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2 SUMÁRIO Capa Rosto APRESENTAÇÃO CAPÍTULO 1 - COMUNICAÇÃO: SER OU NÃO SER 1. A ideia de comunicação 2. A comunicação além do homem 3. A comunicação diante de si mesma 4. O homem mais humano CAPÍTULO 2 - OS NOMES NA ARQUEOLOGIA DA COMUNICAÇÃO 1. A ciência dos conceitos 2. Os nomes dos conceitos 3. A mediação e seus nomes 4. Mediação e interação 5. Os rastros arqueológicos da comunicação CAPÍTULO 3 - OS SIMULACROS DA SIMULAÇÃO 1. Da simulação ao simulacro 2. Simular e dissimular 3. A imagem como representação do mundo 3.1. A imagem como simulação do mundo 3.2. A imagem como simulacro do mundo 4. Simulacro e conhecimento CAPÍTULO 4 - DOS LUGARES SITUADOS ÀS LUGARIDADES MIDIATIZADAS 1. Rastros como arquitetura científica 2. Os paradigmas científicos de um geógrafo 3. Milton Santos no século XXI 4. A cidade dos lugares em conexão CAPÍTULO 5 - COMUNICAÇÃO - RETÓRICA - EPISTEMOLOGIA 1. Como nasce uma ideia? 2. Pensar é achar uma metáfora 3. Comunicar é achar um modo de dizer 4. A comunicação não é um significante vazio 5. O lugar improvável do comunicar 6. Uma epistemologia política da comunicação CAPÍTULO 6 - A EPISTEMOLOGIA POLÍTICA DA COMUNICAÇÃO 1. A Comunicação como dualidade 2. Epistemologias protetoras 3. Individuação e comunicação 4. A epistemologia trajetiva do comunicar 3 kindle:embed:000B?mime=image/jpg 5. A epistemologia política da comunicação CAPÍTULO 7 - A MIDIATIZAÇÃO DA ESFERA PÚBLICA 1. O megamundo 2. O declínio do homem público 3. A cultura do espaço público 3.1. O espaço público como cultura do espetáculo 3.2. O espaço público pós-espetáculo 3.3. A midiatização da esfera pública biopolítica 4. A reinvenção da esfera pública CAPÍTULO 8 - A CIDADE DA MULTIDÃO 1. O espaço enquanto objeto de estudo 2. A cidade como objeto científico 3. A cidade e suas categorias epistemológicas de análise 4. As categorias ontológicas da cidade CAPÍTULO 9 - A VOZ OBSCURA DAS RUAS 1. A comunicação como significante vazio 2. A possível gênese da atuação massiva dos meios técnicos 3. A multidão nas ruas 4. Da multidão ao público: paradigmas em transformação 5. Política em mudança 6. A subjetividade da multidão 7. A experiência política além da multidão BIBLIOGRAFIA FONTES Coleção Ficha Catalográfica 4 A APRESENTAÇÃO comunicação que não vemos é consequência de pesquisa desenvolvida com apoio do Conselho Nacional de Pesquisas Científicas (CNPq), a quem agradecemos. Este trabalho dá continuidade ao estudo da cidade como laboratório de exercícios comunicativos e como cenário de manifestações políticas, que nela encontram ambiente adequado ao debate e ao desafio da procura dos interesses coletivos. Observando essa continuidade, a pesquisa denominada “Por uma Epistemologia Política da Comunicação” retoma e desenvolve alguns conceitos estudados em Comunicação, Mediações, Interações (2015) e os entende como elementos vitais para a investigação do debate político que se desenvolve na cidade. Observando, mas indo além do conflito que se observa entre mediação e interação, aparentemente considerados e aceitos como conceitos sinônimos, estuda-se, agora, a natureza política da comunicação como área científica, a fim de saber até que ponto a comunicação pode superar a dimensão linear da simples transmissão ou os dispositivos midiáticos que a transformam em dispositivo de poder, para ser sensível às transformações sociais que dão origem a distintos ambientes políticos e suas decorrências conceituais. Desse modo, a pesquisa tem como objeto delinear as dimensões epistemológicas que se voltam para as matrizes políticas da própria comunicação e a redefinem enquanto essência e consequência, inserindo, na sua epistemologia, outras esferas de estudo e investigação. Ao discriminar as dimensões da comunicação que interferem na própria constituição política das transformações sociais, a pesquisa procurou apreender suas consequências a fim de verificar as relações que se estabelecem entre a epistemologia e o objeto científico da comunicação, na definição da sua prática empírica; estudar limites e fronteiras ambivalentes da comunicação como território científico que se dispersa entre políticas midiáticas, e aquelas que constroem alternativas de valores e comportamentos; avaliar, naquela ambivalência, a possibilidade de rever a definição da comunicação como área científica. Da relação entre esses procedimentos metodológicos de observação, destaca-se a relevância da pesquisa voltada para a possibilidade de construção de uma epistemologia que supera a comunicação midiática, para atingir a complexidade e as consequências do comunicar. A matriz política da comunicação transforma a própria natureza da cidade ao possibilitar a criação de outros atores sociais, prontos a transformarem-se em personagens da própria dimensão histórica da cidade. Nessa história, redesenham-se não só o papel social da cidade, mas a atenção da comunicação para aquele papel que a afasta do espetacular poder de sedução dos dispositivos midiáticos e lhe permite atingir o comunicar, que, em princípio, disperso, efêmero e invisível, se redefine na rede de processos interativos metacontextuais presentes na descoberta da ação política que possibilita superar as instâncias do sujeito, para que o indivíduo da modernidade se redescubra nos domínios do coletivo. Como consequência, constata-se que a comunicação não faz uso da política nem está a serviço das suas estratégias e dispositivos, mas pode propor-se à construção política, quando se permite rever seu objeto científico e exercício pragmático, elementos 5 constitutivos da epistemologia, que define a comunicação como ciência. Ou seja, a cidade é protagonista da ação, que, por meio do comunicar, permite que se reconheça como a política se revela em valores e comportamentos sociais, ao mesmo tempo que propõe o reconhecimento de apelos sensíveis, que, muito mais do que simplesmente visuais, ocorrem através de impactos mais próximos e íntimos ao volume dos corpos coletivos, na clivagem de escolhas e ações. A cidade nos faz políticos e nos ensina outro modo de produzir conhecimento que, mediante escolhas conceituais, metodológicas e empíricas, revela como pensamos e produzimos conhecimento. Somos políticos ao viver na cidade e, por ela inspirados, produzimos inferências políticas que revelam nosso modo de conhecer. A cidade contemporânea é autora da sua política e das evidências que impõe à consideração cognitiva. Desse modo, o foco pesquisado não pretendeu desenvolver explicações daquela dimensão política, ao contrário, procurou comparar as dimensões políticas que podem estar presentes no ambiente da cidade e permitem entender o modo como estudamos a comunicação, ou como nos adaptamos às suas limitações vinculadas a efeitos espetaculares e midiáticos. A dimensão política da comunicação como área de conhecimento leva à superação da polaridade de conceitos em oposição, que constroem um conhecimento conceitual e metodologicamente ordenado, para permitir a revisão dos limites do conhecimento como polaridades e redescoberta da dinâmica das diferenças, que, ao aproximarem diversas áreas de conhecimento, ressoam entre seus paradigmas teóricos e conceituais. Nessa dinâmica, a comunicação não se descobre como área interdisciplinar, mas se manifesta como antidisciplinar e, assim, se coloca no horizonte mais otimista da ciência contemporânea. Dividido em dois blocos de ensaios especulares, porque se retomam ou se remetem uns aos outros, o livro apresenta dez ensaios que se voltam, de um lado, para o estudo da dimensão epistemológica que a política revela para a comunicação como área científica e, de outro, para a análise do exercício político que encontra, na cidade contemporânea, seu cenário mais adequado e sua interlocução mais própria e convergente. Entre a política e a cidade, a comunicação constrói outras bases cognitivas e abre outros cenários para a ciência da atualidade. Ao primeiro bloco, pertencem os ensaios denominados: Comunicação: ser ou não ser; Os nomes na arqueologia da comunicação;Dos lugares situados às lugaridades midiatizadas; Os simulacros da simulação. No segundo bloco, registram-se: Comunicação – retórica – epistemologia; A epistemologia política da comunicação; A midiatização da esfera pública; A cidade da multidão; A voz obscura das ruas. Este trabalho poderá atrair a atenção e alimentar a reflexão de todos aqueles que se interessam pela dimensão cognitiva do exercício político, que se manifesta na atividade profissional de comunicólogos, filósofos, sociólogos, historiadores, geógrafos, urbanistas/arquitetos e artistas. 6 Capítulo 1 COMUNICAÇÃO: SER OU NÃO SER “O que comunica a língua? Ela comunica a essência espiritual que lhe corresponde. É fundamental saber que essa essência espiritual se comunica na língua e não através da língua” (Benjamin, 2011: 52). 