
nomes que designam a comunicação são sempre metáforas decorrentes daquele gesto
emissivo, que tem em vista uma recepção paciente e passiva. Desse modo, acreditamos
que nos comunicamos quando, cientificamente, utilizamos os nomes que, de modo
metafórico ou ficcional, designam o gesto emissivo. Em comunicação, como em outras
áreas das ciências humanas, a vida dos conceitos depende da performance metafórica dos
nomes que os designam.
Desse modo, aquela decidida ação transmissiva é também difusa, visto que seu objeto
está circunscrito a uma mensagem que, mesmo codificada a partir dos rigores do verbal,
sempre está sujeita às imprevisíveis traduções receptivas que convergem para repertórios e
contextos sobre os quais o emissor não tem rigoroso controle. Dessa forma, tendo em vista
o plano emissivo, é frequente a comunicação ser inócua, fraca ou ineficiente como
resultado a atingir. Desse modo, é imperativo constatar evidente confusão epistemológica:
natural e alegremente se confunde a definição do objeto científico com os objetivos a
atingir. Talvez essa seja a razão mais plausível para nos permitir entender a razão pela qual
a comunicação é classificada como ciência social aplicada. Entretanto, esse desvio de rota
pode ser corrigido ou controlado, se os nomes que designam os conceitos que norteiam a
epistemologia da comunicação forem convincentes na sua capacidade de nomear um
hábito ou uma forma usual de nos comunicarmos.
A fragilidade dos processos de comunicação no seu trajeto transmissivo de um emissor a
um receptor constitui um obstáculo ou um fantasma enunciativo. Mas de todo modo, é
20
necessário forjar um nome sedutor, a fim de que o conceito tenha vida longa e
convincente.
Nesse sentido, frequentemente o nome ou a metáfora acabam por despojar um conceito
do seu sentido adequado e passam a autodesignar-se como conceitos nomeativos, ou seja,
toma-se um conceito pelo nome que o codifica. Um conceito só se expressa na medida em
que é codificado através de um nome que o torna comunicável, ou seja, o nome substitui o
próprio conceito que através dele se comunica.
21
3. A MEDIAÇÃO E SEUS NOMES
Na sua característica nomeativa – e indo além dos nomes que designam o caráter
transmissivo que constitui o conceito fundamental da comunicação administrativa como
propunha o empiricismo de Laswell ou Lazarsfeld, e atingindo tendências de análise mais
próximas de uma microssociologia como o espectroscópio social de Simmel ou
manifestações diretamente relacionadas com a aderência à fidelidade ao código que
garantiria a homeostase comunicativa, como propunha o famoso feedback de Winner –, a
comunicação parece ter se especializado em nomear-se (cf. Ferrara, 2012).
O emprego desses nomes é suficiente para criar uma atmosfera que se pretende
científica, porque são proclamados publicitariamente e seu emprego pode ser suficiente
para designar, de modo aproximado, aquilo que se entende como mediação ou transmissão
de mensagens entre os homens. O uso do nome define o norte científico, sem nos darmos
ao trabalho de saber se é adequado ao objeto em estudo e ao seu domínio contextual. Do
ponto de vista epistemológico, a coleção dos nomes e sua constante citação constituem
parâmetros daquilo que se entenderia como competência científica.
Entretanto, sabe-se que, frequentemente, o uso dos nomes é tão arbitrário como as
metáforas que pretendem designar a complexidade de um conceito. É frequente observar
como, por exemplo, no caso de simulação, dissimulação, simulacro, nomes que designam
conceitos notáveis de Baudrillard para a arquitetura de uma teoria epistemológica da
comunicação, são empregados de modo pouco rigoroso como se fossem sinônimos e
correspondessem a análogos sentidos conceituais.
A facilidade com que se aplicam nomes à realidade comunicativa é aderente ao próprio
conceito que aqueles nomes designam: trata-se do conceito de mediação, que, ilustre na
sua ancestralidade teórica, utiliza distintos nomespara designar, apenas, aquilo que parece
constituir prioridade básica da comunicação: a transmissão da mensagem. Nesse sentido, o
uso arbitrário dos nomes é tão ficcional como as próprias metáforas que lhes dão origem e
publicidade.
22
4. MEDIAÇÃO E INTERAÇÃO
No polo oposto à mediação, a interação parece exercer uma função especular e, no
mesmo sentido anteriormente apontado, torna-se sinônimo da mediação e passa a ser
usada com análogo sentido transmissivo.
Nos últimos anos, a efervescência tecnológica do ciberespaço e da cibercultura, que lhe é
consequente, insiste em dignificar interação e/ou interatividade como resultado daquele
espaço tecnológico e da cultura que dele decorre. Desse modo, confunde-se comunicação
com a tecnologia dos meios que a agenciam, ou seja, diz-se interação ou, sobretudo,
interatividade para designar a comunicação que, no território do ciberespaço, corresponde
à comunicação agenciada pelos meios digitais: confunde-se comunicação com os meios
que lhe dão suporte ou moldura. Desse modo, não se reconhece que, embora
tecnologicamente mediada, a comunicação não se confunde ou se mimetiza com os meios
que adota como suporte.
Essa confusão faz com que aquela pretensa sinonímia entre mediação e interação seja
ainda mais constrangedora, pois não apenas se confunde comunicação e tecnologia, mas,
sobretudo, mediação instrumental e transmissiva de mensagens com comunicação
interativa que, tecnológica ou não, corresponde àquela capacidade inerente ao homem
que, entre as espécies vivas, é o único a viver e ter consciência da linguagem como sua
experiência vital definitiva, utilizada para comunicar-se e perpetuar-se.
