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Alvaro Vieira Pinto CIÊIÊICIA EXISTÊNCIA 1 problemas ñlosóñcos da pesquisacientíñca 1 ® Paz e Terra Ciência e Existência Hoje, a filosofia no Brasil tem em Álva¡ ro Vieira Pinto o seu principal represen- tante. Os dois grossos volumes de Cons- ciência e Realidade Nacional são, sem sombra de dúvida, o mais válido e o mais importante esforço de pensar -- em ter- mos de criação e originalidade - a vida brasileira e a situação atual do homem, a dramaticidade do ser brasileiro imerso nas opções da história contemporânea. Em Ciência e Existência, meditações de não menor importância e atualidade con- firmam o seu autor como definitivamente inscrito entre os grandes pensadores do mundo de agora. Em suas páginas, com uma sabedoria até então inédita em nossas obras de interpretação são analisados, pe-' sados, valorizados e definidos os vários ân- gulos do perguntar que o homem faz ao tempo e à natureza, assim como dos méto- dos e dos meios desse perguntar. Citare- mos alguns exemplos, em atenção à legí- tima curiosidade do possível leitor: a exi- gência de formação da consciência do pes- quisador, o conhecimento como fator his- tórico, as idéias como bens de produção e bens de consumo, a dialética na natureza e no espírito, a importância do conceito de totalidade, a finalidade social da lingua- gem, a contradição fundamental do pro- cesso de hominízação, a historicidade in- trínseca da ciência, a ingenuidade das con- cepções metafísicas, a função da sociedade na teoria do conhecimento, a cultura como produto do processo-produtivo, o proble- ma histórico da evolução da cultura, determinismo e finalidade, os grupos so- ciais que detêm o poder de ditar as finali- dades da pesquisa científica, a finalidade Cl ÊNCIA . E EXISTÊNCIA Série RUMOS DA CULTURA MODERNA vol. 20 Ficha catalográñca _ (Preparada peloCentro de Catalogação-na-fonte do SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ) Pinto, Álvaro Vieira P726c Ciência e existência: problemas ñlosóñcos da pes- quisa científica. 2 ed. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1979.' 537p. 21cm (Pensamento crítico, v.7) 1. Ciência - Filosofia 2. Pesquisa I. Titulo II. Título: Problemas ñlosóñcos da pesquisa cientifica ' III. Série CDD - 501 507.2 76-0565 CDU - 5.001 EDITORA PAZ E TERRA Conselho Editorial: Antonio Candido Celso Furtado Fernando Gasparian Fernando Henrique Cardoso ÁLVA RO VIEIRA PINTO CIÊNCIA E EXISTÊNCIA Problemas Filosóñcos da Pesquisa Científica 2' edição Paz e Terra Copyright © by Álvaro Vieira Pinto Capa: Mario Roberto Córrêa da Silva ' Direitos adquiridos pela EDITORA PAZ E TERRA S.A. Rua André Cavalcanti, 86 Fátima, Rio de Janeiro - RJ Rua Carijós, 128 Lapa, São Paulo - SP que se reserva a propriedade desta obra. ' 1979 Impresso no Brasil Printed in Brazil VI VII VIII XII XIII XIV Sumário A necessidade dacompreensão filosófica da pesquisa cien- tífica 1 A evolução do conhecimento. Os caracteres do conheci- mento científico 11 Os dois caminhos daciência da lógica 61 A ciência como produto existencial das relações entre o homem e o meio 77 › A historicidade da razão e a origem do conhecimento metódico 97 Teoria da cultura 119 O conceito de finalidade na teoria da ciência 139 A logicidade do processo natural 157 A significação da lógica dialética 173 Os conceitos e as leis dialéticas. Caráter existencial do pensamento dialético .197 V O papel da prática e a concepção da pesquisa científica como trabalho 217 . Os condicionamentos materiais, culturais e sociais do tra- balho científico 243 A criação da ciência e a situação existencial do trabalha- dor científico 277 x 0 significado ideológico da pesquisa científica e a forma- ção do pesquisador 299 Capítulos XV O trabalho e a transformação das condições da existên- cia 323 ' A consciência, a alienação do trabalho e o método cien tífico 355 ' Conceitos usuais no método estatístico 397 Situação existencial e pesquisa científica 419 A definição da pesquisa científica 441 O significado dos instrumentos científicos e a interpreta- ção dos resultados dapesquisa 461 Fundamentos sociais da consciência do pesquisador 477 .A ciência como processo histórico de domínio da natu- reza pelo homem 517 Aos alunos 'do Centro Latino-Ame- ricano de Demografia o Autor dedica a presente obra com a mais viva expressão de suas esperanças. SANTIAGO - 1967 'xy' &Me.mea,m .m 397 419 , 0 presente trabalho foi escrito em San- tiago do Chile durante o ano de 1967 no cumprimento de um contrato concedido ao Autor pelo Centro Latino-Americano de De- mografia._ Nele estão contidos alguns dos principais conceitos das aulas ministradas. pelo Autor 'aos alunos do Curso Avançado daquele órgão das Nações Unidas. Esta edição brasileira reproduz o texto do original entregue pelo Autor àquele im- portante organismo especializado das Nações Unidas. A publicação desta obra foi autoriza- da pelo Centro Latino-Americano de Demo- grafia. Mam suiça“ .a www 83mm À Professora Carmen A. Miró, ilustre Diretora do Centro Latino-Americano de De- mografía, o Autor deseja deixar consignado nestas linhas o seu agradecimento pelas ama- bilidades recebidas durante sua estada naque- le Centro de estudos. CAPITULO I A Necessidade da CompreensãoFiloisófica da Pesquisa'Científica SUMÁRIO A pesquisa científica como tema de reflexão 16- gícn e filosófica. Necessidade da reflexão sobre 'a me- todologia da pesquisa. Importância da formulação da teoria da pesquisa científica. A exigência de forma- ção da consciência do pesquisador. A PESQUISA científica constitui um tema a cuja consideração o homem de ciência, em geral, e o pesquisador, em particular, não 'podemdeixar de se dedicar. Qualquer que seja o campo de ativi- dade a que o trabalhador científico se aplique, a reflexão sobre o trabalho que executa, os fundamentos existenciais, os suportes so'- ciais 'e as finalidades culturais que o explicam, o exame dos pro- blemas epistemológicasque a penetração no desconhecido do mun- do objetivo suscita, a determinação da origem, poder e limites da capacidade perscrutadora da consciência, e tantas outras ques- tões deste gênero, que se. referem ao processo da pesquisa cientí- fica e da lógica da ciência, não podem ficar à parte do campo de interesse intelectual do pesquisador, que precisa conhecer a natu- reza do seu trabalho, porque, conforme mostraremos, este é cons- titutivo da sua própria realidade individual. Neste ensaio aplicar- nos-emos -a debater alguns aspectos de tais problemas. Nosso in' 3 tuito não é apresentar conclusões dogmáticas, que, a modo de sen- tenças, são proferidas para que os outros delas tornem conhecimen- to. Desejamos oferecer à consideração dos homens de ciência, da- queles que efetivamente vivem a realização da pesquisa, principal- mente os das novas gerações, que estão ainda formando sua cons- çiência, os resultados de uma meditação que procura esclarecer-se com a contribuição que a filosofia lhe pode prestar, e que se apóia numa experiência pessoal passada de muitos anos de atividade de pesquisador. Grande parte dos homens de ciência profissionalmente esta- belecidos que atualmente se dedicam à pesquisa, sobretudo em paí- ses subdesenvolvidos como o nosso, ou porque não foram guia- dos até o campo de seus estudos senão por uma vocação inicial- mente indefinida, conforme corresponde ao estado amorfo e de- sorganizado da instituição da ciência nessa condição histórica, ou porque não chegaram a descobrir a importância da reflexão teó- rica, filosófica sobreseu próprio trabalho e sua condição humana, talvez se mostrem desatentos às observações e indicações que ten- taremos apresentar nas páginas a seguir; mas, assim fazendo, estarão 'contribuindo para protelar o exame em profundidade do proble- ma epistemolõgico,humano e social da pesquisa científica, com prejudiciais/reflexossobre a evolução de nossa incipiente criação cultural. Para o país que precisa libertar-se política, econômica e culturalmente das peias do atraso e da servidão,a apropriação da ciência, a possibilidade de fazê-la não apenas por si mas para si, é condição vital para a superação da etapa da cultura reflexa, ve- getativa, emprestada, imitativa, e a entrada em nova fase histórica que' se caracterizará exatamente pela capacidade, adquirida pelo homem, de tirar de si as idéias de que necessita para se compreen- der a si próprio tal como é e para explorar o mundo que lhe per- tence, em benefício 'fundamentalmente de si mesmo. A ciência só pode tornar-se um instrumento de libertação do homem e do seu mundo nacional se for compreendida por uma teoria filosófica que a explique como atividade do ser humano pensante e revele o ple- no significado da atitude de indagação em face da realidade na- tural e social. Uma filosofia da pesquisa científica, que incorpora- rá naturalmente toda a reflexão sobre a metodologia da inVestigação, a lógica do raciocínio científico e a sociologia da ciência, é o pres- suposto indispensável à formação da consciência do trabalhador neste campo da cultura, tão indispensável quanto os conhecimen- 4 tos particulares técnicos de que deve estar munido para empreen- der sua atividade. A reivindicação desta exigência de formação teórica do pesquisador é a primeira, e talvez a mais importante tese que desejamos defender nestas páginas. A satisfação dessa exi- gência, claro está, só pode ser atendida por uma séria, cuidadosa e profunda, embora condensada, preparação filosófica daqueles que se dedicam à carreira da pesquisa, especialmenteos contin- gentes jovens que mal estão despertando para a verdade do trabalho a que pretendem generosamente dedicar sua existência. Não poderemos esperar que a meditação aqui desenvolvida seja frutífera se a conduzirmos sem uma orientação filosófica de- finida, sem a procura de fundamentos racionais - o conhecimen- to científico do mundo - e sem uma compreensão global que toma o objeto de estudo na totalidade dos seus aspectos. A teoria da investigação científica e a lógica da ciência não examinam