7 O 1. A IDEIA DE COMUNICAÇÃO que é comunicável na comunicação? A resposta a essa pergunta, exageradamente simples, tem sido motivo de muitos debates nas últimas décadas do século XX até os dias atuais com o advento, sobretudo, das novas tecnologias da informação. Se a questão é quase óbvia de tão simples, por que dá origem a debates frequentes que não encontram uma base aceitável de resposta? A dificuldade estaria na pergunta ou no modo como podemos entendê-la? A raiz da questão poderá estar naquilo que Benjamin chamou de “essência espiritual” ao se referir ao verbal? Como comunica a comunicação? Poderíamos responder que ela comunica um modo de vida que, na atualidade, se confunde com aquilo que tem sido chamado bios midiático e, nesse sentido, a comunicação seria simples transporte de um modo de vida. Confundimos a experiência de vida propiciada pela comunicação com sua própria essência e, nesse sentido, bios midiático seria outro nome para a comunicação contemporânea? Os homens estariam sujeitos a um jeito de ser que se confunde com o modo como se comunicam? As possíveis respostas exigem, conforme Benjamin, procurar a “essência espiritual” da comunicação. Entretanto, o conceito de comunicação é confuso e ambíguo ou talvez nos tenhamos acostumado com o sentido de uma prática que, cotidiana e invasiva de todos os espaços, se tornou habitual e sem definição que a conceitue. A atual tecnologia da informação transformou ou confundiu a comunicação com os dispositivos tecnológicos que invadiram os lares e instituições através de consequências que, sem percebermos, tomaram conta de valores, comportamentos e práticas habituais, midiatizando-nos. Enquanto hábito, a comunicação supõe um modo de ser refratário a qualquer possibilidade conceitual. Já não sabemos o que é comunicação ou o que a define como área de estudo. Temos uma ideia de comunicação, mas não conhecemos sua definição. Se no início das tecnologias que sustentaram a imprensa como meio comunicativo, era possível entender, como sua consequência fundamental, a possibilidade de, diretamente, democratizar a informação e, indiretamente, patrocinar o acesso de todos àquele saber que, até então, era privilégio de poucos; depois da Primeira e, sobretudo, durante a Segunda Grande Guerra, a comunicação se transformou em instrumento adequado à divulgação de valores e ações que mal encobriam interesses políticos hegemônicos. A comunicação era um instrumento a serviço de interesses de poder, e seus meios técnicos se ampliaram e se diversificaram. Com o final da Segunda Guerra, compreender a comunicação como uma consequência natural dos meios técnicos levou à impossibilidade de pensar sobre suas causas e ela surgia natural porque, através dos meios, tudo era passível de comunicação, até mesmo a ausência imediata de um agente emissor. Com as tecnologias digitais, a informação está ao alcance de todos e a comunicação perdeu, parece, definitivamente sua possibilidade de ser independente dos dispositivos técnicos que a sustentam. Engolida pela tecnologia, a comunicação se confunde com ela e já não sabemos em que consiste comunicar. Estamos ante uma realidade que surge definitiva na concepção radical que supera o homem, porque a comunicação se dá, espontaneamente, através da máquina, que já não necessita saber quem a inventa ou a instrumentaliza. A comunicação é maquínica e inteligente por si mesma, e o homem atingiu o ápice da sua possibilidade de ser humano; agora, é pós- humano. Essa percepção surge como asserção, ameaça ou desafio? 8 2. A COMUNICAÇÃO ALÉM DO HOMEM A epígrafe de Benjamin nos leva a refletir que, para proteger o homem e sua capacidade de pensar, fez-se a linguagem e, além dela, a comunicação, a quem caberia resguardar aquela capacidade e patrocinar a multiplicação do homem como capacidade pensante. Desse modo, a comunicação pensa a linguagem e protege o homem, mas não parece elucidar em que consiste essa proteção. Entretanto, ela se apoia em, pelo menos, três distintas premissas que constituem obstáculos à construção de uma epistemologia da comunicação, que seja capaz de definir o que é comunicação. Analisemos essas premissas. 9 A. Em inúmeras conferências e artigos, Benjamin se ocupa da questão da linguagem e se debate entre o caráter expressivo e aquele comunicativo, que parecem garantir a possibilidade de definir a linguagem. Entretanto, o texto de juventude, produzido em 1916 e do qual se extraiu a epígrafe a este trabalho, parece evidenciar uma tensão permanente para as tentativas, sempre parciais, de definir a linguagem. Essa dificuldade parece dar origem a uma indecidibilidade da linguagem que a faz se confundir, de um lado, com aquilo para que ela serve e, de outro, com sua essência espiritual, que também conserva paralela indefinição. Entretanto, no texto em questão, “Sobre a linguagem em geral e sobre a linguagem do homem”, o autor procura um caminho metafísico para definir aquela essência que estaria definitivamente relacionada com a capacidade de nomear ou atribuir nomes às coisas que distinguiria o ser humano, entre todas as demais espécies vivas, orgânicas ou inorgânicas. O espiritual do homem não é outro senão sua capacidade de usar a linguagem, cuja essência estaria na capacidade e direito de nomear. Mas, enquanto linguagem, o que é um nome? Seria a capacidade de, distinguindo por meio do nome, ser capaz de produzir conhecimento? Portanto, o nome se confundiria com a própria condição epistemológica do homem de produzir conhecimento. O nome é uma inferência em comunicação? Dessa forma, a anterior indecidibilidade pode tornar-se ainda mais radical, salvo se entendermos que a linguagem é a comunicação que distingue o homem. É, antes de tudo, um meio. Porém, no mesmo texto, encontra-se uma nota que chama a atenção para dois sentidos subjacentes ao meio: de um lado, o meio (do alemão mittel) estaria a serviço de uma função e desempenharia um papel, no mínimo, instrumental, o segundo designaria o próprio meio material da comunicação ou o modo como ela atua: O homem é aquele que nomeia, nisso reconhecemos que por sua boca fala a pura língua. Toda natureza, desde que se comunica, se comunica na língua, portanto, em última instância, no homem. Por isso, ele é o senhor da natureza e pode nomear as coisas. É somente através da essência linguística das coisas que ele, a partir de si mesmo, alcança o conhecimento delas – no nome. A criação divina completa-se no momento em que as coisas recebem seu nome do homem, a partir de quem, no nome, somente a língua fala. Pode-se designar o nome como a língua da língua, a linguagem da linguagem desde que o genitivo não designe uma relação de “meio” (Mittel), mas de “meio” (Medium) e, nesse sentido com certeza, porque ele fala no nome, o homem é o falante da linguagem –, e por isso mesmo, seu único falante (Benjamin, 2013: 56). Reencontramo-nos com o litígio inicial: a comunicação ou o nome das coisas que retém o espaço da linguagem teriam uma essência própria, ou seriam instrumentos voltados para a consecução de um fim? O homem se comunica porque a ele cabe nomear as coisas ou se torna um instrumento comunicante que desloca sua capacidade de nomear, para ser um instrumento transmissivoque nada nomeia, mas tudo determina? De um lado, a comunicação como instrumento seria utilitária e a serviço de interesses exógenos à sua essência, de outro, seria nomeação do mundo, mas indecidível enquanto definição imediata, pois só seria apreensível através do modo de nomear que se comunica de modo indeterminado, mas essencial. 10 B. Em outro texto antológico, Benjamin dá, de certa forma, continuidade à reflexão anterior, refiro-me ao texto “A doutrina das semelhanças”, que, divulgado em 1933, constitui base teórica fundamental para uma epistemologia da comunicação. A primeira frase do artigo é esclarecedora: Um olhar lançado à esfera do “semelhante” é de importância fundamental para a compreensão de grandes setores do saber oculto. Porém esse olhar deve consistir menos no registro de semelhanças encontradas que na reprodução dos processos que engendram tais semelhanças (Benjamin, 1985: 108). A citação é clara: registram-se semelhanças ou produzem-se construções de semelhanças. No primeiro caso – e diretamente relacionado à capacidade desenvolvida pelo advento da fotografia como registro básico da reprodutibilidade técnica –, a semelhança seria uma constatação com absoluta fidelidade à realidade que lhe é referência. O registro do semelhante reduziria a capacidade técnica do meio a uma dimensão primeira e primária de natureza habitual e absolutamente simétrica ao referente. No segundo caso, a produção de semelhanças suporia uma síntese perceptiva que, dinâmica e indeterminada, produziria imagens, sem reprodutibilidade técnica necessária, mas apenas possível como arquivo tecnológico de produzir imagens sem referências. Uma atividade transdutora que, mais do que tradução, leva a reconhecer, ou conhecer outra vez, a realidade e o mundo. Nos dois casos, encontramos distintas bases arqueológicas da comunicação: um instrumento utilitário que operaria através da linguagem, ou uma inferência que, na linguagem, produziria imagens à maneira de um caleidoscópio cognitivo, ou seja, nesse caso, produzir semelhanças exige recriar/rever a realidade e o mundo. Entretanto, nos dois casos, operaríamos com dimensões analógicas, mas de distintas naturezas: no primeiro caso, reconheceríamos dimensões simétricas, no segundo, produziríramos, sem métodos coercitivos, imagens que, operando sobre aquelas simetrias, não produziriam assimetrias que seriam também simetrias com sinais trocados, mas diferenças que permitiriam evidenciar outra dimensão arqueológica. A relevância dessa última dimensão arqueológica foi amplamente estudada por Agamben (2004), quando, prefaciando importante obra sobre a analogia e revendo a célebre referência ao anjo da história de Benjamin (cf. 1985: 226) retoma, desde Valéry (cf. 1991: 147), o célebre conceito de analogia. Ao lado de Benjamin, preveríamos o futuro como se progredíssemos ou andássemos para a frente, impulsionados pelo passado, mas o autor prefaciado por Agamben, Melandri (2004), em sentido oposto, propõe uma volta ao passado para poder ver o futuro: Come osserva Valéry, nous entrons dans l´avenir à reculons... per capire il passato, dovremmo parimenti risalirlo à reculons. L´immagine di uma processione nel tempo che volge le spalle allá meta si trova, come è noto, anche in Benjamin... La regressione “dionisíaca” do Melandri è immagine inversa dell´angelo benjaminiano. Se questi avanza verso il futuro tenendo fisso lo sguardo nel passato, l´angelo di Melandri regredisce nel passato guardando al futuro (Agamben, 2004: XXII). Essa raiz arqueológica, presente na possibilidade da semelhança como “regressão dionisíaca”, assinala, com clareza, a diferença entre a analogia como imitação (cf. Benjamin, 1985: 108), em que a linguagem é usada como instrumento, e aquela que produz inferências na linguagem e sobre suas próprias possibilidades de criar o 11 conhecimento na medida em que o comunica. No primeiro caso, a semelhança seria um instrumento de identificação ou de identidade filogenética, no segundo, a semelhança seria possibilidade de ver para inferir de modo cognitivo e produzir uma ontogênese da própria comunicação como conhecimento, que, percebida de modo irregular, é capaz de produzir regularidades cognitivas que, contínuas, identificam os rastros epistemológicos da comunicação. Superar a avassaladora dimensão instrumental daquela semelhança constitui o segundo obstáculo para a construção de uma epistemologia da comunicação que possa ir além da simples utilidade transmissiva. 