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Antropologia - Lino Rampazzo

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2
SUMÁRIO
Capa
Rosto
Dedicatória
Apresentação
Introdução
CAPÍTULO I - ANTROPOLOGIA
1.1 Os vários níveis de conhecimento
1.1.1 Conhecimento popular ou empírico
1.1.2 Conhecimento científico
1.1.3 Conhecimento filosófico
1.1.4 Conhecimento teológico
1.1.5 Outras formas de conhecimento
1.1.6 Texto complementar: Interdisciplinaridade
1.2 O problema do homem
1.2.1 Fenomenologia do homem
1.2.1.1 Homem: um ser que tem corpo
1.2.1.2 Homem: um ser que conhece
1.2.1.3 Homem: um ser livre que “quer” e “ama”
1.2.1.4 Homem: um ser que fala
1.2.1.5 Homem: um ser que vive em sociedade
1.2.1.6 Homem: um ser culto
1.2.1.7 Homem: um ser que trabalha
1.2.1.8 Homem: um ser que se diverte
1.2.1.9 Homem: um ser religioso
1.2.2 Os filósofos e o problema do homem
1.2.3 Características da alma humana
1.2.4 Autotranscendência e espiritualidade
1.2.5 A pessoa humana
1.2.5.1 O problema da pessoa na história da filosofia
1.2.5.2 Características da pessoa humana
1.2.5.3 A formulação do conceito de pessoa no IV e no V séculos: um diálogo entre teologia, ética e
direito
CAPÍTULO II - RELIGIÃO E RELIGIÕES
2.1 A experiência religiosa
2.2 Religiões
2.2.1 Hinduísmo
2.2.1.1 Origem
2.2.1.2 Princípios fundamentais
2.2.1.3 Divindades
2.2.1.4 Castas
2.2.1.5 Textos sagrados
2.2.1.6 Ritos e festas
2.2.1.7 Ética hindu
2.2.1.8 História do hinduísmo
2.2.1.9 Hinduísmo moderno
2.2.2 Budismo
2.2.2.1 Buda
2.2.2.2 Doutrina budista
2.2.2.3 A comunidade búdica
2.2.2.4 Texto sagrado
2.2.2.5 Expansão do budismo
2.2.2.6 Budismo e religião
2.2.2.7 O budismo hoje
3
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2.2.3 A religião de Israel
2.2.3.1 História
2.2.3.2 A fé de Israel
2.2.3.3 Textos sagrados
2.2.3.4 Ritos e festas
2.2.3.5 Ética
2.2.3.6 O Mistério de Israel
2.2.4 Cristianismo
2.2.4.1 Jesus Cristo
2.2.4.2 Os Doze
2.2.4.3 Os Padres da Igreja
2.2.4.4 Difusão do cristianismo
2.2.4.5 Textos sagrados
2.2.4.6 Divisões
2.2.4.7 O Credo
2.2.4.8 Celebrações comunitárias da fé
2.2.4.9 Ética cristã
2.2.4.10 O cristianismo hoje
2.2.5 Islamismo
2.2.5.1 O fundador
2.2.5.2 Difusão
2.2.5.3 O dogma do islã
2.2.5.4 As principais obrigações religiosas
2.2.5.5 Ética
2.2.5.6 Uma missão para o islã de hoje?
2.2.6 Ritos afro-brasileiros
2.2.6.1 Portos de entrada no Brasil
2.2.6.2 Grupos étnicos de escravos africanos
2.2.6.3 Difusão dos cultos afro-brasileiros
2.2.6.4 Candomblé
2.2.6.5 Terminologia do candomblé
2.2.6.6 Umbanda
2.2.6.7 Terminologia da umbanda
2.2.6.8 Apreciação crítica
2.2.7 O interesse místico-religioso do homem pós-moderno
2.2.7.1 A modernidade
2.2.7.2 A pós-modernidade
2.2.7.3 A volta do sagrado
2.2.7.4 Mística e misticismo
CAPÍTULO III - A ÉTICA COMO PONTO DE ENCONTRO DE TODOS OS HOMENS DE BOA
VONTADE
3.1 Ética ontem e hoje
3.2 Bioética: o respeito à vida humana
3.2.1 Bioética: a origem do termo e seu campo de pesquisa
3.2.2 Princípios da bioética
3.2.3 Problemas específicos de bioética
3.2.3.1 O início da vida humana
3.2.3.2 A transmissão de uma vida saudável
3.2.3.3 A responsabilidade pela saúde do feto e da criança
3.2.3.4 A superpopulação
3.2.3.5 A intervenção artificial na reprodução humana
3.2.3.6 Aborto
3.2.3.7 O diálogo entre fé e razão em questões bioéticas
3.2.3.8 A saúde
3.2.3.9 A ética dos profissionais da saúde
3.2.3.10 Alcoolismo e toxicomania
3.2.3.11 Aids
3.2.3.12 A morte
4
3.2.3.13 Pena de morte
3.2.3.14 Eutanásia
3.2.3.15 Os profissionais da saúde diante do paciente terminal
3.2.3.16 Podem os cristãos “impor” leis na sociedade pluralista?
3.3 Sexualidade e família
3.3.1 A Sexualidade: linguagem de amor e de vida
3.3.2 A paternidade responsável
3.3.3 As dificuldades que afetam as famílias
3.3.4 A homossexualidade nos documentos da Igreja católica
3.4 A ética na vida socioeconômica
3.4.1 Liberalismo e socialismo
3.4.2 Pensamento social cristão
3.4.3 A centralidade do homem
3.4.4 O trabalho
3.4.5 A destinação universal dos bens
3.4.6 O Direito de propriedade nas reflexões de São Tomás de Aquino (1225-1274) e de Emmanuel
Mounier (1905-1950)
3.4.7 A conduta antiética nos negócios
3.4.8 A dimensão política
3.5 Ética na comunicação
3.5.1 O homem busca a verdade
3.5.2 A comunicação hoje
3.5.3 O respeito à verdade e à honra humana
3.5.4 Ética na mídia
Conclusão
Bibliografia
Coleção
Ficha Catalográfica
5
DEDICATÓRIA
À minha mulher, Suely Aparecida.
Aos meus filhos, Sarah Ruth, Paolo Gennaro e Simon Pedro.
6
APRESENTAÇÃO
A necessidade da redescoberta e valorização do ser (antropologia), do crer
(religião) e do agir (ética) constitui o objetivo desta publicação.
A abordagem antropológica, depois de uma reflexão sobre os vários níveis de
conhecimento, apresenta as diferentes manifestações do ser humano (corpo,
conhecimento, vontade, linguagem, vida em sociedade, cultura, trabalho,
divertimento, religião) e a problemática do seu “ser”, sua “autotranscendência” e sua
dignidade de “pessoa”.
A reflexão sobre religião, depois de uma breve análise sobre o sagrado, indica os
elementos fundamentais de seis sistemas religiosos particularmente significativos:
hinduísmo, budismo, religião de Israel, cristianismo, islamismo e ritos afro-brasileiros.
Além disso, reflete sobre o interesse místico-religioso do homem pós-moderno.
Por fim, aos homens de hoje que procuram uma civilização alternativa é
apresentada a proposta de alguns valores éticos: a bioética, o valor da sexualidade e
da família, a ética na vida socioeconômica e na comunicação.
Esta obra destina-se, particularmente, aos estudantes das universidades católicas
como subsídio para as disciplinas de cultura religiosa e ética.
7
INTRODUÇÃO
Diálogo, interdisciplinaridade, integração: esses termos, nos dias de hoje, são
usados com muita frequência para indicar o método com o qual se quer caracterizar a
abordagem do saber.
Galileu, no século XVII, teve o mérito de tornar-se o pai da ciência moderna,
determinando o objeto específico da investigação e o método pelo qual se atingia esse
tipo de conhecimento. Mas a ciência moderna, com seu método, reduzia o campo de
análise do saber, limitando-se aos dados próximos, imediatos, perceptíveis pelos
sentidos ou por instrumentos: quer dizer, os dados de ordem material e física. Além
disso, esta “ciência” fazia nascer muitas “ciências”, com campos de especialização
sempre mais delimitados e uma consequente fragmentação do conhecimento. Hoje é
muito difícil contar o número de especializações criadas pela ciência moderna.
Se tudo isso, sem dúvida, foi uma riqueza para a humanidade e produziu o avanço
científico e tecnológico, por outro lado, criou um cientista preso no seu campo de
conhecimento, possuidor de um saber parcial, desarticulado e incompleto.
Hoje estamos numa fase de reconsideração do caminho da ciência. A “virada”
apenas aconteceu quando o homem procurou refletir não sobre as “leis da natureza”,
mas sobre si mesmo, questionando o rumo da ciência, que acabava “destruindo o
homem” quando não estava a serviço dele. A tristíssima experiência de duas guerras
mundiais no século XX, a idolatria da máquina que degenera o homem e estraga o
mundo e as desigualdades socioeconômicas existentes entre o Norte e o Sul do
planeta questionaram profundamente o caminho da ciência. “Vejo construir-se um
mundo do qual, ai de mim, não é exagero afirmar que o homem não pode viver nele”,
dizia Bernanos (1972, p. 126).
A “reconstrução” do mundo passa, obrigatoriamente, por uma nova concepção do
homem que aceita apenas uma civilização a serviço do homem e nunca contra ele.
Nesta nova visão, o homem-cientista descobre o seu semelhante e começa a dialogar
com ele, cada vez mais convencido de que ninguém tem o monopólio da verdade e de
que se torna necessário construir uma “nova humanidade”, na qual os homens falam
entre si e convivem de maneira autenticamente civilizada e solidária. Assim, as
ciências começam a dialogar entre si: nasce a interdisciplinaridade e o diálogo. A
ciência dialoga com a filosofia e vice-versa. Se, por um lado, Galileu tinha sido
condenado pelas autoridades eclesiásticas do século XVII, por outro lado, uma partedo mundo científico e filosófico tinha considerado “supérflua, infantil e até
alienante” a experiência religiosa. Agora, porém, percebe-se um interesse recíproco,
uma tentativa de reconstruir uma “unidade destruída”: até o saber popular, artístico e
mítico recebe uma atenção diferente.