o objeto constituído pelo saber relativo à realidade do mundo no imediatismo, na limitação em que inevitavelmente se apresenta na prática de cada pesquisador, mas procura antes de tudo encontrar o ângulo de visão que assegure desde o início a via correta para alcançar o núcleo dos problemas postulados pelo conhecimento de qualquer tema, fenômeno ou coisa particular, e o das totalidades_ de que a ciência se ocupa, e adquirir os meios de resolvê-los. Eis porque cremos ser lícito dizer que mesmo o mais experimentado e melhor dotado dos pesquisadOrescientíficos não deve confiar unicamente na sua exclusiva experiência, mesmo quando esta lhe haja permitido obter expressivos triunfos na descoberta de proprieda- des dos corpos e de leis da natureza, para, apoiado apenas sobre .estabase necessária, mas por si só insuficiente, permitir-se emi- *tir opiniões gerais, inte/rpretativas, doutrinárias, ignorando ou me- nosprezando o imenso esforço 'de esclarecimento racional que a filosofia vem secularmente produzindo. Precisa aproveitar o ina- preciável capital representado pela vivência direta da ação inves- tigadora, a fim de submetê-lo ao influxo iluminador do pensamen- to teórico que, unindo-se ao exercício da pesquisa, numa síntese lógica superior, chegará então a compor ,a correta doutrina da pesquisa científica. . Com esta observação preliminar, desejamos deixar clara a insuficiência da posição metodológica que privilegiasse a tal ponto o hábito, a prática, o exercício profissional da pesquisa, que jul- gasse dispensável o apelo à reflexão teórica, a busca de princípios 5 lógicos e de bases epistemológicaspara constituir ateoria 'da in- vestigação, julgando que o simples fato de haver-se um sábio de- dicado ao trabalho de descoberta, às vezes por uma vida inteira, valendo-se das inspiraçõesdo bom senso, seja suficiente_ para qua- lifica-lo a criar uma doutrina ou a pronunciar apreciações teóricas a respeito do problema geral da pesquisa científica. Vemos, com freqüência, sábios de alto mérito, alguns deles criadores de desco- bertas de máxima ressonância na história contemporânea da ciên- cia, principalmente no domínio da estrutura última da matéria ou da constituição do Universo, ,se permitirem produzir obras em que, sem a conveniente habilitação filosófica, opinam sobre o signifi- cado, os limites e os métodos da pesquisa científica. Em tal caso, as proposições expostas, em virtude da indiscutível autoridade dos autores, são açatadas como respeitáveis contribuições à teoria da ciência, e dão' motivo a prolongados debates. E evidente que se deverá sempre levar a sério estas sugestões,partidas de quem tem autoridade intelectual para oferece-las. Mas, não é menos verdade que aos olhos do pensador, em quem uma formação filosófica mais longa e apurada despertou um senso crítico mais exigente, tais ensaios não deixam de suscitar objeções e, em certos casos, até um gesto de generosa desculpa, quando verifica que persona- lidades exponenciais no campo de determinada ciência, levadas por uma inspiração ingênua, se expõem a emitir conceitos doutri- nários que demonstram ausência de preparação filosófica, e não fazem senão desnudar a natureza Cândida da consciência de que procedem. Na posição oposta a esta encontramos os filósofos, es- pecialmente os “lógicos”, pessoas que habitualmente vivem en- clausuradas num mundo de pensamentos abstratas, tendo uma in- formação de segunda ou terceira mão da autêntica produção que a ciência está levando a cabo, e que, sem jamais haver permanecido um dia sequer em um laboratório, sem se terem dedicado nunca ao estudo aprofundado de qualquer disciplina científica, ousam escre- ver ensaios filosóficos ou tratados de lógica em que, com perfeita sem-cerimônia, e igualmente com plena candura de consciência, se põem a dissertar sobre a pesquisa científica, seu valor e limites, a ditar-lhe regras e sobre ela pontificar, tudo isso sem o mínimo sen- timento de suas insuficiências pessoais, sua falta de contato com a realidade do trabalho que pretendem criticar e regulamentar. ' Há assim duas posições opostas, ambas fruto do mesmo tipo de consciência individual, aquele a que chamamos ingênuo, aquele que não reflete sobre os seus fundamentos objetivos, os condicio- 6 namentos das proposições que profere, as quais, portanto, são, na verdade, um puro destilado cerebral, quase sempre obtido por via da imaginação literária. -Ambas estas posições opostas, das quais procedem concepções relativas à essência, métodos e fins da pes- quisa científica, são características da consciência ingênua: de um lado, a prática sem a teoria justa, de outro, a teoria sem a prática indispensável. Não é preciso dizer que o resultado dessas aventu- ras intelectuais revela-se sempre nocivo aos interesses da ciência, que cada vez mais exige a aprofundada e veríceca compreensão do trabalho de estudo da realidade, e deve dotar os que a ele se dedicam, especialmente as gerações de jovens sábios, que apenas estão dando os primeiros passos em sua nobilitante vocação, de um entendimento eficaz e crítico do significado dos esforços em que se empenham para aumentar o domínio do homem sôbre o mundo mediante a posse do conhecimento racional. Mas devemos acrescentar que, tão ingênua, e portanto preju- dicial, quanto essas duas posiçõesfé também uma terceira, a que julga dispensável todo esforço para constituir uma teoria da pes-. quisa científica, julgando-a “coisa de filósofos”, na quase totalida- de dos casos ignorantes da vida nos laboratórios, desocupados da ação concreta e diuturna da indagação do mundo. Chegam mes- mo os pregoeiros desse modo de pensar a lembrar que os numes da criação científica em épocas de esplendor intelectual não se in- quietavam com os problemas gerais suscitados pelo próprio tra- balho cientifico, mas se dedicavam a coisa muito mais valiosa, a fazê-lo. Consideram os partidários desta terceira posição que se' trata de pura perda de tempo, de simples ociosidade intelectual, discutir em caráterteórico, ou abstrato, conforme chamem, um assunto que só tem interesse quando examinado pelo lado prático. A #pesquisa científica enquanto objeto de discussões metodológicas em nada melhora as possibilidades que venha a ter o-cientista de descobrir novos dados da realidade. Jamais se viu, dizem, a ciên- cia sair beneficiada dessas discussões acadêmicas, que pairam co- mo divagações sobre o terreno sólido da análise de objetos defi- nidos, materiais ou ideais, e nada têm a ver com o trabalho, às Vezes obscuro, sempre duro e difícil, mas o único eficaz, que os verdadeiros pesquisadores estãolevando a cabo, nos laboratórios, bibliotecas e gabinetes. Enquanto os filósofos, os lógicos, os meto- dologistas se ocupam deles, os cientistas não se ocupam destes últi- mos, e não parece que sejam grandemente prejudicados com essa atitude, pois se verifica que prosseguem nos estudos, confiando apea 7 nas nos métodos que a razão lhes vai indicando como naturalmen- te úteis e dignos de confiança, e que a imaginação criadora lhes sugere, em consonância com o objeto ou o próblema a cuja obser- vação ou resolução se dedicam. - Temos o intuito de mostrar neste ensaio que as três atitudes anteriormente assinaladas são, de acordo com o nosso modo de pensar, ilegitimas e precisamser superadas para que o homem de ciência alcance a plenitude do seu rendimento intelectual. Particu- larmente em relação à última, não nos deteremos em refutá-la pois basta lembrar os numerosos exemplos históricos, que comprovam a identificação do pensador teórico com o pesquisador'prático na figura de todos os fundadores da ciência moderna. Quando se su- põe que os investigadores que passam a vida reclusos em seus la- boratórios estão desvinculados de propósitos teóricos, não se preo- cupam de questões lógicas nem de problemas gerais, incide-se num grave erro, pois na verdade esses trabalhadores científicos, ainda' que disso corn freqüência não tenham clara noção, são sempre movi- dos por idéias universais, por princípios metódicos, por regras de procedimento e de avaliação, que consciente ou inconscientemente acatam e aplicam, por considerações abstratas, por categorias lógicas que dirigem a' interpretação dos resultados que obtêm, e sobretudo servem de fundamento para o projeto da própria investigação que estão levando a cabo. A teoria não está ausente na obra dos pes- quisadores, que aparentemente se despreocupam-. destas discussões chamadas “especulativas”; o que está ausente é a consciência dela. Nossa principal preocupação nas páginas que se seguem está em mostrar a importância, a necessidade e a utilidade da forma- ção da consciência do_ pesquisador, poisem qualquer terreno em que aplique a atividade, o reconhecimento da existência de pro- blemas teóricos emanados do trabalho a que se vota e a posse dos instrumentos racionais necessários para compreendê-los e resol- vê-los, serão' fatores de melhoria da capacidade profissional e de maiores possibilidades de rendimento, medido este pela aquisição de_novos conhecimentos concretos sobre o mundo físico, a socie- dade e o próprio pensamento. Como_rejeitamos igualmente, por julgá-las ingênuas, as duas primeiras atitudes a que aludimos - a que divaga sem compreensão crítica, embora partindo de uma prá- tica autêntica, e a que especula na completa ausência de efetiva experiência da pesquisa - somos levados 'a fixar os dois pontos seguintes, que nos servirão de apoios fundamentais para o desdo- bramento das nossas considerações: em primeiro lugar, a certeza 8 de que é imprescindível ao cientista, e ao investigador em particular, estar preparado para o seu trabalho pela posse de uma teoria ge- ral da pesquisa científica; e em segundo lugar, a compreensão de que tal teoria só pode ser elaborada validamente se encontrarmos o ponto de partida, objetivamente seguro, que¡ sirva de origem para uma cadeia de raciocínios indubitáveis que nos encaminhe no desenvolvimento das proposições intermediárias, exigidas pela cons- trução do saber científico, até as conclusões de âmbito universal. No que se refere à segunda proposição, devemos desde logo de- clarar que tal ponto de partida é encontrado na compreensão filo- sófica .do significado do conhecimento humano - de sua fonte, função, procedimentos e finalidades - e de seu efeito, que se manifesta em duas grandes ordens de realizações: de um lado na criação de um mundo de verdades, constituído de idéias abstratas, reflexos legítimos da realidade, e de outro, na criação do próprio ser do homem em geral, e do pesquisador, enquanto trabalhador, em particular. l «imgeãwfmwángçm, “ -í§§w;wata$;iíü~ií~í _ _ › V ¡, *Wtñzñm ü www 'a' @Em Ha ?storm não . :záwmfeggwm'uma _Íj: “dewmmàyàam;ia t“WammSaVya amami# . ' , __ r ., pr›ís›.