12 C. A terceira premissa é consequência das anteriores e traça o parâmetro que parece distinguir, de modo definitivo, os elementos que as identificam. Trata-se da necessidade que, presente em distintas ações comunicativas, parecem designar a comunicação como um modelo uniforme e previsível responsável pela modelagem do mundo. Entre modelo como identidade de si mesma e modelagem como função pragmática, a comunicação poderia ser, sobretudo, um programa que, estabelecido a priori, evidenciaria o que deve ser a comunicação que se transmite de modo uniforme, porque assegurada por uma linguagem hábil para executar a função que, através dela, se modela. A comunicação seria um programa e assumiria a garantia de um contrato amparado pelo discurso. Enquanto programa, essa comunicação instrumental apresenta, desde os experimentos planejados e executados pelo empiricismo desenvolvido na Universidade de Columbia por Lazarsfeld, um destino demarcado por um “efeito fraco”, não como consequência, mas como infiel ao plano que lhe foi traçado de antemão por um emissor que, na pilotagem de um modo de ser previsto, esperaria a consecução total do plano estabelecido. Essa dimensão programática, que pressupõe que a mídia deve estar a serviço de um interesse exógeno à própria essência comunicativa, se opõe, evidentemente, ao caráter da comunicação que ocorre na linguagem, com ela e além dela, mas sem pressupostos ou planos. Opõem-se programa e projeto comunicativos. Enquanto programa, a comunicação emerge na instância do emissor que, hegemônico, estabelece o que se comunica na docilidade da linguagem instrumental e à distância de contextos, realidades ou histórias receptivas; enquanto projeto, a comunicação é processo integrado no contexto histórico do receptor e, sobretudo, na concepção de desenvolvimento cognitivo da comunicação inserida na história e na ciência como área de conhecimento. Opõem-se, portanto, nas suas bases arqueológicas, a transmissão como mídia e a comunicação como meio que ocorre porque se constrói na interatividade entre contextos, histórias e projetos distintos do emissor e receptor, que, em comunicabilidade, se autorreconhecem, embora possivelmente, sem identidade, porque em constante, mas indeterminado, processo construtivo. Opõem-se programa e projeto, mídia e meio comunicativo, mediação e interação e, entre essas instâncias, não cabem adesões epistemológicas. Nessa dimensão, mais uma vez surge “o meio é a mensagem” (Mcluhan, 1969), como aforismo arqueológico da comunicação. 13 3. A COMUNICAÇÃO DIANTE DE SI MESMA A análise das três premissas anteriores nos encaminha para uma evidência perturbadora. Supondo-se que a comunicação só ocorre por intermédio da linguagem e que sua programação assegura a execução de um contrato, pode-se admitir a tese de que ela nada é senão um programa material para edificar um homem e uma sociedade estáveis, porque definidos de antemão por um modo de ser programado. Simétricos em irreparáveis semelhanças habituais e cotidianas, já não se distinguem emissões e recepções, códigos estabelecidos ou decodificações possíveis, porque tudo se resolve na fidelidade receptiva que se apoia na autoridade do próprio processo de emissão. Uma cultura uniforme, estruturalmente construída por um equilíbrio simétrico e definitivo. Nessa tese, podemos verificar que a comunicação se exaure nas características da visualidade que a transforma em notícia da sua própria espetacularidade. Performática, essa comunicação é estável e de durável percepção, porque comandadapela redundância que assegura uma contiguidade comunicativa desenhada pela rotina do tempo e do espaço que configuram a comunicação de alguns para muitos, no registro de um modo de vida produzido em série, conforme o padrão industrial que está na arqueologia da técnica e na crença dos seus efeitos, atualmente considerados definitivos e vetores do progresso tecnológico. Um programa que, na ordem inversa da própria produção da técnica, coloca o homem ao seu serviço e, de modo presumível, ultrapassado pela própria inteligência artificial da máquina. Esse programa é uma ameaça e um desafio que demanda passarmos da consideração de uma tecnologia soberana, para entender a dimensão de uma tecnicidade que constitui outro projeto para o contemporâneo: Existe algo viviente en un conjunto técnico, y la función integradora de la vida solo puede ser asegurada por seres humanos; el ser humano tiene la capacidad de comprender el funcionamiento de la máquina, por una parte, y de vivir, por la otra: se puede hablar de la vida técnica como aquello que realiza en el hombre esta puesta en relación de las dos funciones. El hombre es capaz de asumir la relación entre lo viviente que es y la máquina que fabrica; la operación técnica exige una vida técnica y natural...Unicamente el mediador de la relación entre las máquinas puede descubrir esta forma particular de sabiduria (Simondon, 2007: 143 e 165). Considerando a proposta visionária de Simondon, observa-se que a tecnicidade ocorre com e através da tecnologia da máquina, mas insurgindo-se contra ela, subordina-a ao uso da técnica que faz do homem senhor da sua criatura: restitui-se ao homem sua capacidade de nomear e comunicar na tecnologia, por meio dela e além dela. Superando qualquer ingenuidade que nos levaria a desconsiderar o contemporâneo progresso da capacidade do homem para inventar a tecnologia e as máquinas, também parece adequado e natural que, como o homem nomeava e, agora, inventa, nada ocupará seu lugar comunicativo e tudo o faz ir além da máquina como artificialidade instrumental, pois se ele a inventa, ela não o supera. Recupera-se a ameaça entrevista anteriormente, e nela apreende-se, mais uma vez e de modo reiterativo, a tendência que nos leva a confundir mídia e meio comunicativo, simetria/assimétrica e diferença, máquina e utilidade maquínica, tecnologia e tecnicidade. Entretanto, a própria evolução tecnológica nos impõe considerar outra realidade que se projeta além da técnica como utilidade: La continuidad de lo creado, con su doble dimensión de universalidad espacial y de eternidad temporal, solo parece de manera clara si se hace abstracción del destino de utilidad de los objetos técnicos; una definición por la utilidad, según las categorias de las necesidades, es inadecuada e inesencial, ya que atrae la atención sobre 14 aquello por ló cual dichos objetos son prótesis del organismo humano; ahora bien, es precisamente bajo esa relación que la universalidad y la intemporalidad son más directamente trabadas, en la medida en que todo lo que se adapta al ser humano corre el riesgo de devenir un médio de manifestación y de ser reclutado como faneras suplementarias. Un gran número de objetos técnicos son revestidos como objetos de manifestación, lo cual les añade significaciones locales y transitórias que sobrecargan el contenido técnico, lo disimulan y a veces le imponen una distorción (Simondon, 2013: 185/186). Situado nos limites de uma prótesis do humano que a ele se adapta, estamos aquém da possibilidade mediativa da técnica, que, em tecnicidade, não pode ser dissimulada pela utilidade, mas, ao contrário, exige ser reconhecida no seu papel que a faz não uma prótesis, mas uma extensão daquela própria capacidade mediativa que caracteriza o homem, como construtor e transformador de linguagens e tecnologias. O próprio progresso da tecnologia insinua que já é tempo de superarmos a ameaça da máquina que substitui o homem, a fim de aprendermos a ser mais humanos. 15 4. O HOMEM MAIS HUMANO Entretanto, o desafio subjacente à ameaça deve considerar, de um lado, a capacidade dialógica da interlocução (cf. Bakhtin, 2011) que constitui, de um lado, sua marca de liberdade comunicativa que se concretiza no seu próprio modo de fazer-se e, de outro lado, é imprescindível notar que, sob a instrumentalidade, está outro modo de entender a comunicação e de produzir sua epistemologia. Nesse sentido e em obra que parece secundar o texto de Benjamin, do qual se extraiu a epígrafe que deu origem e inspiração a este trabalho, Agamben (2010) estuda a linguagem e o poder, entendidos, ambos, como sacramentos que perfazem a arqueologia de um juramento. É evidente que o título desse trabalho de Agamben é, além de metafórico, provocativo. Mas em que consiste essa provocação que pode fazer eco àquela ameaça que subjaz à técnica, e se apresenta como consequência do seu progresso? Entre a linguagem e o poder, se articulam, também, o sacramento e o juramento e entre eles se encontram a arqueologia e o desafio do presente compreendidos na dimensão política da comunicação. Sob o juramento está a base judicativa que confirma a linguagem como pacto de fidelidade que, sob a proteção de um código de emissão e recepção, garante a confiança em sua verdade elocutiva e se transforma em sacramento inviolável. Essa confiança é responsável pela ação inquestionável da mídia, que se realiza como um sacramento ou juízo de um modo de ser e impõe valores e comportamentos redundantes que, estáveis, se mantêm, confirmando seu caráter contratual e coercitivo. Nesse sentido, o caráter instrumental-utilitário está presente na arqueologia da comunicação midiática, assim como o diálogo está presente na comunicação interativa como seu arché original. Nos dois casos, a comunicação é atravessada por um conjunto de forças que mantêm, simultaneamente, a mídia e seu avesso, a interação: Con el logos se dan juntos – cooriginariamente pero de modo tal que nunca pueden coincidir a la perfección – los nombres