A convergência dessas reflexões parece nos induzir à conclusão de que a interação
corresponde a uma comunicação sem nomes: difusa e sem planos estabelecidos, é
indeterminada enquanto objeto e, mais ainda, enquanto objetivos. Difusa, enquanto
objeto científico e imprevisível nos seus resultados e objetivos, a interação surge como
comunicação sem nomes! Seu conceito é frágil, porque não define os objetivos a atingir;
simplesmente ocorre, sem tempo, interesses ou circunstâncias planejadas. Sua emergência
corresponde à urgente necessidade de ser comunicativo ao estar em comunicabilidade.
Uma comunicação interativa, mas sem nomes! Onde estão os nomes que correspondem ao
conceito de interação? Distinta é sua arqueologia? Deixa rastros, mas não se indicia?
A inquieta emergência dessas questões encaminha-nos a Walter Benjamin, quando, em
textos da juventude, já se preparava para definir o que seria a arte, que, então como agora,
surge sem aura e sob o domínio da reprodutibilidade técnica:
Toda manifestação da vida espiritual humana pode ser concebida como uma espécie de linguagem, e essa
concepção leva, em toda a parte, à maneira de verdadeiro método, a novos questionamentos (Benjamin, 2013:
49).
A citação nos ajuda a refletir sobre as questões elencadas no parágrafo anterior. Se toda
espécie de linguagem supõe questionamentos “à maneira de verdadeiro método”, em que
medida a interação corresponde a um questionamento da linguagem e que método seria
esse?
Se entendermos a interação como um questionamento da linguagem, ele não poderá
dirigir-se à natureza do verbal, visto que a interação supõe, arqueologicamente, um espaço
heterotópico (cf. Foucault, 2013) entre emissor e receptor que, sem serem simétricos, são,
sobretudo, diferentes e necessariamente interagentes na criação comunicativa, ou seja,
comunica-se não apenas por meio do verbal, mas de todo elemento sensível e físico que se
23
comunica pela própria maneira como se apresenta e se deixa perceber. Ou seja, a
comunicação interativa é integralmente ativa ao criar a complexa relação informacional
que se processa entre emissor e receptor. Interativamente, nos comunicamos não através
de mensagens, mas de maneiras de ser, de configurações semióticas que não coincidem
com processos de emissão enunciativos; ao contrário, naquelas configurações, a figura do
enunciador se apaga, porque dele não emana a comunicação, pois, para ocorrer, ela
depende da própria relação sensível e comunicativa que se estabelece. Temos uma
enunciação dividida e partilhada entre convivas em comunicabilidade, mas sem
mensagens explícitas e, menos ainda, planejadas. Na comunicabilidade interativa,
tecnológica ou não, tudo ocorre sem planos, livre de pré-requisitos modeladores.
Desse modo, a mensagem comunicativa é o próprio modo como os sentidos e o corpo se
manifestam comunicativos. Uma estranha linguagem sem códigos: antes um bios
interativo do que um bios midiático (cf. Sodré, 2002). Nesse sentido, não cabe confundir
a interatividade com os meios ou suportes que sustentam a técnica comunicativa. A
comunicação interativa não tem mensagens, mas é construtora de um espaço entre que
confere, ao gesto comunicativo, amplos recursos de metamorfoses, visto que aquele espaço
não é físico ou geográfico, ao contrário, acontece e assinala mudanças contextuais, mas não
se fixa, pois, embora seja eminentemente espacial, é criador de fluxos no espaço.
Se enunciativa, mas sem enunciadores hegemônicos, qual é o método sugerido pela
comunicação interativa?
Considerando que a interatividade não se fixa em planos estabelecidos, é necessário
assumir que não há como medir ou deduzir a capacidade do seu efeito, ao contrário, ela
será sempre difusa, incerta e, como consequência, fraca. O método enunciado por
Benjamin não se refere a nada estabelecido, ao contrário, é tão difuso quanto o objeto
científico ao qual se refere. Ou seja, um antimétodo sem percursos, mas eficiente na
capacidade de construir sua trajetividade conduzida pela própria inferência que decorre da
reflexão exigida por aquele espaço interativo.
Na sua heterotopia, a interatividade não se submete a constatações ou explicações, pois
não se deixa diferenciar a partir de parâmetros que a definam, classifiquem ou
categorizem. Sem nomes, a interatividade não se reporta a conceitos designados pelos
nomes. Nas consagradas dimensões científicas às quais a academia está afeiçoada no seu
hábito de pensar e produzir ciência, a interatividade se apresenta como anticientífica, mas
exageradamente provocativa, enquanto desafio às imaginações cientificamente inquietas.
Sem nomes, a interatividade é refratária a modelos considerados metodologicamente
explicativos ou exemplificativos da realidade comunicativa. Sem nomes, porque sem
conceitos que a convalidem cientificamente, a interatividade não é adequada às
constatações, ao contrário, é indagativa e ágil resposta ao desafio inferencial: a
interatividade é, sobretudo, um exercício epistemológico que nos adverte sobre a
necessidade de perceber como o conhecimento nela se encontra e como contribui para uma
ciência da comunicação.
Enquanto exercício, essa atividade epistemológica está diretamente relacionada a
diagramas do pensamento que, iconicamente, criam quadros dos processos interativos.
Tudo se torna inferência e heurística em uma ciência que se renova a cada movimento que
agencie a heterotopia do espaço comunicativo. Nesse caso, a interatividade exige uma
indagação, não sobre as origens da comunicação, mas sobre a arqueologia dos seus rastros.