~em _ _ _. »mnbmmmm &a; t awmsítàa-,dcimbaíhe - . 5 V. w_ gâaimm. 4.3ng~' › _ mg ;ici x2' ligarggãgâgâ;Íñüf . ' @Mais @um'zé' . 333333;-aar ;'- v CAPÍTULO II A Evolução do Conhecimento. Os Caracteres do Conhec1mento Científico SUMÁRIO ' 0 conhecimento. As etapas do processo de sua evo- lução. O conhecimento como fator histórico. A “funda- ção" do conhecimento. 0 conhecimento como fato so- cial. A fase dos reflexos, a do saber e a da ciência. A evolução do conhecimento no processo de hominíza- ção. O conhecimento como domínio do mundo pelo. ser vivo. O conhecimento reflexivo. A etapa suprema: a ciência como conhecimento metódico. O ciclo do conhecimento: as fases indutiva e dedutiva. Sua uni- dade. Oposição ao modo formalista na apreciação do r método. Traços distintivos da fase do conhecimento cien- tífico. 9 surgimento da idéia. As idéias como bens de produção e bens de consumo. A alienação da cons- ciência e o comportamento do pesquisador. A lógica formal e a dialética. Relações entre ambas. A impor- tância da lógica utilizada pelo pesquisador para a cons- trução da ciência. .1 ; omàuue, ›./ l ' .ms ::na ab mantem ob asqms aA .omamíóadnm C) 1 -:abnzà” ;à ,mhôszm mini amar). mrwmímmmv 0 .üãçuã g“ -ozçamlómoa mnamíasám:: O .umaíniwdmmaí; “Caia. , A A mis; @às .manaawhsasí ,I _amarrain ui) .05m . ~. 'mm GMMmenmoo cimaüdnoa O ~ :stmxgm'wm'â .qyíxañmv-QàaamioadnmO ' ab 0 »mamide em ~ 4Y@”M.% WMM' ' sn "mí'lxâméâ obom na mhrmambmíàm ab mm :gb;comic \ rima; ?íãriàbí@A .a _ ;à 1A PESQUISA científica e um aspecto, na verdade o momento culminantehde um processo de extrema amplitude e complexidade pelo qual o homem realiza sua suprema possibilidade existencial, aquela, que dá conteúdo à sua essência de animal que conquistou a racionalidade: a possibilidade de dominar a natureza, transfor- má-la,_ adaptá-la às suas necessidades. Este processo chama-se “co- nhecimento”. Estende-se dos primórdios daevolução biológica até as formas mais altas da escala animal e em sua manifestação' superior se revela pelo surgimento de idéias na consciência humana. Tais idéias, na etapa mais elevada, multiplicam-se graças à execução da .pesquisa científica, cuja finalidade última consiste em dotar a cons- ciência de novas idéias, representativas de conteúdos até então ig- noradOS da realidade exterior. Deste modo tem prosseguimento o avanço sem fim do conhecimento humano. Não podemos discutir o tema da pesquisa científica, indagar em que consiste, por que meios 13 racionais e em que circunstâncias sociais se realiza, e que objetivos tem em vista, sem coloca-lo na perspectiva mais ampla possível, em que necessariamente tem de figurar, a do conhecimento en- quanto tal. Somente considerando a pesquisa e a interpretação da realidade como um momento, embora o culminante, do processo pelo qual a matéria se constitui num sistema vivo em evolução, encontraremos o terreno firme em que assentar nosssas análises e indagações, e de onde igualmente brotarão as idéias gerais, as categorias lógicas, que nos permitirão abordar o problema gnosioló- gico e resolvê-lo racionalmente. O mais funesto dos erros que po- deríamos cometer na discussão do tema da pesquisa científica se- ria isolar esta atividade do processoa que pertence e que a justi- fica; seria considera-la à parte, tomando-a por efeito da iniciativa individual, produto de uma vocação, feliz casualidade, enfim, as- pecto parcial, delimitado e desraizado do processo contínuo e in- cessante de conquista do conhecimento 'do mundo pelo homem, no qual unicamente o ato indagador encontra explicação lógica e existencial. Nosso ângulo de visão dirige-se em sentido oposto. Mostra que a pesquisa científica tem de ser interpretada desde o primeiro momento com o emprego do conceito de totalidade, pois somente a partir da compreensão lógica oferecida por esta categoria se che- gará a criar a teoria que explica em todos os aspectos a atividade investigadora do mundo. Mais tarde mostrar-se-á que o determi- nismo causal último, que rege a concatenação de todos os fenô- menos não sendo linear, formal mas contraditório e dialético, a relação entre todo e parte ê íntercambiável por ação recíproca. Qualquer ato definido de pesquisa de algum dado da realidade só pode ser entendido como determinado pela totalidade do conhe- cimento existente no momento; mas, por outro lado, precisamos igualmente compreender que o todo do conhecimento presente em cada época se constituiu pela acumulação destes atos singulares, que são as distintas pesquisas da realidade empreendidas cada qual num determinado instante, num. determinado lugar, por um inves- tigador individual. Vista por este segundo ângulo, dialeticamente oposto ao primeiro, e complementar dele, é a parte que determina o todo. O conceito de totalidade assume importância primordial porque, embora o todo se constitua a partir dos elementos, estes só se explicam e se tornam possíveis pela precedênciada totalida- de, que dá origem a cada novo ato de pesquisa. O pensamento 14 dialético explica-nos que não existe começo absoluto no tempo, não tem sentido perguntar pelo que logicamente vem primeiro, se o todo ou a parte, mas apenas indagar qual dessas categorias, na análise epistemológica, e sob que ângulo particular, tem a prima- zia. Não se pode falar de “começo absoluto”, mas apenas de pro- cesso indefinido, sem início assinalável. O conceito de totalidade adquire valor categorial porque é a expressão do processo na in- tegridade do seu desenvolvimento até o momento atual. Embora uma pesquisa realizada neste instante faça avançar o processo, e' como tal, sob este ângulo, apareça como sendo relativamente a criadora do processo, pois fornece os dados de que este sc vai constituir, na perspectiva mais ampla e que assume caráter englo- bante com respeito a cada ato particular, é o todo que domina logicamenteas partes componentes. O processo, a que nos referimos é o do conhecimento. Convém, pois, deixar estabelecido o conteú- do da atividade biológica que entendemos por “conhecimento”. É evidente desde logo não haver sentido em falar de um “con- ceito” do conhecimento. Seria isso uma petição de princípio, pois o conceito se .define como produto do conhecimento e a simples possibilidade do enunciado do termo “conceito” só se verifica no âmbito do conhecimento já realizado. Pareceria que nos encontra- mos num beco sem saída, impossibilitados de falar logicamente do conhecimento, por não podermos dar o adequado conceito dele. Esta situação de embaraço¡é na verdade infundada, e resulta de, inadvertidamente, havermos tomado urna atitude lógica de tipo_ formal ao nos propormos o exame do problema. Em função dessa atitude efetivamente se constituiria um círculo vicioso que nos impediria indagar do conhecimento sem supor aquilo que preten- demos explicar. Esta conclusão não conduz a comprovar a impo- tência ou a perplexidade do espírito diante da questão proposta, mas apenas a verificar a inadequação do instrumento lógico com que pretenderíamos resolvê-la. A lógica formal, pelas razões que adiante procuraremos enunciar, não pode romper o círculo por ela mesma criado porque não tem poder para explicar a totali- dade do conhecimento. Com efeito, ela própria se reconhece uma modalidade de conhecimento, ou seja o conhecimento das opera- ções' intelectuais que produzem o conhecimento. Por conseguinte, em face do problema gnosiológico somos levados a tomar uma atitude lógica diferente, a de caráter dialético. Uma coisa é o co- nhecimento como ato vivo de apreensão de um conteúdo da rea- lidade, outra é a sua formulação mental. e depois verbal. A lógica, 15 que procura penetrar no íntimo da operação viva, e captá-la, fa- zendo dela um dado da consciência, delimitado numa idéia, tem igualmente por função ordenar a exposição verbal coerente da- quilo que o pensamento apreende de si mesmo ao produzir os seus elementos constituintes, as idéias que refletem a realidade dos ob- jetos ou fenômenos a cujo exame se aplicou. Não tentaremos co- meçar por “definir” o conhecimento, pois é a este que compete produzir as definições, mas partiremos do fato existencial e social- mente indubítável, da realidade do conhecimento. Não se trata aqui de nada análogo a um cogita gnosiológico, semelhante às noções desse tipo que constituíram as criações imaginativasde vários ilustres filósofos, e que a nosso ver não passam de simples jogo metafísico a que se prestam os elementos verbais do proble- ma, quando submetidos às regras do formalismo lógico. O fato do conhecimento, que tomamos por ponto de partida para a nos- sa reflexão teórica, é o fato histórico do conhecimento, na sua máxima amplitude, como manifestação concomitante ao desen- volvimento da escala da evolução biológica. O conhecimento exis- te desde que a organização da matéria começa a tomar o caráter que a diferenciará, enquanto sistema vivo, do restante da natureza, que permanecerá inerte. É um dado indisputável da ciência que a matéria existe e sempre existiu em estado de transformação per- manente, que uma parte dela se diferencia num processo partícu- lar, que constitui a evolução biológica, geradora de todos os se- res vivos. Para compreender e fundamentar o conhecimento, não par- timos, por conseguinte, de um conceito absoluto, como é o caso do “eu penso”, simples