Nessa volta à “unidade do saber”, há a preocupação de receber contribuições de
todo tipo de análise da realidade, seja por parte do saber popular, seja do filosófico,
teológico, estético, mítico etc. E a análise da realidade é acompanhada pela humilde
convicção de que nunca sabemos tudo: nosso atual conhecimento se realiza “como
num espelho, confusamente” (cf. 1 Coríntios 13,12).
8
Mas qual é o objetivo do “conhecer”, do “saber”?
É o bem do homem. Por isso, o conhecimento deve ser “humano” em todos os
sentidos: é um produto do homem, a serviço do homem — do homem todo, em todas
as suas dimensões, e de todos os homens, sem qualquer tipo de discriminação.
Nesse contexto, é interessante descobrir o significado do termo universidade,
refletir sobre os objetivos da universidade, em geral, e da universidade católica, em
particular.
Na organização gremial da Idade Média, o termo universitas (= universidade)
indicava uma “classe social”, ou uma “profissão”. Então, no campo educacional,
surgiu a universitas magistrorum et scholarium, ou seja, uma corporação de mestres e
alunos (cf. carta do Papa Alexandre IV à Universidade de Paris, 14 de abril de 1255,
apud JOÃO PAULO II, 1990, p. 5).
As novas instituições pedagógicas de nível superior que se desenvolveram a partir
do século XII receberam, inicialmente, o nome de studium generale (= estudo geral)
não porque incluíssem todos os ramos do saber, mas porque, à diferença dos “estudos
locais”, eram dirigidas a todos os estudantes, sem distinção de raça e nacionalidade.
Com o tempo, o nome studium generale foi designado para indicar o conjunto das
ciências, o estudo geral ou universal, no sentido de que era aberto a todo tipo de
conhecimento. Só mais tarde, no final do século XIV, o nome studium generale foi
substituído por universitas. Então, desde o século XIV, o termo universitas (=
universidade) passou a indicar a instituição que se consagrava ao serviço de todo o
saber, nos seus diferentes campos e métodos de análise. Não existe, pois, nenhum
campo do “ser” que não possa e não deva ser explorado (LARROYO, 1974).
Aos poucos, então, foi-se definindo o objetivo da universidade, que pode ser
indicado da seguinte maneira: tornar-se “um centro de criatividade e de irradiação do
saber para o bem da sociedade” (JOÃO PAULO II, 1990, p. 5).
Para conseguir tal objetivo, a universidade se consagra à investigação (=
pesquisa), ao ensino e formação dos estudantes (= ensino) e a diversos serviços
prestados à comunidade (= extensão). Como se vê, trata-se das três funções básicas
da universidade: ensino, pesquisa e extensão. Aliás, a Constituição da República
Federativa do Brasil de 1988 faz referência explícita a esses três objetivos: “As
universidades... obedecerão ao princípio da indissociabilidade entre ensino, pesquisa
e extensão” (Art. 207).
E como nasceram as universidades católicas?
O contato do cristianismo com o mundo da cultura sempre suscitou na Igreja o
problema de integrar ciência e fé. Por isso, desde as origens, a Igreja foi promotora do
saber, das ciências, das artes, da cultura. Já no século II d.C. apareceram sob o seu
impulso centros de cultura cristã, os chamados didascalia, entre os quais sobressaíram
os de Alexandria, no Egito, de Esmirna e de Edessa, na Ásia Menor, e de Roma.
Um momento importante na história da cultura universal — sem falar da
contribuição dada pelas abadias beneditinas na Idade Média — foi a fundação, a
partir do século XII, das universidades de Bolonha, Pádua, Paris, Oxford, Salamanca
etc., promovida pela Igreja.
Com a presença marcante da Igreja na atividade educacional nos séculos XII-XIV,
é normal que as universidades tenham procurado uma integração, no saber, entre a
9
ciência e a fé. Por isso, nesse período, a universidade plenamente integrada
compreendia quatro faculdades: teologia, direito, medicina e artes.
As épocas da Renascença e do Iluminismo marcam a crise desse modelo: o famoso
Institut Catholique de Paris lembra, pelo termo, o fato de que, por muito tempo, na
França uma instituição católica não podia receber o título de “universidade”.
Assim, quando os Estados tomaram como sua a missão de fundar universidades, a
Igreja continuou promovendo a ciência e a cultura em centros acadêmicos próprios.
Historicamente, a primeira universidade católica foi fundada em Lovaina, na
Bélgica, em 1834. Tratou-se de uma bela iniciativa, cheia de fé e audácia: um modelo
para fundações posteriores. A partir de então, sucederam-se outras fundações que, no
século XX, tornaram-se cada vez mais numerosas.
O diário católico italiano Avvenire publicou, no dia 20 de novembro de 2011, um
artigo do jornalista Andrea Galli, apresentando números significativos a respeito das
universidades católicas no mundo de hoje.
Atualmente, existem no mundo centenas de instituições universitárias católicas:
998 universidades e 211 institutos semelhantes, ou seja, escolas de perfil mais
técnico, mas que concedem títulos universitários. Estima-se um total entre 3 e 4
milhões de estudantes matriculados. Eis a distribuição quantitativa dessas instituições
por continentes: a) América setentrional: 287; b) América Central: 21; c) América
meridional: 155, das quais 47 no Brasil; d) Europa: 172; e) África: 25; f) Ásia: 533; g)
Oceania: 16.
Com referência à América Latina, Andrea Galli destacava duas universidades, a
saber: a Católica de Santiago e a PUC de Porto Alegre.
Eis o que ele escreveu a respeito:
O continente mais importante por impacto social e por prestígio dos ateneus é, de qualquer forma, o
americano. No Chile, as universidades nascidas no seio da Igreja representam o melhor que pode oferecer
o país em nível acadêmico; e a Pontifícia Universidade Católica de Santiago foi avaliada como a segunda
melhor universidade latino-americana, conforme a prestigiosa classificação do QS World University
Rankings, publicada no mês passado. No Brasil, caracterizado por crescimento econômico febril, a
Universidade de Porto Alegre, de propriedade dos padres maristas, inaugurou em 2003 o TECNOPUC,
um parque tecnológico de vanguarda na energia fotovoltaica e na informática (GALLI, 2011, p. 3).
No Brasil, a experiência da universidade católica começou em 1947 no Rio de
Janeiro. De lá para cá nasceram muitas outras. Dentre elas destacam-se sete, que são
também pontifícias (as PUCs): Rio de Janeiro, São Paulo, Porto Alegre, Campinas,
Belo Horizonte, Curitiba e Goiânia. As universidades católicas pontifícias mantêm
uma ligação ainda mais estreita com a autoridade central da Igreja por meio da
Congregação para a Educação Católica. Entre as universidades católicas que não são
pontifícias, pode-se lembrar, a título de exemplo, da Universidade Católica de
Pernambuco (Recife-PE), de Salvador (BA), de Pelotas (RS), da Universidade Dom
Bosco (Campo Grande-MS), da Unisantos (Santos-SP), da Unisinos (São Leopoldo-
RS), da Universidade São Francisco (Bragança Paulista-SP), da Universidade
Católica de Brasília (DF), da Universidade Sagrado Coração (Bauru-SP). Há também
centros universitários católicos e faculdades católicas. Sempre a título de exemplo, há
o Centro Universitário Salesiano de São Paulo (Unisal), o Centro Universitário São
Camilo (São Paulo), o Centro Universitário do Leste de Minas Gerais (Coronel
Fabriciano-MG), as Faculdades Integradas Teresa D’Ávila (FATEA de Lorena-SP), a
10
Faculdade Canção Nova (Cachoeira Paulista -SP), a Faculdade Católica do Ceará
(Fortaleza-CE), a Faculdade Católica de Rondônia (Porto Velho-RO), a Faculdade
Salesiana Dom Bosco (Manaus-AM).
Mas qual é a função da universidade católica? Quais são seus objetivos principais?
Em 15 de agosto de 1990, as universidades católicas conseguiram uma espécie de
Magna Charta — a Constituição ApostólicaEx corde Ecclesiae — aprovada pelo Papa
João Paulo II, para cuja redação contribuíram todas as universidades católicas do
mundo, por meio de uma consulta que começou em 1986. Como todos os
documentos oficiais da Igreja, esse também tem por título as primeiras palavras do
texto latino: Ex corde ecclesiae, quer dizer, (nascida) do coração da Igreja.
A análise do primeiro número desse documento pode nos ajudar a responder às
perguntas feitas acima. Eis o texto:
Nascida do coração da Igreja, a universidade católica insere-se no sulco da tradição que remonta à própria
origem da universidade como instituição, e revelou-se sempre um centro incomparável de criatividade e
de irradiação do saber para o bem da humanidade. Por sua vocação, a universidade se consagra à
investigação, ao ensino e à formação dos estudantes livremente unidos com seus mestres no mesmo amor
do saber. Ela compartilha, com todas as outras universidades, aquela “alegria a respeito da verdade”, tão a
gosto de Santo Agostinho, isto é, a alegria de procurar a verdade, de descobri-la e de comunicá-la, em
todos os campos do conhecimento. Sua tarefa privilegiada é unificar existencialmente, no trabalho
intelectual, duas ordens de realidade que, não raro, tendem a se opor, como se fossem antitéticas: a
investigação da verdade e a certeza de conhecer, já, a fonte da verdade.
Como se vê, o texto desse documento lembra, antes de tudo, a origem e a
característica da universidade e, logo depois, indica a característica específica da
universidade católica.
Existe, pois, um objetivo comum a todas as universidades, e outro específico da
universidade católica. Todas as universidades, católicas ou não, têm o objetivo de
servir à verdade, em todos os campos do conhecimento. Como já foi comentado, o
termo “universidade” indica uma totalidade: a procura e a comunicação da verdade
em todos os campos do conhecimento.
Mas a universidade católica tem uma tarefa privilegiada, a saber: a procura de uma
integração entre ciência e fé.
Ciência e fé pertencem a “duas ordens de realidade que, não raro, tendem a se
opor”. E o texto indica o porquê dessa oposição: o método diferente. A ciência tem
como método a investigação da verdade; a fé aceita uma mensagem que contém já
pronta a verdade, aliás, “tem a certeza de já conhecer a fonte da verdade”.