24
5. OS RASTROS ARQUEOLÓGICOS DA COMUNICAÇÃO
Como vimos, os nomes supõem certa similaridade com a arquitetura de um conceito,
exigem que sua metáfora crie uma semelhança com aquilo que o próprio conceito quer
explicitar e/ou criar. Dessa forma, o conceito edifica um ideal científico que os nomes
podem sedimentar, enquanto a ciência corresponde ao reconhecimento daquela
similaridade ou à sua divulgação e repetição; faz-se ciência na medida em que dominamos
a arquitetura dos conceitos de uma área e somos ágeis na utilização dos seus nomes. Mais
uma vez, embora em outro texto, Benjamin é sugestivo:
Um olhar lançado à esfera do “semelhante” é de importância fundamental para a compreensão de grandes
setores do saber oculto. Porém, esse olhar deve consistir menos no registro de semelhanças encontradas que na
reproduçãodos processos que engendram tais semelhanças. A natureza engendra semelhanças: basta pensar na
mímica. Mas é o homem que tem a capacidade suprema de produzir semelhanças (Benjamin, 1985: 108).
A citação parece confirmar o que se disse anteriormente, mas vai além. Confirma aquele
exercício epistemológico que estabelece, para a Teoria da Comunicação, outro e novo
território investigativo: a comunicação não é ciência afirmativa da consecução de um
efeito planejado como postulam as várias tendências conceituais e críticas da célebre
Teoria dos Efeitos ou da Escola de Frankfurt, que, embora com sinais trocados, acabam
por se ater à mesma evidência: a ação comunicativa em seus efeitos. Ao contrário,
enquanto epistemologia, a comunicação é mais uma tendência lógica do que uma
fenomenologia, sugere mais uma arqueologia dos processos comunicativos do que uma
indagação sobre seus efeitos pragmáticos, embora não deixe de ser pragmática na medida
em que, interativa, produz linguagens e confirma aquela “capacidade suprema de produzir
semelhanças”.
Aprendemos a comunicar interativamente ao mimetizar a própria natureza e o universo
e ao nos descobrirmos semelhantes a eles, embora aquela semelhança nos ensine a criar
outras tantas semelhanças. Nesse sentido, a comunicação interativa não reproduz índices
que, colhidos em vários processos, se reproduzem, por similaridade, em outros e diferentes
fenômenos. Ao contrário, a comunicação interativa cria semelhanças deixando rastros que
passam a configurar e proclamar a natureza espacial da comunicação. Enquanto reproduz
semelhanças da sua antiguidade, surge sempre nova e confirma seus rastros na medida em
que os transforma e recria.
Desse modo, os rastros interativos constituem sentidos comunicativos e se impõem
como bases teóricas do conhecimento, mas não reproduzem a centralidade antropológica
de um enunciador, ao contrário, criam semelhanças que não secundam valores e certezas
do sujeito da investigação, mas se impõem como sugestões inferenciais que perseguem a
imaginação, estimulando-a à produção/criação de semelhanças que, antilógicas, são
sempre novas e diferentes. “Os rastros evidenciam uma política cognitiva que insinua
outra epistemologia e outros paradigmas que, embora sempre provisórios, mantêm-se
indagativos e esclarecedores do próprio processo inferencial que constitui a narrativa do
conhecimento” (Ferrara, 2016: 134).
A leitura de Benjamin volta a ser relevante para esse trabalho ao apontar a
ancestralidade espacial dos rastros. Espaciais porque, embora se registrem no tempo, sua
natureza epistemológica e inferencial deixa vestígios no espaço que, à maneira de um
25
mistério, reaparecem e se redimensionam em diferentes circunstâncias e em distintos
momentos. Mais espaciais do que temporais, os rastros constituem a matéria-prima de
uma epistemologia da comunicação interativa e exigem ser considerados, a fim de que seja
possível ultrapassar a incerteza do circunstancial interativo e reconhecer sua inscrição na
história de uma ciência:
Nessa perspectiva, a linguagem seria a mais alta aplicação da faculdade mimética: um médium em que as
faculdades primitivas de percepção do semelhante penetraram tão completamente, que ela se converteu no
médium em que as coisas se encontram e se relacionam, não diretamente, como antes, no espírito do vidente
ou do sacerdote, mas em suas essências, nas substâncias mais fugazes e delicadas, nos próprios aromas. Em
outras palavras, a clarividência confiou à escrita e à linguagem as suas antigas forças, no correr da história
(Benjamin, 1985: 112).
Procurando entender a afirmação de Benjamin, é possível perceber que, embora falando
em linguagem, ele não se refere ao verbal, ao contrário dirige-se a toda forma que nos leva
a estabelecer relações “entre” corpos, coisas, sentidos em comunicação. Por outro lado, a
citação revela que aqueles rastros de semelhança deixam vestígios, mas são
frequentemente naturalizados através de hábitos perceptivos que não assaltam a
inteligência ou a imaginação, ao contrário, produzem-se como semelhanças naturais,
miméticas. Hábitos.
Ampliando a argumentação tecida até esse ponto, parece possível observar que os
conceitos se tornam habituais através da aplicação persuasiva de nomes performáticos e,
em consequência, são explicativos e aplicativos a distintas realidades, sem que nos
deixemos alertar para a possível diferença que pode existir entre a essência de um conceito
e os nomes que os designam. Mimetização de conceitos, os nomes levam ao hábito da
produção científica reiterativa. Um hábito tão mecânico que, sem explicações, são aceitos
como naturais e míticos. Uma naturalização que mal esconde a compulsão ou instinto de
defesa que levam à conservação dos elementos já conhecidos e absorvidos como similares.