idéia intemporal, metafísica e de garantia unicamente subjetiva, relativa a um “eu” que não é ninguém, que não está em situação no espaço e no tempo, mas do fato histórico, social, objetivo de que “nós "pensamos”. Este “nós", colocado na origem de toda a reflexão gnosiológica, é que assinala a entrada no caminho da dialética, e o abandono das especulações metafísi- cas. Achamo-nos aqui efetivamente no ponto de bifurcação dos caminhos que levam de um lado à lógica formal, de outro, à dia- lética. Com efeito, ao reconhecer na origem da teoria do conhe- cimento um “nós”, um “cogitamus”, e não um “cogita”, partimos de uma situação objetiva, de um dado concreto, de um fato social que diretamente fixa e qualifica a posição de cada indivíduo sin- gular num processo histórico, em vez de pendurar uma “longa cadeia de razões” a uma idéia subjetiva, ainda que admitida como 16 evidente em grau absoluto e suposta confirmada por si mesma. O “nós” a que me refiro inclui-me imediatamente num processo ob- jetivo, exterior a rríim e a qualquer outro homem, cuja validade não necessita confirmação para mim porque eu é que sou a confir- mação dele. O meu existir como ser histórico, como indivíduo em comunidade social, é conhecido .imediatamente por mim, e portanto fornece o ponto de partida para o raciocínio que procura entender o fenômeno do conhecimento, não por uma evidência interior mas por uma experiência exterior, social, histórica, que supera toda dúvida que pudesse levantar a respeito dela, ao me mostrar que esse ato de duvidar não afeta em nada a vivência do meu pertencimento ao processo que me envolve. O ato da dúvida sobre o meu pensamento me criaria uma situação objetiva, social, ma- terial, de conflito nas minhas relações de comunicação com os outros homens, que me levaria a ter de pensar essa situação como uma nova vivência existencial a mais. Não se diga que a percep- ção da minha existência como ser que conhece emsociedade com outros, iguais, é também apenas 'uma idéia minha, porque o ponto de partida de que me valho é a comunicação recíproca dos co- nhecentes vivendo em comunidade, e portanto engloba tanto a ex- periência objetiva de “eu conhecer os outros” como a experiência, que não posso deixar de ter, do “eu sou conhecido pelos outros”. 0 cogita autêntico, se quisermos conservar esta tradicional for- mulação, depuran'do-a'dos seus elementos metafísícos ilusórios, nos é dado pelo cagítamus, porque esta expressão inclui tanto o as- pecto cogita, eu penso, como o aspecto cogitar, eu sou pensado. Somente uma concepção metafísica, que isola o indivíduo do processo histórico, e o faz contemplar-se introspectivamente, pode propor o problema do conhecimentoem termos da procura de um ponto de partida indubitável, que deva estar necessariamente si- tuado no interior do espírito individual. Essa formulação é anti- histórica, pois ignora que o conhecimento, pela sua condição de fato social, está_ aí, se confirma a si mesmo pela sua função na comunicação entre os homens, acompanha o processo de forma- ção da _racionalidade humana e se identifica com ela nas suas formas mais altas. Tanto assim_ é que o próprio fato de cogitar so- bre a origem do conhecimento, de propor_ este tema como objeto de reflexão, só é possivel quando se admite tacitamente que existe uma prévia acumulação de conhecimento q'ue, sob forma de pro- cesso,histórico do pensamento filosófico, levou certos individuos. 17 x ,3 em determinadas circunstâncias, a se proporem a si mesmos este problema. v A inserção do “cogita” na sua base histórica, desmascara a ingenuidade essencial que o afeta. Como filósofo, posso ignorar o processo histórico, e imaginar-me uma consciência original, pri- mordial, que se propõe “fundar” o conhecimento, segundo dese- jaram Descartes ou Husserl; mas o processo histórico não me ignora; tanto assim é que a ele devo a formação cultural que me induz, neste sentido a título de instrumento do processo objetivo, a propor a' mim mesmo questões desta espécie, por motivos que me parecem absolutos, originais, decorrentes espontânea e in- condicionalmente da minha subjetividade, mas que têm na verda- de explicação nas circunstâncias momentâneas e locais pelas quais está passando o processo da realidade social a que pertenço. A teoria do conhecimento tem de ser construída partindo não da da subjetividade humana, que, como tal, já é um produto secun- dário do processo da realidade, mas da objetividade absoluta, da existência concreta do mundo em evolução permanente, da vi- da, como dinamismo em expansão e complexidade crescente. Ora, essa realidade em transformação contínua que se desenrola no tempo é percebida pela 'consciência como história, processo em que se enquadra uma' multiplicidade de seres semelhantes a mim, con- vivendo comigo segundo relações definidas, ou seja, um processo que tem de ser entendido desde o início na condição de social. 0 conhecimento é, em toda a sua escala, um modo de atuar do ra- mo do processo da realidade material que se especializou em for-. ma devida, e se constitui pela evolução biológica. Por isso o grau que o conhecimento atinge em cada etapa dessa evolução, ou seja nas diversas espécies que ;se sucedem, representa sempre a carac- terística mais saliente da realidade de cada espécie, na posição evolutiva em que se encontra. No homem, tal característica con- siste em que o conhecimento só pode existir como fato social. Por conseguinte, a formação da consciência em 'sua contradição com o mundo não conduz ao estabelecimento de uma entidade subje- tiva solitária, incomunicada com as demais, porém se faz exatamen- te pelo surgimento da representação individual em conjunto com as outras e em função de finalidades de ação próprias, fundamental- mente, não do indivíduo particular que conhece, mas do grupo. A consciência tem, desde o seu aparecimento, e por necessidade do seu processo constitutivo, a dimensão social. 18 O indivíduo cria a própria consciência no âmbito de uma consciência social que o envolve, o antecede, o condiciona. Não é a consciência de ninguém em particular, nem pode ser hiposta- tizada, conforme fazem certas escolas de filosofia sociológica, mas é a representação consciente feita pela generalidade da comuni- dade. Esta afirmativa é válida para todos os graus do conhecimen- to, mas se evidencia com maior clareza, no grau máximo, no co- nhecimento humano. Em todas as etapas superiores, o animal apre- ende o mundo em que se encontra segundo formas e modos que se vão desenvolvendo progressivamente, sempre no sentido do apa- recimento e aperfeiçoamento de mecanismos de colaboração entre os membros da espécie para o fim de conquistar melhor percep- ção da realidade que lhes é acessível conhecer, dado o grau de organização biológica, e particularmente do sistema nervoso, que possuem. A princípio de modo ínfimo e parecendo cada indi- víduo atuar desligado dos demais, vai-se aos poucos constituindo a agremiação dos seres da mesma espécie para se reproduzirem e conviveram congregados no espaço, com o fim de explorarem o mundo que os envolve. O processo evolutivo vai se desdobrando de acordo com as mutações favoráveis que levarão as espécies existentes a transformações criadoras de seres de complexidadewg perfeição maior. Em toda essa escala o conhecimento se revela uma propriedade geral da matéria viva: a de- ser capaz de sensi- bilizar-se pelas condições do ambiente e reagir a ele com respostas que tendem a ser as mais apropriadas, as mais eficazes para con- tornar a ação possivelmente prejudicial de algum elemento do meio. A repetição da experiência de superar um' dado obstáculo leva à formação de hábitos de resposta a tais situações, os quais, com o correr do tempo, se incorporam por via de transmissão hereditá- ria ao -patrimfmiode comportamentos de uma espécie, e irão de- finir o grau de conhecimento a que chegou. Em todas as espécies, e na acepção mais lata em que o podemos enquadrar, o conheci- mento é o reflexo da realidade adquirido pela capacidade percepti- va que o ser vivo, segundo sua possibilidade de organização vital, está habilitado a fazer dessa realidade. Esta caracterização é extremamente ampla, porém nada vaga. Ampla, porque abrange a totalidade da escala dos seres vivos, que precisamente se definem como tais por possuírem esta capacidade de reagir cognoscitivamente ao meio. Ao mesmo tempo leva a 19 supor infinidade de graus de claridade na representação do mundo, mas tal diferenciação é apenas qualitativa, sendo, distin- tiva para cada tipo de ser vivo que consideramos. Por outro lado, o conhecimento é sempre social, no_ sentido em que se en- contra no mesmo grau médio de desenvolvimento nos indivíduos da mesma espécie, quer, como ocorre nas espéciesprimitivas, se exerça pela exploração *individual do mundo, sem aparente con- curso dos demais membros da espécie,quer, como vai ocorrendo à medida que nos elevarnos na escala biológica, se torne patente a necessidade do 'concurso do conjunto social para a consecução da operação cognoscitiva. Sendo uma propriedade geral da matéria viva, o conhecimento acompanha o processo evolutivo desta. Assim como existe um número indefinido de espéciesem progressiva es-' cala de perfeição, distribuídas em filos evolutivos, em cada um dos quais se observam transições insensíveis ou diminutas, do mesmo modo o conhecimento admite um número indefinido de graus de perfeição na capacidade de refletir a realidade. Não é possível mencionar senão uma divisão geral, extremamente dila- tada, e por isso' incapaz de acompanhar a minúcia das transições que constituem o conjunto do processo. Mas tal divisão é útil porque nos permite estabelecer os principais segmentos do pro- cesso evolutivo do conhecimento. I A largos traços distinguimos três grandesetapas no processo do conhecimento: a) a fase dos reflexos primordiais; b) a do saber; c) 4- da ciência. Em todas elas a natureza intrínseca do conhecimento, a essêncialógica que exprime a sua realidade como fato objetivo, é sempre a