Não há dúvida de que os métodos são bem diferentes. Existe, porém, para os
cristãos, a seguinte convicção: Deus é a origem da natureza e, ao mesmo tempo, da
revelação, manifestada particularmente em Jesus de Nazaré. O cientista, de um lado,
estuda a manifestação de Deus na natureza, por meio da investigação racional, e o
homem de fé (que pode também ser cientista) aceita, ao mesmo tempo, a outra
revelação de Deus, que se realizou em Jesus Cristo. E Deus, origem de toda a realidade
e totalmente perfeito, não pode contradizer-se.
Como consequência desta convicção, desde os primeiros séculos da sua história,
houve na Igreja a preocupação de integrar a cultura e a fé. Assim, o apologista
Justino, na primeira metade do século II d.C., desenvolveu a tese de que o Logos (= a
sabedoria de Deus) estava presente em Moisés, nos filósofos pagãos e tinha-se
11
encarnado em Cristo.
Hoje o desenvolvimento dessa mesma tese leva à procura de integração entre a
ciência e a fé, que encontra na universidade católica seu lugar privilegiado.
A procura dessa integração, naturalmente, encontra seu espaço tanto na
universidade católica como nas evangélicas, devido à comum matriz cristã.
Por esse motivo as IESs confessionais, na procura do bem-estar do ser humano
integral, abrem um espaço para a formação humana, espiritual, religiosa e cristã, no
pleno respeito das convicções filosóficas e religiosas de cada professor e de cada
aluno. E um desses espaços é constituído pela disciplina de “cultura religiosa”, ou
“antropologia religiosa”, ou outras expressões semelhantes, que faz parte do curriculum
dessas instituições.
Desde 1990 iniciei minha experiência como professor desta disciplina em
diferentes IESs católicas. Procurei apresentar aos alunos a necessidade de uma
educação integral e não apenas profissionalizante, sempre no pleno respeito da opção
filosófica e religiosa de cada um deles e no clima de diálogo, necessário para realizar
qualquer experiência educacional. Posso afirmar que este livro nasceu do diálogo com
os alunos e com os professores.
O título Antropologia: Religiões e Valores Cristãos aponta para os temas analisados.
A abordagem antropológica (o interesse pelo homem), depois de refletir sobre
vários níveis de conhecimento, apresenta as diferentes manifestações do ser humano
e sua problemática, inclusive no desconhecido (para muitos) campo religioso. Trata-
se aqui do homem que, enquanto ser religioso, busca o sentido da vida. Como
confirmação disso, a história humana, em geral, e a história brasileira, em particular,
nos colocam diante do fenômeno religioso, do qual se indicam os elementos
principais das religiões sociologicamente mais importantes, com destaques para o
cristianismo.
E diante dos homens que procuram uma civilização alternativa, não tecnicista,
consumista e individualista, mas baseada nos grandes valores da vida, da verdade, da
bondade, da beleza, da justiça, do amor, da solidariedade, é apresentada a riqueza de
alguns valores éticos, com destaque à matriz cristã, que podem contribuir para
construir um mundo novo, em solidariedade com todos os homens e mulheres que
procuram a justiça e a solidariedade.
As reflexões que seguem não têm a pretensão de ser originais e muito menos
exaustivas; procuram apenas apresentar os elementos fundamentais de alguns temas
filosóficos, religiosos e éticos para suscitar o interesse sobre os mesmos e abrir a
inteligência dos estudantes universitários à riqueza que a vida humana recebe quando
valoriza o ser (antropologia), o crer (religiões) e o agir (valores éticos), envolvendo,
na feliz expressão de Paulo VI, “o homem todo e todos os homens” (Encíclica
Populorum Progressio, n. 42).
12
CAPÍTULO I
ANTROPOLOGIA
O termo “antropologia” significa, ao pé da letra, “estudo do homem”. Devido à
complexidade do ser humano, esse estudo pode ser considerado do ponto de vista
físico-somático, cultural, filosófico, teológico etc. Temos, assim, a antropologia física,
a antropologia cultural e a antropologia filosófica. A antropologia física estuda o
homem como espécie biológica, suas características físicas e sua evolução. A
antropologia cultural, ou etnológica, estuda o homem do ponto de vista de sua
origem histórica. E por fim, a antropologia filosófica estuda o homem do ponto de
vista de seus princípios últimos, questionando seu ser, sua origem e seu destino. O
estudo do ser humano pode ser considerado também do ponto de vista teológico:
temos, assim, também a antropologia teológica, que é a visão sobre o homem a partir
da experiência religiosa, como poderá ser verificado no capítulo II, ao falar das
diferentes religiões.
Nossa abordagem diz respeito à antropologia filosófica. Eis por que, antes de tudo,
apresenta-se uma reflexão sobre o sentido do conhecimento filosófico, distinto de
outros níveis de conhecimento. A partir daí, o problema do homem será analisado do
ponto de vista fenomenológico, para em seguida considerar de maneira bem sintética
as principais reflexões dos filósofos ocidentais sobre o homem, destacando aquelas a
respeito da alma humana, da transcendência e espiritualidade e, por fim, da pessoa
humana.
13
1.1 Os vários níveis de conhecimento
A procura do saber nos seus diferentes campos e métodos de análise exige, antes de
tudo, uma reflexão sobre a experiência do conhecimento humano.
O que é conhecimento humano?
É uma relação que se estabelece entre o sujeito que conhece e o objeto conhecido.
No processo do conhecimento, o sujeito cognoscente se apropria, de certo modo, do
objeto conhecido. Se a apropriação é física, sensível, o conhecimento é sensível. Esse
tipo de conhecimento é encontrado tanto nos animais como no homem: acontece
por meio doscinco sentidos. Se a apropriação não é sensível — o que ocorre com
realidades tais como conceitos (ideias), princípios e leis —, o conhecimento é
intelectual.
Nem sempre essas duas formas de conhecimento — sensível e intelectual —
ocorrem isoladamente. Ao contrário, com frequência combinam-se para produzir um
conhecimento misto, ao mesmo tempo sensível e intelectual. Por exemplo, você
pode conhecer-se. Seus sentidos lhe informarão a cor de sua pele, seu cheiro, sua
estatura, enfim, suas características físicas. Mas será a mente que lhe informará seus
próprios pensamentos, sua maneira de agir diante de determinado problema etc. E
todas essas informações estão relacionadas a um mesmo objeto: você.
Pelo conhecimento, o homem penetra as diversas áreas da realidade para dela
tomar posse; de certa forma, o homem, pelo conhecimento, reconstitui a realidade
em sua mente, através de imagens (conhecimento sensível) e de ideias
(conhecimento intelectual). Ora, a realidade apresenta níveis e estruturas diferentes
em sua própria constituição. Essa complexidade do real, objeto do conhecimento,
ditará, necessariamente, formas diferentes de apropriação por parte do sujeito
cognoscitivo. Essas formas darão os diversos níveis de conhecimento segundo o grau de
penetração do conhecimento e consequente posse mais ou menos eficaz da realidade,
levando em conta, ainda, a área ou estrutura considerada.
Com relação ao homem, por exemplo, pode-se considerá-lo em seu aspecto
externo e aparente e dizer uma série de coisas que o bom senso dita ou que a
experiência cotidiana ensina (conhecimento popular ou empírico); pode-se, também,
estudá-lo com espírito mais sério, investigando, experimentalmente, as relações
existentes entre certos órgãos e suas funções (conhecimento científico); pode-se,
ainda, questioná-lo quanto à sua origem, liberdade e destino (conhecimento
filosófico); e, finalmente, investigar, no caso da religião cristã, o que dele foi dito por
Deus através dos profetas e de seu enviado, Jesus de Nazaré (conhecimento
teológico).
Há, nesse sentido, quatro espécies de considerações sobre o mesmo objeto: o
homem. Vamos tentar analisar esses diferentes, mas não exclusivos, tipos de
conhecimento.
14
1.1.1 Conhecimento popular ou empírico
Popular é o conhecimento do povo, que nasce da experiência do dia a dia: por isso
é chamado também de empírico. Não é sistemático e está ao alcance de todos. Por
exemplo, uma criança conhece seus pais, fala a língua materna; ou ainda, todo
mundo sabe distinguir entre gato e cachorro; da mesma forma, não é necessário
estudar psicologia para saber se uma pessoa está alegre ou triste. Nos dias de hoje os
meios de comunicação de massa (jornais, TV, internet etc.) proporcionam para um
grande número de pessoas dados relativos à política, economia, ciência, religião, arte
etc. Esse tipo de conhecimento também é empírico.
É igualmente popular (ou “vulgar”: do latim vulgus, quer dizer, “do povo”) o
conhecimento que, em geral, o lavrador iletrado tem das coisas do campo. Ele
interpreta a fecundidade do solo, os ventos anunciadores de chuva, o comportamento
dos animais; sabe onde furar um poço para obter água, ou quando cortar uma árvore
para melhor aproveitar sua madeira, e se a colheita deve ser feita nesta ou naquela
lua. Mas, sendo fruto da experiência circunstancial, esse conhecimento não vai além
do fato em si, do fenômeno isolado: é um conhecimento ametódico e assistemático.
Embora de nível inferior ao científico, o conhecimento popular ou empírico não
deve ser menosprezado, pois constitui a base do saber e já existia muito antes de o
homem imaginar a possibilidade da ciência.
15
1.1.2 Conhecimento científico
O conhecimento científico é uma conquista recente da humanidade: tem pouco
mais de trezentos anos e surgiu no século XVII com Galileu (1564-1642). Isso não
significa que antes não houvesse nenhum saber rigoroso, pois desde a Grécia antiga
(século VII a.C.) os homens aspiram a um conhecimento racional que se distinga do
mito e do saber comum (conhecimento empírico). Esse conhecimento racional,
durante a Antiguidade e toda a Idade Média, foi chamado de filosofia e abrangia
diversos tipos de conhecimento que se estendiam pela matemática, astronomia, física,
biologia, lógica, ética etc. Praticamente, a ciência da Antiguidade e da Idade Média
se encontra vinculada à filosofia e dela só se separa quando procura o seu próprio
caminho, ou seja, seu método: o que vai ocorrer apenas na Idade Moderna.
