Buscar

Vieira Pinto, A Ciência e Existência

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes
Você viu 3, do total de 553 páginas

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes
Você viu 6, do total de 553 páginas

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes
Você viu 9, do total de 553 páginas

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Prévia do material em texto

Alvaro Vieira Pinto
CIÊIÊICIA
EXISTÊNCIA
1
problemas ñlosóñcos da pesquisacientíñca 1
®
Paz e Terra
Ciência e Existência
Hoje, a filosofia no Brasil tem em Álva¡
ro Vieira Pinto o seu principal represen-
tante. Os dois grossos volumes de Cons-
ciência e Realidade Nacional são, sem
sombra de dúvida, o mais válido e o mais
importante esforço de pensar -- em ter-
mos de criação e originalidade - a vida
brasileira e a situação atual do homem, a
dramaticidade do ser brasileiro imerso nas
opções da história contemporânea.
Em Ciência e Existência, meditações de
não menor importância e atualidade con-
firmam o seu autor como definitivamente
inscrito entre os grandes pensadores do
mundo de agora. Em suas páginas, com
uma sabedoria até então inédita em nossas
obras de interpretação são analisados, pe-'
sados, valorizados e definidos os vários ân-
gulos do perguntar que o homem faz ao
tempo e à natureza, assim como dos méto-
dos e dos meios desse perguntar. Citare-
mos alguns exemplos, em atenção à legí-
tima curiosidade do possível leitor: a exi-
gência de formação da consciência do pes-
quisador, o conhecimento como fator his-
tórico, as idéias como bens de produção e
bens de consumo, a dialética na natureza
e no espírito, a importância do conceito de
totalidade, a finalidade social da lingua-
gem, a contradição fundamental do pro-
cesso de hominízação, a historicidade in-
trínseca da ciência, a ingenuidade das con-
cepções metafísicas, a função da sociedade
na teoria do conhecimento, a cultura como
produto do processo-produtivo, o proble-
ma histórico da evolução da cultura,
determinismo e finalidade, os grupos so-
ciais que detêm o poder de ditar as finali-
dades da pesquisa científica, a finalidade
Cl ÊNCIA . E EXISTÊNCIA
Série RUMOS DA CULTURA MODERNA
vol. 20
Ficha catalográñca
_ (Preparada peloCentro de Catalogação-na-fonte do
SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ)
Pinto, Álvaro Vieira
P726c Ciência e existência: problemas ñlosóñcos da pes-
quisa científica. 2 ed. Rio de Janeiro, Paz e Terra,
1979.'
537p. 21cm (Pensamento crítico, v.7)
1. Ciência - Filosofia 2. Pesquisa I. Titulo II.
Título: Problemas ñlosóñcos da pesquisa cientifica
'
III. Série
CDD - 501
507.2
76-0565 CDU - 5.001
EDITORA PAZ E TERRA
Conselho Editorial:
Antonio Candido
Celso Furtado
Fernando Gasparian
Fernando Henrique Cardoso
ÁLVA RO VIEIRA PINTO
CIÊNCIA E EXISTÊNCIA
Problemas Filosóñcos da Pesquisa Científica
2' edição
Paz e Terra
Copyright © by Álvaro Vieira Pinto
Capa: Mario Roberto Córrêa da Silva
'
Direitos adquiridos pela
EDITORA PAZ E TERRA S.A.
Rua André Cavalcanti, 86
Fátima, Rio de Janeiro - RJ
Rua Carijós, 128
Lapa, São Paulo - SP
que se reserva a propriedade desta obra.
'
1979
Impresso no Brasil
Printed in Brazil
VI
VII
VIII
XII
XIII
XIV
Sumário
A necessidade dacompreensão filosófica da pesquisa cien-
tífica 1
A evolução do conhecimento. Os caracteres do conheci-
mento científico 11
Os dois caminhos daciência da lógica 61
A ciência como produto existencial das relações entre o
homem e o meio 77 ›
A historicidade da razão e a origem do conhecimento
metódico 97
Teoria da cultura 119
O conceito de finalidade na teoria da ciência 139
A logicidade do processo natural 157
A significação da lógica dialética 173
Os conceitos e as leis dialéticas. Caráter existencial do
pensamento dialético .197
V
O papel da prática e a concepção da pesquisa científica
como trabalho 217 .
Os condicionamentos materiais, culturais e sociais do tra-
balho científico 243
A criação da ciência e a situação existencial do trabalha-
dor científico 277
x
0 significado ideológico da pesquisa científica e a forma-
ção do pesquisador 299
Capítulos
XV O trabalho e a transformação das condições da existên-
cia 323
'
A consciência, a alienação do trabalho e o método cien
tífico 355
'
Conceitos usuais no método estatístico 397
Situação existencial e pesquisa científica 419
A definição da pesquisa científica 441
O significado dos instrumentos científicos e a interpreta-
ção dos resultados dapesquisa 461
Fundamentos sociais da consciência do pesquisador 477
.A ciência como processo histórico de domínio da natu-
reza pelo homem 517
Aos alunos 'do Centro Latino-Ame-
ricano de Demografia o Autor dedica a
presente obra com a mais viva expressão
de suas esperanças.
SANTIAGO - 1967
'xy' &Me.mea,m
.m 397
419 ,
0 presente trabalho foi escrito em San-
tiago do Chile durante o ano de 1967 no
cumprimento de um contrato concedido ao
Autor pelo Centro Latino-Americano de De-
mografia._ Nele estão contidos alguns dos
principais conceitos das aulas ministradas.
pelo Autor 'aos alunos do Curso Avançado
daquele órgão das Nações Unidas.
Esta edição brasileira reproduz o texto
do original entregue pelo Autor àquele im-
portante organismo especializado das Nações
Unidas. A publicação desta obra foi autoriza-
da pelo Centro Latino-Americano de Demo-
grafia.
Mam
suiça“ .a www 83mm
À Professora Carmen A. Miró, ilustre
Diretora do Centro Latino-Americano de De-
mografía, o Autor deseja deixar consignado
nestas linhas o seu agradecimento pelas ama-
bilidades recebidas durante sua estada naque-
le Centro de estudos.
CAPITULO I
A Necessidade
da CompreensãoFiloisófica
da Pesquisa'Científica
SUMÁRIO
A pesquisa científica como tema de reflexão 16-
gícn e filosófica. Necessidade da reflexão sobre 'a me-
todologia da pesquisa. Importância da formulação da
teoria da pesquisa científica. A exigência de forma-
ção da consciência do pesquisador.
A PESQUISA científica constitui um tema a cuja consideração
o homem de ciência, em geral, e o pesquisador, em particular, não
'podemdeixar de se dedicar. Qualquer que seja o campo de ativi-
dade a que o trabalhador científico se aplique, a reflexão sobre o
trabalho que executa, os fundamentos existenciais, os suportes so'-
ciais 'e as finalidades culturais que o explicam, o exame dos pro-
blemas epistemológicasque a penetração no desconhecido do mun-
do objetivo suscita, a determinação da origem, poder e limites da
capacidade perscrutadora da consciência, e tantas outras ques-
tões deste gênero, que se. referem ao processo da pesquisa cientí-
fica e da lógica da ciência, não podem ficar à parte do campo de
interesse intelectual do pesquisador, que precisa conhecer a natu-
reza do seu trabalho, porque, conforme mostraremos, este é cons-
titutivo da sua própria realidade individual. Neste ensaio aplicar-
nos-emos -a debater alguns aspectos de tais problemas. Nosso in'
3
tuito não é apresentar conclusões dogmáticas, que, a modo de sen-
tenças, são proferidas para que os outros delas tornem conhecimen-
to. Desejamos oferecer à consideração dos homens de ciência, da-
queles que efetivamente vivem a realização da pesquisa, principal-
mente os das novas gerações, que estão ainda formando sua cons-
çiência, os resultados de uma meditação que procura esclarecer-se
com a contribuição que a filosofia lhe pode prestar, e que se apóia
numa experiência pessoal passada de muitos anos de atividade de
pesquisador.
Grande parte dos homens de ciência profissionalmente esta-
belecidos que atualmente se dedicam à pesquisa, sobretudo em paí-
ses subdesenvolvidos como o nosso, ou porque não foram guia-
dos até o campo de seus estudos senão por uma vocação inicial-
mente indefinida, conforme corresponde ao estado amorfo e de-
sorganizado da instituição da ciência nessa condição histórica, ou
porque não chegaram a descobrir a importância da reflexão teó-
rica, filosófica sobreseu próprio trabalho e sua condição humana,
talvez se mostrem desatentos às observações e indicações que ten-
taremos apresentar nas páginas a seguir; mas, assim fazendo, estarão
'contribuindo para protelar o exame em profundidade do proble-
ma epistemolõgico,humano e social da pesquisa científica, com
prejudiciais/reflexossobre a evolução de nossa incipiente criação
cultural. Para o país que precisa libertar-se política, econômica e
culturalmente das peias do atraso e da servidão,a apropriação da
ciência, a possibilidade de fazê-la não apenas por si mas para si,
é condição vital para a superação da etapa da cultura reflexa, ve-
getativa, emprestada, imitativa, e a entrada em nova fase histórica
que' se caracterizará exatamente pela capacidade, adquirida pelo
homem, de tirar de si as idéias de que necessita para se compreen-
der a si próprio tal como é e para explorar o mundo que lhe per-
tence, em benefício 'fundamentalmente de si mesmo. A ciência só
pode tornar-se um instrumento de libertação do homem e do seu
mundo nacional se for compreendida por uma teoria filosófica que
a explique como atividade do ser humano pensante e revele o ple-
no significado da atitude de indagação em face da realidade na-
tural e social. Uma filosofia da pesquisa científica, que incorpora-
rá naturalmente toda a reflexão sobre a metodologia da inVestigação,
a lógica do raciocínio científico e a sociologia da ciência, é o pres-
suposto indispensável à formação da consciência do trabalhador
neste campo da cultura, tão indispensável quanto os conhecimen-
4
tos particulares técnicos de que deve estar munido para empreen-
der sua atividade. A reivindicação desta exigência de formação
teórica do pesquisador é a primeira, e talvez a mais importante
tese que desejamos defender nestas páginas. A satisfação dessa exi-
gência, claro está, só pode ser atendida por uma séria, cuidadosa
e profunda, embora condensada, preparação filosófica daqueles
que se dedicam à carreira da pesquisa, especialmenteos contin-
gentes jovens que mal estão despertando para a verdade do trabalho
a que pretendem generosamente dedicar sua existência.