mesma: é a capacidade que o ser vivo possui _derepresentar para si o estado do mundo em que se encontra, de reagir a ele conforme a qualidade_das percepões que tem, e sempre no sentido de superar os obstáculos, de solucionar as situaçõesproblemáticas,que se opõem à finalidade, a princípio mcõnsciente,de sua sobrevivência como indivíduo e como espécie, mais tarde ,tornada plenamente consciente na representação do mais desenvolvido dos seres vivos, o homem; As diferenciações qualitativas são extremas. Em todos os casos o conhecimento en- tende-se como um “reflexo” do mundo no ser vivo, situação uni- versal, de que os reflexos encontrados nos seres superiores são apenas as formas mais elevadas e visíveis. A teoria crítica do* co- nhecimento deve portanto admitir estas duas premissas fun- damentais: o conhecimento é uma propriedade geral da matéria or- 20 ganizada nas condições de matéria viva; e, ademais, em todas as suas modalidades se trata sempre de uma reação da matéria viva em face do mundo icircunstante. Isto supõe que num primeiro momento há a percepção da situação objetiva, e em seguida a reação a essa situação. Este duplo aspecto, antagônico e comple- mentar, é que constitui o que a fisiologia das espécies superiores chama de “arco reflexo”. O conhecimento resulta sempre da exis- tência do ser vivo no mundo. Este traço, o “estar no mundo” é uni- versal, pertence à base biológica da existência, sendo comum a todos os animais e não uma característica do homem, no qual ape- nas se apresenta com aspecto diferente pelo fato de nele se tornar consciente. Por isso, o conhecimento supõe alguma forma de apreensão do estado presente do mundo e de resposta a ele, pois sem a reatividade da matéria organizada, esta seria incapaz de evo- luir, isto é, de ascender em grau de complexidade na organização, mas, ao contrário seria arrastada pelas leis das simples reações químicas e pela exposição aos acasos dos choques mecânicos. A matéria viva organiza-se por um movimento “contra a corrente”, num sentido que aparentemente contradiz o segundo princípio da termodinâmica, embora na verdade obedeça a ele, mas, de toda maneira, aparece em forma de um movimento que parte de um es- tado de menor complexidade para outro mais complexo, numa evolução ascendente, que certos filósofos, aos quais faltou a visão dialética e crítica, julgam só se explicar pela presença de uma fOrça ou princípio transcendente capaz de acioná-la e dirigi-la. Se o conhecimento está sempre representado pela capacidade de re- fletir o mundo, portanto consiste em reflexos, a gama de comple- r _ xidade destese imensurável. A primeira divisão que estabelecemos é a dos reflexos primor- diaís. Este nome é pouco expressivo, serve apenas para distinguir esta fase daquelas em que já se encontram formas superiores de reflexos, as que possuem caráter de representação intelectual, e por isso são chamadas a fase do saber e a da ciência. A primeira etapa do conhecimento inclui toda a escala evolutiva da matéria viva, desde_a forma ínfima de organização até o surgimento do homem, excluindo a este no estado em que atingiu a sua constituição orgânica atual, mas abrangendo as fases iniciais do processo de hominização. É a fase em que o conhecimento se faz com ausência de consciência e por isso abarca a quase totalidade do tempo de evolução das espécies.A consciência aparece no período final, nos 21 primórdios biológica e cronologicamente irnprecisos,do_processo de hominização, quando o animal humano começa a trabalhar sobre a natureza, em um ato de conjugação social de esforços. Despontam assim os primeiros momentos do processo que irá gerar' a cons- ciência, a qual permanecerálongo tempo vinculada ao mundo, no grau de circuito fechado, ã'é caráter mecânico, de estímulo-resposta, no estado de simples reflexos incondicionados, que só aos poucos se vão complicando e transformando em reflexos condicionados, os quais, uma vez surgidos, iniciarão um processo próprio de dife- renciação por complexidade crescente. Tratando-se de um curso evolutivo contínuo, é impossível estabelecer limites defini- d'os entre os diversos segmentos. Esta classificação serve apenas para permitir a apreciação de conjunto de um movimento que se de- senrolou no tempo biológico, e que se acha representado no pre- sente pela simultaneidade das diferentes espécies de seres sobrevi- ventes, manifestando tipos múltiplos de capacidade de refletir o mundo. Vale ainda para orientar a compreensão do trânsito de uma etapa a outra. 0 que importa é compreender que a consciên- cia hurnana, que irá ser a fonte e o agente da criação científica, inclui-se na continuidade de um processo natural, participa dos traços essenciais que o definem, apenas se distinguindo pela com- plexidade a que atingiu, sem necessitar reconhecer nenhuma origem transcendental, estranha às forças que impulsionam a série das transformações dos seres vivos. De ponta a ponta; o processo do conhecimento é o desenvolvimento da capacidade, adquirida exclusivamente pela matéria viva, de representar a situação do mundo em que se encontra e de reagir a ela, em forma de ação dirigida pela percepção, estabelecendo-se o circuito que a fisiologia chama de “arco reflexo”, que constitui um modo superior de inte- ração entr_e os componentes do universo. O conhecimento trans- fere do estado de fato paraa esfera da representação, n'o grau em que é biologicamente possível a cada animal, a característica dis- tintiva de todo ser viVo, o seu “estar no mund ”. Antes do apa- recimento da vida e do conhecimento não _existiao circuito reflexo, apenas havia a possibilidade de efeitos mecânicos, físicos e quími- cos entre as partes da matéria. O aparecimento da vida, como forma organizada peculiar da matéria, e do conhecimento, como capaci- dade de percepção e reação desta sobre a restante, constituem um momento qualitativamente novo no processo cósmico. 0 conhe- cimento identifica-se, assim, à vida e apenas se diversifica em con- 22 sónância com a progressiva complexidade que a matéria vai adqui- rindo de se organizar em formas mais perfeitas, mais ricas de poten- cialidade evolutiva, melhor adaptadas ao meio, no sentido de poder tirar dele com mais _facilidade e rendimento os recursos com que melhor subjugá-lo. O conhecimento, ao surgir, inaugura um novo campo de leis da realidade, que se superpõem às de ordem mecâniq ca, física e química, e destas se vale sem as derrogar, mas incorpo- rando-as para os fins específicos dessa atividade superior. Q pro- cesso da' evolução biológica é o processo de sujeição da matéria inerte pela vida. Todo ser vivo em alguma medida domina o meio em que se encontra. somente em virtude de exercer essa facul- dade se define como vivo, e efetivamente se conserva, tanto no pe- ríodo de sua duração individual, quanto na capacidade evolutiva da espécie a que pertence. Mas a condição indispensável para rea- lizar o domínio da natureza, que todo ser vivo tem de exercer sob pena de deixar de existir, seja individualmente seja como espécie, é que o ser vivo conheça o mundo, tomada a expressão no sentido latíssimo em que nos permitimos usá-la. A matéria viva, ao apreene der o mundo, mesmo nas formas mais incipientes desse processo, ínterioriza-o, apossa-se dele, ainda que com o caráter de manifes- tações biológicas extremamente rudimentares. Isto significa que inverte a relação pela qual é definida a matéria inerte,.que apenas é do mundo, pertence a ele e o segue passivamente nas transforma- ções mecânicas, físicas e químicas que nele têm lugar. A matéria viva, ao contrário, continuandoa pertencer ao mundo pela sua rea- lidade fundamental, torna-se capaz, sob certo aspecto - e nisto consiste precisamente o conhecimento - de fazer o mundo ser dela. Em vez de permanecer como um ser que apenas é do mundo, trans- forma-se em um ser capaz de fazer o mundo ser dele. Por ínfima que seja a Organização da matéria viva, o que sempre a caracte- rizaé de alguma maneira dominar o mundo, inverter, mediante o conhecimento, a relação de pertencimento, tomar o mundo por objeto da sua ação, isto é, estabelecer a diferenciação ontológica, posteriormentetransferida para o terreno lógico, entre a condição de objeto e a de sujeito. A condição para isso está em que, mesmo nos graus inferiores, tenha se tornado um sujeito em face do mundo. A diferenciação entre a condição de objeto e a de sujei- to tem, pois, fundamento biológico e se irá manifestar quando os organismos recém-aparecidos começarem a ser capazes de produ- zir em si o reflexo da realidade, tornando-se habilitados a conhe- cer o mundo. 