A ciência moderna nasce, pois, com a determinação de um objeto específico de
investigação e do método pelo qual se fará o controle desse conhecimento. Cada
ciência torna-se uma ciência particular, no sentido de ter um campo delimitado de
pesquisa. O objeto das ciências são os dados próximos, imediatos, perceptíveis pelos
sentidos ou por instrumentos, pois, sendo de ordem material e física, são, por isso,
suscetíveis de observação sistemática e, quando possível, de experimentação (método
da observação sistemática e da experimentação). A título de exemplo, a sociologia se
serve da observação dos fenômenos da vida social, sem interferir neles. Na
experimentação, pelo contrário, há uma interferência nos fenômenos: pense-se na
produção de uma vacina em laboratório.
As ciências são particulares na medida em que cada uma privilegia setores
distintos da realidade física, sensível: a física trata do movimento dos corpos, a
química, da sua composição, a biologia, da vida vegetal e animal etc.
A preocupação do cientista está na descoberta das regularidades que existem em
determinados fatos. Por isso, a ciência é geral, isto é, as observações feitas para alguns
fenômenos são generalizadas e expressas pelo enunciado de uma lei. Assim, ao
afirmarmos que “a água é uma substância composta de hidrogênio e oxigênio”,
estamos fazendo uma afirmação válida para qualquer porção de água.
O mundo construído pela ciência aspira à objetividade: as conclusões podem ser
verificadas por qualquer outro membro competente da comunidade científica, pois a
racionalidade desse conhecimento procura despojar-se do emotivo, tornando-se
impessoal na medida do possível.
Para ser precisa e objetiva, a ciência dispõe de uma linguagem rigorosa, cujos
conceitos são definidos de modo a evitar a ambiguidade. Essa linguagem torna-se
cada vez mais precisa na medida em que utiliza a matemática para transformar as
qualidades em quantidades.
A matematização da ciência se inicia com Galileu. Ao estabelecer a lei da queda
dos corpos, ele mediu o espaço e o tempo que um corpo leva para percorrer em um
plano inclinado. E o final de suas observações foi registrado numa fórmula
matemática.
Se é verdade que a física é uma ciência rigorosa por ser altamente
“matematizável”, no extremo oposto encontram-se as ciências humanas e sociais
(história, direito, psicologia, literatura etc.), cujo componente qualitativo não pode
16
ser reduzido à quantidade. No entanto, algumas correntes recorrem à matemática por
meio das estatísticas. Por exemplo, existem “escalas” que “medem” a inteligência; ou
estatísticas relativas à “média” de fecundidade das mulheres, ao valor do salário etc.
Por tudo isso, podemos perceber também que a ciência moderna se fundamenta na
observação sistemática e na experimentação.
Outro elemento importante é o uso de instrumentos, o que torna a ciência mais
rigorosa, precisa e objetiva. Os instrumentos de medida (balança, termômetro,
aparelhos sofisticados utilizados em exames clínicos etc.), por exemplo, permitem ao
cientista ultrapassar a percepção imediata e subjetiva da realidade e fazer uma
verificação objetiva dos fenômenos.
A abordagem que a ciência faz da realidade permite a previsibilidade dos
fenômenos, o que consequentemente possibilita um maior poder para a
transformação da natureza. Dessa característica da ciência resulta o desenvolvimento
da tecnologia, que mudou o habitat humano particularmente a partir do século XX.
Mas esse poder é ambíguo: pode estar a serviço do homem, ou contra ele. Pense-se, arespeito disso, no problema ecológico.
É preciso, porém, retirar do conceito da ciência a falsa ideia de que ela é a única
explicação da realidade, como se se tratasse de um conhecimento “certo” e
“infalível”. Há muito de construção nos modelos científicos e, às vezes, há teorias
contraditórias, como a explicação do fenômeno luminoso. Atualmente a ciência é
entendida como uma busca constante de explicações e soluções, de revisão e
reavaliação de seus resultados, e tem a consciência clara da sua falibilidade e de seus
limites. A esse respeito, Karl Popper, filósofo contemporâneo, na sua análise crítica
da ciência, afirmou que todo conhecimento científico é hipotético e se desenvolve a
partir de erros anteriores (VERDONE, 1999).
17
1.1.3 Conhecimento filosófico
Ao contrário das outras ciências particulares que têm um campo de estudo bem
determinado (por exemplo, a astronomia analisa a natureza e o movimento dos
astros; a biologia, a vida vegetal e animal; a química, a composição dos corpos; a
física, as propriedades gerais dos corpos; a matemática, a quantidade; a psicologia, o
comportamento humano etc.), a filosofia se interessa não por um particular aspecto
da realidade, por este problema ou por aquele, mas por tudo de todas as inúmeras
questões que interessam à reflexão humana; iluminada pela razão e, em busca das
causas mais profundas, vai além dos dados próximos e experimentáveis.
Poderíamos definir a filosofia, que de um ponto de vista etimológico significa
“amor à sabedoria”, da seguinte maneira: a filosofia é a disciplina que procura
descobrir o sentido último de tudo, servindo-se da razão.
Assim, o objeto da filosofia é constituído de realidades mediatas, não perceptíveis
pelos sentidos e que, por serem de ordem suprassensível, ultrapassam a experiência,
seguindo essencialmente o método racional. A título de exemplo, o filósofo não se
limita aos dados experimentáveis da biologia científica, mas se pergunta: Quem é o
homem? De onde ele vem? Para onde ele vai? Quais são seus elementos constitutivos
fundamentais?
A filosofia analisa tudo, procura uma “visão de conjunto” de toda a realidade. A
análise filosófica, por sua vez, interessa-se por muitos problemas, dos quais se podem
lembrar os principais: cosmológico (do mundo), gnosiológico (do conhecimento),
antropológico (do homem), metafísico ou ontológico (do ser e de sua origem), ético
(do bem e do mal morais), político (da sociedade), estético (da arte), epistemológico
(questionador do saber científico), pedagógico (da educação), linguístico, jurídico
(filosofia do direito) etc.
Se as ciências procuram descobrir como agem as coisas materiais, a filosofia tem
como objetivo descobrir o porquê de tudo. O objeto de análise da filosofia é o sentido
último de todas as coisas, tendo como método apenas a reflexão racional.
A filosofia é uma constante interrogação que o homem faz a si mesmo e a toda a
realidade: não é algo feito, acabado. A filosofia interroga, principalmente, fatos e
problemas que cercam o homem concreto, inserido em seu contexto histórico.
Nesse sentido, assim se expressou a encíclica de João Paulo II Fides et ratio (quer
dizer, Fé e razão), falando da filosofia (1998):
A filosofia nasceu e começou a desenvolver-se quando o homem principiou a interrogar-se sobre o porquê
das coisas e o seu fim. Ela demonstra, de diferentes modos e formas, que o desejo da verdade pertence à
própria natureza do homem. Interrogar-se sobre o porquê das coisas é uma propriedade natural da sua
razão, embora as respostas que esta aos poucos vai dando se integrem num horizonte que evidencia a
complementaridade das diferentes culturas onde o homem vive.
A grande incidência que a filosofia teve na formação e desenvolvimento das culturas do Ocidente não
deve fazer-nos esquecer a influência que a mesma exerceu também nos modos de conceber a existência
presentes no Oriente. Na realidade, cada povo possui a sua própria sabedoria natural, que, como autêntica
riqueza das culturas, tende a exprimir-se e a maturar em formas propriamente filosóficas. Prova da verdade
de tudo isto é a existência duma forma basilar de conhecimento filosófico, que perdura até os nossos dias e
que se pode constatar nos próprios postulados em que as várias legislações nacionais e internacionais se
inspiram para regular a vida social (n. 3).
A referência ao Ocidente e ao Oriente mostra que o contexto da reflexão
18
filosófica muda através das diferentes culturas e épocas históricas. Hoje os filósofos,
além das interrogações tradicionais, formulam novas questões: O homem será
dominado pela técnica? As conquistas espaciais comprovam o poder ilimitado do
homem? O progresso técnico é um benefício para a humanidade? Quais são os
aspectos éticos da globalização ou da engenharia genética?
19
1.1.4 Conhecimento teológico
É possível um diálogo entre a razão e a fé? E no caso de uma resposta positiva, qual
é o papel da teologia nesse diálogo? A teologia fica reservada apenas a alguns
religiosos intelectuais totalmente “separados” dos problemas do dia a dia que sempre
afligem a humanidade?
Toda pessoa humana, porque é humana, necessita pensar na sua própria situação,
na sua vida, nas suas relações com a natureza, com os outros, com o transcendente,
com Deus; necessita pensar em suas próprias relações econômicas, políticas, religiosas
e pessoais; finalmente, necessita elaborar seu projeto. Todos nós como homens e
como agentes sociais, necessitamos de uma imagem para guiar-nos na realidade que
nos rodeia. Esta imagem pode ser consciente ou inconsciente, mas sempre existe em
todos.
O conjunto mais ou menos coerente de representações, conhecimentos, valores e
crenças com as quais cada um nasce, vive, as quais assimila e ajuda a elaborar,
costuma-se chamar de ideologia no sentido amplo.
Nossas ideias e conhecimentos têm alguma relação com práticas ou com algum
interesse; isto é assim não porque o queiramos, mas porque todo conhecimento é um ato
vital e histórico e aberto a novas contribuições que o enriquecem. Esse fato tem uma
consequência: nenhuma visão global, nenhuma ideologia, no sentido anteriormente
definido, é de fato global, a não ser unicamente na sua intenção. Toda visão do
mundo é parcial, não consegue captar todos os aspectos da realidade. A visão global
parte, pois, sempre do particular, onde se situam os interesses dos grupos.
Entendemos estas afirmações como pressupostos que pertencem à estrutura da
existência humana, pessoal e social.
A fé, seja ela pessoal ou comunitária, é uma experiência radical, não redutível a
nenhuma outra, mediante a qual se adere a Deus como o sentido e a significação de
todos os sentidos e significações: no caso específico da fé cristã, trata-se de aceitar a
revelação de Deus que se manifestou, de maneira definitiva, na vida, paixão, morte e
ressurreição de Jesus Cristo.
A fé tem a estrutura de um encontro com o absoluto, que se exprime por uma
conversão, uma celebração e um comportamento ético específico.
A teologia, por sua vez, constitui-se como esforço e penetração racional da
experiência e dos conteúdos da fé. A teologia é a fé pensante e pensada, crítica e
sistemática, em uma palavra, é a fé que se procura compreender de maneira reflexiva
(ALSZEGHY; FLICK, 1979).