y el discurso, la verdad y la mentira, el juramento y el perjúrio, la ben-dicción y la mal-dicción, la existência y la non existência del mundo, el ser y la nada... En esta perspectiva, la tajante distinción entre el juramento asertorio y el juramento promisorio corresponde al extravío de la experiência de la palabra que está en cuestión en el juramento (Agamben, 2010: 89/90). A superposição entre a linguagem que se constrói a si própria e aquela que se faz instrumento de outro interesse leva a uma confusão habitual, não distinguindo mídia e comunicação, mediação e interação, linguagem e discurso, considerando a capacidade de nomear como origem da comunicação e sua transformação em código assertivo. Essa mistura supõe um paradoxo a ser considerado. De um lado, impede que distingamos os paradigmas originais de uma epistemologia da comunicação, que, se não for vista como um conjunto de princípios judicativos e validativos do que é comunicação, pode aventurar-se a propor outro juramento mais falível e mais instigante. De outro lado, impõe considerar que a comunicação midiativa é domínio de um poder de pensar e agir e, como instrumento de controle, mantém sob sua guarda política a ação, que, submissa às ameaças, se amedronta e não reage. Uma comunicação que nos impede de pensar e atuar como seres comunicantes; uma mídia que, coercitiva, nos impõe uma “vida nua” dominada pela anticomunicação, comandada pelo dispositivo técnico-midiático e pelo 16 poder que tudo parece imunizar, a fim de poder atuar na dimensão de uma política hegemônica, mais interesseira do que interessada. Uma vida nua como estado de exceção (cf. Agamben, 2005: 129) inerente à comunicação midiática que, se de um lado, parece inclusão social mediante sua capacidade tecnológica de informar, é também exclusão, na medida em que manipula a informação conforme seus interesses e impede o acesso à matriz original do conhecimento, que, operativa, intensifica-se como vetor produtivo de outras informações. Esse obstáculo à informaçãoé claramente excludente. Entretanto, na inadequação epistemológica entre mídia e comunicação está presente uma alternativa que deve ser considerada: a comunicação pode produzir uma resistência política à ameaça da técnica, transformando a linguagem na técnica, que pode devolver ao homem sua capacidade de nomear as coisas, enquanto se descobre comunicante. 17 Capítulo 2 OS NOMES NA ARQUEOLOGIA DA COMUNICAÇÃO “O intelecto é a nossa única avenida de acesso à realidade, e essa única avenida está interditada pela intelectualização do intelecto. Daí o nosso niilismo” (Flusser, 1999: 59). 18 A 1. A CIÊNCIA DOS CONCEITOS obra na qual se colheu a sugestiva epígrafe de Flusser chama-se A dúvida, sugerindo reflexão não menos perturbadora e inquieta do que a própria epígrafe. A obra e sua epígrafe nos remetem ao domínio da produção de conhecimento e, nele, ao seu arquétipo mais significativo definido como conceito ou paradigma, entendidos como definidores da autonomia de uma área científica e como clichês da sua identidade. Quanto mais estáveis e duradouros forem seus paradigmas ou persuasivos seus conceitos, mais pródiga será a eficiência de uma área científica para diversificar, catalogar e classificar operações entendidas como matrizes da própria ciência em suas operações produtivas. Porém, aquela eficiência é liderada por dois fundamentos decisivos: a clareza e precisão do conceito e o nome persuasivo que o designa. A clareza depende de um modo de pensar, tanto mais eficiente, quanto melhor se prestar para a geração de categorias de análise entendidas como matrizes de regularidade que as aproxima de estruturas modelares; nesse sentido, a arquitetura conceitual da ciência exata é exemplar como capacidade de pensar e, como consequência, tem livre curso em quase todas as modalidades daquela produção científica. Porém, a sedimentação de um conceito depende de paciente processo histórico e definidos limites geográfico-contextuais para que seja reconhecido como parâmetro de uma área científica, ou seja, um conceito tem sua sobrevida diretamente relacionada ao seu reconhecimento. Para tanto, o nome de um conceito constitui chave mestra para sua codificação científica (cf. Ferrara, 2012). 19 2. OS NOMES DOS CONCEITOS O nome de um conceito é uma forma de dizer que exige atenta relação designativa, a fim de que o nome corresponda ao seu objeto e assuma a dimensão de um conceito. No caso das ciências humanas, entre elas, a comunicação, o objeto científico se apresenta sempre cambiante, em constante movimento e indeterminação, porque sujeito a intenso processo de transformação contextual. Para aquelas ciências, designar, dar nome a um conceito constitui grande dificuldade porque os nomes se apresentam, quase sempre, eufóricos como modos de dizer, mas disfóricos, como capacidade designativa. Ou seja, nas ciências humanas, a arte de nomear não supõe apenas um nome próprio que corresponda ao cientista cujo trabalho deu origem a uma descoberta teórica, científico-pragmática ou metodológica, como frequentemente ocorre na área das ciências exatas. Ao contrário, na comunicação, a arte de nomear corresponde a um modo inusitado de dizer e criar uma metáfora que seja capaz de produzir um impacto, quase performático, a fim de corresponder a um modo inusitado de nomear um fato que, frequentemente, já se tornou hábito perceptivo. Ou seja, para a comunicação, a arte de nomear corresponde a um nome inusitado para designar uma realidade já vivida. Desse modo, um nome constitui um reconhecimento, um “re-conhecer”, conhecer outra vez aquela realidade, e o nome parece arbitrário em relação ao conceito e, mais do que nomear, atua à maneira de um código. Metafóricos, os nomes frequentemente operacionalizados na comunicação são estranhos ao conceito que designam e podem não corresponder ao interesse designativo que os deve acompanhar, porém são numerosos. Se entendermos que comunicação supõe mediação entre uma fonte emissora para atingir um receptor sempre pronto para uma atuação de acolhida da mensagem transmitida, os nomes que designam a comunicação são sempre metáforas decorrentes daquele gesto emissivo, que tem em vista uma recepção paciente e passiva. Desse modo, acreditamos que nos comunicamos quando, cientificamente, utilizamos os nomes que, de modo metafórico ou ficcional, designam o gesto emissivo. Em comunicação, como em outras áreas das ciências humanas, a vida dos conceitos depende da performance metafórica dos nomes que os designam. Desse modo, aquela decidida ação transmissiva é também difusa, visto que seu objeto está circunscrito a uma mensagem que, mesmo codificada a partir dos rigores do verbal, sempre está sujeita às imprevisíveis traduções receptivas que convergem para repertórios e contextos sobre os quais o emissor não tem rigoroso controle. Dessa forma, tendo em vista o plano emissivo, é frequente a comunicação ser inócua, fraca ou ineficiente como resultado a atingir. Desse modo, é imperativo constatar evidente confusão epistemológica: natural e alegremente se confunde a definição do objeto científico com os objetivos a atingir. Talvez essa seja a razão mais plausível para nos permitir entender a razão pela qual a comunicação é classificada como ciência social aplicada. Entretanto, esse desvio de rota pode ser corrigido ou controlado, se os nomes que designam os conceitos que norteiam a epistemologia da comunicação forem convincentes na sua capacidade de nomear um hábito ou uma forma usual de nos comunicarmos. A fragilidade dos processos de comunicação no seu trajeto transmissivo de um emissor a um receptor constitui um obstáculo ou um fantasma enunciativo. Mas de todo modo, é 20 necessário forjar um nome sedutor, a fim de que o conceito tenha vida longa e convincente. Nesse sentido, frequentemente o nome ou a metáfora acabam por despojar um conceito do seu sentido adequado e passam a autodesignar-se como conceitos nomeativos, ou seja, toma-se um conceito pelo nome que o codifica. Um conceito só se expressa na medida em que é codificado através de um nome que o torna comunicável, ou seja, o nome substitui o próprio conceito que através dele se comunica. 21 3. A MEDIAÇÃO E SEUS NOMES Na sua característica nomeativa – e indo além dos nomes que designam o caráter transmissivo que constitui o conceito fundamental da comunicação administrativa como propunha o empiricismo de Laswell ou Lazarsfeld, e atingindo tendências de análise mais próximas de uma microssociologia como o espectroscópio social de Simmel ou manifestações diretamente relacionadas com a aderência à fidelidade ao código que garantiria a homeostase comunicativa, como propunha o famoso feedback de Winner –, a comunicação parece ter se especializado em nomear-se (cf. Ferrara, 2012). O emprego desses nomes é suficiente para criar uma atmosfera que se pretende científica, porque são proclamados publicitariamente e seu emprego pode ser suficiente para designar, de modo aproximado, aquilo que se entende como mediação ou transmissão de mensagens entre os homens. O uso do nome define o norte científico, sem nos darmos ao trabalho de saber se é adequado ao objeto em estudo e ao seu domínio contextual. Do ponto de vista epistemológico, a coleção dos nomes e sua constante citação constituem parâmetros daquilo que se entenderia como competência científica. Entretanto, sabe-se que, frequentemente, o uso dos nomes é tão arbitrário como as metáforas que pretendem designar a complexidade de um conceito. É frequente observar como, por exemplo, no caso de simulação, dissimulação, simulacro, nomes que designam conceitos notáveis de Baudrillard para a arquitetura de uma teoria epistemológica da comunicação, são empregados de modo pouco rigoroso como se fossem sinônimos e correspondessem a análogos sentidos conceituais. A facilidade com que se aplicam nomes à realidade comunicativa é aderente ao próprio conceito que aqueles nomes designam: trata-se do conceito de mediação, que, ilustre na sua ancestralidade teórica, utiliza distintos nomespara designar, apenas, aquilo que parece constituir prioridade básica da comunicação: a transmissão da mensagem. Nesse sentido, o uso arbitrário dos nomes é tão ficcional como as próprias metáforas que lhes dão origem e publicidade. 