Não poderemos esperar que a meditação aqui desenvolvida
seja frutífera se a conduzirmos sem uma orientação filosófica de-
finida, sem a procura de fundamentos racionais - o conhecimen-
to científico do mundo - e sem uma compreensão global que
toma o objeto de estudo na totalidade dos seus aspectos. A teoria
da investigação científica e a lógica da ciência não examinam o
objeto constituído pelo saber relativo à realidade do mundo no
imediatismo, na limitação em que inevitavelmente se apresenta na
prática de cada pesquisador, mas procura antes de tudo encontrar
o ângulo de visão que assegure desde o início a via correta para
alcançar o núcleo dos problemas postulados pelo conhecimento de
qualquer tema, fenômeno ou coisa particular, e o das totalidades_
de que a ciência se ocupa, e adquirir os meios de resolvê-los. Eis
porque cremos ser lícito dizer que mesmo o mais experimentado
e melhor dotado dos pesquisadOrescientíficos não deve confiar
unicamente na sua exclusiva experiência, mesmo quando esta lhe haja
permitido obter expressivos triunfos na descoberta de proprieda-
des dos corpos e de leis da natureza, para, apoiado apenas sobre
.estabase necessária, mas por si só insuficiente, permitir-se emi-
*tir opiniões gerais, inte/rpretativas, doutrinárias, ignorando ou me-
nosprezando o imenso esforço 'de esclarecimento racional que a
filosofia vem secularmente produzindo. Precisa aproveitar o ina-
preciável capital representado pela vivência direta da ação inves-
tigadora, a fim de submetê-lo ao influxo iluminador do pensamen-
to teórico que, unindo-se ao exercício da pesquisa, numa síntese
lógica superior, chegará então a compor ,a correta doutrina da
pesquisa científica. .
Com esta observação preliminar, desejamos deixar clara a
insuficiência da posição metodológica que privilegiasse a tal ponto
o hábito, a prática, o exercício profissional da pesquisa, que jul-
gasse dispensável o apelo à reflexão teórica, a busca de princípios
5
lógicos e de bases epistemológicaspara constituir ateoria 'da in-
vestigação, julgando que o simples fato de haver-se um sábio de-
dicado ao trabalho de descoberta, às vezes por uma vida inteira,
valendo-se das inspiraçõesdo bom senso, seja suficiente_ para qua-
lifica-lo a criar uma doutrina ou a pronunciar apreciações teóricas
a respeito do problema geral da pesquisa científica. Vemos, com
freqüência, sábios de alto mérito, alguns deles criadores de desco-
bertas de máxima ressonância na história contemporânea da ciên-
cia, principalmente no domínio da estrutura última da matéria ou
da constituição do Universo, ,se permitirem produzir obras em que,
sem a conveniente habilitação filosófica, opinam sobre o signifi-
cado, os limites e os métodos da pesquisa científica. Em tal caso,
as proposições expostas, em virtude da indiscutível autoridade dos
autores, são açatadas como respeitáveis contribuições à teoria da
ciência, e dão' motivo a prolongados debates. E evidente que se
deverá sempre levar a sério estas sugestões,partidas de quem tem
autoridade intelectual para oferece-las. Mas, não é menos verdade
que aos olhos do pensador, em quem uma formação filosófica
mais longa e apurada despertou um senso crítico mais exigente,
tais ensaios não deixam de suscitar objeções e, em certos casos,
até um gesto de generosa desculpa, quando verifica que persona-
lidades exponenciais no campo de determinada ciência, levadas
por uma inspiração ingênua, se expõem a emitir conceitos doutri-
nários que demonstram ausência de preparação filosófica, e não
fazem senão desnudar a natureza Cândida da consciência de que
procedem. Na posição oposta a esta encontramos os filósofos, es-
pecialmente os “lógicos”, pessoas que habitualmente vivem en-
clausuradas num mundo de pensamentos abstratas, tendo uma in-
formação de segunda ou terceira mão da autêntica produção que
a ciência está levando a cabo, e que, sem jamais haver permanecido
um dia sequer em um laboratório, sem se terem dedicado nunca ao
estudo aprofundado de qualquer disciplina científica, ousam escre-
ver ensaios filosóficos ou tratados de lógica em que, com perfeita
sem-cerimônia, e igualmente com plena candura de consciência, se
põem a dissertar sobre a pesquisa científica, seu valor e limites, a
ditar-lhe regras e sobre ela pontificar, tudo isso sem o mínimo sen-
timento de suas insuficiências pessoais, sua falta de contato com a
realidade do trabalho que pretendem criticar e regulamentar.
'
Há assim duas posições opostas, ambas fruto do mesmo tipo
de consciência individual, aquele a que chamamos ingênuo, aquele
que não reflete sobre os seus fundamentos objetivos, os condicio-
6
namentos das proposições que profere, as quais, portanto, são, na
verdade, um puro destilado cerebral, quase sempre obtido por via
da imaginação literária. -Ambas estas posições opostas, das quais
procedem concepções relativas à essência, métodos e fins da pes-
quisa científica, são características da consciência ingênua: de um
lado, a prática sem a teoria justa, de outro, a teoria sem a prática
indispensável. Não é preciso dizer que o resultado dessas aventu-
ras intelectuais revela-se sempre nocivo aos interesses da ciência,
que cada vez mais exige a aprofundada e veríceca compreensão
do trabalho de estudo da realidade, e deve dotar os que a ele se
dedicam, especialmente as gerações de jovens sábios, que apenas
estão dando os primeiros passos em sua nobilitante vocação, de
um entendimento eficaz e crítico do significado dos esforços em
que se empenham para aumentar o domínio do homem sôbre o
mundo mediante a posse do conhecimento racional.
Mas devemos acrescentar que, tão ingênua, e portanto preju-
dicial, quanto essas duas posiçõesfé também uma terceira, a que
julga dispensável todo esforço para constituir uma teoria da pes-.
quisa científica, julgando-a “coisa de filósofos”, na quase totalida-
de dos casos ignorantes da vida nos laboratórios, desocupados da
ação concreta e diuturna da indagação do mundo. Chegam mes-
mo os pregoeiros desse modo de pensar a lembrar que os numes
da criação científica em épocas de esplendor intelectual não se in-
quietavam com os problemas gerais suscitados pelo próprio tra-
balho cientifico, mas se dedicavam a coisa muito mais valiosa, a
fazê-lo. Consideram os partidários desta terceira posição que se'
trata de pura perda de tempo, de simples ociosidade intelectual,
discutir em caráterteórico, ou abstrato, conforme chamem, um
assunto que só tem interesse quando examinado pelo lado prático.
A #pesquisa científica enquanto objeto de discussões metodológicas
em nada melhora as possibilidades que venha a ter o-cientista de
descobrir novos dados da realidade. Jamais se viu, dizem, a ciên-
cia sair beneficiada dessas discussões acadêmicas, que pairam co-
mo divagações sobre o terreno sólido da análise de objetos defi-
nidos, materiais ou ideais, e nada têm a ver com o trabalho, às
Vezes obscuro, sempre duro e difícil, mas o único eficaz, que os
verdadeiros pesquisadores estãolevando a cabo, nos laboratórios,
bibliotecas e gabinetes. Enquanto os filósofos, os lógicos, os meto-
dologistas se ocupam deles, os cientistas não se ocupam destes últi-
mos, e não parece que sejam grandemente prejudicados com essa
atitude, pois se verifica que prosseguem nos estudos, confiando apea
7
nas nos métodos que a razão lhes vai indicando como naturalmen-
te úteis e dignos de confiança, e que a imaginação criadora lhes
sugere, em consonância com o objeto ou o próblema a cuja obser-
vação ou resolução se dedicam.
-
Temos o intuito de mostrar neste ensaio que as três atitudes
anteriormente assinaladas são, de acordo com o nosso modo de
pensar, ilegitimas e precisamser superadas para que o homem de
ciência alcance a plenitude do seu rendimento intelectual. Particu-
larmente em relação à última, não nos deteremos em refutá-la pois
basta lembrar os numerosos exemplos históricos, que comprovam
a identificação do pensador teórico com o pesquisador'prático na
figura de todos os fundadores da ciência moderna. Quando se su-
põe que os investigadores que passam a vida reclusos em seus la-
boratórios estão desvinculados de propósitos teóricos, não se preo-
cupam de questões lógicas nem de problemas gerais, incide-se num
grave erro, pois na verdade esses trabalhadores científicos, ainda'
que disso corn freqüência não tenham clara noção, são sempre movi-
dos por idéias universais, por princípios metódicos, por regras de
procedimento e de avaliação, que consciente ou inconscientemente
acatam e aplicam, por considerações abstratas, por categorias lógicas
que dirigem a' interpretação dos resultados que obtêm, e sobretudo
servem de fundamento para o projeto da própria investigação que
estão levando a cabo. A teoria não está ausente na obra dos pes-
quisadores, que aparentemente se despreocupam-. destas discussões
chamadas “especulativas”; o que está ausente é a consciência dela.