Na ressonância dessa atmosfera mítica, Agamben não hesita em designar a linguagem
por meio de um nome que, como um sacramento, recupera o caráter mítico apontado por
Benjamin, mas vai além, a fim de deixar claro o caráter naturalizante e habitual, que
configura a ausência de percepção do caráter que um conceito deve comunicar através dos
seus nomes. Habitual e mimético, aquele sacramento se transforma na fidelidade
perceptiva de um juramento:
El juramento no concierne al enunciado como tal, sino a la garantia de su eficácia: en el no está en cuestion la
función semiótica y cognitiva del lenguaje como tal, sino más bien el asegurar su veracidad y su realización
(Agamben, 2010: 11).
Desse modo, observa-se que a adoção de um nome científico constitui não apenas um
hábito, mas uma fidelidade dos modos de dizer e de pensar que naturalizam o
conhecimento, transformando-o na recursividade que retira da comunicação toda
possibilidade de levar à aprendizagem de um modo de aprender através da linguagem bios
interativa. Evidentemente, esse hábito de dizer-pensar é hostil ao sugestivo caráter
cognitivo dos rastros e consagra, na comunicação, um método de bases descritivas que
encontra, na fenomenologia de Husserl, sua matriz mais relevante embora, sob o impacto
perceptivo do cotidiano, tenha substituído a essência do sentido subjetivo, pela dimensão
do mundo vivido que integra o homem que se comunica e o espaço banal do dia a dia.
Distante dos rastros que justificam a interação como um acontecimento comunicativo,
26
observa-se que não surge, no panorama epistemológico, espaço para indagações que levem
à investigação da relação entre conceitos e nomes e, sobretudo, da adequada assimilação
entre o modo como nos comunicamos e a ciência que produzimos a partir da
descoberta/criação daqueles rastros sugestivos de inferências.
No texto do qual extraímos a epígrafe que introduz este trabalho, observamos que, nele,
Flusser escreve uma das passagens mais notáveis de uma comunicologia que, longe de se
pretender uma teoria ou ortodoxia, apresenta-se como uma forma de entender a
comunicação no seu fazer-se. Mais uma vez, a capacidade sugestiva dos nomes se faz
presente. O título do trabalho de Flusser é A dúvida (1999) e, nesse nome, está assinalada
a própria natureza do conhecimento que deve demarcar o conceito: superando a certeza
dogmática, a natureza do conhecimento começa e acaba na dúvida que assinala, nos seus
rastros, a falibilidade do conhecer. Comunicar é fazer uma tentativa não de acertar, mas de
ousar corrigir as crenças que, sem rastros e sem arqueologia, já surgem como seguras e
confiáveis.
O próprio texto de Flusser aponta aquela crença como um obstáculo intelectual do
conhecimento e, na comunicologia de uma comunicação possível, mas insegura, o próprio
autor apresenta sagaz observação que não classifica a dúvida, mas a estabelece como
estratégia mais atenta às possibilidades de produção do conhecimento:
Para distinguir a atividade intelectual que envolve o pensar e articular dos nomes próprios da atividade que
envolve o pensar e articular das palavras secundárias, façamos a distinção entre “chamar” e “conversar”. Os
nomes próprios são “chamados”, as palavras secundárias são “conversadas”.Chamar e conversar são, portanto, as duas atividades intelectuais. Os nomes próprios são chamados para serem
conversados, isto é, transformados em palavras secundárias. Essa transformação é gradativa. Na medida em que
os nomes próprios são conversados, transformam-se em palavras secundárias sempre mais distantes de sua
origem primária (Flusser, 1999: 61).
Chamar e conversar demonstram a diferença arqueológica que se estabelece entre os
nomes como aplicações da publicidade dos conceitos e a inferência sugerida pelos rastros
que se estabelece entre o conceito e a produção do conhecimento. Como atividades
intelectuais, os nomes e o conhecimento necessitam de clara distinção a fim de que se
estabeleça a diferença entre certeza e dúvida, entre nomes e conversação como expansão
cognitiva que poderá superar o sugestivo presságio final para a cultura ocidental:
Não acreditando na possibilidade da crítica do nome próprio, abandona paradoxalmente o nome próprio. A
saída dessa situação é, ao meu ver, não a reconquista da fé na dúvida, mas a transformação da dúvida em fé no
nome próprio como fonte de dúvida... Seria o reconhecimento que o intelecto não é um instrumento para
dominar o caos, mas é um canto de louvor ao nunca dominável... O nome próprio é a síntese do intelecto com o
de tudo diferente (Flusser, 1999: 73-74).
27
Capítulo 3
OS SIMULACROS DA SIMULAÇÃO
“Afortunadamente nada es profundo, y aún es la sedución la que, acerca de la misma verdad, detenta la llave
más sibilina, a saber, que quizà no deseamos desvestirla únicamente porque es a tal punto difícil
imaginársela desnuda”
(Baudrillard, 1989: 170).
28
1. DA SIMULAÇÃO AO SIMULACRO
Tudo é simulação. Tudo é simulacro. Desde Simulacros e simulação (1981), essa afirmação
é constante e constitui um eixo teórico na obra de Jean Baudrillard. Porém, surge como
noção passível de análise e talvez constitua seu ponto nevrálgico, quando procuramos
iniciar a compreensão daquela teoria e da sua contribuição para os estudos da comunicação
no âmbito das relações políticas das associações mediadas por imagens (cf. Débord, 1997).