23 Esta capacidade distribui-se em graus diferenciados. Embora formando um processo contínuo, podemos distribui-los do modo seguinte. Na origem, na fase em que se bifurca o processo cósmi- co e começa a se delinear a esfera biológica, encontramos o grau absolutamente elementar do conhecimento, representaçãototald mente inconsciente da realidade, reduzida apenas a reações que se revelam úteis ao ser vivo, em resposta a estímulos primários. E a fase dos tropismos, e se encontra em vegetais e 'animais inferio- res, monoceltúares e pluricelulares, ou em partes de estruturas bio- lógicas complexas, por exemplo, nas raízes ou nas fólhas dos vege- tais. O conhecimento consiste aqui na capacidade de resposta fa- vorável a estímulos representados por forças físicas, como a gravi- dade, a iluminação solar, a) direção do campo elétrico. As reações que a matéria viva apresenta indicam já ser capaz de perceber in- fluências do meio ou as modificações que nela ocorrem, e de res- ponder a elas, mas ainda por respostas totalmente incondicionadas. Numa segunda fase é lícito 'discernir a capacidade de ação mais complexa da matéria viva. Encontra-se nas espéciesanimais que já se mostram habilitadas a possuir uma representação mais organi- zada, embora inconsciente, devida à acumulação de percepções su- ficiente para permitir reações mais prontas e eficazes, com o des- pontar da capacidade de escolha no modo de atuar. O animal não dispõe ainda da capacidade de se dar finalidades, mas apenas do poder de escolher entre dois atos igualmente possíveis,às vêzes opostos, qual o mais conveniente. Há claramente certa acumula- ção da experiência vivida na existência individual, o que se revela pelo aparecimento das formas mais simples de reflexos condicio- __nados_.O animal encontra solução para problemas impostos pela sua sobrevivência e adaptação ao meio, com o auxílio das percepções anteriores, o que lhe confere um grau inicial de liberdade nos atos' de procura do alimento, de defesa e de ataque, de preservação da prole. No terceiro grau é possível distinguir um estado primário do conhecimento, em que é visível o despertar da consciência. Es- tamos aqui na fase de transição das estruturas animais superiores, antropomórficas, para os degraus iniciais do processo de homini- zação. Esta fase não pode ser delimitada com precisão, nem no tempo, nem nas propriedades que a caracterizam, mas é distinguível em suas linhas gerais na totalidade do processo, e necessária, como elo entre as formas superiores da animalidade pré-hominídia e as que se revelarão com o caráter de manifestações iniciais do ser que será futuramente o homem. Instala-se agora definitivamente a 24 consciência, porém com caráter não reflexivo. A complexidade do sistema nervoso cerebral permite a formação de representações a que se deve conceder a nota de subjetivas, mas estas não alcançam a idealidade, a abstratividade que as torne independentes das coisas a que se referem e“capazesde subsistir por si, na condição de idéia. A representação é ainda parte integrante da situação constituída em conjunto pelo animal hominizado e pela coisa em presença da qual se encontra. Não há ainda a possibilidade da representação destacar-se da coisa individual, presente aqui e agora, e adquirir o estado de idéia abstrata, universal, válida como expressão da tota- lidade de seres semelhantes, de uma classe de objetos. Apenas existe a possibilidade de um reflexo subjetivo ligado inseparavel- mente ao objeto que no momento' o produz, e que portanto forma com ele uma só unidade gnosiológica. Aos poucos esta fase trans- sita para a seguinte, pois a repetição da percepção de objetos se- melhantes termina por engendrar o poder de unificar tais repre- sentações, dando como resultado abstrair delas os traços comuns que possuem, preparando, assim, o advento da noosfera, a que se refere Teilhard de Chardin. Nesta etapa os reflexos condicionados prosseguem no processo de seu desenvolvimento e ganham amplitu- de e complicação maiores. Não parece conveniente falar-se por ora na existência de “trabalho” nesta fase, mas é indubitável que se preparam as condições para isso, pela complexidade e freqüência crescente que vão adquirindo os reflexos condicionados, especial- mente aqueles ligadosà alimentação e defesa. Estes comportamen- tos indicam uma acumulação de experiências, que, embora não chegando ao estado que dá origem à formação de verdadeiras idéias, é suficiente para determinar maior liberdade de comportamento. Uma quarta etapa do processo do conhecimento é aquela que - se encontra nas formas pré-sapiens da evolução hominizadora. Trata-se já então de indivíduos do gênero “homo”, e por isso com uma capacidade cognoscitivaque, embora em linha seguidacom o desenvolvimento anterior, sob o aspecto 'qualitativopode conside- rar-se um salto na curva da evolução. Aparece com claridade, e se afirma definitivamente, o mecanismo da ideação. Isto significa que em presença de uma situação. concreta, o homem primitivo está dotado de suficiente capacidade abstrativa para produzir idéas gerais, que transcendem a situação, não estando mais ligadas ma- terialmente ao objeto particular que as desperta. A representação toma-se mais complexa, não apenas porque se abstratiza, se des- taca da conexão direta com o objeto singular existente no momen- 25 to no campo perceptivo, mas porque surge a possibilidade da ,vín- culação das idéias umas às outras, de modo a criar um “universo do juízo”, totalmente subjetivo, onde as idéias estabelecem relações definidas entre si, que serão depois, quando aparecer a consciência desse fato, os elos lógicos que o pensamento discursivo irá utilizar. Com o entrosamentodas idéias, aparece a capacidade dos reflexos condicionados serem' determinados pelas próprias idéias adquiridas anteriormente, o que dá à idéia um caráter distinto do que tinha até então, deixando de ser simples sinal subjetivo da coisa atual- mente presente para se tomar .o estímulo interior capaz de engen- drar, ou fazer lembrar, uma outra idéia. A partir desta fase a idéia paSsa a um degrau mais alto -no seu prócesso,pois deixa de ser obrigatoriamente apenas sinal 'da coisa para adquirir a qualidade superior de sinal de outra idéia. Este trânsito estabelece um tipo qualitativamente novo de capa- cidade representativa da realidade. Surge o poder de associação das idéias e de formação. dos procedimentos lógicos complexos, indu- tivos e dedutivos, nos quais as idéias funcionam com relativa in- dependência daspercepções imediatas e atuais, criando-se a partir daí o que se pode chamar “universo do pensamento”. Ao mesmo tempo, operam-se as modificações orgânicas concomitantes a este desenvolvimento hominídio, principalmentea libertação dos membros anteriores da obrigação de apoiar a marcha, o que os torna dis- poníveis para se exercitarem a executar a finura das coordenações musculares que permitirão o trabalho manual, fonte de todo o pro- cesso de pesquisa das propriedades e leis das coisas, e a especiali- zação dos órgãos da fonação, propiciando o surgimento da lingua- gem articulada. Todo este conjunto de transformações orgânicas e psíquicas mostra que o animal humano está se preparando para passar ao estado reflexivo, por efeito da complexidade crescente da organização do córtex cerebral. Esta mudanca de condição c us conseqüências que acarreta no processode hominização, ao entrar em uma etapa qualitativa inédita, são causadas pela nova forma em que se' estabelecem as relações entre o homem e o mundo. De agora em diante será possível dizer que o ser humano adquire a sobrevivência pela ação deliberada sôbre o mundo, em função da representação cada vez mais clara que dele vai adquirindo, ou seja, que se mostra competente para trabalhar. Interfere no processo e estabelece modos de atuação sobre o mundo que importam em produzir, embora em estágio inicial, os meios de subsistência de que necessita. Em vez de simplesmente utilizar os_ recursos que 26 acha à mão, começa a tomar medidas para fazê-los intencional- mente aparecer, desde os mais simples, a coleta de frutos ou raízes, que apesar de ser a mais elementar forma de produção, supõe en- tretanto a decisão de buscar as áreas' mais favoráveis, mais abun- dantes em tais bens. Estamos já aqui em presença de uma modali- dade incipiente de trabalho. Assistimos ao nascimento da economia. A capacidade de reagir ao mundo avança mais e manifesta-se na produção intencional de instrumentos, que se desenvolvem num processo próprio, cronologicamente abrangendo incontáveis milê- nios, mas filosoficamente significando apenas um segmento mais avançado do processo geral da evolução vital, na direção hominiza- dora. Dentro dele representauma fase bem definida aquela em que o homem começa a operar instrumentalmente sobre o mundo. A complexidade do instrumento, a partir do casual achado de uma lasca de pedra até as descobertas sensacionais que se seguirão no tempo, assim como a complicação crescente nas técnicas de sua utilização, aumenta sempre e se exprime pelo domínio progressivo e cada vez mais rendoso da natureza. E decisivo observar que con- comitantemente com o processo de domínio cada vez maior' da na- tureza, o homem se vai criando a si próprio, acelera o seu desen- volvimento como espécie biológica, cuja característica é o poder de produzir os bens de que necessita. O homem se hominiza ao hu- manizar, pelo domínio, a natureza. Encontramos nessa fase, em- bora não haja possibilidade de fixar-lhe os limites, as primeiras manifestações do conhecimento reflexivo. Entretanto, este não é ainda o traço dominante em tal fase, embora não esteja ausente, ou melhor, esteja se fazendo, ao longo do processo de desenvol- vimento da subjetividade, que se verifica correlativamente com o desenvolvimento do trabalho, e condicionado por 'este na forma do aparecimento e aperfeiçoamento das representações, que começam a formar o mundo ideal da cultura, e dos instrumentos intencional- mente inventados, cada vez mais eficazes, que constituirão o mundo material da cultura. Esta fase vai dos primórdios da _hominização até as economias elementares, correspondentes ao estado_ civiliza- tório primitivo, manifestado nas técnicas da produção simples, a domesticação dos animais e a agricultura incipiente. ' A quinta fase do desenvolvimento do conhecimento pode ser chamada de saber, e se caracteriza pelo conhecimento reflexivo. É uma fase humana de alto progresso e abrange formas culturais e civilizatórias grandemente avançadas, onde se encontram porten- tosas realizações materiais e criações culturais, que permanecem 27 como marcos distintivos de momentos superiores no processo his- tórico da hominização. Define-se pelo surgimento da autoconsciên- cia. O homem toma consciência da sua racionalidade, reconhece nela um traço distintivo, que o institui na 'qualidade de um ser, um “reino” à parte no processo evolutivo, e cultiva-a intencional- mente em sí, na sua formação individual, e na espécie, ao estabe- lecer os modos de transmissão voluntária, socialmente organizada, educacional, do conhecimento. 