Assim, a título de exemplo, no judaísmo e no cristianismo parte-se de um dado
racional, a saber, a existência histórica de Moisés, do povo de Israel, de Jesus Cristo,
dos apóstolos. A aceitação dos dados históricos não pertence à fé. Esta se realiza na
aceitação da mensagem que Moisés, os profetas, Jesus Cristo, os apóstolos afirmaram
ter recebido de Deus para comunicá-la aos homens. A afirmação cristã segundo a
qual “Jesus Cristo morreu na cruz para a salvação dos homens” contém um dado
histórico e um dado de fé. Historicamente, existem as provas para afirmar que Jesus
morreu crucificado, mas só a fé nele pode afirmar que essa morte é o ato da salvação
dos homens. O dado de fé é uma revelação e não pode ser descoberto nem pela
20
ciência, nem pela filosofia,nem pelo conhecimento popular; tem valor só para aquele
que realiza a experiência da fé.
Mesmo assim, o crente procura “entender” a sua fé, encontrar motivos de
“credibilidade”. Irá, pois, sistematizar seus dados de fé e procurar integrá-los em toda
a sua experiência humana. Por exemplo, poderá perceber que o anúncio de fé a
respeito da “vida eterna”, da “ressurreição final”, é uma resposta ao anseio de
felicidade presente no homem; ou que todo o estilo de vida de Jesus de Nazaré é uma
boa premissa para acreditar nele; ou que, antes de acreditar em Cristo, existem todas
as provas históricas a respeito da sua vida.
A teologia como disciplina, vale dizer, como discurso da fé cristã, é uma só. A
ótica que a especifica é a de contemplar tudo sob a luz da fé: primeiramente Deus e
em seguida todas as coisas à luz de Deus.
O objeto da teologia não é somente Deus, enquanto acessível à razão ou enquanto
revelado, mas também todos os seres enquanto podem ser vistos à luz de Deus.
Pertence também à tarefa da teologia falar de política, de economia, de sociedade,
de ecologia, de bioética, enquanto fale não politicamente nem economicamente etc.,
porém, teologicamente, isto é, à luz de Deus. Essa é a consideração específica do
discurso teológico. É o que confere unidade à teologia enquanto teologia.
Ainda que a teologia seja uma só, existem modos diversos de realizar a tarefa
teológica. A razão pela qual se constrói a teologia é sempre uma razão histórica. O
teólogo reflete sua realidade: participa dos condicionamentos de seu tempo, tanto
materiais como espirituais. A elaboração teológica é sempre afetada pelo lugar social
que ocupa o teólogo dentro da Igreja e dentro da sociedade. Não é a mesma coisa
fazer teologia a partir de uma barricada ou de um centro acadêmico, de Roma ou da
Cidade do México. Toda a teologia tem certos compromissos oriundos de seus
destinatários: o povo, os letrados, os próprios teólogos; ou oriundos da linguagem que
utiliza e dos instrumentos racionais que emprega.
Há duas formas básicas de fazer teologia como inteligência da fé.
a) Uma consiste em tomar os temas diretamente teológicos como são apresentados
pela Igreja e procurar aprofundá-los racionalmente. Assim se estuda o tema de Deus,
da Santíssima Trindade, de Jesus Cristo, da graça, do pecado, da Igreja, dos
sacramentos, da escatologia.
Esta tarefa foi executada genialmente pelos grandes mestres medievais.
Os conteúdos teológicos não têm apenas uma significação interior à Igreja, mas
também uma significação social. Por exemplo, a teologia diz que Deus é
transcendente e santo, porém não é um Deus neutro; é um Deus que ama a justiça e
abomina a iniquidade, que é sensível ao grito dos oprimidos e quer um culto que seja
expressão de justiça, de misericórdia e de fidelidade. Não se trata, pois, de uma
teologia alienada.
b) A outra consiste em refletir sobre temas que não são diretamente teológicos,
mas que são seculares ou temporais, buscando ver sua conexão com o desígnio de
Deus e sua ordenação com o Reino. Assim se podem tomar temas como:
secularização, processos de mudança social, análise de sistemas econômicos e
políticos, valor das lutas populares em favor de maior justiça; ou outros temas de
atualidade, por exemplo, a questão da ecologia ou das células-tronco embrionárias.
21
Ambos os métodos, utilizados de modo exclusivo, têm seus riscos: o primeiro, de
permanecer num plano abstrato e insensível à voz de Deus que interpela a partir das
realidades terrestres e dos humildes oprimidos; o segundo, por sua vez, de reduzir a
interpretação das realidades terrestres sem considerar adequadamente as fontes da
Revelação (BIGO; ÁVILA, 1982).
A teologia possui uma perspectiva e uma orientação não contidas na metodologia
das outras disciplinas. Pode-se exemplificar. Nenhum microscópio de alta capacidade
nos leva a descobrir a dignidade da pessoa humana, ou o valor da família. O
conhecimento científico é, pois, limitado. Não explica os mistérios da dor, da morte,
do mal; não oferece sentido completo à vida humana. No fundo, o conhecimento
teológico ajuda o conhecimento racional a perceber mais seus limites.
Por outro lado, a teologia se enriquece através do diálogo com a razão: é ajudada a
compreender “o mundo de hoje”, a sistematizar seus dados, a apresentá-los com
conceitos adequados.
A citada encíclica de João Paulo II Fides et ratio, no n. 33 (1998), apresenta o
caminho do homem rumo à verdade através da ciência, da filosofia e da fé, nestes
termos:
O homem, por sua natureza, procura a verdade. Esta busca não se destina apenas à conquista de verdades
parciais, físicas ou científicas; não busca só o verdadeiro bem em cada uma das suas decisões. Mas a sua
pesquisa aponta para uma verdade superior, que seja capaz de explicar o sentido da vida; trata-se, por
conseguinte, de algo que não pode desembocar senão no absoluto. Graças às capacidades de que está
dotado o seu pensamento, o homem pode encontrar e reconhecer uma tal verdade. Sendo esta vital e
essencial para a sua existência, chega-se a ela não só por via racional (quer dizer, a da ciência e da
filosofia), mas também através de um abandono fiducial a outras pessoas que possam garantir a certeza e
autenticidade da verdade. A capacidade e a decisão de confiar o próprio ser e existência a outra pessoa
constituem, sem dúvida, um dos atos antropologicamente mais significativos e expressivos (Grifo nosso).
A fé é, pois, este “ato de confiar o próprio ser e existência a outra pessoa”: um dos
atos antropologicamente mais significativos e expressivos.
Podemos sintetizar e, ao mesmo tempo, comparar o objeto e o método dos quatro
níveis de conhecimento abordados aqui, da maneira seguinte:
1) Conhecimento popular:
a) Objeto: um pouco de tudo;
b) Método: é assistemático, sem método.
2) Conhecimento científico:
a) Objeto: analisa os fenômenos sensíveis para descobrir suas leis;
b) Método: observação sistemática e, quando possível, a experimentação.
3) Conhecimento filosófico:
a) Objeto: questiona todas as coisas, procurando saber sua essência (o que é?),
sua origem (de onde vem?), seu destino (para onde vai?), seu sentido (por
quê?);
b) Método: só o raciocínio.
4) Conhecimento teológico:
a) Objeto: os dados da fé;
b) Método: a integração entre a fé e a razão.
22
1.1.5 Outras formas de conhecimento
Falou-se sobre esses diferentes, mas não exclusivos, tipos de conhecimento. A esse
respeito não podemos esquecer outras formas de conhecimento, como aquelas
produzidas pela experiência estética. O poeta, maravilhado diante da realidade,
atinge, através da inspiração, um tipo de conhecimento incomum à maioria das
pessoas. De seu íntimo irrompe uma re-presentação da realidade, capaz de tornar belo
até o detalhe mais insignificante, como uma gota de água ou uma flor. O sentimento
“estético” leva o espírito humano a compreender e captar vivencialmente a realidade
sensível em uma profundidade nova (MAÇANEIRO, 1995).
Seria interessante estudar também o conhecimento produzido nas diferentes
culturas através dos mitos. As “fábulas” (em grego mythos) de Esopo (VI séc. a.C.)
terminavam sempre com a frase: “O mito ensina que...”. A fábula-mito era uma
maneira original de ensinar-aprender.
E como não pensar na experiência vivenciada pela criança que, de maneira rápida
e intensa, se maravilha diante da realidade que para ela é nova? É a sua maneira de
conhecer!
Limitei-me apenas em acenar a outras formas de conhecimento, só para mostrar
que as anteriormente analisadas não são as únicas. Aliás, o filósofo Jacques Maritain,
na sua obra Distinguer pour Unir ou Les Degrés du Savoir (quer dizer, Distinguir para
unir ou os graus do saber, de 1932), fala de cinco graus de conhecimento, ou de saber:
1) o saber da ciência; 2) o saber da matemática (a abstração do número); 3) o saber
filosófico; 4) o saber teológico (síntese entre fé e razão); 5) o saber místico (a
experiência direta de Deus em si mesmo e na sua relação com o homem, típica da
oração contemplativa).
Para ele, no que diz respeitoà relação fé-razão, os princípios do saber provêm da
razão, e a fé oferece o sentido da verdade, a necessidade de procurá-la. A fé confere à
razão seja o sentido do seu limite (pois a razão não explica tudo), seja um corpo de
verdades transcendentais, quer dizer, comuns a toda a humanidade, que dão sentido
ao saber: por exemplo, o cristianismo ensinou a fé no progresso civil da humanidade,
a dignidade da pessoa humana, a dignidade do povo, a igualdade entre os homens, o
caráter relativo de toda autoridade, a coincidência entre política e moral, a liberdade,
a fraternidade.
23
1.1.6 Texto complementar: Interdisciplinaridade
“As histórias cativam. Elas têm o poder mágico de ultrapassar o nível racional e
nos envolver afetivamente, com nosso coração, fé, imaginação, criatividade e
esperança. Além disso, nos deixam uma mensagem de sabedoria e, não raras vezes,
uma lição de vida como tarefa para casa.
Hoje, partilhamos uma interessante história contada a respeito de seis cegos do
Hindustão que, após tanto ouvirem falar de elefante, decidiram sair a campo para
descobrir o que era realmente o elefante. Partiram em diferentes direções para
encontrá-lo e trazer as descobertas.