A análise das bases reflexivas e, sobretudo, a definição dos parâmetros de uma possível
política subjacente à teoria da comunicação ocidental proposta por Baudrillard não é clara.
Ao contrário, permanecem, no decorrer de toda a obra, como um desafio e como proposta
contínua para a descoberta de um caminho orientador para aquelas teorias que se
apresentam de modo sempre novo, mas com indecisões. Desde Débord e, posteriormente,
com o pós-moderno de Lyotard, as associações procuram ser entendidas como parâmetro
que a comunicação, atuando através da imagem, desenvolve e atualiza constantemente, a
fim de preencher aquela atuação política que permite uma cadeia perceptiva que
subordina os processos de recepção e fazem, da imagem, um instrumento de consumo,
quando não, mercadoria.
Em Simulacros e simulação, Baudrillard apresenta uma teoria que, por intermédio de
frases, títulos, epígrafes, contrapõe duas atuações comunicativas, mas as apresenta em
texto denso e pouco coeso que dificulta a compreensão da distinção entre simulação,
dissimulação e simulacro, levando a uma compreensão equivocada, pois estabelece, entre
elas, uma sinonímia que as confunde.
Entretanto, sugere-se superar aquele equívoco. Pela semeadura de sugestivas frases,
metáforas e epígrafes, estimulam-se possíveis inferências que, se relacionadas, podem
sugerir uma teoria ou pontos fundamentais para identificar a emissão de um pensamento
em desenvolvimento que, em texto denso, mas disperso, não pode ser procurado de modo
linear, ao contrário, está sempre se renovando, se recuperando, se corrigindo, se
repropondo. Nesse sentido, será uma imprudência tentar estabelecer a definição dos
parâmetros teóricos de Baudrillard, ao contrário, é indispensável ter consciência do caráter
propositivo de qualquer heurística daqueles conceitos e, mais ainda, das relações que se
podem estabelecer entre eles.
Em aproximação filosófica que é constante em todos os textos de Baudrillard, a reflexão
pode se dispersar em suas proposições e retornar aos mesmos passos, perguntando-se sobre
o sentido geral ou sobre as consequências culturais e sociais daquilo que observa ou que
estimula a reflexão. Desse modo, para compreender a teoria que Baudrillard propõe
através dos conceitos simulacro e simulação, é necessário que persigamos as raízes que
podem elucidar, mais do que suas causas e consequências, sua genealogia e, através dos
seus traços, suas decorrências.
Pode-se apreender o desenvolvimento reflexivo de Baudrillard ao observar seu percurso
desde a década de 70 do século XX, quando se inicia a publicação dos seus primeiros
textos. Esse desenvolvimento se inicia contaminado pela influência de dois grandes
impactos sociais e culturais: o primeiro é tributário da noção de espetáculo de Guy
Débord, diretamente relacionado à reconstrução da Europa do pós-guerra e ao movimento
francês de maio de 68, o segundo se deve ao ambiente político desencadeado por um
marxismo desencantado e pela extensão lógica da mercadoria em consumismo cultural,
29
como decorrências do sistema produtivo capitalista fordista. Apoiando-se em uma
comunicação de natureza instrumental, aqueles impactos se desenvolvem como capturas
perceptivas e se propagam através de uma imagem publicitária que, espetacular, constitui
a base mediativa das relações humanas mais apoiadas em meios que veiculam, do que em
propostas que vinculam.
Superando a natureza das causas e consequências daqueles impactos, Baudrillard se
interessa, não tanto pelas características comunicativas e técnicas possibilitadas pelos
novos meios de propagação da imagem, mas para as consequências culturais que delas
decorrem. Capitalismo, produção, reprodução, consumo, consumismo, comunicação de
massas, espetáculo, persuasão publicitária em colisão com o cotidiano banal são temas
recorrentes em obras como Sistema de objetos (1968), A sociedade de consumo (1970), Por uma
crítica da economia política do signo (1972), A troca simbólica e a morte (1976), Simulacros e
simulação (1981). Para o interesse deste trabalho, os dois últimos títulos assumem papel
divisor.
É possível que, em alguns capítulos dessas obras, já se inicie uma tendência
definitivamente pós-moderna onde Baudrillard se defronta com a cultura da virtualidade,
com o tempo real e com o novo espaço simbólico de características globais, onde o
pensamento do autor procura equilibrar-se entre a repulsa que decorre da insegurança
social desenvolvida pelo novo ambiente cultural e, paradoxalmente, sua irrecusável
sedução. Entre os ensaios que compõem aqueles textos, Jean Baudrillard se defronta com
um pensamento ambíguo e oblíquo que se desenvolve e procura se equilibrar entre
padrões interpretativos de base estruturalista ou marxista e experiências simbólicas
contraditórias, fugidias, desconfortantes, porém e ao mesmo tempo, reais. O objetivo
deste ensaio é perseguir as raízes daquela reflexão e traçar o caminho que pode elucidar o
percurso teórico de Baudrillard, evidenciando suas relações e associações. Para tanto, serão
pesquisados os dois conceitos citados que, como parâmetros teóricos, são entendidos como
vitais para o conjunto da obra de Baudrillard: trata-se dos conceitos de simulação e
simulacro.
Ao confrontar a epígrafe selecionada como estímulo para este trabalho e aquela com a
qual o filósofo inicia seu famoso Simulacros e simulação, deparamos com um elemento
intrigante e desafiador para a sucessão de ideias que desperta:
O simulacro nunca é o que oculta a verdade – é a verdade que oculta que não existe. O simulacro é verdadeiro
(Baudrillard, 1991: 7).