0 “saber” do animal transmite-se por herança, é uma transmissão de caráter biológico; cada geração lega à seguinte, no seu mapa gênica, o conjunto de conhecimentos necessários e suficientes para enfrentar a conjuntura vital, o mundo em que o 'animal tem de viver. O saber no homem se trans- mite pela educação e por isso é uma transmissão de caráter social. Para que a geração seguinte possa receber a carga de cultura de que necessita para responder eficazmente aos desafios da reali- dade faz-se preciso que a precedente organize socialmente o modo de convivência entre as civilizações, de modo a possibilitar a trans- ferência do legado representado pelo conhecimento. Com o saber aparece a capacidade de refletir sobre si mesmo, de tomar a pró- pria consciência, com todo seu conteúdo de idéias, imagens e arti- culações abstratas explicativas da realidade, por objeto de obser- vação e de estudo. Não representa contudo a- fase final, suprema, do processo do desenvolvimento do conhecimento, porque, apesar de existir já a autoconsciência do saber, é a fase em que o homem apenas sabe que sabe, mas não sabe ainda como chegou a saber. Por este último aspecto é que se distingue da fase final, aquela que será propriamente a da ciência. Por enquanto, o saber é autocons- ciente, mas não conseguiu tomar-se metódico na sua atividade ex- pansiva, e por isso não configura ainda a ciência, no sentido pleno do termo, mas aparece apenas como o seu estágio vestibular. A aprendizagem não é mais individual, espontânea, por ensaios e erros, sem acumulação e transmissão social, conforme fora em pe- ríodosanteriores. porém se faz organizadamente, com a poupança dos esforços pessoais,em virtude da descoberta e difusão das técni- cas de transmissão direta, oral ou escrita, do conhecimento, entre os indivíduos ou entre as gerações, o que supõe o caráter coletivo, social, do conhecimento, agora constituído por progressiva acumula- ção histórica. E uma fase cultural superior, que se encontra não apenas no passado da espécie mas igualmente no presente, como fundamento da fase científica, final. Em toda sociedade, o momento do saber 28 precede logicamente o do conhecimento científico, mas se entrelaça também com ele, de modo que mesmo nas condições sociais cultas atuais os dois se interpenetram, embora pelas suas características se distingam, como duas etapas do processo gnosiológico. No nível do saber o homem organiza o conhecimento* em formas prelimina- res, surgidas para atender a necessidades práticas imediatas, porém não alcança o plano da organização metódica. Pratica observações conscientes, en_saia_técnicas_'de atuação sobre a realidade, experimen- ta em forma espontânea e confusa, cria as prírneiras explicações ra- cionais do mundo, da sociedade e da existência, a princípio em ca- ráter puramente mítico e religioso, e depois em forma de incipien- tes interpretações científicas do universo. A espontaneidadedo pen- samento, apoiado numa observação superficial, ou mesmo extensa, porém privada de critérios exatos, movida quase sempre pela exclu- siva curiosidade natural, até mesmo alguns ensaios incipientes de experimentação bastam ao espírito científico nascente para entre- gar-se a vôos de imaginação, que deram em resultado as primeiras teorias cosmogônicas, a física dos antigos, as interpretações religio- sas do processo histórico, e tantas outras criações germinais do co- nhecimento, que apenas assinalam os primeiros passos da caminha- da da razão na busca da verdade . Não devem ser repudiadas como in- fantilidades, o que seria um julgamento ingênuo, mas entendidas como os momentos iniciais, necessários, pelos quais passa a razão na sua formação de si mesma, até alcançar a fase científica propria- mente dita que, aliás, não está nem estará jamais concluída. O que distingue o saber da ciência é que na primeira destas etapas falta a intenção de organizar metodicamente o conhecimento, de proce- der à descoberta da verdade de acordo corn um projeto e critérios metódicos. Não há ainda a exigência de normas para a sistemati- zação e a autocorreção do conhecimento. Predomina a audácia in- telectual, o gênio livre e criador, que, fundado em alguns poucos indícios objetivos, de observação ou de experiência, na meditação sobre os fenômenos, inventa hipótesese teorias explicativas. Con- tenta-se com essa obra da imaginação, que muitas vêzes alcança o nível da genialidade, mas excepcionalmente a solidez lógica, somen- te obtida pela reflexão metódica; Nesta fase o conhecimento se mantém no estágio empírico, possui_apenas eficácia casual, im- previsível, em construir explicações quase sempre indemonstráveis ou não suscetíveis de comprovação, quando se trata de questões concernentes aos fatos do mundo material, e permanece na depen- dência da observação consuetudinán'a. Freqüentemente toma como 29 dado para a reflexão investigadora o que Spinoza chamava o “ouvir dizer”, ou a apreensão imperfeita e não controlada de algum as- pecto da realidade, e sobre ele se apóia. Em conseqüência,o pro- cesso do conhecimento assume um crescimento desordenado, pois fica ao sabor das preferências dos indivíduos exponenciais, que se dedicam, por inclinação de espírito, a investigar a realidade e a pensar o mundo e a sociedade de acordo com a inspiração que os move, utilizando os escassos dados que uma transmissão literária e escolar incipiente vai acumulando por procedimentos desprovidos de garantias lógicas. O conhecimento, que é uma propriedade da matéria viva, atin- ge a forma máxima de perfeição quando, no homem, se eleva ao plano da ciência. Esta se define como o saber metódico. 0 saber, por si só, não implica a qualificação de metódico, e por isso pode produzir resultados racionais que se incorporam à ciência, e mesmo foram toda a produção científica de épocas passadas, mas não basta hoje em tal condição para constituir a verdadeira realização científica, porque esta alcançou agora um momento no processo da autoconsciência a partir do qual a ciência se define em função 'do seu crescimento por meio da aplicação do método. Ao se tornar metódica, mudou de qualidade a natureza do conhecimento. O aspecto principal desta mudança consiste em que o saber é intencio- nalmente concebido para servir à transformação da realidade, e por isso o cientista adquire a consciência da necessidade de representar racionalmente, isto é, metodicamente, as articulações objetivas exis- tentes entre as coisas;para efeito de dominar e utilizar os fenômenos que têm lugar no mundo material. A ciência é a investigação metó- dica, organizada, da realidade, para descobrir a essência dos seres e dos fenômenos e as leis que os regem com o fim de aproveitar as propriedades das coisas e dos processos naturais em benefício do ho- mem. Sendo reflexo' da realidade no pensamento do homem -- reflexo que se tornou consciente dessa qualidade - a ciência não é apenas auto-reflexiva no sentido de ser a captação do dado eventual de que se ocupa, mas compreende que o seu modo de proceder, o interesse que a determina a passar da investigação de um objeto a outro, lhe é imposto pelas ligações causais e pelas re- lações interiores entre as coisas. O conhecimento destas vai sendo adquirido numa série de atos cognoscitivos, por acumulação racio- nal, que é a própria construção da racionalidade humana, e tem a característica de um processo, portanto um movimento submetido a leis. 30 A consciência deste fato aparece pela primeira vez no estágio científico do desenvolvimento do conhecimento. Só agora, com a autopercepção do produto subjetivo - a-idéia e o seu correspon- dente objetivo, a coisa - se torna possível ao homem compreen- der-se a si mesmo como parte do processo universal de evolução da realidade, 'ie portanto entenderque as leis do conhecimento são parte da legalidade universal, que unifica e explica o desenrolar da totalidade dos_acontecimentos. Até então, por falta de reflexão metódica fundada numa compreensão dialética e total da realida- de, o homem, ao se descobrir como ser conhecente, podia julgar-se uma exceção na ordem da existência, um ente substancialmente distinto dos demais que compõem o mundo objetivo, dotado de uma capacidade exclusiva a que chama de “espírito”, de origem inexplicável pelos simples poderes doentendimento natural. Agora, ao compreender que o seu surgimento como ser pensante é um fato determinado pelas leis do processo objetivo universal, que depois se dedicará a investigar, é capaz de apreender subjetivamen- te em forma racional mais perfeita a legalidade do processo material porque inclui a sua própria capacidade de reflexão e de repre- sentação das coisas entre os efeitos naturais d'esse proces- so de organização progressiva da matéria viva, em obediência a leis que não são organizadas pelaconsciência, mas ao contrário a organizam. 4 Sendo processo, é histórico e progressivo, por essência. O co- nhecimento científico de cada momento. constitui a premissa do conhecimento científico do momento seguinte. Sendo metódico, é adquirido voluntariamente e em função de regras para a exploração da realidade objetiva, física e social, que condicionam a natureza dos _resultados obtidos. Não derivam do capricho ou da inventiva de quem as concebe, e sim refletem as articulações processuais entre as idéias, _as quais por sua vez reproduzem as correlações entre as coisas e os fenômenos em sua existência própria e independente da consciência. As regras do método indicam ainda o modo se- gundo o qual se deve operar experimentalmente sôbre o mundo com o propósito de investiga-lo e desentranhar dele seus conteúdos inteligíveis. Ao nível da consciência científica toma-se clara uma conceituação que em etapas inferiores se mostra freqüentemente confusa: a distinção entre o saber científico e a criação imaginati- va, especialmente artística. A realidade, ao se refletir no pensamento do homem, dota-o de idéias e vai engendrando o mundo da subje- tividade. Duas grandes regiões começarão a se então: a 31 ñ das relações entre as idéias que respeitam, isto é, refletem fielmente', a concatenação existente entre' as coisas, e a das relações que a razão, que assim se vai formando, estabelece livremente entre as representações, as imagens e os conceitos. Esta segunda espécie de relações é organizada pela força da fantasia, pelo poder de que a consciência vai sendo dotadade combinar