O primeiro cego, batendo contra a larga e resistente anca do elefante, grita alto:
‘Ó meu Deus, o elefante não é nada mais que um grande muro’.
O segundo cego, sentindo a presa lisa e afiada, observa: ‘O elefante não é nada
mais que uma lança’.
O terceiro cego, tocando a tromba do elefante, conclui apressadamente: ‘Quem
não vê que o elefante não é nada mais que uma cobra?’
O quarto cego, tropeçando com o joelho do elefante, afirma categoricamente:
‘Não tenho a menor dúvida, o elefante não é nada mais que uma árvore’.
O quinto cego, tocando a orelha do elefante, que estava abaixado, diz: ‘Ah,
ninguém pode negar que o elefante não é nada mais que um cobertor’.
O sexto cego, agarrado à cauda do elefante, exclama com euforia pela descoberta:
‘Aqui está ele, o elefante não é nada mais que uma corda’.
Terminada a busca, os seis cegos voltam para, juntos, discutirem a respeito dos
seus achados e tirarem dúvidas a respeito do elefante. Cada um se apresenta fechado
em sua autossuficiência dogmática; o que vale é somente a sua verdade. Estão mais
preocupados em defender os seus próprios interesses e pontos de vista.
Conflagra-se a polêmica, acabam discutindo e se desentendendo ainda mais! Se
estivessem abertos, com espírito interativo para ouvir a parcela de verdade do outro,
poderiam ter crescido e descoberto uma imagem mais acertada do elefante... Seria o
início do diálogo multidisciplinar. Não seria o óbvio? Mas não é tão simples como
parece! Ledo engano acreditar que a realidade se dá a conhecer tão facilmente
quanto imaginamos.
Esta história pode nos ensinar muito a respeito da vida, de relacionamentos,
colaboração e interdisciplinaridade. É hora de darmos crédito à ótica e terapêutica
multidisciplinar, não por capricho ou modismo, mas por necessidade de honrar a
verdade. A verdade revela-se dialogal.
O conhecimento apresenta-se hoje como um conjunto de especializações, por
vezes desconexas, em que acabamos sabendo sempre mais de cada vez menos, até
chegarmos a saber quase tudo de quase nada. É um paradoxo! Esse conhecimento
dificilmente se transforma em sabedoria se não honrar a contribuição da perspectiva
multidisciplinar. É esta a visão que nos faz perceber que existem várias formas de
conhecimento; a explicação da realidade não pode ser feita unilateralmente a partir
de uma forma de saber eleita como dominante. Diríamos que não se trata de atribuir
à ciência um papel hegemônico, nem de contrapô-la com as explicações artísticas,
religiosas e míticas, entre outras. A significação do conhecimento, do trabalho, da
24
vida, enfim, pressupõe a interdependência colaborativa, que honre os valores que
cada pessoa tem” (PESSINI; BARCHIFONTAINE, 1996b, p. 57-58).
25
1.2 O problema do homem
O conhecimento da realidade, da verdade, em todos os seus níveis, não é um fim
em si mesmo. O homem quer conhecer para “ser mais”, pois o objetivo do
conhecimento é o bem do homem. Por isso, depois de termos refletido sobre o
conhecimento, torna-se necessário analisar o homem e seus problemas.
O homem é uma realidade extremamente complexa. Isso é verdade, antes de tudo,
na ordem das ações. Ele exerce atividades de todo gênero: conhece, estuda, escreve,
fala, trabalha, joga, reza, ama, sofre, diverte-se, come, bebe etc. E cada uma dessas
atividades suscita questões e problemas de difícil solução. Pense-se, por exemplo, nos
verbos “comer” ou “trabalhar”, e nos correspondentes problemas da fome, da
obesidade, do desemprego etc.
Mas a complexidade acentua-se ainda mais quando se passa do plano da ação ao
plano do ser. Então nos perguntamos: Quem é este indivíduo singular a quem
chamamos “eu” e que qualificamos como “pessoa”? Qual é a essência do homem?
Quais são seus elementos constitutivos fundamentais? Qual é a origem primeira e o
fim último do homem? O que disseram dele os grandes pensadores?
Vamos tentar, antes de tudo, uma abordagem fenomenológica do homem, quer
dizer, procurando estudar o fenômeno humano, ou seja, o homem nas suas
manifestações mais significativas: corporeidade, conhecimento, vontade aberta ao
amor, linguagem, sociabilidade, cultura, trabalho, jogo, religião.
Numa reflexão mais aprofundada, porém sintética, poderemos interrogar a história
da filosofia ocidental para conhecer as principais respostas que os filósofos deram à
maior de todas as questões: “Quem é o homem?”.
As últimas reflexões, por fim, serão sobre “as características da alma”, “a
autotranscendência e a espiritualidade do homem” e “o homem como pessoa”
(MONDIN, 2005).
26
1.2.1 Fenomenologia do homem
1.2.1.1 Homem: um ser que tem corpo
A primeira realidade que o homem manifesta é o corpo. A esse respeito vamos
considerar alguns dados que o senso comum e a ciência nos trazem para, depois,
refletir sobre as principais funções do corpo.
As ciências nos deixam estupefatos e maravilhados, oferecendo-nos dados
relativos ao mecanismo do corpo humano, perfeitíssimo tanto em seu conjunto como
em suas partes.
Outro fato surpreendente diz respeito ao desenvolvimento do corpo humano.
Enquanto o animal nasce geralmente com o corpo já perfeito, inteiramente pré-
fabricado, pelo qual se torna independente desde os primeiros dias (por exemplo, o
pintinho, o bezerrinho, o leãozinho), o homem nasce com um corpo que está ainda
em fase de estruturação.
Mas enquanto o corpo do animal não é mais capaz de desenvolver-se
ulteriormente de modo apreciável, ficando especializado só em algumas operações, o
corpo humano é dotado de um poder de desenvolvimento maravilhoso. O homem é
capaz de manejar seu corpo, adestrá-lo e torná-lo apto a realizar movimentos de uma
perfeição admirável. Basta ver o que sabem fazer os instrumentistas e os
prestidigitadores com as mãos, os dançarinos e os bailarinos com os pés, os artistas
com os dedos etc.
O homem não é só senhor do seu corpo, mas também, graças a ele, torna-se
senhor do mundo. Particularmente com o instrumento que lhe é fornecido pelas
mãos, o homem pode formar o mundo, transformá-lo e dominá-lo.
Outro aspecto que caracteriza o corpo humano e o distingue nitidamente dos
animais é a sua posição vertical. Enquanto os animais apresentam um equilíbrio
horizontal, o homem tem a postura ereta. E essa posição lhe é tão essencial que basta
invertê-la, por algum tempo, para provocar a morte do homem. No antigo Egito,
alguns condenados à morte eram simplesmente suspensos de cabeça para baixo.
Ao contrário da posição horizontal, o porte ereto é sinal de vida, de saúde, de
força. Por esse motivo, a posição vertical assumiu importante conotação simbólica.
As nações, as cidades, as regiões competem entre si para ver quem constrói edifícios
“mais altos”: a Torre de Babel, a Torre Eiffel, o Empire State Building etc. Os
soberanos “sobem” ao trono. E todos os povos consideram o céu como o lugar onde
habita a divindade. No dia 11 desetembro de 2001, o atentado às Torres Gêmeas de
Nova Iorque foi um ataque contra o poder dos Estados Unidos, simbolizado por
aquelas “altas” torres.
Mecanismo maravilhoso que nasce ainda em fase de estruturação mas pode
desenvolver-se de maneira extraordinária, e posição vertical: esses são os primeiros
dados sobre o corpo humano fornecidos pela experiência ordinária e pela pesquisa
científica.
Mas quais são as principais funções do corpo humano?
O corpo é elemento essencial do homem: sem o corpo o homem não pode
alimentar-se, reproduzir-se, aprender, comunicar-se, divertir-se.
Vamos analisar algumas destas funções.
27
Uma das principais funções do corpo humano é a de “mundanizar” o homem, isto
é, a de fazer dele um ser-no-mundo. É por obra do corpo que o homem faz parte do
mundo: ele se conhece constituído dos mesmos elementos do mundo, sujeito às
mesmas sortes e às mesmas leis por causa do seu corpo. Como qualquer outro corpo, o
nosso também ocupa um espaço bem determinado. Sair do espaço significa
abandonar o próprio corpo, cessar a existência no mundo.
A partir do meu espaço encontro as coisas que estão no meu horizonte — e esse
meu espaço torna-se o centro, a partir do qual eu conheço todo o universo. E aqui
entramos numa outra função específica do corpo: ele nos ajuda a conhecer o mundo,
as coisas. Antes de tudo, por meio do corpo percebemos a nós mesmos — o corpo é
instrumento de autoconsciência. Dessa forma, quando estamos indecisos se alguma
coisa está acontecendo ao nosso ser ou se estamos sonhando, apalpamos o nosso
corpo: essa é a verificação do nosso ser. Se encontrarmos a cabeça, as mãos, os pés
onde e como devem ser, damos um suspiro de alívio e voltamos a ficar tranquilos.
Além disso, nós conhecemos o mundo a partir do nosso corpo: alto e baixo, de
frente e atrás, direita e esquerda são considerados a partir do nosso corpo. Fala-se do
“pé” da mesa, da “cabeça” do prego, do “coração” da alcachofra etc. Isso mostra que
nós lemos, pensamos e exprimimos o mundo tendo o nosso corpo como ponto de
referência, como “chave de leitura”.
Outra importante função do corpo é a de “ter”, de “possuir”: é a função
econômica, ou de posse. Com efeito, apenas aquilo com que eu posso entrar em
contato com meu corpo pode ser reclamado como meu. Os vários objetos lançados no
espaço celeste ou terrestre não são nada além de precursores do homem: o laboratório
espacial, a sonda dos astronautas e dos espeleólogos exprimem a ambição de uma
verdadeira viagem que consinta ao homem tomar posse, por meio de seu corpo, de
um novo domínio.
O corpo também é um instrumento para fazer o bem ou o mal: é a função moral.
A experiência cotidiana nos diz que o exercício de uma virtude, bem como a prática
de um vício, são, em larga medida, devidos aos hábitos que conseguimos adquirir com
o nosso corpo. Pode-se pensar, por exemplo, nos vícios do fumo e da bebida, ou no
bom hábito de trabalhar sistematicamente.