Onde estaria a verdade do simulacro? Em que medida seria verdadeiro? Por que seria
verdadeiro, se surge como simulacro? Por que simulacro surge no título da obra no plural
e simulação no singular, embora os dois vocábulos surjam com características definidoras
e totalizantes em várias obras do autor?
Essas questões apontam para uma perspectivamais investigativa e propositiva do que
explicativa ou afirmativa e surgem, na obra de Baudrillard, como uma dispersão de análise
e sem definitiva clareza do caminho percorrido, embora vivas e constantes em todo o seu
percurso. Desse modo, os dois vocábulos parecem ambíguos e, muitas vezes, é possível
tomá-los mais como sinônimos do que como antônimos, como parece sugerir o título
como alternância ou adição entre Simulacros e simulação.
A dúvida entre ambiguidade, sinonímia, antonímia, alternativa, alternância nos aponta
para um irrefutável ponto de partida: simulação e simulacros não constituem paradigmas
30
da obra de Baudrillard, pois não há entre ambos clara oposição e, portanto, não
correspondem a conceitos ou a definições que apontem para perspectivas científicas de
hierarquias ou classificações, mas são apenas nomes com os quais se pretende evidenciar
uma possível diferença entre realidades que não se limitam, mas podem se fronteirizar,
conforme o desenvolvimento da realidade que se estuda ou da análise que se tem como
objeto desenvolver.
Portanto, simulacros e simulações são, antes de tudo, nomes, até certo ponto avessos a
distinções, definições ou classificações como seria necessário observar se fossem as bases de
clara e deliberada proposição científica. Em consequência e fiéis ao caminho que o autor
parece ter perseguido, cabe-nos repisar o trajeto que o levou a pesquisar as relações sociais,
a comunicação e a ciência que marcaram a segunda metade do século XX e inícios do
XXI. Nos passos daquele percurso, observa-se que aqueles elementos são presenças
constantes na sua reflexão e acabaram por definir as bases da sua teoria e, sobretudo, sua
inconfundível e atual contribuição científica.
Enquanto nomes, simulacros e simulação não são conceitos, mas podem ser metáforas
que vestem ou cobrem definições, tornando-as mais amenas e compreensíveis, embora
possam, algumas vezes, fazerem-se passar por elas. Portanto e enquanto nomes, simulacros
e simulação apontam, senão para conceitos, no mínimo para uma realidade relevante para
o contexto social e cultural que serviu de base para as reflexões de Baudrillard, conforme
foi apontado anteriormente.
Curiosamente, simulação parece não se opor a simulacros, ao contrário, os dois nomes
surgem como distintos e assim, enquanto simular se opõe a dissimular, simulacros se
refere a modos de ser, a aparências, a imagens. Enquanto simular aponta para uma ação
por intermédio de um nome, simulacro é um substantivo, ou é, mais propriamente, um
nome que parece subjacente àquela ação e, portanto, mais geral do que ela. Portanto,
simulacro é uma precessão, embora em colisão com simulação.
De todo modo, os dois vocábulos surgem relacionados na obra e, portanto, não podem
ser desvinculados na análise, embora seja possível e necessário estudar as inferências que
estão subjacentes a eles.
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2. SIMULAR E DISSIMULAR
Dissimular é fingir não ter o que se tem. Simular é fingir ter o que não se tem. O primeiro refere-se a uma
presença, o segundo a uma ausência. Mas é mais complicado, pois simular não é fingir... (Baudrillard, 1991: 9).
Como um aforismo, simular e dissimular parecem ser diferentes, mas designam a
mesma realidade: referem-se a algo que se tem ou não se tem. Mas a que propriedade se
referem? Essa propriedade ou posse apontam exatamente para o referente, para algo que
surge como um indicador, um vetor para um paradigma de claro alicerce binário: ter ou
não ter.
Referente e referência são termos de claro quadro teórico no mundo ocidental e, embora
tenham sido objeto de especulações desde os pré-socráticos, é a partir de Saussure e suas
propostas sistêmicas que, embora arbitrárias porque traduzidas de modo simplificado pela
linguística estruturalista, atingiram histórica complexidade científica ao confrontarem-se
com o real:
Enquanto a ameaça histórica lhe vinha do real, o poder brincou à dissuasão e à simulação, desintegrando todas
as contradições à força de produção de signos equivalentes. Hoje, quanto a ameaça lhe vem da simulação (a de
se volatizar no jogo dos signos), o poder brinca ao real, brinca à crise, brinca a refabricar questões artificiais,
sociais, econômicas, políticas... Daí a histeria característica do nosso tempo: histeria da produção e da
reprodução do real. A outra produção, a dos valores e das mercadorias, a dos bons velhos tempos da economia
política, desde há muito não tem sentido próprio. O que toda uma sociedade procura, ao continuar a produzir e
a reproduzir, é ressuscitar o real que lhe escapa (Baudrillard, 1991: 33/34).
Figurar o real, traduzi-lo economicamente, substituí-lo, estar em seu lugar, marcar-lhe
os percursos entre demonstrá-lo ou ocultá-lo são bases para uma teoria que entende aquela
figuração como arbitrária ou equivalente ao mundo e, portanto, como simples, similar e
especular imagem. Nos dois casos, temos a base do vital conceito semiótico de
representação desenvolvido por Charles Sanders Peirce em vários parágrafos de sua extensa
obra (C.P.V: 66, 96, 104, 105) e constitui, paradoxalmente, vetor para o
conhecimento/revelação do mundo ou para sua ambiguidade/ocultamento.