22 4. MEDIAÇÃO E INTERAÇÃO No polo oposto à mediação, a interação parece exercer uma função especular e, no mesmo sentido anteriormente apontado, torna-se sinônimo da mediação e passa a ser usada com análogo sentido transmissivo. Nos últimos anos, a efervescência tecnológica do ciberespaço e da cibercultura, que lhe é consequente, insiste em dignificar interação e/ou interatividade como resultado daquele espaço tecnológico e da cultura que dele decorre. Desse modo, confunde-se comunicação com a tecnologia dos meios que a agenciam, ou seja, diz-se interação ou, sobretudo, interatividade para designar a comunicação que, no território do ciberespaço, corresponde à comunicação agenciada pelos meios digitais: confunde-se comunicação com os meios que lhe dão suporte ou moldura. Desse modo, não se reconhece que, embora tecnologicamente mediada, a comunicação não se confunde ou se mimetiza com os meios que adota como suporte. Essa confusão faz com que aquela pretensa sinonímia entre mediação e interação seja ainda mais constrangedora, pois não apenas se confunde comunicação e tecnologia, mas, sobretudo, mediação instrumental e transmissiva de mensagens com comunicação interativa que, tecnológica ou não, corresponde àquela capacidade inerente ao homem que, entre as espécies vivas, é o único a viver e ter consciência da linguagem como sua experiência vital definitiva, utilizada para comunicar-se e perpetuar-se. A convergência dessas reflexões parece nos induzir à conclusão de que a interação corresponde a uma comunicação sem nomes: difusa e sem planos estabelecidos, é indeterminada enquanto objeto e, mais ainda, enquanto objetivos. Difusa, enquanto objeto científico e imprevisível nos seus resultados e objetivos, a interação surge como comunicação sem nomes! Seu conceito é frágil, porque não define os objetivos a atingir; simplesmente ocorre, sem tempo, interesses ou circunstâncias planejadas. Sua emergência corresponde à urgente necessidade de ser comunicativo ao estar em comunicabilidade. Uma comunicação interativa, mas sem nomes! Onde estão os nomes que correspondem ao conceito de interação? Distinta é sua arqueologia? Deixa rastros, mas não se indicia? A inquieta emergência dessas questões encaminha-nos a Walter Benjamin, quando, em textos da juventude, já se preparava para definir o que seria a arte, que, então como agora, surge sem aura e sob o domínio da reprodutibilidade técnica: Toda manifestação da vida espiritual humana pode ser concebida como uma espécie de linguagem, e essa concepção leva, em toda a parte, à maneira de verdadeiro método, a novos questionamentos (Benjamin, 2013: 49). A citação nos ajuda a refletir sobre as questões elencadas no parágrafo anterior. Se toda espécie de linguagem supõe questionamentos “à maneira de verdadeiro método”, em que medida a interação corresponde a um questionamento da linguagem e que método seria esse? Se entendermos a interação como um questionamento da linguagem, ele não poderá dirigir-se à natureza do verbal, visto que a interação supõe, arqueologicamente, um espaço heterotópico (cf. Foucault, 2013) entre emissor e receptor que, sem serem simétricos, são, sobretudo, diferentes e necessariamente interagentes na criação comunicativa, ou seja, comunica-se não apenas por meio do verbal, mas de todo elemento sensível e físico que se 23 comunica pela própria maneira como se apresenta e se deixa perceber. Ou seja, a comunicação interativa é integralmente ativa ao criar a complexa relação informacional que se processa entre emissor e receptor. Interativamente, nos comunicamos não através de mensagens, mas de maneiras de ser, de configurações semióticas que não coincidem com processos de emissão enunciativos; ao contrário, naquelas configurações, a figura do enunciador se apaga, porque dele não emana a comunicação, pois, para ocorrer, ela depende da própria relação sensível e comunicativa que se estabelece. Temos uma enunciação dividida e partilhada entre convivas em comunicabilidade, mas sem mensagens explícitas e, menos ainda, planejadas. Na comunicabilidade interativa, tecnológica ou não, tudo ocorre sem planos, livre de pré-requisitos modeladores. Desse modo, a mensagem comunicativa é o próprio modo como os sentidos e o corpo se manifestam comunicativos. Uma estranha linguagem sem códigos: antes um bios interativo do que um bios midiático (cf. Sodré, 2002). Nesse sentido, não cabe confundir a interatividade com os meios ou suportes que sustentam a técnica comunicativa. A comunicação interativa não tem mensagens, mas é construtora de um espaço entre que confere, ao gesto comunicativo, amplos recursos de metamorfoses, visto que aquele espaço não é físico ou geográfico, ao contrário, acontece e assinala mudanças contextuais, mas não se fixa, pois, embora seja eminentemente espacial, é criador de fluxos no espaço. Se enunciativa, mas sem enunciadores hegemônicos, qual é o método sugerido pela comunicação interativa? Considerando que a interatividade não se fixa em planos estabelecidos, é necessário assumir que não há como medir ou deduzir a capacidade do seu efeito, ao contrário, ela será sempre difusa, incerta e, como consequência, fraca. O método enunciado por Benjamin não se refere a nada estabelecido, ao contrário, é tão difuso quanto o objeto científico ao qual se refere. Ou seja, um antimétodo sem percursos, mas eficiente na capacidade de construir sua trajetividade conduzida pela própria inferência que decorre da reflexão exigida por aquele espaço interativo. Na sua heterotopia, a interatividade não se submete a constatações ou explicações, pois não se deixa diferenciar a partir de parâmetros que a definam, classifiquem ou categorizem. Sem nomes, a interatividade não se reporta a conceitos designados pelos nomes. Nas consagradas dimensões científicas às quais a academia está afeiçoada no seu hábito de pensar e produzir ciência, a interatividade se apresenta como anticientífica, mas exageradamente provocativa, enquanto desafio às imaginações cientificamente inquietas. Sem nomes, a interatividade é refratária a modelos considerados metodologicamente explicativos ou exemplificativos da realidade comunicativa. Sem nomes, porque sem conceitos que a convalidem cientificamente, a interatividade não é adequada às constatações, ao contrário, é indagativa e ágil resposta ao desafio inferencial: a interatividade é, sobretudo, um exercício epistemológico que nos adverte sobre a necessidade de perceber como o conhecimento nela se encontra e como contribui para uma ciência da comunicação. Enquanto exercício, essa atividade epistemológica está diretamente relacionada a diagramas do pensamento que, iconicamente, criam quadros dos processos interativos. Tudo se torna inferência e heurística em uma ciência que se renova a cada movimento que agencie a heterotopia do espaço comunicativo. Nesse caso, a interatividade exige uma indagação, não sobre as origens da comunicação, mas sobre a arqueologia dos seus rastros. 24 5. OS RASTROS ARQUEOLÓGICOS DA COMUNICAÇÃO Como vimos, os nomes supõem certa similaridade com a arquitetura de um conceito, exigem que sua metáfora crie uma semelhança com aquilo que o próprio conceito quer explicitar e/ou criar. Dessa forma, o conceito edifica um ideal científico que os nomes podem sedimentar, enquanto a ciência corresponde ao reconhecimento daquela similaridade ou à sua divulgação e repetição; faz-se ciência na medida em que dominamos a arquitetura dos conceitos de uma área e somos ágeis na utilização dos seus nomes. Mais uma vez, embora em outro texto, Benjamin é sugestivo: Um olhar lançado à esfera do “semelhante” é de importância fundamental para a compreensão de grandes setores do saber oculto. Porém, esse olhar deve consistir menos no registro de semelhanças encontradas que na reproduçãodos processos que engendram tais semelhanças. A natureza engendra semelhanças: basta pensar na mímica. Mas é o homem que tem a capacidade suprema de produzir semelhanças (Benjamin, 1985: 108). A citação parece confirmar o que se disse anteriormente, mas vai além. Confirma aquele exercício epistemológico que estabelece, para a Teoria da Comunicação, outro e novo território investigativo: a comunicação não é ciência afirmativa da consecução de um efeito planejado como postulam as várias tendências conceituais e críticas da célebre Teoria dos Efeitos ou da Escola de Frankfurt, que, embora com sinais trocados, acabam por se ater à mesma evidência: a ação comunicativa em seus efeitos. Ao contrário, enquanto epistemologia, a comunicação é mais uma tendência lógica do que uma fenomenologia, sugere mais uma arqueologia dos processos comunicativos do que uma indagação sobre seus efeitos pragmáticos, embora não deixe de ser pragmática na medida em que, interativa, produz linguagens e confirma aquela “capacidade suprema de produzir semelhanças”. Aprendemos a comunicar interativamente ao mimetizar a própria natureza e o universo e ao nos descobrirmos semelhantes a eles, embora aquela semelhança nos ensine a criar outras tantas semelhanças. Nesse sentido, a comunicação interativa não reproduz índices que, colhidos em vários processos, se reproduzem, por similaridade, em outros e diferentes fenômenos. Ao contrário, a comunicação interativa cria semelhanças deixando rastros que passam a configurar e proclamar a natureza espacial da comunicação. Enquanto reproduz semelhanças da sua antiguidade, surge sempre nova e confirma seus rastros na medida em que os transforma e recria. Desse modo, os rastros interativos constituem sentidos comunicativos e se impõem como bases teóricas do conhecimento, mas não reproduzem a centralidade antropológica de um enunciador, ao contrário, criam semelhanças que não secundam valores e certezas do sujeito da investigação, mas se impõem como sugestões inferenciais