as representações subje- tivas, intencionalmente operando desligada da referência à origem de tais representações. A fantasia criadora da arte, em todas as suas manifestações, significa a possibilidade que o espírito possui de proceder à ligação entre as idéias sem ter de respeitara verdade das conexões objetivas a que se referem. É uma demonstração da superioridade do pensamento humano, a prova de haveradquirido o poder de relativa independência quanto ao mundo exterior no processamento das suas' operações interiores, que lhe abre um cam- po infinito de realizações qualitativamente originais. Os produtos da criação artística são a forma assumidapela autoconsciência, que o homem tem, da relativa independência do pensamento no ato de associação das idéias, que se exprime, entre outras maneiras, pela_ outorga de finalidades às idéias, desligando-as da sua primitiva *função utilitária, que implicava na predeterminação dos fins a que serviam. Deste modo, a racionalidade, característica dístintiva da espécie humana, aparece dividida nas duas grandes esferas do co- nhecimento: o representativo, vinculado à apreensão dos dados objetivos; e o imaginativo, criador de livres associaçõesentre as idéias, de que emana a obra de arte. Se nas 'formas extremas os dois tipos de racionalidade aparecem perfeitamente distintos, as duas esferas têm certa região em comum. É aquela em que se situa a elaboração da experiência científica e na qual se revela o gênio do pesquisador, que, por isso, tem profundas analogias com a criação artística. O'hornem de ciência, chegando ao plano superior do co- nhecimento em que se empenha por arrancar novos conteúdos in- telígíveis do processo da realidade, elabora em idéias as experiên- cias a que depois irá proceder na operação prática sobre os seres ou os fenômenos. Antes de atuar sobre eles no âmbito do labora- tório já concebeu a operação experimental no domínio da fantasia, e mesmo calculouas probabilidades dos resultados que prevê serão obtidos. Não se trata de especulação vaga mas do que se poderia chamar o momento de genialidade, que é a antevisão da fecundida- de de uma combinação de fenômenos, pelo simples fato de ter concebido em idéias o curso provável do processo e o resultado ma- terial que irá ser constatado. \ 32 O caráter metódico da ciência revela-se ainda na completação, que se passa no plano do pensamento humano, do cicÍo perfeito do conhecimento. “Referimo-nos à sucessão recíproca, à interpene- tração das duas fases do processo: a indutiva (aferente, perceptiva, ideativa, generalizadora, conceitual, sintética) e a dedutíva (efe- rente, operatória, conclusiva, particularizadora, discursiva, analítica). Não é o momento, nestas páginas introdutórias, de discorrer sobre este tema capital da lógica e da metodologia das ciências. Mais tarde serão feitasoutras Considerações. Parece-nos que a simples sucessão dos qualificativos incluídos entre parênteses, após a refe- rência a cada uma das fases do ciclo do conhecimento, dá-nos uma noção de como se distinguem 1g¡ do outro, e ao mesmo tempo indi- ca o caráter reciprocamente complementar das operações cognos- citivas travadas entre um hemíciclo e outro. O que nos importa agora deixar estabelecido é que o conhecimento se toma metódico, e portanto científico, ao surgir a consciência desse processo cir- cular, dialético, que irá fundar a ciência, a lógica e a possibilidade de construir a teoria do método, a princípio em sua expressão mais geral, e depois em seus modos particulares, funcionais, diversifica- dos, de acordo com a espécie de objetos ou o campo de investiga- ção da realidade a que se devem aplicar. l Na metodologia teórica discutem-se vários tipos particulares de método. O que desejamos assentar desde logo é que por ora tra- tamos apenas da essência do raciocínio metódico. Compreendemos que esta essência consiste na possibilidade, que o espírito humano conquista, de travar com o mundo objetivo um circuito de relação que se distingue por possuir duas metades, complemen- tares e contraditórias; a receptiva, que termina pela produ- ção da idéia apartir da experiência, sempre limitada quanto ao número das coisas a que se refere, encerrando-se com a formação do universal abstrato, e será o semicírculo indutivo; 'e a atividade operatória, que desce da idéia universal ao reconhecimento do par- ticular a que ela se aplica, e se exprime na ação transformadora exercida sobre ele, e por isso integra a parte dedutiva do ato uni- tário do conhecimento. Esta divisão tem apenas caráter lógico, e não existencial, pois no viver concreto o hOmem unifica os dois momentos do processo, uma vez que não pode estar em presença do mundo, das coisas, dos fenômenos sem que a intencionalidade de sua consciência se volte para eles e os apreenda, constituindo, ao final, idéias gerais do que existe em face dele. E ao mesmo tempo, não pode permanecer imóvel, inoperante, depois que engendrou 33 em si a idéia universal, representativa da realidade, e sim é for- çado a agir sobre o mundo, a modifica-lo, segundo finalidades, que são o caráter peculiar de que se revestem certas idéias gerais que adquiriu. Este círculo do conhecimento existe sempre, e tem lugar como manifestação universal da matéria viva, capaz de sentir o ambiente e de reagir a ele.' Desde que as espéciesanimais se cons- tituíram, esse círculo, por ser definidor do conhecimento, variando apenas em grau de organização e aperfeiçoamento, está presente. Não é quando passamos ao plano da ciência que esse circuito se constitui; apenas adquire aí caráter auto-reflexivo e se institucionali- za em forma metódica. Por isso, não devemos concebê-lo como específico do homem a não ser no grau de claridade com que se evidencia neste ser. Tendo dito que o conhecimento é uma pro- priedade conatural da matéria viva, vamos encontrar o circuito in- dutivo-dedutivo em todas as etapas do processo que sumariamente indicamos nas páginas anteriores. Esta observação é de capital im- portância para nos evitar cair no' engano das exposições discursivas, idealistas, que só concebem o raciocínio lógico na sua expressão máxima, evidentemente aquela que só ocorre no animal mais ele- vado, o homem. Tais concepções não têm a noção do caráter pro- cessual, histórico-natural, genético, inerente à capacidade de co- nhecer, caráter que obriga a autêntica metodologia da ciência a conceber a lógica não como a descrição de um sistema abstrato de operações mentais, mas como o desenvolvimento da capacidade do ser vivo em se situar no mundo e superar, mediante reações fina- listicamente organizadas, os obstáculos opostos à sua sobrevivência. A mais nociva conseqüência da posição formalista está em cerrar de início o caminho da compreensão dialética, evolutiva, histórica da lógica, cegando-nos desde o primeiro momento para a aceitação da racionalidade como processo biológico que se desen- volve ao longo de toda a escala animal, culminando na autoconsciên- cia, de que o homem é dotado. Por falta dessa visão, a capacidade de compreensão fica bloqueada desde o primeiro passo no 'caminho da interpretação lógica do problema e confinada à conceituação do ponto de vista formal. Esta de ordinário leva o homem de ciência, e os próprios lógicos de profissão, a nem sequer suspeitarem da exis- tência do modo dialético de pensar, imensamente mais rico, pode- roso e profundo como instrumento de descoberta e interpretação da realidade. Se aceitamos, pelo contrário, a posição evolutiva, somos levados a admitir que todas as operações lógicas encontradas em estado de máximo desenvolvimento, discriminação e autocom- 34 preensão no homem, devem existir também, apenas em graus menos perfeitos, nos membros inferiores da escala zoológica, ou mesmo simplesmente vital. Será, pois, um traço inicial da atitude lógica crítica, este reconhecimento, que nos levará, -em continuação, ao re- finamento das análises dos processos cognoscitivos, que serão apa- nágio do pensar dialético. Fica excluída, nesta perspectiva interpre- tativa, a presunção de que as operações lógicas pertençam exclusi- vamente ao homem e que este_as possua por direito divino. 0 que parece razoável aceitar é que nêle se acham em grau de máxima claridade. Esta concepção servirá de incentivo para que o filósofo, em vez de assumir a atitude formalísta e ingênua de “esPin'tualizar” o pensamento e as suas operações, busque nas manifestações ele- mentares da vida animal os primórdios, as modalidades incipientes do que será no pensamento humano o complexo de relações lógicas que se anunciam desde as etapas inferiores do processo biológico. O fato fundamental da teoria do conhecimento é o circuito in- dutivo-dedutivo. No homem este apresenta-se na forma mais aper- feiçoada e autoconsciente, porque é a manifestação da “situação” existencial única, exclusiva desse ser vivo na sua contradição ori- ginal de produto da natureza e agente, relativamente autônomo, capaz de modificá-la. A teoria gnosiológíca que visa em última instância a descrever e explicar este circuito na inteligência huma- na, deverá_considerar sua tarefa. própria a de acompanhar o pro- cesso de surgimento e gradativo desenvolvimento dêle ao longo da evolução animal. Não nos é possível proceder ao estudo deste par- ticular, _que está situado fora do campo dos problemas que nos propomos examinar. Basta-nos indicar sumariamente que na etapa do conhecimento animal elementar, de modo, geral, a indução con- siste na coleta, sempre inconsciente, de experiências, de vivências de situações variadas a que o ser vivo está exposto, e na formação, pelo acúmulo e fixação das situações vividas, de hábitos propícios, adaptativos, que correspondem, para esse grau da escala, ao que será na inteligência a generalização das idéias; O hábito é o análogo do “conceito", é o seu esbôço no processo biológico de aquisição da capacidade de generalização. Os hábitos, nas espéciesinferiores formam-se por via da seleção espontânea de situações
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