Nossa principal preocupação nas páginas que se seguem está
em mostrar a importância, a necessidade e a utilidade da forma-
ção da consciência do_ pesquisador, poisem qualquer terreno em
que aplique a atividade, o reconhecimento da existência de pro-
blemas teóricos emanados do trabalho a que se vota e a posse dos
instrumentos racionais necessários para compreendê-los e resol-
vê-los, serão' fatores de melhoria da capacidade profissional e de
maiores possibilidades de rendimento, medido este pela aquisição
de_novos conhecimentos concretos sobre o mundo físico, a socie-
dade e o próprio pensamento. Como_rejeitamos igualmente, por
julgá-las ingênuas, as duas primeiras atitudes a que aludimos - a
que divaga sem compreensão crítica, embora partindo de uma prá-
tica autêntica, e a que especula na completa ausência de efetiva
experiência da pesquisa - somos levados 'a fixar os dois pontos
seguintes, que nos servirão de apoios fundamentais para o desdo-
bramento das nossas considerações: em primeiro lugar, a certeza
8
de que é imprescindível ao cientista, e ao investigador em particular,
estar preparado para o seu trabalho pela posse de uma teoria ge-
ral da pesquisa científica; e em segundo lugar, a compreensão de
que tal teoria só pode ser elaborada validamente se encontrarmos
o ponto de partida, objetivamente seguro, que¡ sirva de origem
para uma cadeia de raciocínios indubitáveis que nos encaminhe no
desenvolvimento das proposições intermediárias, exigidas pela cons-
trução do saber científico, até as conclusões de âmbito universal.
No que se refere à segunda proposição, devemos desde logo de-
clarar que tal ponto de partida é encontrado na compreensão filo-
sófica .do significado do conhecimento humano - de sua fonte,
função, procedimentos e finalidades - e de seu efeito, que se
manifesta em duas grandes ordens de realizações: de um lado na
criação de um mundo de verdades, constituído de idéias abstratas,
reflexos legítimos da realidade, e de outro, na criação do próprio
ser do homem em geral, e do pesquisador, enquanto trabalhador,
em particular.
l
«imgeãwfmwángçm,
“
-í§§w;wata$;iíü~ií~í _ _ › V ¡,
*Wtñzñm ü www 'a' @Em
Ha ?storm não . :záwmfeggwm'uma
_Íj: “dewmmàyàam;ia
t“WammSaVya amami# . '
,
__
r
., pr›ís›.~em _
_
_. »mnbmmmm &a; t
awmsítàa-,dcimbaíhe
-
.
5
V.
w_
gâaimm. 4.3ng~'
›
_ mg ;ici
x2' ligarggãgâgâ;Íñüf .
'
@Mais @um'zé'
. 333333;-aar ;'-
v
CAPÍTULO II
A Evolução do Conhecimento.
Os Caracteres do Conhec1mento
Científico
SUMÁRIO
' 0 conhecimento. As etapas do processo de sua evo-
lução. O conhecimento como fator histórico. A “funda-
ção" do conhecimento. 0 conhecimento como fato so-
cial. A fase dos reflexos, a do saber e a da ciência. A
evolução do conhecimento no processo de hominíza-
ção. O conhecimento como domínio do mundo pelo.
ser vivo. O conhecimento reflexivo. A etapa suprema:
a ciência como conhecimento metódico. O ciclo do
conhecimento: as fases indutiva e dedutiva. Sua uni-
dade. Oposição ao modo formalista na apreciação do
r método. Traços distintivos da fase do conhecimento cien-
tífico. 9 surgimento da idéia. As idéias como bens de
produção e bens de consumo. A alienação da cons-
ciência e o comportamento do pesquisador. A lógica
formal e a dialética. Relações entre ambas. A impor-
tância da lógica utilizada pelo pesquisador para a cons-
trução da ciência.
.1
;
omàuue,
›./ l
'
.ms ::na ab mantem ob asqms aA .omamíóadnm C) 1
-:abnzà” ;à ,mhôszm mini amar). mrwmímmmv 0 .üãçuã g“
-ozçamlómoa mnamíasám:: O .umaíniwdmmaí; “Caia.
,
A A mis; @às .manaawhsasí
,I _amarrain ui) .05m
. ~. 'mm GMMmenmoo cimaüdnoa O
~ :stmxgm'wm'â .qyíxañmv-QàaamioadnmO
'
ab 0 »mamide em
~ 4Y@”M.% WMM' '
sn "mí'lxâméâ obom na
mhrmambmíàm ab mm :gb;comic
\
rima; ?íãriàbí@A .a _ ;à
1A PESQUISA científica e um aspecto, na verdade o momento
culminantehde um processo de extrema amplitude e complexidade
pelo qual o homem realiza sua suprema possibilidade existencial,
aquela, que dá conteúdo à sua essência de animal que conquistou
a racionalidade: a possibilidade de dominar a natureza, transfor-
má-la,_ adaptá-la às suas necessidades. Este processo chama-se “co-
nhecimento”. Estende-se dos primórdios daevolução biológica até as
formas mais altas da escala animal e em sua manifestação' superior
se revela pelo surgimento de idéias na consciência humana. Tais
idéias, na etapa mais elevada, multiplicam-se graças à execução da
.pesquisa científica, cuja finalidade última consiste em dotar a cons-
ciência de novas idéias, representativas de conteúdos até então ig-
noradOS da realidade exterior. Deste modo tem prosseguimento o
avanço sem fim do conhecimento humano. Não podemos discutir
o tema da pesquisa científica, indagar em que consiste, por que meios
13
racionais e em que circunstâncias sociais se realiza, e que objetivos
tem em vista, sem coloca-lo na perspectiva mais ampla possível,
em que necessariamente tem de figurar, a do conhecimento en-
quanto tal. Somente considerando a pesquisa e a interpretação da
realidade como um momento, embora o culminante, do processo
pelo qual a matéria se constitui num sistema vivo em evolução,
encontraremos o terreno firme em que assentar nosssas análises
e indagações, e de onde igualmente brotarão as idéias gerais, as
categorias lógicas, que nos permitirão abordar o problema gnosioló-
gico e resolvê-lo racionalmente. O mais funesto dos erros que po-
deríamos cometer na discussão do tema da pesquisa científica se-
ria isolar esta atividade do processoa que pertence e que a justi-
fica; seria considera-la à parte, tomando-a por efeito da iniciativa
individual, produto de uma vocação, feliz casualidade, enfim, as-
pecto parcial, delimitado e desraizado do processo contínuo e in-
cessante de conquista do conhecimento 'do mundo pelo homem, no
qual unicamente o ato indagador encontra explicação lógica e
existencial.
Nosso ângulo de visão dirige-se em sentido oposto. Mostra
que a pesquisa científica tem de ser interpretada desde o primeiro
momento com o emprego do conceito de totalidade, pois somente
a partir da compreensão lógica oferecida por esta categoria se che-
gará a criar a teoria que explica em todos os aspectos a atividade
investigadora do mundo. Mais tarde mostrar-se-á que o determi-
nismo causal último, que rege a concatenação de todos os fenô-
menos não sendo linear, formal mas contraditório e dialético, a
relação entre todo e parte ê íntercambiável por ação recíproca.
Qualquer ato definido de pesquisa de algum dado da realidade só
pode ser entendido como determinado pela totalidade do conhe-
cimento existente no momento; mas, por outro lado, precisamos
igualmente compreender que o todo do conhecimento presente em
cada época se constituiu pela acumulação destes atos singulares, que
são as distintas pesquisas da realidade empreendidas cada qual
num determinado instante, num. determinado lugar, por um inves-
tigador individual. Vista por este segundo ângulo, dialeticamente
oposto ao primeiro, e complementar dele, é a parte que determina
o todo. O conceito de totalidade assume importância primordial
porque, embora o todo se constitua a partir dos elementos, estes
só se explicam e se tornam possíveis pela precedênciada totalida-
de, que dá origem a cada novo ato de pesquisa. O pensamento
14
dialético explica-nos que não existe começo absoluto no tempo,
não tem sentido perguntar pelo que logicamente vem primeiro, se
o todo ou a parte, mas apenas indagar qual dessas categorias, na
análise epistemológica, e sob que ângulo particular, tem a prima-
zia. Não se pode falar de “começo absoluto”, mas apenas de pro-
cesso indefinido, sem início assinalável. O conceito de totalidade
adquire valor categorial porque é a expressão do processo na in-
tegridade do seu desenvolvimento até o momento atual. Embora
uma pesquisa realizada neste instante faça avançar o processo, e'
como tal, sob este ângulo, apareça como sendo relativamente a
criadora do processo, pois fornece os dados de que este sc vai
constituir, na perspectiva mais ampla e que assume caráter englo-
bante com respeito a cada ato particular, é o todo que domina
logicamenteas partes componentes. O processo, a que nos referimos
é o do conhecimento. Convém, pois, deixar estabelecido o conteú-
do da atividade biológica que entendemos por “conhecimento”.
É evidente desde logo não haver sentido em falar de um “con-
ceito” do conhecimento. Seria isso uma petição de princípio, pois
o conceito se .define como produto do conhecimento e a simples
possibilidade do enunciado do termo “conceito” só se verifica no
âmbito do conhecimento já realizado. Pareceria que nos encontra-
mos num beco sem saída, impossibilitados de falar logicamente do
conhecimento, por não podermos dar o adequado conceito dele.
Esta situação de embaraço¡é na verdade infundada, e resulta de,
inadvertidamente, havermos tomado urna atitude lógica de tipo_
formal ao nos propormos o exame do problema. Em função dessa
atitude efetivamente se constituiria um círculo vicioso que nos
impediria indagar do conhecimento sem supor aquilo que preten-
demos explicar. Esta conclusão não conduz a comprovar a impo-
tência ou a perplexidade do espírito diante da questão proposta,
mas apenas a verificar a inadequação do instrumento lógico com
que pretenderíamos resolvê-la. A lógica formal, pelas razões que
adiante procuraremos enunciar, não pode romper o círculo por
ela mesma criado porque não tem poder para explicar a totali-
dade do conhecimento. Com efeito, ela própria se reconhece uma
modalidade de conhecimento, ou seja o conhecimento das opera-
ções' intelectuais que produzem o conhecimento. Por conseguinte,
em face do problema gnosiológico somos levados a tomar uma
atitude lógica diferente, a de caráter dialético. Uma coisa é o co-
nhecimento como ato vivo de apreensão de um conteúdo da rea-
lidade, outra é a sua formulação mental. e depois verbal. A lógica,
15
que procura penetrar no íntimo da operação viva, e captá-la, fa-
zendo dela um dado da consciência, delimitado numa idéia, tem
igualmente por função ordenar a exposição verbal coerente da-
quilo que o pensamento apreende de si mesmo ao produzir os seus
elementos constituintes, as idéias que refletem a realidade dos ob-
jetos ou fenômenos a cujo exame se aplicou. Não tentaremos co-
meçar por “definir” o conhecimento, pois é a este que compete
produzir as definições, mas partiremos do fato existencial e social-
mente indubítável, da realidade do conhecimento. Não se trata
aqui de nada análogo a um cogita gnosiológico, semelhante às
noções desse tipo que constituíram as criações imaginativasde
vários ilustres filósofos, e que a nosso ver não passam de simples
jogo metafísico a que se prestam os elementos verbais do proble-
ma, quando submetidos às regras do formalismo lógico. O fato
do conhecimento, que tomamos por ponto de partida para a nos-
sa reflexão teórica, é o fato histórico do conhecimento, na sua
máxima amplitude, como manifestação concomitante ao desen-
volvimento da escala da evolução biológica. O conhecimento exis-
te desde que a organização da matéria começa a tomar o caráter
que a diferenciará, enquanto sistema vivo, do restante da natureza,
que permanecerá inerte. É um dado indisputável da ciência que a
matéria existe e sempre existiu em estado de transformação per-
manente, que uma parte dela se diferencia num processo partícu-
lar, que constitui a evolução biológica, geradora de todos os se-
res vivos.