que perseguem a imaginação, estimulando-a à produção/criação de semelhanças que, antilógicas, são sempre novas e diferentes. “Os rastros evidenciam uma política cognitiva que insinua outra epistemologia e outros paradigmas que, embora sempre provisórios, mantêm-se indagativos e esclarecedores do próprio processo inferencial que constitui a narrativa do conhecimento” (Ferrara, 2016: 134). A leitura de Benjamin volta a ser relevante para esse trabalho ao apontar a ancestralidade espacial dos rastros. Espaciais porque, embora se registrem no tempo, sua natureza epistemológica e inferencial deixa vestígios no espaço que, à maneira de um 25 mistério, reaparecem e se redimensionam em diferentes circunstâncias e em distintos momentos. Mais espaciais do que temporais, os rastros constituem a matéria-prima de uma epistemologia da comunicação interativa e exigem ser considerados, a fim de que seja possível ultrapassar a incerteza do circunstancial interativo e reconhecer sua inscrição na história de uma ciência: Nessa perspectiva, a linguagem seria a mais alta aplicação da faculdade mimética: um médium em que as faculdades primitivas de percepção do semelhante penetraram tão completamente, que ela se converteu no médium em que as coisas se encontram e se relacionam, não diretamente, como antes, no espírito do vidente ou do sacerdote, mas em suas essências, nas substâncias mais fugazes e delicadas, nos próprios aromas. Em outras palavras, a clarividência confiou à escrita e à linguagem as suas antigas forças, no correr da história (Benjamin, 1985: 112). Procurando entender a afirmação de Benjamin, é possível perceber que, embora falando em linguagem, ele não se refere ao verbal, ao contrário dirige-se a toda forma que nos leva a estabelecer relações “entre” corpos, coisas, sentidos em comunicação. Por outro lado, a citação revela que aqueles rastros de semelhança deixam vestígios, mas são frequentemente naturalizados através de hábitos perceptivos que não assaltam a inteligência ou a imaginação, ao contrário, produzem-se como semelhanças naturais, miméticas. Hábitos. Ampliando a argumentação tecida até esse ponto, parece possível observar que os conceitos se tornam habituais através da aplicação persuasiva de nomes performáticos e, em consequência, são explicativos e aplicativos a distintas realidades, sem que nos deixemos alertar para a possível diferença que pode existir entre a essência de um conceito e os nomes que os designam. Mimetização de conceitos, os nomes levam ao hábito da produção científica reiterativa. Um hábito tão mecânico que, sem explicações, são aceitos como naturais e míticos. Uma naturalização que mal esconde a compulsão ou instinto de defesa que levam à conservação dos elementos já conhecidos e absorvidos como similares. Na ressonância dessa atmosfera mítica, Agamben não hesita em designar a linguagem por meio de um nome que, como um sacramento, recupera o caráter mítico apontado por Benjamin, mas vai além, a fim de deixar claro o caráter naturalizante e habitual, que configura a ausência de percepção do caráter que um conceito deve comunicar através dos seus nomes. Habitual e mimético, aquele sacramento se transforma na fidelidade perceptiva de um juramento: El juramento no concierne al enunciado como tal, sino a la garantia de su eficácia: en el no está en cuestion la función semiótica y cognitiva del lenguaje como tal, sino más bien el asegurar su veracidad y su realización (Agamben, 2010: 11). Desse modo, observa-se que a adoção de um nome científico constitui não apenas um hábito, mas uma fidelidade dos modos de dizer e de pensar que naturalizam o conhecimento, transformando-o na recursividade que retira da comunicação toda possibilidade de levar à aprendizagem de um modo de aprender através da linguagem bios interativa. Evidentemente, esse hábito de dizer-pensar é hostil ao sugestivo caráter cognitivo dos rastros e consagra, na comunicação, um método de bases descritivas que encontra, na fenomenologia de Husserl, sua matriz mais relevante embora, sob o impacto perceptivo do cotidiano, tenha substituído a essência do sentido subjetivo, pela dimensão do mundo vivido que integra o homem que se comunica e o espaço banal do dia a dia. Distante dos rastros que justificam a interação como um acontecimento comunicativo, 26 observa-se que não surge, no panorama epistemológico, espaço para indagações que levem à investigação da relação entre conceitos e nomes e, sobretudo, da adequada assimilação entre o modo como nos comunicamos e a ciência que produzimos a partir da descoberta/criação daqueles rastros sugestivos de inferências. No texto do qual extraímos a epígrafe que introduz este trabalho, observamos que, nele, Flusser escreve uma das passagens mais notáveis de uma comunicologia que, longe de se pretender uma teoria ou ortodoxia, apresenta-se como uma forma de entender a comunicação no seu fazer-se. Mais uma vez, a capacidade sugestiva dos nomes se faz presente. O título do trabalho de Flusser é A dúvida (1999) e, nesse nome, está assinalada a própria natureza do conhecimento que deve demarcar o conceito: superando a certeza dogmática, a natureza do conhecimento começa e acaba na dúvida que assinala, nos seus rastros, a falibilidade do conhecer. Comunicar é fazer uma tentativa não de acertar, mas de ousar corrigir as crenças que, sem rastros e sem arqueologia, já surgem como seguras e confiáveis. O próprio texto de Flusser aponta aquela crença como um obstáculo intelectual do conhecimento e, na comunicologia de uma comunicação possível, mas insegura, o próprio autor apresenta sagaz observação que não classifica a dúvida, mas a estabelece como estratégia mais atenta às possibilidades de produção do conhecimento: Para distinguir a atividade intelectual que envolve o pensar e articular dos nomes próprios da atividade que envolve o pensar e articular das palavras secundárias, façamos a distinção entre “chamar” e “conversar”. Os nomes próprios são “chamados”, as palavras secundárias são “conversadas”.Chamar e conversar são, portanto, as duas atividades intelectuais. Os nomes próprios são chamados para serem conversados, isto é, transformados em palavras secundárias. Essa transformação é gradativa. Na medida em que os nomes próprios são conversados, transformam-se em palavras secundárias sempre mais distantes de sua origem primária (Flusser, 1999: 61). Chamar e conversar demonstram a diferença arqueológica que se estabelece entre os nomes como aplicações da publicidade dos conceitos e a inferência sugerida pelos rastros que se estabelece entre o conceito e a produção do conhecimento. Como atividades intelectuais, os nomes e o conhecimento necessitam de clara distinção a fim de que se estabeleça a diferença entre certeza e dúvida, entre nomes e conversação como expansão cognitiva que poderá superar o sugestivo presságio final para a cultura ocidental: Não acreditando na possibilidade da crítica do nome próprio, abandona paradoxalmente o nome próprio. A saída dessa situação é, ao meu ver, não a reconquista da fé na dúvida, mas a transformação da dúvida em fé no nome próprio como fonte de dúvida... Seria o reconhecimento que o intelecto não é um instrumento para dominar o caos, mas é um canto de louvor ao nunca dominável... O nome próprio é a síntese do intelecto com o de tudo diferente (Flusser, 1999: 73-74). 27 Capítulo 3 OS SIMULACROS DA SIMULAÇÃO “Afortunadamente nada es profundo, y aún es la sedución la que, acerca de la misma verdad, detenta la llave más sibilina, a saber, que quizà no deseamos desvestirla únicamente porque es a tal punto difícil imaginársela desnuda” (Baudrillard, 1989: 170). 28 1. DA SIMULAÇÃO AO SIMULACRO Tudo é simulação. Tudo é simulacro. Desde Simulacros e simulação (1981), essa afirmação é constante e constitui um eixo teórico na obra de Jean Baudrillard. Porém, surge como noção passível de análise e talvez constitua seu ponto nevrálgico, quando procuramos iniciar a compreensão daquela teoria e da sua contribuição para os estudos da comunicação no âmbito das relações políticas das associações mediadas por imagens (cf. Débord, 1997). A análise das bases reflexivas e, sobretudo, a definição dos parâmetros de uma possível política subjacente à teoria da comunicação ocidental proposta por Baudrillard não é clara. Ao contrário, permanecem, no decorrer de toda a obra, como um desafio e como proposta contínua para a descoberta de um caminho orientador para aquelas teorias que se apresentam de modo sempre novo, mas com indecisões. Desde Débord e, posteriormente, com o pós-moderno de Lyotard, as associações procuram ser entendidas como parâmetro que a comunicação, atuando através da imagem, desenvolve e atualiza constantemente, a fim de preencher aquela atuação política que permite uma cadeia perceptiva que subordina os processos de recepção e fazem, da imagem, um instrumento de consumo, quando não, mercadoria. Em Simulacros e simulação, Baudrillard apresenta uma teoria que, por intermédio de frases, títulos, epígrafes, contrapõe duas atuações comunicativas, mas as apresenta em texto denso e pouco coeso que dificulta a compreensão da distinção entre simulação, dissimulação e simulacro, levando a uma compreensão equivocada, pois estabelece, entre elas, uma sinonímia que as confunde. Entretanto, sugere-se superar aquele equívoco. Pela semeadura de sugestivas frases, metáforas e epígrafes, estimulam-se possíveis inferências que, se relacionadas, podem sugerir uma teoria ou pontos fundamentais para identificar a emissão de um pensamento em desenvolvimento que, em texto denso, mas disperso, não pode ser procurado de modo linear, ao contrário, está sempre se renovando, se recuperando, se corrigindo, se repropondo. Nesse sentido, será uma imprudência tentar estabelecer a definição dos parâmetros teóricos de Baudrillard, ao contrário, é indispensável ter consciência do caráter propositivo de qualquer heurística daqueles conceitos e, mais ainda, das relações que se podem estabelecer entre eles. Em aproximação filosófica