Tudo isso nos leva a concluir que o corpo é parte essencial do homem. Todavia, o
homem tem, dentro de si, algo que o faz superar os limites do corpo. É suficiente
refletir sobre o pensamento que vai longe, enquanto o corpo fica limitado a um
pequeno espaço.
Em suma, vivemos por meio do corpo, mas não ficamos limitados a ele, e
procuramos superar continuamente a nós mesmos, em busca de metas sempre novas e
maiores.
28
1.2.1.2 Homem: um ser que conhece
O homem é um ser dotado de conhecimento. Os animais também conhecem, pois
percebem suas experiências sensíveis. Mas somente o homem possui a surpreendente
faculdade de refletir sobre si mesmo, de ter ideias, de julgar, de raciocinar. De fato, à
semelhança dos animais, o homem é dotado de algumas formas de conhecimento
sensível: visão, audição, gosto, olfato, tato.
Mas o homem supera os animais de maneira radical no seu modo de conhecer: o
conhecimento humano proporciona dados singulares concernentes à ordem
científica, jurídica, religiosa, moral, ética etc. Em outras palavras, à diferença dos
homens, os animais não têm escola, leis, religião, moral, nenhum conhecimento
científico etc.
Conhecer é ser consciente de alguma coisa. Conheço a maçã quando estou
consciente desse objeto com essas determinadas propriedades que chamo de maçã.
Conheço meu tio quando estou consciente dessa pessoa e do grau de parentesco que
ela tem comigo.
O conhecimento humano abarca tudo aquilo de que o homem pode tornar-se
consciente mediante seus sentidos, externos e internos, e sua inteligência.
Falou-se de sentidos externos e internos. Sentidos externos são os cinco sentidos
comumente conhecidos (visão, audição etc.). Sentidos internos podem ser
considerados a memória, a fantasia (ou imaginação) e o instinto. A memória nos
permite trazer de volta à mente informações que pertencem ao passado. Se nós não
tivéssemos a memória, não iríamos reconhecer nada: nem os nossos pais, nem os
nossos filhos, nem o nosso rosto.
A fantasia, por sua vez, permite-nos representar as coisas de forma original, e
diferentes de como as percebemos pela experiência. Com a fantasia, por exemplo,
podemos não apenas trazer à mente a imagem de um grande edifício, como o edifício
Itália, em São Paulo, mas podemos também, facilmente, representar-nos uma cidade
inteira feita de arranha-céus como o edifício Itália. De fato, a fantasia não se satisfaz
apenas reproduzindo o mundo como o percebemos, mas pode também inventar novos
mundos, diferentes e melhores que o nosso: ela é, por natureza, livre e criadora. A
fantasia foi definida por Harvey Cox como “a fonte mais rica da criatividade
humana” (1974, p. 59).
E pelo instinto, o homem e os animais buscam ou recusam algo de que precisam
para a própria sobrevivência ou prazer: pense-se, por exemplo, no instinto de
conservação, no instinto sexual, ou no instinto de fuga diante de um perigo etc.
Mas, além do conhecimento sensitivo, o homem é dotado de outro tipo de
conhecimento: o da inteligência. O homem, por exemplo, não conhece apenas esta
ou aquela maçã, este ou aquele livro, mas a maçã enquanto tal, o livro enquanto tal:
trata-se de um conhecimento universal e abstrato. A ideia de “livro” pode ser
aplicada a todos os livros do mundo (ideia universal) e, ao mesmo tempo, não está
ligada a nenhum livro em particular (ideia abstrata).
Além disso, o homem possui a ideia de bondade, de virtude, de esporte, de
trabalho etc. Todas essas ideias não se referem a nada de material ou fisicamente
concreto. Em outros termos, na minha cabeça existe a ideia de bondade, mas, no
mundo, existem as pessoas boas; na minha cabeça existe a ideia de virtude, mas, no
29
mundo, existem os virtuosos; na minha cabeça existe a ideia de esporte, mas, no
mundo, existem os esportistas etc.
O conhecimento intelectivo é documentado também pela capacidade de julgar e
de raciocinar. O homem formula juízos, como: “os corpos pesados caem”, “o fogo
queima”, “o vidro, mesmo transparente, é impenetrável” etc.
O homem raciocina — chega a certas ideias, refletindo sobre outras. Nesse
sentido, ele consegue fazer ciência, quer dizer, na ciência o homem coordena os
conhecimentos de forma sistemática, divide-os, classifica-os etc.
Assim, quando o homem estuda ciências biológicas, não se limita a definir o
animal como “cachorro”, mas, confrontando outros conhecimentos, classifica aquele
cachorro numa espécie determinada, por exemplo, a espécie pastor alemão, que o
distingue de outras espécies de cachorro.
O conhecimento, seja ele sensitivo ou intelectual, é sempre parcial: nós não
conseguimos conhecer as coisas de maneira completa.
Nosso conhecimento pode ser comparado a uma fotografia. O fotógrafo não
consegue, numa foto só, registrar inteiramente uma pessoa ou uma casa; irá fotografar
só o rosto ou a parte da frente, ou irá fotografar só um lado da casa. O homem, com
sua cultura, com sua história, com sua inteligência, consegue entender, compreender
só uma parte da realidade. Eis por que as ciências nunca acabam seu trabalho: o
homem continua estudando, porque a realidade é tão vasta e amplaque ele nunca
consegue estudá-la de maneira completa. Além disso, a realidade, especialmente nos
dias de hoje, sofre mudanças rápidas e profundas: daí nasce a necessidade de contínua
atualização.
O homem não só conhece as coisas e reflete sobre elas, mas chega a refletir sobre
si mesmo, a ser autoconsciente. Refletindo sobre si mesmo, o homem não se sente
objeto, mas sujeito, eu, pessoa; o homem se descobre como um ser em marcha, diante
de um horizonte nunca alcançado e sempre estimulante. Poderíamos dizer que o
homem se descobre insatisfeito em todas as suas realizações.
Mas refletiremos sobre esta insatisfação mais adiante.
30
1.2.1.3 Homem: um ser livre que “quer” e “ama”
“Homem de vontade”, “homem de caráter”, “homem livre” são expressões que
indicam um tipo ideal de homem. Todavia, vontade, decisão, caráter e liberdade não
são qualidades que se acham somente em poucos homens extraordinários, mas
pertencem ao homem enquanto tal.
O homem não está determinado, em seu dinamismo, por fatores externos, como
acontece com uma pedra que se move ou com um automóvel. Também sua atividade
não se explica simplesmente com o automatismo que encontramos nos animais e nas
plantas. A ação do homem nasce de suas decisões: ele estuda porque quer estudar,
ama porque quer amar, vai ao cinema porque quer ir ao cinema etc.
Esse querer, essa autodeterminação é característica do homem.
A vontade humana possui várias características:
• É uma vontade volúvel: não quer sempre as mesmas coisas. Ora quer estudar,
ora brincar, ora quer comer, ora ler o jornal, ora quer discutir, ora repousar etc.
• É uma vontade facilmente conformista: adapta-se ao que querem os outros; quer
os espetáculos, a moda, os costumes, os campeões, os governantes etc. que os
outros querem.
• É uma vontade aberta à transcendência: quer também as coisas espirituais, como
a perfeição, a glória, a virtude, o sacrifício, o bem aos outros; contesta e rebela-se
contra situações de fato, para superá-las e criar uma nova ordem.
• É uma vontade livre: sente-se dona e responsável pelos próprios atos.
Cada uma dessas características tem sua importância, mas a que conta mais é, sem
dúvida, a liberdade. O valor que nós hoje damos à liberdade humana precisou de
séculos para ser reconhecido.
No pensamento dos antigos gregos, o tema da liberdade estava ausente: eles
achavam que todas as coisas dependiam do destino, concebido como uma vontade
absoluta que dominava deuses e homens.
O problema da liberdade adquiriu uma nova dimensão no pensamento cristão,
para o qual o destino não existe, tendo cedido lugar a um Deus, Pai providente e
amoroso. Para os gregos, a natureza e a história estão acima do homem; para o
cristianismo, a natureza e a história estão a serviço do homem.
O pensamento cristão dos primeiros séculos e da Idade Média analisou,
principalmente, a liberdade do homem no seu relacionamento com Deus.
No período moderno, o interesse religioso é deixado de lado: por isso, a liberdade
é analisada nas relações do homem com os outros indivíduos, com a sociedade e com
o Estado.
No período contemporâneo, o fenômeno da socialização e das suas consequências
leva a considerar a liberdade sobretudo do ponto de vista social. O problema hoje é:
de que forma se pode ainda ser livre na sociedade atual, na qual os sistemas políticos,
os instrumentos de comunicação, os produtos da tecnologia tornaram-se meios
potentes de opressão? Em outros termos, o problema hoje consiste em encontrar
formas de conciliar o progresso com a liberdade.
A liberdade humana não é absoluta, total, mas condicionada. Assim, o homem
tem de aceitar a si mesmo com um corpo, com um sexo determinado e com
31
características que, necessariamente, fazem parte do “ser homem”. Não pode ser livre
para ter o corpo ou não; não pode subtrair-se a certa dependência do mundo, da
sociedade e da história. O homem depende da cultura na qual vive. Ele não está livre
para usar a linguagem a seu bel-prazer, mas, para comunicar-se com os outros, deve
falar a língua daquela cultura na qual vive.
Além disso, o homem não é livre para procurar senão o bem; em outros termos,
quando ele escolhe alguma coisa, sempre percebe nela algo de bom. O ladrão
apropria-se das coisas dos outros: e isso está errado, do ponto de vista ético. Mas ele
chega a ver, no “roubo”, algo de “bom”, de “desejável”: o fato de possuir, com
facilidade, muito dinheiro ou um objeto precioso.
Como a inteligência humana tende, naturalmente, para a verdade, a vontade
tende, necessariamente, para o bem, para algo que se faz desejar.
A liberdade humana, enfim, está condicionada pelas paixões, pela afetividade. As
paixões correspondem a um desejo intenso que toma conta da pessoa, ao ponto de a
razão encontrar dificuldade em dominá-las. Entre as paixões mais fortes, lembramos o
desejo do prazer, de conquista e de amor. Destas, a paixão do amor tem um papel
fundamental. Prova disso é também o fato de que a maioria dos pensadores,
refletindo sobre a realidade do homem, destacou a importância extraordinária do
amor.