Para compreender e fundamentar o conhecimento, não par-
timos, por conseguinte, de um conceito absoluto, como é o caso
do “eu penso”, simples idéia intemporal, metafísica e de garantia
unicamente subjetiva, relativa a um “eu” que não é ninguém, que
não está em situação no espaço e no tempo, mas do fato histórico,
social, objetivo de que “nós "pensamos”. Este “nós", colocado na
origem de toda a reflexão gnosiológica, é que assinala a entrada
no caminho da dialética, e o abandono das especulações metafísi-
cas. Achamo-nos aqui efetivamente no ponto de bifurcação dos
caminhos que levam de um lado à lógica formal, de outro, à dia-
lética. Com efeito, ao reconhecer na origem da teoria do conhe-
cimento um “nós”, um “cogitamus”, e não um “cogita”, partimos
de uma situação objetiva, de um dado concreto, de um fato social
que diretamente fixa e qualifica a posição de cada indivíduo sin-
gular num processo histórico, em vez de pendurar uma “longa
cadeia de razões” a uma idéia subjetiva, ainda que admitida como
16
evidente em grau absoluto e suposta confirmada por si mesma. O
“nós” a que me refiro inclui-me imediatamente num processo ob-
jetivo, exterior a rríim e a qualquer outro homem, cuja validade
não necessita confirmação para mim porque eu é que sou a confir-
mação dele. O meu existir como ser histórico, como indivíduo em
comunidade social, é conhecido .imediatamente por mim, e portanto
fornece o ponto de partida para o raciocínio que procura entender
o fenômeno do conhecimento, não por uma evidência interior
mas por uma experiência exterior, social, histórica, que supera
toda dúvida que pudesse levantar a respeito dela, ao me mostrar
que esse ato de duvidar não afeta em nada a vivência do meu
pertencimento ao processo que me envolve. O ato da dúvida sobre
o meu pensamento me criaria uma situação objetiva, social, ma-
terial, de conflito nas minhas relações de comunicação com os
outros homens, que me levaria a ter de pensar essa situação como
uma nova vivência existencial a mais. Não se diga que a percep-
ção da minha existência como ser que conhece emsociedade com
outros, iguais, é também apenas 'uma idéia minha, porque o ponto
de partida de que me valho é a comunicação recíproca dos co-
nhecentes vivendo em comunidade, e portanto engloba tanto a ex-
periência objetiva de “eu conhecer os outros” como a experiência,
que não posso deixar de ter, do “eu sou conhecido pelos outros”.
0 cogita autêntico, se quisermos conservar esta tradicional for-
mulação, depuran'do-a'dos seus elementos metafísícos ilusórios, nos
é dado pelo cagítamus, porque esta expressão inclui tanto o as-
pecto cogita, eu penso, como o aspecto cogitar, eu sou pensado.
Somente uma concepção metafísica, que isola o indivíduo do
processo histórico, e o faz contemplar-se introspectivamente, pode
propor o problema do conhecimentoem termos da procura de um
ponto de partida indubitável, que deva estar necessariamente si-
tuado no interior do espírito individual. Essa formulação é anti-
histórica, pois ignora que o conhecimento, pela sua condição de
fato social, está_ aí, se confirma a si mesmo pela sua função na
comunicação entre os homens, acompanha o processo de forma-
ção da _racionalidade humana e se identifica com ela nas suas
formas mais altas. Tanto assim_ é que o próprio fato de cogitar so-
bre a origem do conhecimento, de propor_ este tema como objeto
de reflexão, só é possivel quando se admite tacitamente que existe
uma prévia acumulação de conhecimento q'ue, sob forma de pro-
cesso,histórico do pensamento filosófico, levou certos individuos.
17
x
,3
em determinadas circunstâncias, a se proporem a si mesmos este
problema. v
A inserção do “cogita” na sua base histórica, desmascara a
ingenuidade essencial que o afeta. Como filósofo, posso ignorar o
processo histórico, e imaginar-me uma consciência original, pri-
mordial, que se propõe “fundar” o conhecimento, segundo dese-
jaram Descartes ou Husserl; mas o processo histórico não me
ignora; tanto assim é que a ele devo a formação cultural que me
induz, neste sentido a título de instrumento do processo objetivo,
a propor a' mim mesmo questões desta espécie, por motivos
que me parecem absolutos, originais, decorrentes espontânea e in-
condicionalmente da minha subjetividade, mas que têm na verda-
de explicação nas circunstâncias momentâneas e locais pelas quais
está passando o processo da realidade social a que pertenço. A
teoria do conhecimento tem de ser construída partindo não da
da subjetividade humana, que, como tal, já é um produto secun-
dário do processo da realidade, mas da objetividade absoluta, da
existência concreta do mundo em evolução permanente, da vi-
da, como dinamismo em expansão e complexidade crescente. Ora,
essa realidade em transformação contínua que se desenrola no
tempo é percebida pela 'consciência como história, processo em que
se enquadra uma' multiplicidade de seres semelhantes a mim, con-
vivendo comigo segundo relações definidas, ou seja, um processo
que tem de ser entendido desde o início na condição de social. 0
conhecimento é, em toda a sua escala, um modo de atuar do ra-
mo do processo da realidade material que se especializou em for-.
ma devida, e se constitui pela evolução biológica. Por isso o grau
que o conhecimento atinge em cada etapa dessa evolução, ou seja
nas diversas espécies que ;se sucedem, representa sempre a carac-
terística mais saliente da realidade de cada espécie, na posição
evolutiva em que se encontra. No homem, tal característica con-
siste em que o conhecimento só pode existir como fato social. Por
conseguinte, a formação da consciência em 'sua contradição com
o mundo não conduz ao estabelecimento de uma entidade subje-
tiva solitária, incomunicada com as demais, porém se faz exatamen-
te pelo surgimento da representação individual em conjunto com as
outras e em função de finalidades de ação próprias, fundamental-
mente, não do indivíduo particular que conhece, mas do grupo.
A consciência tem, desde o seu aparecimento, e por necessidade
do seu processo constitutivo, a dimensão social.
18
O indivíduo cria a própria consciência no âmbito de uma
consciência social que o envolve, o antecede, o condiciona. Não
é a consciência de ninguém em particular, nem pode ser hiposta-
tizada, conforme fazem certas escolas de filosofia sociológica, mas
é a representação consciente feita pela generalidade da comuni-
dade. Esta afirmativa é válida para todos os graus do conhecimen-
to, mas se evidencia com maior clareza, no grau máximo, no co-
nhecimento humano. Em todas as etapas superiores, o animal apre-
ende o mundo em que se encontra segundo formas e modos que
se vão desenvolvendo progressivamente, sempre no sentido do apa-
recimento e aperfeiçoamento de mecanismos de colaboração entre
os membros da espécie para o fim de conquistar melhor percep-
ção da realidade que lhes é acessível conhecer, dado o grau
de organização biológica, e particularmente do sistema nervoso,
que possuem. A princípio de modo ínfimo e parecendo cada indi-
víduo atuar desligado dos demais, vai-se aos poucos constituindo
a agremiação dos seres da mesma espécie para se reproduzirem e
conviveram congregados no espaço, com o fim de explorarem o
mundo que os envolve. O processo evolutivo vai se desdobrando
de acordo com as mutações favoráveis que levarão as espécies
existentes a transformações criadoras de seres de complexidadewg
perfeição maior. Em toda essa escala o conhecimento se revela
uma propriedade geral da matéria viva: a de- ser capaz de sensi-
bilizar-se pelas condições do ambiente e reagir a ele com respostas
que tendem a ser as mais apropriadas, as mais eficazes para con-
tornar a ação possivelmente prejudicial de algum elemento do meio.
A repetição da experiência de superar um' dado obstáculo leva à
formação de hábitos de resposta a tais situações, os quais, com o
correr do tempo, se incorporam por via de transmissão hereditá-
ria ao -patrimfmiode comportamentos de uma espécie, e irão de-
finir o grau de conhecimento a que chegou. Em todas as espécies,
e na acepção mais lata em que o podemos enquadrar, o conheci-
mento é o reflexo da realidade adquirido pela capacidade percepti-
va que o ser vivo, segundo sua possibilidade de organização vital,
está habilitado a fazer dessa realidade.
Esta caracterização é extremamente ampla, porém nada vaga.