que é constante em todos os textos de Baudrillard, a reflexão pode se dispersar em suas proposições e retornar aos mesmos passos, perguntando-se sobre o sentido geral ou sobre as consequências culturais e sociais daquilo que observa ou que estimula a reflexão. Desse modo, para compreender a teoria que Baudrillard propõe através dos conceitos simulacro e simulação, é necessário que persigamos as raízes que podem elucidar, mais do que suas causas e consequências, sua genealogia e, através dos seus traços, suas decorrências. Pode-se apreender o desenvolvimento reflexivo de Baudrillard ao observar seu percurso desde a década de 70 do século XX, quando se inicia a publicação dos seus primeiros textos. Esse desenvolvimento se inicia contaminado pela influência de dois grandes impactos sociais e culturais: o primeiro é tributário da noção de espetáculo de Guy Débord, diretamente relacionado à reconstrução da Europa do pós-guerra e ao movimento francês de maio de 68, o segundo se deve ao ambiente político desencadeado por um marxismo desencantado e pela extensão lógica da mercadoria em consumismo cultural, 29 como decorrências do sistema produtivo capitalista fordista. Apoiando-se em uma comunicação de natureza instrumental, aqueles impactos se desenvolvem como capturas perceptivas e se propagam através de uma imagem publicitária que, espetacular, constitui a base mediativa das relações humanas mais apoiadas em meios que veiculam, do que em propostas que vinculam. Superando a natureza das causas e consequências daqueles impactos, Baudrillard se interessa, não tanto pelas características comunicativas e técnicas possibilitadas pelos novos meios de propagação da imagem, mas para as consequências culturais que delas decorrem. Capitalismo, produção, reprodução, consumo, consumismo, comunicação de massas, espetáculo, persuasão publicitária em colisão com o cotidiano banal são temas recorrentes em obras como Sistema de objetos (1968), A sociedade de consumo (1970), Por uma crítica da economia política do signo (1972), A troca simbólica e a morte (1976), Simulacros e simulação (1981). Para o interesse deste trabalho, os dois últimos títulos assumem papel divisor. É possível que, em alguns capítulos dessas obras, já se inicie uma tendência definitivamente pós-moderna onde Baudrillard se defronta com a cultura da virtualidade, com o tempo real e com o novo espaço simbólico de características globais, onde o pensamento do autor procura equilibrar-se entre a repulsa que decorre da insegurança social desenvolvida pelo novo ambiente cultural e, paradoxalmente, sua irrecusável sedução. Entre os ensaios que compõem aqueles textos, Jean Baudrillard se defronta com um pensamento ambíguo e oblíquo que se desenvolve e procura se equilibrar entre padrões interpretativos de base estruturalista ou marxista e experiências simbólicas contraditórias, fugidias, desconfortantes, porém e ao mesmo tempo, reais. O objetivo deste ensaio é perseguir as raízes daquela reflexão e traçar o caminho que pode elucidar o percurso teórico de Baudrillard, evidenciando suas relações e associações. Para tanto, serão pesquisados os dois conceitos citados que, como parâmetros teóricos, são entendidos como vitais para o conjunto da obra de Baudrillard: trata-se dos conceitos de simulação e simulacro. Ao confrontar a epígrafe selecionada como estímulo para este trabalho e aquela com a qual o filósofo inicia seu famoso Simulacros e simulação, deparamos com um elemento intrigante e desafiador para a sucessão de ideias que desperta: O simulacro nunca é o que oculta a verdade – é a verdade que oculta que não existe. O simulacro é verdadeiro (Baudrillard, 1991: 7). Onde estaria a verdade do simulacro? Em que medida seria verdadeiro? Por que seria verdadeiro, se surge como simulacro? Por que simulacro surge no título da obra no plural e simulação no singular, embora os dois vocábulos surjam com características definidoras e totalizantes em várias obras do autor? Essas questões apontam para uma perspectivamais investigativa e propositiva do que explicativa ou afirmativa e surgem, na obra de Baudrillard, como uma dispersão de análise e sem definitiva clareza do caminho percorrido, embora vivas e constantes em todo o seu percurso. Desse modo, os dois vocábulos parecem ambíguos e, muitas vezes, é possível tomá-los mais como sinônimos do que como antônimos, como parece sugerir o título como alternância ou adição entre Simulacros e simulação. A dúvida entre ambiguidade, sinonímia, antonímia, alternativa, alternância nos aponta para um irrefutável ponto de partida: simulação e simulacros não constituem paradigmas 30 da obra de Baudrillard, pois não há entre ambos clara oposição e, portanto, não correspondem a conceitos ou a definições que apontem para perspectivas científicas de hierarquias ou classificações, mas são apenas nomes com os quais se pretende evidenciar uma possível diferença entre realidades que não se limitam, mas podem se fronteirizar, conforme o desenvolvimento da realidade que se estuda ou da análise que se tem como objeto desenvolver. Portanto, simulacros e simulações são, antes de tudo, nomes, até certo ponto avessos a distinções, definições ou classificações como seria necessário observar se fossem as bases de clara e deliberada proposição científica. Em consequência e fiéis ao caminho que o autor parece ter perseguido, cabe-nos repisar o trajeto que o levou a pesquisar as relações sociais, a comunicação e a ciência que marcaram a segunda metade do século XX e inícios do XXI. Nos passos daquele percurso, observa-se que aqueles elementos são presenças constantes na sua reflexão e acabaram por definir as bases da sua teoria e, sobretudo, sua inconfundível e atual contribuição científica. Enquanto nomes, simulacros e simulação não são conceitos, mas podem ser metáforas que vestem ou cobrem definições, tornando-as mais amenas e compreensíveis, embora possam, algumas vezes, fazerem-se passar por elas. Portanto e enquanto nomes, simulacros e simulação apontam, senão para conceitos, no mínimo para uma realidade relevante para o contexto social e cultural que serviu de base para as reflexões de Baudrillard, conforme foi apontado anteriormente. Curiosamente, simulação parece não se opor a simulacros, ao contrário, os dois nomes surgem como distintos e assim, enquanto simular se opõe a dissimular, simulacros se refere a modos de ser, a aparências, a imagens. Enquanto simular aponta para uma ação por intermédio de um nome, simulacro é um substantivo, ou é, mais propriamente, um nome que parece subjacente àquela ação e, portanto, mais geral do que ela. Portanto, simulacro é uma precessão, embora em colisão com simulação. De todo modo, os dois vocábulos surgem relacionados na obra e, portanto, não podem ser desvinculados na análise, embora seja possível e necessário estudar as inferências que estão subjacentes a eles. 31 2. SIMULAR E DISSIMULAR Dissimular é fingir não ter o que se tem. Simular é fingir ter o que não se tem. O primeiro refere-se a uma presença, o segundo a uma ausência. Mas é mais complicado, pois simular não é fingir... (Baudrillard, 1991: 9). Como um aforismo, simular e dissimular parecem ser diferentes, mas designam a mesma realidade: referem-se a algo que se tem ou não se tem. Mas a que propriedade se referem? Essa propriedade ou posse apontam exatamente para o referente, para algo que surge como um indicador, um vetor para um paradigma de claro alicerce binário: ter ou não ter. Referente e referência são termos de claro quadro teórico no mundo ocidental e, embora tenham sido objeto de especulações desde os pré-socráticos, é a partir de Saussure e suas propostas sistêmicas que, embora arbitrárias porque traduzidas de modo simplificado pela linguística estruturalista, atingiram histórica complexidade científica ao confrontarem-se com o real: Enquanto a ameaça histórica lhe vinha do real, o poder brincou à dissuasão e à simulação, desintegrando todas as contradições à força de produção de signos equivalentes. Hoje, quanto a ameaça lhe vem da simulação (a de se volatizar no jogo dos signos), o poder brinca ao real, brinca à crise, brinca a refabricar questões artificiais, sociais, econômicas, políticas... Daí a histeria característica do nosso tempo: histeria da produção e da reprodução do real. A outra produção, a dos valores e das mercadorias, a dos bons velhos tempos da economia política, desde há muito não tem sentido próprio. O que toda uma sociedade procura, ao continuar a produzir e a reproduzir, é ressuscitar o real que lhe escapa (Baudrillard, 1991: 33/34). Figurar o real, traduzi-lo economicamente, substituí-lo, estar em seu lugar, marcar-lhe os percursos entre demonstrá-lo ou ocultá-lo são bases para uma teoria que entende aquela figuração como arbitrária ou equivalente ao mundo e, portanto, como simples, similar e especular imagem. Nos dois casos, temos a base do vital conceito semiótico de representação desenvolvido por Charles Sanders Peirce em vários parágrafos de sua extensa obra (C.P.V: 66, 96, 104, 105) e constitui, paradoxalmente, vetor para o conhecimento/revelação do mundo ou para sua ambiguidade/ocultamento. Nos dois casos, surge aquilo que substitui o mundo ou aquilo que pode mostrá-lo às avessas, ocultando-o e oferecendo-o como enigma a ser desvendado. Nos dois casos, a reapresentação decorre de um ato deliberado como procura de um objeto a ser representado. Nos dois casos, temos representação. Nos dois casos, a representação está sujeita a uma crise que a torna desnecessária ou imprópria, pois, em seu lugar ou simultânea a ela, surge a imagem como fenômeno-chave para a compreensão do mundo ocidental, sobretudo, a partir da emergência, em meados do século XIX, dos dispositivos de reprodutibilidade técnica da realidade que transformam a comunicação em sedução das massas, capturadas pelos artifícios espetaculares da imagem. A imagem surge como desafio que, ao mesmo tempo em que reproduz o real, pode substituí-lo ou embaçar seu reconhecimento, dificultando ou impedindo o domínio dos seus limites. Nos dois casos, temos dissimulação ou simulação do real e do mundo. Nessa perspectiva, a teoria sugerida por Baudrillard através dos nomes apontados na sua obra, pode apresentar-se como uma Teoria da Imagem que, desde Débord e por motivos ou por inspiração que parecem distintos daqueles que orientaram a reflexão de Baudrillard, constitui o fulcro da atenção teórica da comunicação como instrumento na mediação das relações sociais, ou como meio que permite a tradução incessante do mundo através do 32 modo como os homens e as sociedades se comunicam ou se intercomunicam através do consumo e do consumismo da mercadoria e/ou da imagem que, nesse sentido, assumem análoga fenomenologia. 