Nos dois casos, surge aquilo que substitui o mundo ou aquilo que pode mostrá-lo às
avessas, ocultando-o e oferecendo-o como enigma a ser desvendado. Nos dois casos, a
reapresentação decorre de um ato deliberado como procura de um objeto a ser
representado. Nos dois casos, temos representação. Nos dois casos, a representação está
sujeita a uma crise que a torna desnecessária ou imprópria, pois, em seu lugar ou
simultânea a ela, surge a imagem como fenômeno-chave para a compreensão do mundo
ocidental, sobretudo, a partir da emergência, em meados do século XIX, dos dispositivos
de reprodutibilidade técnica da realidade que transformam a comunicação em sedução das
massas, capturadas pelos artifícios espetaculares da imagem.
A imagem surge como desafio que, ao mesmo tempo em que reproduz o real, pode
substituí-lo ou embaçar seu reconhecimento, dificultando ou impedindo o domínio dos
seus limites. Nos dois casos, temos dissimulação ou simulação do real e do mundo. Nessa
perspectiva, a teoria sugerida por Baudrillard através dos nomes apontados na sua obra,
pode apresentar-se como uma Teoria da Imagem que, desde Débord e por motivos ou por
inspiração que parecem distintos daqueles que orientaram a reflexão de Baudrillard,
constitui o fulcro da atenção teórica da comunicação como instrumento na mediação das
relações sociais, ou como meio que permite a tradução incessante do mundo através do
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modo como os homens e as sociedades se comunicam ou se intercomunicam através do
consumo e do consumismo da mercadoria e/ou da imagem que, nesse sentido, assumem
análoga fenomenologia.
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3. A IMAGEM COMO REPRESENTAÇÃO DO MUNDO
Na possível heurística da teoria de Baudrillard, é necessário ponderar que, enquanto
imagem, o simulacro difere da simulação. Curiosamente, o subtítulo do texto que abre a
obra Simulacros e simulação refere-se a uma precessão dos simulacros que, portanto, não se
confundiriam com simulação e, mais do que isso, seriam precedentes, antecedentes a ela
ou além dela. Nesse sentido, se simulação parece estar referida a uma Teoria da Imagem,
simulacro não se confunde com ela e, mais do que isso, pode ser anterior a ela, porque se
apresenta em outro ângulo.
Através da sensibilidade que caracteriza seus textos, Jorge Luis Borges foi um assíduo
frequentador do território ambíguo das imagens e produziu uma fábula notável
denominada Del rigor de la ciencia, que tem sido frequentemente citada quando se procura
entender a imagem como representação simulada do mundo. Baudrillard confirma essa
frequência e o texto que inicia a obra Simulacros e simulação se refere exatamente à fabula
citada e, refletindo sobre ela, pondera:
A simulação já não é a simulação de um território, de um ser referencial, de uma substância. É a geração pelos
modelos de um real sem origem nem realidade: hiper-real. O território já não precede o mapa, nem lhe
sobrevive.É agora o mapa que precede o território – precessão dos simulacros –, é ele que engendra o território
cujos fragmentos apodrecem lentamente sob a extensão do mapa (Baudrillard, 1991: 8).
Essa citação é vital para que se possa entender a abrangência da Teoria da Imagem
proposta por Baudrillard. A análise nos leva a perceber que, para o autor, há uma oposição
que supera o simples caráter temporal ou talvez evolutivo para as caracterizações da
imagem, ao contrário, surge como ponto nevrálgico e inicial para considerar o papel
cultural que ela pode desenvolver. Antes o mapa era a imagem e substituía o território,
depois o mapa se sobrepõe ao território e já não o representa, mas ocupa seu lugar,
abolindo-o, negando-o, fazendo-se território, mundo e realidade: converte-se a
representação em objeto representado. Ou seja, o decurso daquele tempo não é linear, mas
a imagem parece se transformar e comunicar outros planos culturais. Portanto e com
coerência, Baudrillard parece não aceitar aquela simples substituição entre o território e o
mapa que o representa, ao contrário, procura perseguir o eixo essencial daquela
transformação que parece estar insinuada na relação entre simulação e simulacros e que se
formularia em duas etapas: em um primeiro momento, a imagem se apresentaria como
mimese do mundo e sua simulação, mas, em uma segunda possibilidade, surgiria como
sombra do mundo e seria, então, seu simulacro.
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3.1. A imagem como simulação do mundo
Ao definir simulação, Baudrillard afasta a hipótese de um fingir-ser, pois ela se refere a
algo que se tem, embora dele seja simples substituição. O que a imagem tem, ou a que se
refere? Refere-se ao mundo que representa e nela está mimeticamente contido e, até
mesmo, mais bem desenvolvido, porque mais convincente. Nesse sentido, simulação e
dissimulação são equivalentes, não fingem ser, porque ambas se definem pelo mesmo
referente que se tem ou não se tem, ou seja, enquanto mimese do mundo, o elemento que
justifica a simulação é a existência do mundo, do real, e em relação ao qual ela seria, em
princípio, uma ausência que precisa ser superada. Nesse sentido, o sentido da simulação
seria superar a ausência e apresentar-se como substituição daquilo que não a contém.
Nessa relação direta ou ponto a ponto com a realidade que substitui, a simulação se
confunde com a imagem e supõe uma relação de equivalência dela com o mundo,
recuperando seu código nominativo e, sobretudo, seus valores, hierarquias e, sobretudo,
seu tempo que, em progresso, se prolonga, de modo previsível, do passado para o futuro.