Ampla, porque abrange a totalidade da escala dos seres vivos, que
precisamente se definem como tais por possuírem esta capacidade
de reagir cognoscitivamente ao meio. Ao mesmo tempo leva a
19
supor infinidade de graus
de claridade na representação do
mundo, mas tal diferenciação é apenas qualitativa, sendo, distin-
tiva para cada tipo de ser vivo que consideramos. Por outro
lado, o conhecimento é sempre social, no_ sentido em que se en-
contra no mesmo grau médio de desenvolvimento nos indivíduos
da mesma espécie, quer, como ocorre nas espéciesprimitivas, se
exerça pela exploração *individual do mundo, sem aparente con-
curso dos demais membros da espécie,quer, como vai ocorrendo
à medida que nos elevarnos na escala biológica, se torne patente a
necessidade do 'concurso do conjunto social para a consecução da
operação cognoscitiva. Sendo uma propriedade geral da matéria
viva, o conhecimento acompanha o processo evolutivo desta. Assim
como existe um número indefinido de espéciesem progressiva es-'
cala de perfeição, distribuídas em filos evolutivos, em cada um
dos quais se observam transições insensíveis ou diminutas, do
mesmo modo o conhecimento admite um número indefinido de
graus de perfeição na capacidade de refletir a realidade. Não é
possível mencionar senão uma divisão geral, extremamente dila-
tada, e por isso' incapaz de acompanhar a minúcia das transições
que constituem o conjunto do processo. Mas tal divisão é útil
porque nos permite estabelecer os principais segmentos do pro-
cesso evolutivo do conhecimento.
I
A largos traços distinguimos três grandesetapas no processo
do conhecimento: a) a fase dos reflexos primordiais; b) a do
saber; c) 4- da ciência. Em todas elas a natureza intrínseca
do conhecimento, a essêncialógica que exprime a sua realidade
como fato objetivo, é sempre a mesma: é a capacidade que o ser
vivo possui _derepresentar para si o estado do mundo em que se
encontra, de reagir a ele conforme a qualidade_das percepões que
tem, e sempre no sentido de superar os obstáculos, de solucionar
as situaçõesproblemáticas,que se opõem à finalidade, a princípio
mcõnsciente,de sua sobrevivência como indivíduo e como espécie,
mais tarde ,tornada plenamente consciente na representação do
mais desenvolvido dos seres vivos, o homem; As diferenciações
qualitativas são extremas. Em todos os casos o conhecimento en-
tende-se como um “reflexo” do mundo no ser vivo, situação uni-
versal, de que os reflexos encontrados nos seres superiores são
apenas as formas mais elevadas e visíveis. A teoria crítica do* co-
nhecimento deve portanto admitir estas duas premissas fun-
damentais: o conhecimento é uma propriedade geral da matéria or-
20
ganizada nas condições de matéria viva; e, ademais, em todas as
suas modalidades se trata sempre de uma reação da matéria viva
em face do mundo icircunstante. Isto supõe que num primeiro
momento há a percepção da situação objetiva, e em seguida a
reação a essa situação. Este duplo aspecto, antagônico e comple-
mentar, é que constitui o que a fisiologia das espécies superiores
chama de “arco reflexo”. O conhecimento resulta sempre da exis-
tência do ser vivo no mundo. Este traço, o “estar no mundo” é uni-
versal, pertence à base biológica da existência, sendo comum a
todos os animais e não uma característica do homem, no qual ape-
nas se apresenta com aspecto diferente pelo fato de nele se tornar
consciente. Por isso, o conhecimento supõe alguma forma de
apreensão do estado presente do mundo e de resposta a ele, pois
sem a reatividade da matéria organizada, esta seria incapaz de evo-
luir, isto é, de ascender em grau de complexidade na organização,
mas, ao contrário seria arrastada pelas leis das simples reações
químicas e pela exposição aos acasos dos choques mecânicos. A
matéria viva organiza-se por um movimento “contra a corrente”,
num sentido que aparentemente contradiz o segundo princípio da
termodinâmica, embora na verdade obedeça a ele, mas, de toda
maneira, aparece em forma de um movimento que parte de um es-
tado de menor complexidade para outro mais complexo, numa
evolução ascendente, que certos filósofos, aos quais faltou a visão
dialética e crítica, julgam só se explicar pela presença de uma
fOrça ou princípio transcendente capaz de acioná-la e dirigi-la. Se
o conhecimento está sempre representado pela capacidade de re-
fletir o mundo, portanto consiste em reflexos, a gama de comple-
r
_
xidade destese imensurável.
A primeira divisão que estabelecemos é a dos reflexos primor-
diaís. Este nome é pouco expressivo, serve apenas para distinguir
esta fase daquelas em que já se encontram formas superiores de
reflexos, as que possuem caráter de representação intelectual, e por
isso são chamadas a fase do saber e a da ciência. A primeira
etapa do conhecimento inclui toda a escala evolutiva da matéria
viva, desde_a forma ínfima de organização até o surgimento do
homem, excluindo a este no estado em que atingiu a sua constituição
orgânica atual, mas abrangendo as fases iniciais do processo de
hominização. É a fase em que o conhecimento se faz com ausência
de consciência e por isso abarca a quase totalidade do tempo de
evolução das espécies.A consciência aparece no período final, nos
21
primórdios biológica e cronologicamente irnprecisos,do_processo de
hominização, quando o animal humano começa a trabalhar sobre a
natureza, em um ato de conjugação social de esforços. Despontam
assim os primeiros momentos do processo que irá gerar' a cons-
ciência, a qual permanecerálongo tempo vinculada ao mundo, no
grau de circuito fechado, ã'é caráter mecânico, de estímulo-resposta,
no estado de simples reflexos incondicionados, que só aos poucos
se vão complicando e transformando em reflexos condicionados,
os quais, uma vez surgidos, iniciarão um processo próprio de dife-
renciação por complexidade crescente. Tratando-se de um curso
evolutivo contínuo, é impossível estabelecer limites defini-
d'os entre os diversos segmentos. Esta classificação serve apenas para
permitir a apreciação de conjunto de um movimento que se de-
senrolou no tempo biológico, e que se acha representado no pre-
sente pela simultaneidade das diferentes espécies de seres sobrevi-
ventes, manifestando tipos múltiplos de capacidade de refletir o
mundo. Vale ainda para orientar a compreensão do trânsito de
uma etapa a outra. 0 que importa é compreender que a consciên-
cia hurnana, que irá ser a fonte e o agente da criação científica,
inclui-se na continuidade de um processo natural, participa dos
traços essenciais que o definem, apenas se distinguindo pela com-
plexidade a que atingiu, sem necessitar reconhecer nenhuma origem
transcendental, estranha às forças que impulsionam a série das
transformações dos seres vivos. De ponta a ponta; o processo
do conhecimento é o desenvolvimento da capacidade, adquirida
exclusivamente pela matéria viva, de representar a situação do
mundo em que se encontra e de reagir a ela, em forma de ação
dirigida pela percepção, estabelecendo-se o circuito que a fisiologia
chama de “arco reflexo”, que constitui um modo superior de inte-
ração entr_e os componentes do universo. O conhecimento trans-
fere do estado de fato paraa esfera da representação, n'o grau em
que é biologicamente possível a cada animal, a característica dis-
tintiva de todo ser viVo, o seu “estar no mund ”. Antes do apa-
recimento da vida e do conhecimento não _existiao circuito reflexo,
apenas havia a possibilidade de efeitos mecânicos, físicos e quími-
cos entre as partes da matéria. O aparecimento da vida, como forma
organizada peculiar da matéria, e do conhecimento, como capaci-
dade de percepção e reação desta sobre a restante, constituem um
momento qualitativamente novo no processo cósmico. 0 conhe-
cimento identifica-se, assim, à vida e apenas se diversifica em con-
22
sónância com a progressiva complexidade que a matéria vai adqui-
rindo de se organizar em formas mais perfeitas, mais ricas de poten-
cialidade evolutiva, melhor adaptadas ao meio, no sentido de poder
tirar dele com mais _facilidade e rendimento os recursos com que
melhor subjugá-lo. O conhecimento, ao surgir, inaugura um novo
campo de leis da realidade, que se superpõem às de ordem mecâniq
ca, física e química, e destas se vale sem as derrogar, mas incorpo-
rando-as para os fins específicos dessa atividade superior. Q pro-
cesso da' evolução biológica é o processo de sujeição da matéria
inerte pela vida. Todo ser vivo em alguma medida domina o meio
em que se encontra. somente em virtude de exercer essa facul-
dade se define como vivo, e efetivamente se conserva, tanto no pe-
ríodo de sua duração individual, quanto na capacidade evolutiva
da espécie a que pertence. Mas a condição indispensável para rea-
lizar o domínio da natureza, que todo ser vivo tem de exercer sob
pena de deixar de existir, seja individualmente seja como espécie,
é que o ser vivo conheça o mundo, tomada a expressão no sentido
latíssimo em que nos permitimos usá-la. A matéria viva, ao apreene
der o mundo, mesmo nas formas mais incipientes desse processo,
ínterioriza-o, apossa-se dele, ainda que com o caráter de manifes-
tações biológicas extremamente rudimentares. Isto significa que
inverte a relação pela qual é definida a matéria inerte,.que apenas
é do mundo, pertence a ele e o segue passivamente nas transforma-
ções mecânicas, físicas e químicas que nele têm lugar. A matéria
viva, ao contrário, continuandoa pertencer ao mundo pela sua rea-
lidade fundamental, torna-se capaz, sob certo aspecto - e nisto
consiste precisamente o conhecimento - de fazer o mundo ser dela.
Em vez de permanecer como um ser que apenas é do mundo, trans-
forma-se em um ser capaz de fazer o mundo ser dele. Por ínfima
que seja a Organização da matéria viva, o que sempre a caracte-
rizaé de alguma maneira dominar o mundo, inverter, mediante o
conhecimento, a relação de pertencimento, tomar o mundo por
objeto da sua ação, isto é, estabelecer a diferenciação ontológica,
posteriormentetransferida para o terreno lógico, entre a condição
de objeto e a de sujeito. A condição para isso está em que, mesmo
nos graus inferiores, tenha se tornado um sujeito em face do
mundo. A diferenciação entre a condição de objeto e a de sujei-
to tem, pois, fundamento biológico e se irá manifestar quando os
organismos recém-aparecidos começarem a ser capazes de produ-
zir em si o reflexo da realidade, tornando-se habilitados a conhe-
cer o mundo.