33 3. A IMAGEM COMO REPRESENTAÇÃO DO MUNDO Na possível heurística da teoria de Baudrillard, é necessário ponderar que, enquanto imagem, o simulacro difere da simulação. Curiosamente, o subtítulo do texto que abre a obra Simulacros e simulação refere-se a uma precessão dos simulacros que, portanto, não se confundiriam com simulação e, mais do que isso, seriam precedentes, antecedentes a ela ou além dela. Nesse sentido, se simulação parece estar referida a uma Teoria da Imagem, simulacro não se confunde com ela e, mais do que isso, pode ser anterior a ela, porque se apresenta em outro ângulo. Através da sensibilidade que caracteriza seus textos, Jorge Luis Borges foi um assíduo frequentador do território ambíguo das imagens e produziu uma fábula notável denominada Del rigor de la ciencia, que tem sido frequentemente citada quando se procura entender a imagem como representação simulada do mundo. Baudrillard confirma essa frequência e o texto que inicia a obra Simulacros e simulação se refere exatamente à fabula citada e, refletindo sobre ela, pondera: A simulação já não é a simulação de um território, de um ser referencial, de uma substância. É a geração pelos modelos de um real sem origem nem realidade: hiper-real. O território já não precede o mapa, nem lhe sobrevive.É agora o mapa que precede o território – precessão dos simulacros –, é ele que engendra o território cujos fragmentos apodrecem lentamente sob a extensão do mapa (Baudrillard, 1991: 8). Essa citação é vital para que se possa entender a abrangência da Teoria da Imagem proposta por Baudrillard. A análise nos leva a perceber que, para o autor, há uma oposição que supera o simples caráter temporal ou talvez evolutivo para as caracterizações da imagem, ao contrário, surge como ponto nevrálgico e inicial para considerar o papel cultural que ela pode desenvolver. Antes o mapa era a imagem e substituía o território, depois o mapa se sobrepõe ao território e já não o representa, mas ocupa seu lugar, abolindo-o, negando-o, fazendo-se território, mundo e realidade: converte-se a representação em objeto representado. Ou seja, o decurso daquele tempo não é linear, mas a imagem parece se transformar e comunicar outros planos culturais. Portanto e com coerência, Baudrillard parece não aceitar aquela simples substituição entre o território e o mapa que o representa, ao contrário, procura perseguir o eixo essencial daquela transformação que parece estar insinuada na relação entre simulação e simulacros e que se formularia em duas etapas: em um primeiro momento, a imagem se apresentaria como mimese do mundo e sua simulação, mas, em uma segunda possibilidade, surgiria como sombra do mundo e seria, então, seu simulacro. 34 3.1. A imagem como simulação do mundo Ao definir simulação, Baudrillard afasta a hipótese de um fingir-ser, pois ela se refere a algo que se tem, embora dele seja simples substituição. O que a imagem tem, ou a que se refere? Refere-se ao mundo que representa e nela está mimeticamente contido e, até mesmo, mais bem desenvolvido, porque mais convincente. Nesse sentido, simulação e dissimulação são equivalentes, não fingem ser, porque ambas se definem pelo mesmo referente que se tem ou não se tem, ou seja, enquanto mimese do mundo, o elemento que justifica a simulação é a existência do mundo, do real, e em relação ao qual ela seria, em princípio, uma ausência que precisa ser superada. Nesse sentido, o sentido da simulação seria superar a ausência e apresentar-se como substituição daquilo que não a contém. Nessa relação direta ou ponto a ponto com a realidade que substitui, a simulação se confunde com a imagem e supõe uma relação de equivalência dela com o mundo, recuperando seu código nominativo e, sobretudo, seus valores, hierarquias e, sobretudo, seu tempo que, em progresso, se prolonga, de modo previsível, do passado para o futuro. Nessa economia comunicativa, a imagem simuladora transforma o mundo em mercadoria, que, em visualidade expositiva, se reveste de espetacularidade e está apto a ser sedutoramente consumido: confundem-se o mundo e a sua imagem, ou à semelhança do que ocorre entre o mapa e o território, a imagem é o mundo. Na consequência dessa simulação, os valores reais também se misturam e já não se sabe distinguir aquilo que faz parte da aparência do mundo ou aquilo que é seu elemento essencial e base para seus valores morais ou políticos. Confundem-se a mundialização e a universalização e estabelecem-se, para ambas, os mesmos parâmetros que se reduzem e se restringem a um só e pseudovalor: Grau xérox do valor. De fato, o universal perece na mundialização. A dinâmica do universal como transcendência, como fim ideal, como utopia, quando se realiza, deixa de existir como tal. A mundialização das trocas põe fim à universalidade dos valores. Triunfo do pensamento único sobre o pensamento universal... O universal mesmo é mundializado: a democracia, os direitos do homem circulam exatamente como qualquer produto mundial, como o petróleo ou os capitais (Baudrillard, 2005: 112/113). Na sucessão acumulada de igualdades e mimeses, tudo se equaliza e a imagem banaliza todas as diferenças e possibilidades na troca simbólica entre o mundo e a mercadoria e, por extensão e como consequência, entre o mundo e sua imagem científica: É, em toda parte, a mesma tentativa de reduzir o poético a um querer-dizer, de o reduzir à sombra de um sentido, de eliminar a utopia da linguagem para a reduzir à tópica do discurso (Baudrillard, s.d.: 124). Portanto, enquanto mimese, a imagem está incorporada à dimensão antropocêntrica da cultura ocidental (cf. Belting, 2004) e reproduz sua necessidade de hierarquias e classificações que fazem com que a ciência, que nela se constrói, esteja a serviço de uma ordem dicotômica. É contra essa ordem ou essa dicotomia da ciência que se projeta o pensamento de Baudrillard, quando reflete sobre as tendências científicas do seu momento em alguns textos produzidos, à altura da década de 70 do século XX: O corte funda a ciência. É também da distinção entre teoria e prática que nasce uma “ciência”, uma racionalidade da prática: a organização. Toda a ciência, toda a racionalidade dura o que durar semelhante corte. A dialética apenas o organiza formalmente, jamais o dissolve. Dialetizar a infra e supraestrutura, a teoria e a prática, ou antes, o significante e o significado, a língua e a fala é um esforço inútil de totalização – a ciência vive deste corte, e com ele morre (Baudrillard, s.d.: 148). 35 Troca, equivalência, acumulação, ordem, classificação e dicotomia parecem ser os elementos básicos que definem a relação entre a imagem e o mundo que simula ser e que a referenda; nessa mimese, tudo se difunde e confunde, de modo que é possível transformar aquela mimese em espetáculo que, à maneira de uma realidade, passa a ser capaz de mediar, de calibrar ou equalizar todas as relações sociais, como aponta Débord. Curiosamente, as ilações que nos são permitidas a partir da tentativa de compreensão do que seja simulação enquanto imagem mimética do mundo, nos leva a observar o eco que, de Baudrillard, se expande até as vozes de Deleuze e Flusser e os leva, respectivamente, à construção dos conceitos de espaço estriado e liso ou do conhecimento linear/unidimensional ou em superfície e bidimensional. Esses conceitos são, talvez, os paradigmas mais notáveis das teorias daqueles filósofos que parecem secundar o mesmo panorama reflexivo e cultural que influenciou o pensamento de Baudrillard: ...no espaço estriado, as linhas, os trajetos têm tendência a ficar subordinados aos pontos: vai-se de um ponto a outro. No liso é o inverso: os pontos estão subordinados ao trajeto (Deleuze, 1997: 184). ...as linhas escritas relacionam seus símbolos a seus significados, ponto por ponto (elas “concebem” os fatos que significam) enquanto as superfícies os relacionam por meio de um contexto bidimensional (elas “imaginam” os fatos que significam...) (Flusser, 2007: 113). Esse eco reflexivo e teórico confirma a confluência cognitiva que parece sintetizar os paradigmas da ciência ocidental do final do século XX e, acaba por propor ou por expor outro modo de estar no mundo, através da maneira como conseguimos nos desvencilhar dos modos de ver que, codificados desde a política da civilização grega de Platão ou Aristóteles constituem estratégias antropológicas que parecem negar a possibilidade de apreender diferenças e, com elas, operar e conviver. A tentativa de superar essa antropologia nos faz passar dos meandros da mimese referencial e reversível entre representação e substituição do seu objeto, para surpreender uma imagem divergente e irreferencial que só se deixa descobrir, quando se ousa superar a simulação que confirma o mundo, para atingir os simulacros que podem negá-lo. 36 3.2. A imagem como simulacro do mundo Paralela à anterior fábula de Borges, há outra, que também é frequentemente relacionada à representação e à imagem. Trata-se da famosa La biblioteca de Babel que, mais intrigante do que a primeira fábula, vem indiciada por vocábulos como interminável, indefinido ou infinito e, sobretudo: La Biblioteca es una esfera cuyo centro cabal es cualquier hexagono, cuya circunferencia es inaccesible (Borges, 1956: 76). Esse aforismo faz lembrar aquele outro, no qual Baudrillard define