Nessa economia comunicativa, a imagem simuladora transforma o mundo em mercadoria,
que, em visualidade expositiva, se reveste de espetacularidade e está apto a ser
sedutoramente consumido: confundem-se o mundo e a sua imagem, ou à semelhança do
que ocorre entre o mapa e o território, a imagem é o mundo. Na consequência dessa
simulação, os valores reais também se misturam e já não se sabe distinguir aquilo que faz
parte da aparência do mundo ou aquilo que é seu elemento essencial e base para seus
valores morais ou políticos. Confundem-se a mundialização e a universalização e
estabelecem-se, para ambas, os mesmos parâmetros que se reduzem e se restringem a um
só e pseudovalor:
Grau xérox do valor. De fato, o universal perece na mundialização. A dinâmica do universal como
transcendência, como fim ideal, como utopia, quando se realiza, deixa de existir como tal. A mundialização das
trocas põe fim à universalidade dos valores. Triunfo do pensamento único sobre o pensamento universal... O
universal mesmo é mundializado: a democracia, os direitos do homem circulam exatamente como qualquer
produto mundial, como o petróleo ou os capitais (Baudrillard, 2005: 112/113).
Na sucessão acumulada de igualdades e mimeses, tudo se equaliza e a imagem banaliza
todas as diferenças e possibilidades na troca simbólica entre o mundo e a mercadoria e, por
extensão e como consequência, entre o mundo e sua imagem científica:
É, em toda parte, a mesma tentativa de reduzir o poético a um querer-dizer, de o reduzir à sombra de um
sentido, de eliminar a utopia da linguagem para a reduzir à tópica do discurso (Baudrillard, s.d.: 124).
Portanto, enquanto mimese, a imagem está incorporada à dimensão antropocêntrica da
cultura ocidental (cf. Belting, 2004) e reproduz sua necessidade de hierarquias e
classificações que fazem com que a ciência, que nela se constrói, esteja a serviço de uma
ordem dicotômica. É contra essa ordem ou essa dicotomia da ciência que se projeta o
pensamento de Baudrillard, quando reflete sobre as tendências científicas do seu momento
em alguns textos produzidos, à altura da década de 70 do século XX:
O corte funda a ciência. É também da distinção entre teoria e prática que nasce uma “ciência”, uma
racionalidade da prática: a organização. Toda a ciência, toda a racionalidade dura o que durar semelhante corte.
A dialética apenas o organiza formalmente, jamais o dissolve. Dialetizar a infra e supraestrutura, a teoria e a
prática, ou antes, o significante e o significado, a língua e a fala é um esforço inútil de totalização – a ciência
vive deste corte, e com ele morre (Baudrillard, s.d.: 148).
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Troca, equivalência, acumulação, ordem, classificação e dicotomia parecem ser os
elementos básicos que definem a relação entre a imagem e o mundo que simula ser e que a
referenda; nessa mimese, tudo se difunde e confunde, de modo que é possível transformar
aquela mimese em espetáculo que, à maneira de uma realidade, passa a ser capaz de
mediar, de calibrar ou equalizar todas as relações sociais, como aponta Débord.
Curiosamente, as ilações que nos são permitidas a partir da tentativa de compreensão do
que seja simulação enquanto imagem mimética do mundo, nos leva a observar o eco que,
de Baudrillard, se expande até as vozes de Deleuze e Flusser e os leva, respectivamente, à
construção dos conceitos de espaço estriado e liso ou do conhecimento linear/unidimensional ou
em superfície e bidimensional. Esses conceitos são, talvez, os paradigmas mais notáveis das
teorias daqueles filósofos que parecem secundar o mesmo panorama reflexivo e cultural
que influenciou o pensamento de Baudrillard:
...no espaço estriado, as linhas, os trajetos têm tendência a ficar subordinados aos pontos: vai-se de um ponto a
outro. No liso é o inverso: os pontos estão subordinados ao trajeto (Deleuze, 1997: 184).
...as linhas escritas relacionam seus símbolos a seus significados, ponto por ponto (elas “concebem” os fatos
que significam) enquanto as superfícies os relacionam por meio de um contexto bidimensional (elas “imaginam”
os fatos que significam...) (Flusser, 2007: 113).
Esse eco reflexivo e teórico confirma a confluência cognitiva que parece sintetizar os
paradigmas da ciência ocidental do final do século XX e, acaba por propor ou por expor
outro modo de estar no mundo, através da maneira como conseguimos nos desvencilhar
dos modos de ver que, codificados desde a política da civilização grega de Platão ou
Aristóteles constituem estratégias antropológicas que parecem negar a possibilidade de
apreender diferenças e, com elas, operar e conviver. A tentativa de superar essa
antropologia nos faz passar dos meandros da mimese referencial e reversível entre
representação e substituição do seu objeto, para surpreender uma imagem divergente e
irreferencial que só se deixa descobrir, quando se ousa superar a simulação que confirma o
mundo, para atingir os simulacros que podem negá-lo.
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3.2. A imagem como simulacro do mundo
Paralela à anterior fábula de Borges, há outra, que também é frequentemente
relacionada à representação e à imagem. Trata-se da famosa La biblioteca de Babel que, mais
intrigante do que a primeira fábula, vem indiciada por vocábulos como interminável,
indefinido ou infinito e, sobretudo:
La Biblioteca es una esfera cuyo centro cabal es cualquier hexagono, cuya circunferencia es inaccesible (Borges,
1956: 76).
Esse aforismo faz lembrar aquele outro, no qual Baudrillard define

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