23
Esta capacidade distribui-se em graus diferenciados. Embora
formando um processo contínuo, podemos distribui-los do modo
seguinte. Na origem, na fase em que se bifurca o processo cósmi-
co e começa a se delinear a esfera biológica, encontramos o grau
absolutamente elementar do conhecimento, representaçãototald
mente inconsciente da realidade, reduzida apenas a reações que
se revelam úteis ao ser vivo, em resposta a estímulos primários. E
a fase dos tropismos, e se encontra em vegetais e 'animais inferio-
res, monoceltúares e pluricelulares, ou em partes de estruturas bio-
lógicas complexas, por exemplo, nas raízes ou nas fólhas dos vege-
tais. O conhecimento consiste aqui na capacidade de resposta fa-
vorável a estímulos representados por forças físicas, como a gravi-
dade, a iluminação solar, a) direção do campo elétrico. As reações
que a matéria viva apresenta indicam já ser capaz de perceber in-
fluências do meio ou as modificações que nela ocorrem, e de res-
ponder a elas, mas ainda por respostas totalmente incondicionadas.
Numa segunda fase é lícito 'discernir a capacidade de ação mais
complexa da matéria viva. Encontra-se nas espéciesanimais que já
se mostram habilitadas a possuir uma representação mais organi-
zada, embora inconsciente, devida à acumulação de percepções su-
ficiente para permitir reações mais prontas e eficazes, com o des-
pontar da capacidade de escolha no modo de atuar. O animal
não dispõe ainda da capacidade de se dar finalidades, mas apenas
do poder de escolher entre dois atos igualmente possíveis,às vêzes
opostos, qual o mais conveniente. Há claramente certa acumula-
ção da experiência vivida na existência individual, o que se revela
pelo aparecimento das formas mais simples de reflexos condicio-
__nados_.O animal encontra solução para problemas impostos pela
sua sobrevivência e adaptação ao meio, com o auxílio das percepções
anteriores, o que lhe confere um grau inicial de liberdade nos atos'
de procura do alimento, de defesa e de ataque, de preservação da
prole. No terceiro grau é possível distinguir um estado primário
do conhecimento, em que é visível o despertar da consciência. Es-
tamos aqui na fase de transição das estruturas animais superiores,
antropomórficas, para os degraus iniciais do processo de homini-
zação. Esta fase não pode ser delimitada com precisão, nem no
tempo, nem nas propriedades que a caracterizam, mas é distinguível
em suas linhas gerais na totalidade do processo, e necessária, como
elo entre as formas superiores da animalidade pré-hominídia e as
que se revelarão com o caráter de manifestações iniciais do ser que
será futuramente o homem. Instala-se agora definitivamente a
24
consciência, porém com caráter não reflexivo. A complexidade do
sistema nervoso cerebral permite a formação de representações a
que se deve conceder a nota de subjetivas, mas estas não alcançam
a idealidade, a abstratividade que as torne independentes das coisas
a que se referem e“capazesde subsistir por si, na condição de idéia.
A representação é ainda parte integrante da situação constituída em
conjunto pelo animal hominizado e pela coisa em presença da
qual se encontra. Não há ainda a possibilidade da representação
destacar-se da coisa individual, presente aqui e agora, e adquirir o
estado de idéia abstrata, universal, válida como expressão da tota-
lidade de seres semelhantes, de uma classe de objetos. Apenas
existe a possibilidade de um reflexo subjetivo ligado inseparavel-
mente ao objeto que no momento' o produz, e que portanto forma
com ele uma só unidade gnosiológica. Aos poucos esta fase trans-
sita para a seguinte, pois a repetição da percepção de objetos se-
melhantes termina por engendrar o poder de unificar tais repre-
sentações, dando como resultado abstrair delas os traços comuns
que possuem, preparando, assim, o advento da noosfera, a que se
refere Teilhard de Chardin. Nesta etapa os reflexos condicionados
prosseguem no processo de seu desenvolvimento e ganham amplitu-
de e complicação maiores. Não parece conveniente falar-se por ora
na existência de “trabalho” nesta fase, mas é indubitável que se
preparam as condições para isso, pela complexidade e freqüência
crescente que vão adquirindo os reflexos condicionados, especial-
mente aqueles ligadosà alimentação e defesa. Estes comportamen-
tos indicam uma acumulação de experiências, que, embora não
chegando ao estado que dá origem à formação de verdadeiras idéias,
é suficiente para determinar maior liberdade de comportamento.
Uma quarta etapa do processo do conhecimento é aquela que -
se encontra nas formas pré-sapiens da evolução hominizadora.
Trata-se já então de indivíduos do gênero “homo”, e por isso com
uma capacidade cognoscitivaque, embora em linha seguidacom o
desenvolvimento anterior, sob o aspecto 'qualitativopode conside-
rar-se um salto na curva da evolução. Aparece com claridade, e
se afirma definitivamente, o mecanismo da ideação. Isto significa
que em presença de uma situação. concreta, o homem primitivo está
dotado de suficiente capacidade abstrativa para produzir idéas
gerais, que transcendem a situação, não estando mais ligadas ma-
terialmente ao objeto particular que as desperta. A representação
toma-se mais complexa, não apenas porque se abstratiza, se des-
taca da conexão direta com o objeto singular existente no momen-
25
to no campo perceptivo, mas porque surge a possibilidade da ,vín-
culação das idéias umas às outras, de modo a criar um “universo
do juízo”, totalmente subjetivo, onde as idéias estabelecem relações
definidas entre si, que serão depois, quando aparecer a consciência
desse fato, os elos lógicos que o pensamento discursivo irá utilizar.
Com o entrosamentodas idéias, aparece a capacidade dos reflexos
condicionados serem' determinados pelas próprias idéias adquiridas
anteriormente, o que dá à idéia um caráter distinto do que tinha
até então, deixando de ser simples sinal subjetivo da coisa atual-
mente presente para se tomar .o estímulo interior capaz de engen-
drar, ou fazer lembrar, uma outra idéia.
A partir desta fase a idéia paSsa a um degrau mais alto -no
seu prócesso,pois deixa de ser obrigatoriamente apenas sinal 'da
coisa para adquirir a qualidade superior de sinal de outra idéia.
Este trânsito estabelece um tipo qualitativamente novo de capa-
cidade representativa da realidade. Surge o poder de associação das
idéias e de formação. dos procedimentos lógicos complexos, indu-
tivos e dedutivos, nos quais as idéias funcionam com relativa in-
dependência daspercepções imediatas e atuais, criando-se a partir
daí o que se pode chamar “universo do pensamento”. Ao mesmo
tempo, operam-se as modificações orgânicas concomitantes a este
desenvolvimento hominídio, principalmentea libertação dos membros
anteriores da obrigação de apoiar a marcha, o que os torna dis-
poníveis para se exercitarem a executar a finura das coordenações
musculares que permitirão o trabalho manual, fonte de todo o pro-
cesso de pesquisa das propriedades e leis das coisas, e a especiali-
zação dos órgãos da fonação, propiciando o surgimento da lingua-
gem articulada. Todo este conjunto de transformações orgânicas
e psíquicas mostra que o animal humano está se preparando para
passar ao estado reflexivo, por efeito da complexidade crescente
da organização do córtex cerebral. Esta mudanca de condição c us
conseqüências que acarreta no processode hominização, ao entrar
em uma etapa qualitativa inédita, são causadas pela nova forma em
que se' estabelecem as relações entre o homem e o mundo. De
agora em diante será possível dizer que o ser humano adquire a
sobrevivência pela ação deliberada sôbre o mundo, em função da
representação cada vez mais clara que dele vai adquirindo, ou seja,
que se mostra competente para trabalhar. Interfere no processo e
estabelece modos de atuação sobre o mundo que importam em
produzir, embora em estágio inicial, os meios de subsistência de
que necessita. Em vez de simplesmente utilizar os_ recursos que
26
acha à mão, começa a tomar medidas para fazê-los intencional-
mente aparecer, desde os mais simples, a coleta de frutos ou raízes,
que apesar de ser a mais elementar forma de produção, supõe en-
tretanto a decisão de buscar as áreas' mais favoráveis, mais abun-
dantes em tais bens. Estamos já aqui em presença de uma modali-
dade incipiente de trabalho. Assistimos ao nascimento da economia.
A capacidade de reagir ao mundo avança mais e manifesta-se na
produção intencional de instrumentos, que se desenvolvem num
processo próprio, cronologicamente abrangendo incontáveis milê-
nios, mas filosoficamente significando apenas um segmento mais
avançado do processo geral da evolução vital, na direção hominiza-
dora. Dentro dele representauma fase bem definida aquela em
que o homem começa a operar instrumentalmente sobre o mundo.
A complexidade do instrumento, a partir do casual achado de uma
lasca de pedra até as descobertas sensacionais que se seguirão no
tempo, assim como a complicação crescente nas técnicas de sua
utilização, aumenta sempre e se exprime pelo domínio progressivo
e cada vez mais rendoso da natureza. E decisivo observar que con-
comitantemente com o processo de domínio cada vez maior' da na-
tureza, o homem se vai criando a si próprio, acelera o seu desen-
volvimento como espécie biológica, cuja característica é o poder de
produzir os bens de que necessita. O homem se hominiza ao hu-
manizar, pelo domínio, a natureza. Encontramos nessa fase, em-
bora não haja possibilidade de fixar-lhe os limites, as primeiras
manifestações do conhecimento reflexivo. Entretanto, este não é
ainda o traço dominante em tal fase, embora não esteja ausente,
ou melhor, esteja se fazendo, ao longo do processo de desenvol-
vimento da subjetividade, que se verifica correlativamente com o
desenvolvimento do trabalho, e condicionado por 'este na forma do
aparecimento e aperfeiçoamento das representações, que começam
a formar o mundo ideal da cultura, e dos instrumentos intencional-
mente inventados, cada vez mais eficazes, que constituirão o mundo
material da cultura. Esta fase vai dos primórdios da _hominização
até as economias elementares, correspondentes ao estado_ civiliza-
tório primitivo, manifestado nas técnicas da produção simples, a
domesticação dos animais e a agricultura incipiente.
'
A quinta fase do desenvolvimento do conhecimento pode ser
chamada de saber, e se caracteriza pelo conhecimento reflexivo.
É uma fase humana de alto progresso e abrange formas culturais
e civilizatórias grandemente avançadas, onde se encontram porten-
tosas realizações materiais e criações culturais, que permanecem
27
como marcos distintivos de momentos superiores no processo his-
tórico da hominização. Define-se pelo surgimento da autoconsciên-
cia. O homem toma consciência da sua racionalidade, reconhece
nela um traço distintivo, que o institui na 'qualidade de um ser,
um “reino” à parte no processo evolutivo, e cultiva-a intencional-
mente em sí, na sua formação individual, e na espécie, ao estabe-
lecer os modos de transmissão voluntária, socialmente organizada,
educacional, do conhecimento. 0 “saber” do animal transmite-se
por herança, é uma transmissão de caráter biológico; cada geração
lega à seguinte, no seu mapa gênica, o conjunto de conhecimentos
necessários e suficientes para enfrentar a conjuntura vital, o
mundo em que o 'animal tem de viver. O saber no homem se trans-
mite pela educação e por isso é uma transmissão de caráter social.
Para que a geração seguinte possa receber a carga de cultura de
que necessita para responder eficazmente aos desafios da reali-
dade faz-se preciso que a precedente organize socialmente o modo
de convivência entre as civilizações, de modo a possibilitar a trans-
ferência do legado representado pelo conhecimento. Com o saber
aparece a capacidade de refletir sobre si mesmo, de tomar a pró-
pria consciência, com todo seu conteúdo de idéias, imagens e arti-
culações abstratas explicativas da realidade, por objeto de obser-
vação e de estudo. Não representa contudo a- fase final, suprema,
do processo do desenvolvimento do conhecimento, porque, apesar
de existir já a autoconsciência do saber, é a fase em que o homem
apenas sabe que sabe, mas não sabe ainda como chegou a saber.
Por este último aspecto é que se distingue da fase final, aquela que
será propriamente a da ciência. Por enquanto, o saber é autocons-
ciente, mas não conseguiu tomar-se metódico na sua atividade ex-
pansiva, e por isso não configura ainda a ciência, no sentido pleno
do termo, mas aparece apenas como o seu estágio vestibular. A
aprendizagem não é mais individual, espontânea, por ensaios e
erros, sem acumulação e transmissão social, conforme fora em pe-
ríodosanteriores. porém se faz organizadamente, com a poupança
dos esforços pessoais,em virtude da descoberta e difusão das técni-
cas de transmissão direta, oral ou escrita, do conhecimento, entre
os indivíduos ou entre as gerações, o que supõe o caráter coletivo,
social, do conhecimento, agora constituído por progressiva acumula-
ção histórica.
E uma fase cultural superior, que se encontra não apenas no
passado da espécie mas igualmente no presente, como fundamento
da fase científica, final. Em toda sociedade, o momento do saber
28
precede logicamente o do conhecimento científico, mas se entrelaça
também com ele, de modo que mesmo nas condições sociais cultas
atuais os dois se interpenetram, embora pelas suas características
se distingam, como duas etapas do processo gnosiológico. No nível
do saber o homem organiza o conhecimento* em formas prelimina-
res, surgidas para atender a necessidades práticas imediatas, porém
não alcança o plano da organização metódica. Pratica observações
conscientes, en_saia_técnicas_'de atuação sobre a realidade, experimen-
ta em forma espontânea e confusa, cria as prírneiras explicações ra-
cionais do mundo, da sociedade e da existência, a princípio em ca-
ráter puramente mítico e religioso, e depois em forma de incipien-
tes interpretações científicas do universo. A espontaneidadedo pen-
samento, apoiado numa observação superficial, ou mesmo extensa,
porém privada de critérios exatos, movida quase sempre pela exclu-
siva curiosidade natural, até mesmo alguns ensaios incipientes de
experimentação bastam ao espírito científico nascente para entre-
gar-se a vôos de imaginação, que deram em resultado as primeiras
teorias cosmogônicas, a física dos antigos, as interpretações religio-
sas do processo histórico, e tantas outras criações germinais do co-
nhecimento, que apenas assinalam os primeiros passos da caminha-
da da razão na busca da verdade . Não devem ser repudiadas como in-
fantilidades, o que seria um julgamento ingênuo, mas entendidas
como os momentos iniciais, necessários, pelos quais passa a razão
na sua formação de si mesma, até alcançar a fase científica propria-
mente dita que, aliás, não está nem estará jamais concluída. O que
distingue o saber da ciência é que na primeira destas etapas falta
a intenção de organizar metodicamente o conhecimento, de proce-
der à descoberta da verdade de acordo corn um projeto e critérios
metódicos. Não há ainda a exigência de normas para a sistemati-
zação e a autocorreção do conhecimento. Predomina a audácia in-
telectual, o gênio livre e criador, que, fundado em alguns poucos
indícios objetivos, de observação ou de experiência, na meditação
sobre os fenômenos, inventa hipótesese teorias explicativas. Con-
tenta-se com essa obra da imaginação, que muitas vêzes alcança o
nível da genialidade, mas excepcionalmente a solidez lógica, somen-
te obtida pela reflexão metódica; Nesta fase o conhecimento se
mantém no estágio empírico, possui_apenas eficácia casual, im-
previsível, em construir explicações quase sempre indemonstráveis
ou não suscetíveis de comprovação, quando se trata de questões
concernentes aos fatos do mundo material, e permanece na depen-
dência da observação consuetudinán'a. Freqüentemente toma como
29
dado para a reflexão investigadora o que Spinoza chamava o “ouvir
dizer”, ou a apreensão imperfeita e não controlada de algum as-
pecto da realidade, e sobre ele se apóia. Em conseqüência,o pro-
cesso do conhecimento assume um crescimento desordenado, pois
fica ao sabor das preferências dos indivíduos exponenciais, que se
dedicam, por inclinação de espírito, a investigar a realidade e a
pensar o mundo e a sociedade de acordo com a inspiração que os
move, utilizando os escassos dados que uma transmissão literária
e escolar incipiente vai acumulando por procedimentos desprovidos
de garantias lógicas.
O conhecimento, que é uma propriedade da matéria viva, atin-
ge a forma máxima de perfeição quando, no homem, se eleva ao
plano da ciência. Esta se define como o saber metódico. 0 saber,
por si só, não implica a qualificação de metódico, e por isso pode
produzir resultados racionais que se incorporam à ciência, e mesmo
foram toda a produção científica de épocas passadas, mas não
basta hoje em tal condição para constituir a verdadeira realização
científica, porque esta alcançou agora um momento no processo da
autoconsciência a partir do qual a ciência se define em função 'do
seu crescimento por meio da aplicação do método. Ao se tornar
metódica, mudou de qualidade a natureza do conhecimento. O
aspecto principal desta mudança consiste em que o saber é intencio-
nalmente concebido para servir à transformação da realidade, e por
isso o cientista adquire a consciência da necessidade de representar
racionalmente, isto é, metodicamente, as articulações objetivas exis-
tentes entre as coisas;para efeito de dominar e utilizar os fenômenos
que têm lugar no mundo material. A ciência é a investigação metó-
dica, organizada, da realidade, para descobrir a essência dos seres e
dos fenômenos e as leis que os regem com o fim de aproveitar as
propriedades das coisas e dos processos naturais em benefício do ho-
mem. Sendo reflexo' da realidade no pensamento do homem --
reflexo que se tornou consciente dessa qualidade - a ciência
não é apenas auto-reflexiva no sentido de ser a captação do dado
eventual de que se ocupa, mas compreende que o seu modo de
proceder, o interesse que a determina a passar da investigação de
um objeto a outro, lhe é imposto pelas ligações causais e pelas re-
lações interiores entre as coisas. O conhecimento destas vai sendo
adquirido numa série de atos cognoscitivos, por acumulação racio-
nal, que é a própria construção da racionalidade humana, e tem
a característica de um processo, portanto um movimento submetido
a leis.
30
A consciência deste fato aparece pela primeira vez no estágio
científico do desenvolvimento do conhecimento. Só agora, com a
autopercepção do produto subjetivo - a-idéia e o seu correspon-
dente objetivo, a coisa - se torna possível ao homem compreen-
der-se a si mesmo como parte do processo universal de evolução
da realidade, 'ie portanto entenderque as leis do conhecimento são
parte da legalidade universal, que unifica e explica o desenrolar
da totalidade dos_acontecimentos. Até então, por falta de reflexão
metódica fundada numa compreensão dialética e total da realida-
de, o homem, ao se descobrir como ser conhecente, podia julgar-se
uma exceção na ordem da existência, um ente substancialmente
distinto dos demais que compõem o mundo objetivo, dotado de
uma capacidade exclusiva a que chama de “espírito”, de origem
inexplicável pelos simples poderes doentendimento natural. Agora,
ao compreender que o seu surgimento como ser pensante é um
fato determinado pelas leis do processo objetivo universal, que
depois se dedicará a investigar, é capaz de apreender subjetivamen-
te em forma racional mais perfeita a legalidade do processo material
porque inclui a sua própria capacidade de reflexão e de repre-
sentação das coisas entre os efeitos naturais d'esse proces-
so de organização progressiva da matéria viva, em obediência a
leis que não são organizadas pelaconsciência, mas ao contrário a
organizam.
4
Sendo processo, é histórico e progressivo, por essência. O co-
nhecimento científico de cada momento. constitui a premissa do
conhecimento científico do momento seguinte. Sendo metódico, é
adquirido voluntariamente e em função de regras para a exploração
da realidade objetiva, física e social, que condicionam a natureza
dos _resultados obtidos. Não derivam do capricho ou da inventiva de
quem as concebe, e sim refletem as articulações processuais entre
as idéias, _as quais por sua vez reproduzem as correlações entre as
coisas e os fenômenos em sua existência própria e independente
da consciência. As regras do método indicam ainda o modo se-
gundo o qual se deve operar experimentalmente sôbre o mundo
com o propósito de investiga-lo e desentranhar dele seus conteúdos
inteligíveis. Ao nível da consciência científica toma-se clara uma
conceituação que em etapas inferiores se mostra freqüentemente
confusa: a distinção entre o saber científico e a criação imaginati-
va, especialmente artística. A realidade, ao se refletir no pensamento
do homem, dota-o de idéias e vai engendrando o mundo da subje-
tividade. Duas grandes regiões começarão a se então: a
31
ñ
das relações entre as idéias que respeitam, isto é, refletem fielmente',
a concatenação existente entre' as coisas, e a das relações que a
razão, que assim se vai formando, estabelece livremente entre as
representações, as imagens e os conceitos. Esta segunda espécie de
relações é organizada pela força da fantasia, pelo poder de que a
consciência vai sendo dotadade combinar as representações subje-
tivas, intencionalmente operando desligada da referência à origem
de tais representações. A fantasia criadora da arte, em todas as
suas manifestações, significa a possibilidade que o espírito possui
de proceder à ligação entre as idéias sem ter de respeitara verdade
das conexões objetivas a que se referem. É uma demonstração da
superioridade do pensamento humano, a prova de haveradquirido
o poder de relativa independência quanto ao mundo exterior no
processamento das suas' operações interiores, que lhe abre um cam-
po infinito de realizações qualitativamente originais. Os produtos
da criação artística são a forma assumidapela autoconsciência, que
o homem tem, da relativa independência do pensamento no ato de
associação das idéias, que se exprime, entre outras maneiras, pela_
outorga de finalidades às idéias, desligando-as da sua primitiva
*função utilitária, que implicava na predeterminação dos fins a que
serviam. Deste modo, a racionalidade, característica dístintiva da
espécie humana, aparece dividida nas duas grandes esferas do co-
nhecimento: o representativo, vinculado à apreensão dos dados
objetivos; e o imaginativo, criador de livres associaçõesentre as
idéias, de que emana a obra de arte. Se nas 'formas extremas os
dois tipos de racionalidade aparecem perfeitamente distintos, as
duas esferas têm certa região em comum. É aquela em que se situa
a elaboração da experiência científica e na qual se revela o gênio
do pesquisador, que, por isso, tem profundas analogias com a criação
artística. O'hornem de ciência, chegando ao plano superior do co-
nhecimento em que se empenha por arrancar novos conteúdos in-
telígíveis do processo da realidade, elabora em idéias as experiên-
cias a que depois irá proceder na operação prática sobre os seres
ou os fenômenos. Antes de atuar sobre eles no âmbito do labora-
tório já concebeu a operação experimental no domínio da fantasia,
e mesmo calculouas probabilidades dos resultados que prevê serão
obtidos. Não se trata de especulação vaga mas do que se poderia
chamar o momento de genialidade, que é a antevisão da fecundida-
de de uma combinação de fenômenos, pelo simples fato de ter
concebido em idéias o curso provável do processo e o resultado ma-
terial que irá ser constatado.
\
32
O caráter metódico da ciência revela-se ainda na completação,
que se passa no plano do pensamento humano, do cicÍo perfeito
do conhecimento. “Referimo-nos à sucessão recíproca, à interpene-
tração das duas fases do processo: a indutiva (aferente, perceptiva,
ideativa, generalizadora, conceitual, sintética) e a dedutíva (efe-
rente, operatória, conclusiva, particularizadora, discursiva, analítica).
Não é o momento, nestas páginas introdutórias, de discorrer sobre
este tema capital da lógica e da metodologia das ciências. Mais
tarde serão feitasoutras Considerações. Parece-nos que a simples
sucessão dos qualificativos incluídos entre parênteses, após a refe-
rência a cada uma das fases do ciclo do conhecimento, dá-nos uma
noção de como se distinguem 1g¡ do outro, e ao mesmo tempo indi-
ca o caráter reciprocamente complementar das operações cognos-
citivas travadas entre um hemíciclo e outro. O que nos importa
agora deixar estabelecido é que o conhecimento se toma metódico,
e portanto científico, ao surgir a consciência desse processo cir-
cular, dialético, que irá fundar a ciência, a lógica e a possibilidade
de construir a teoria do método, a princípio em sua expressão mais
geral, e depois em seus modos particulares, funcionais, diversifica-
dos, de acordo com a espécie de objetos ou o campo de investiga-
ção da realidade a que se devem aplicar.
l
Na metodologia teórica discutem-se vários tipos particulares
de método. O que desejamos assentar desde logo é que por ora tra-
tamos apenas da essência do raciocínio metódico. Compreendemos
que esta essência consiste na possibilidade, que o espírito humano
conquista, de travar com o mundo objetivo um circuito de
relação que se distingue por possuir duas metades, complemen-
tares e contraditórias; a receptiva, que termina pela produ-
ção da idéia apartir da experiência, sempre limitada quanto ao
número das coisas a que se refere, encerrando-se com a formação
do universal abstrato, e será o semicírculo indutivo; 'e a atividade
operatória, que desce da idéia universal ao reconhecimento do par-
ticular a que ela se aplica, e se exprime na ação transformadora
exercida sobre ele, e por isso integra a parte dedutiva do ato uni-
tário do conhecimento. Esta divisão tem apenas caráter lógico, e
não existencial, pois no viver concreto o hOmem unifica os dois
momentos do processo, uma vez que não pode estar em presença
do mundo, das coisas, dos fenômenos sem que a intencionalidade
de sua consciência se volte para eles e os apreenda, constituindo, ao
final, idéias gerais do que existe em face dele. E ao mesmo tempo,
não pode permanecer imóvel, inoperante, depois que engendrou
33
em si a idéia universal, representativa da realidade, e sim é for-
çado a agir sobre o mundo, a modifica-lo, segundo finalidades, que
são o caráter peculiar de que se revestem certas idéias gerais que
adquiriu. Este círculo do conhecimento existe sempre, e tem lugar
como manifestação universal da matéria viva, capaz de sentir o
ambiente e de reagir a ele.' Desde que as espéciesanimais se cons-
tituíram, esse círculo, por ser definidor do conhecimento, variando
apenas em grau de organização e aperfeiçoamento, está presente.
Não é quando passamos ao plano da ciência que esse circuito se
constitui; apenas adquire aí caráter auto-reflexivo e se institucionali-
za em forma metódica. Por isso, não devemos concebê-lo como
específico do homem a não ser no grau de claridade com que se
evidencia neste ser. Tendo dito que o conhecimento é uma pro-
priedade conatural da matéria viva, vamos encontrar o circuito in-
dutivo-dedutivo em todas as etapas do processo que sumariamente
indicamos nas páginas anteriores. Esta observação é de capital im-
portância para nos evitar cair no' engano das exposições discursivas,
idealistas, que só concebem o raciocínio lógico na sua expressão
máxima, evidentemente aquela que só ocorre no animal mais ele-
vado, o homem. Tais concepções não têm a noção do caráter pro-
cessual, histórico-natural, genético, inerente à capacidade de co-
nhecer, caráter que obriga a autêntica metodologia da ciência a
conceber a lógica não como a descrição de um sistema abstrato de
operações mentais, mas como o desenvolvimento da capacidade do
ser vivo em se situar no mundo e superar, mediante reações fina-
listicamente organizadas, os obstáculos opostos à sua sobrevivência.
A mais nociva conseqüência da posição formalista está em
cerrar de início o caminho da compreensão dialética, evolutiva,
histórica da lógica, cegando-nos desde o primeiro momento para a
aceitação da racionalidade como processo biológico que se desen-
volve ao longo de toda a escala animal, culminando na autoconsciên-
cia, de que o homem é dotado. Por falta dessa visão, a capacidade
de compreensão fica bloqueada desde o primeiro passo no 'caminho
da interpretação lógica do problema e confinada à conceituação do
ponto de vista formal. Esta de ordinário leva o homem de ciência,
e os próprios lógicos de profissão, a nem sequer suspeitarem da exis-
tência do modo dialético de pensar, imensamente mais rico, pode-
roso e profundo como instrumento de descoberta e interpretação
da realidade. Se aceitamos, pelo contrário, a posição evolutiva,
somos levados a admitir que todas as operações lógicas encontradas
em estado de máximo desenvolvimento, discriminação e autocom-
34
preensão no homem, devem existir também, apenas em graus menos
perfeitos, nos membros inferiores da escala zoológica, ou mesmo
simplesmente vital. Será, pois, um traço inicial da atitude lógica
crítica, este reconhecimento, que nos levará, -em continuação, ao re-
finamento das análises dos processos cognoscitivos, que serão apa-
nágio do pensar dialético. Fica excluída, nesta perspectiva interpre-
tativa, a presunção de que as operações lógicas pertençam exclusi-
vamente ao homem e que este_as possua por direito divino. 0 que
parece razoável aceitar é que nêle se acham em grau de máxima
claridade. Esta concepção servirá de incentivo para que o filósofo,
em vez de assumir a atitude formalísta e ingênua de “esPin'tualizar”
o pensamento e as suas operações, busque nas manifestações ele-
mentares da vida animal os primórdios, as modalidades incipientes
do que será no pensamento humano o complexo de relações lógicas
que se anunciam desde as etapas inferiores do processo biológico.
O fato fundamental da teoria do conhecimento é o circuito in-
dutivo-dedutivo. No homem este apresenta-se na forma mais aper-
feiçoada e autoconsciente, porque é a manifestação da “situação”
existencial única, exclusiva desse ser vivo na sua contradição ori-
ginal de produto da natureza e agente, relativamente autônomo,
capaz de modificá-la. A teoria gnosiológíca que visa em última
instância a descrever e explicar este circuito na inteligência huma-
na, deverá_considerar sua tarefa. própria a de acompanhar o pro-
cesso de surgimento e gradativo desenvolvimento dêle ao longo da
evolução animal. Não nos é possível proceder ao estudo deste par-
ticular, _que está situado fora do campo dos problemas que nos
propomos examinar. Basta-nos indicar sumariamente que na etapa
do conhecimento animal elementar, de modo, geral, a indução con-
siste na coleta, sempre inconsciente, de experiências, de vivências
de situações variadas a que o ser vivo está exposto, e na formação,
pelo acúmulo e fixação das situações vividas, de hábitos propícios,
adaptativos, que correspondem, para esse grau da escala, ao que
será na inteligência a generalização das idéias; O hábito é o análogo
do “conceito", é o seu esbôço no processo biológico de aquisição
da capacidade de generalização. Os hábitos, nas espéciesinferiores
formam-se por via da seleção espontânea de situações

Continue navegando