32
1.2.1.4 Homem: um ser que fala
Uma das definições que hoje aparece com frequência é aquela que caracteriza o
homem como ser falante. Trata-se de uma definição acertada porque, de fato, a
propriedade de falar distingue nitidamente o homem dos animais e de qualquer outro
ser deste mundo.
Os animais possuem uma forma elementar de linguagem, mas podem utilizá-la
unicamente como instrumento de sobrevivência para chamar a atenção de animais
da mesma espécie, para situações de importância vital, como presença de alimentos,
de perigo etc.
O homem, ao contrário, utiliza a linguagem com finalidades e de modos bastante
variados: como instrumento de expressão de si mesmo, dos próprios sentimentos e
desejos, para comunicar-se com os outros, para descrever as coisas, para perguntar,
educar, rezar, cantar, como instrumento de luta, de propaganda, de diversão etc.
A linguagem constitui um problema para os cultores de muitas disciplinas: para o
historiador que procura conhecer sua origem e desenvolvimento, para o fisiólogo que
estuda os organismos implicados na emissão dos sons, para o psicólogo que examina a
incidência da linguagem na esfera do consciente e do inconsciente, para o lógico que
estuda a linguagem visando afastar dela a obscuridade e a ambiguidade, para o crítico
literário que examina os estilos dados pelos escritores à linguagem, para o filósofo que
procura esclarecer a natureza, a função e os elementos essenciais da linguagem.
A palavra linguagem indica todo sistema de signos que possa servir como meio de
comunicação. A linguagem expressa intenções, ideias, sentimentos, coisas etc. Ela é o
meio ideal da comunicação humana. O homem é um ser aberto, orientado para
encontrar-se com o mundo e com seus semelhantes. Esta abertura leva à
comunicação, e a comunicação faz-se principalmente por meio da linguagem.
Uma primeira pergunta pode ser feita a respeito da origem da linguagem: como o
homem começou a falar?
Hoje é bastante aceita a hipótese de que a linguagem tenha se originado por
evolução, sobre uma base onomatopeica. A onomatopeia consiste na imitação dos
sons existentes na natureza, por exemplo, o sibilar do vento, o murmúrio das águas, o
pipilar dos pássaros etc.
Essa primeira origem da linguagem é confirmada pela grande quantidade de sons
onomatopeicos existentes em todas as línguas. Vejam-se no português, como
exemplo, as palavras sussurro, chiado, mugir, pum, tique-taque. Essa origem é
também confirmada pelo modo como a criança aprende a falar, imitando os sons que
ouve da mãe.
Sobre essa base onomatopeica, entretanto, o homem trabalhou com liberdade e
genialidade, inventando novos sons ou combinando, de forma variada, sons antigos
(por exemplo, automóvel, televisão, aeroplano etc.). Por isso, grande parte da
linguagem empregada hoje tem origem convencional.
Quanto à natureza da linguagem, percebe-se a presença de três condições
fundamentais: alguém que fala (sujeito que fala) de alguma coisa (objeto de quese
fala) para outrem (interlocutor a quem se fala). A linguagem, portanto, é constituída
desses três elementos.
“Alguém que fala de alguma coisa”: nesse “de alguma coisa” encontramos a função
33
descritiva da linguagem. De fato, falando para alguém, comumente se transmitem
informações, fazendo conhecer alguma coisa. E isso acontece com vários tipos de
linguagem: a linguagem comum, a linguagem científica, a linguagem ética, a
linguagem artística, a linguagem poética etc. Em todos esses casos trata-se sempre de
uma mensagem que será transmitida.
“Alguém fala para outrem”: em “para outrem” indica-se a função comunicativa.
Ao contrário das coisas que estão fechadas em si, o homem é aberto, quer dar-se aos
outros e receber dos outros, quer tornar-se presente. A palavra transforma nossa
presença meramente física e passiva em presença ativa que nos compromete
mutuamente, tornando-nos seres sociais.
Esse poder da palavra de tornar-nos presentes aos outros foi maravilhosamente
revelado pelos atuais meios de comunicação. Obter hoje o registro das vozes das
pessoas queridas modifica o abismo da morte e nossas relações com os falecidos: dá-
nos a sensação de que a morte não nos separou completamente deles.
Entretanto, esta comunicação não é plena, porque a palavra conserva algo de
inexprimível. Isso se deve ao mistério da pessoa, de suas intenções e de sua liberdade:
trata-se de um mistério que nunca vai ser totalmente revelado, comunicado.
“Alguém fala para outrem”: encontramos aqui a função existencial da palavra. Em
outros termos, a palavra torna-nos presentes não só aos outros, mas também a nós
mesmos. A linguagem testemunha aos outros e a nós mesmos a nossa existência. E
não se trata de um testemunho vago, indeterminado, genérico, mas determinado,
exato e qualificado. Com efeito, quando estou irritado, emprego um tom particular de
voz e um certo tipo de linguagem que são bem diferentes daqueles usados quando
brinco ou quando falo tranquilamente com um amigo.
A palavra adquire densidade existencial principalmente por meio do nome: ter
um nome significa possuir uma existência. Em toda parte em que o nome de uma
pessoa é conhecido, pronunciado, recordado, realiza-se sua presença intencional
junto aos outros — e um nome constantemente lembrado (pense-se nos grandes
artistas) chega a superar os limites do espaço e do tempo.
Procurou-se, assim, dar uma resposta sintética aos problemas da origem, da
natureza e das funções da linguagem.
34
1.2.1.5 Homem: um ser que vive em sociedade
O homem é um ser essencialmente sociável: sozinho não pode vir a este mundo,
não pode crescer, não pode educar-se, não pode nem ao menos satisfazer suas
necessidades mais elementares, nem realizar suas aspirações mais elevadas; ele pode
obter tudo isso apenas em companhia com os outros. Por isso, desde o seu primeiro
aparecimento sobre a terra, encontramos o homem sempre colocado em grupos
sociais, inicialmente muito pequenos (a família, o clã, a tribo) e depois maiores (a
aldeia, a cidade, o estado).
Enquanto o nível cultural da humanidade se eleva, a dimensão da sociabilidade se
expande e se enriquece. Hoje ela alcançou um horizonte sem fim; de nacional
tornou-se primeiro internacional, depois intercontinental, e agora assumiu
proporções planetárias.
Os modernos meios de comunicação colocam-nos em contato com os
acontecimentos, importantes ou insignificantes, que ocorrem em toda parte do
mundo. A vida de cada um de nós hoje pode ser abalada por um fato acontecido em
qualquer parte do mundo. Como exemplo, o embargo do petróleo na década de 70
levou à crise o imenso castelo da civilização de consumo, o próprio conceito de
progresso e o modelo de desenvolvimento no mundo ocidental; e a clonagem da
ovelha Dolly revolucionou toda uma visão estática da genética.
A sociabilidade assumiu no século XX tais proporções, que pode vir a ser
legitimamente considerada como um fenômeno típico do nosso tempo. Com
dificuldade, podemos ocultar os nossos pensamentos, mas, logo que eles se
transformam em ação, tornam-se propriedade dos outros; e graças à televisão, ao
rádio, à imprensa, à internet e aos satélites, apenas em um piscar de olhos são
divulgados pelos quatro cantos da terra.
O isolacionismo não é possível hoje. Se devemos, de qualquer maneira,
sobreviver, sobreviveremos só como membros uns dos outros. A linha entre o privado
e o público torna-se cada vez mais confusa. Bem ou mal, a nossa época é aquela do
planejamento, da assistência social e, no plano internacional, das organizações
multinacionais. A capacidade de o indivíduo agir e até pensar, com uma certa
independência de seu ambiente social ou contra ele, vai-se reduzindo.
O que observamos no fenômeno da sociabilidade é que ele é inato ao homem, e
não uma manifestação casual e passageira. A sociabilidade é a consequência imediata
das faculdades mais ligadas ao ser do homem, que são o conhecimento, a linguagem, a
corporeidade, o amor e a liberdade.
O conhecimento põe o homem em contato com todo o mundo que o circunda,
particularmente com o mundo humano. A linguagem permite-lhe trocar com os
outros as suas ideias próprias, os próprios sentimentos e projetos. O corpo lhe dá a
possibilidade de trabalhar, jogar, divertir-se junto com os outros. O amor e a
liberdade colocam-no na disposição de dar-se aos outros e de fazer os outros
participantes da sua própria vida e do seu próprio ser.
A sociabilidade humana se distingue, clara e essencialmente, da dos animais.
Também entre animais da mesma espécie existe o instinto de associar-se a grupos
maiores ou menores e de colaborar para a concretização de determinados objetivos.
Mas as expressões da sociabilidade humana superam infinitamente as dos animais.
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Em virtude das próprias capacidades cognitivas, afetivas e linguísticas, o homem
realiza a dimensão da sociabilidade livremente em organismos e instituições
(governos, parlamentos, tribunais, exércitos, escolas, imprensa, rádio, televisão etc.)
que, entre os animais, não existem nem são possíveis.
A esta altura surge a seguinte pergunta: O que é mais importante: o indivíduo ou a
sociedade?
De um lado, percebemos que o homem recebe a vida da sociedade, desenvolve
seus conhecimentos e suas habilidades com ajuda da sociedade, adquire determinada
cultura, certas crenças religiosas, certos princípios morais e critérios estéticos segundo
a sociedade à qual pertence. Tudo isso revela uma intrínseca dependência do
indivíduo com relação à sociedade.
Mas essa é apenas uma das faces da moeda. Se olharmos para a outra face, parece
claro que a sociedade não constitui uma realidade superior aos indivíduos: ela é um
organismo essencialmente a serviço dos indivíduos para permitir-lhes realizar
plenamente a si mesmos. O indivíduo detém uma primazia absoluta confrontando-se
com a sociedade: com efeito, antes de a pessoa entrar em contato com os outros, deve
primeiro existir.
Porém, como podemos constatar diariamente, a sociabilidade não é uma estrutura
automaticamente positiva. Se, por um lado, é elemento essencial do
desenvolvimento, da expansão e da formação do homem, por outro, ela pode tornar-
se fator decisivo de deformação, constrição, achatamento. Em vez de contribuir para
a realização da própria personalidade, pode transformar o homem em um robô que
cumpre apenas o que a sociedade prescreve, ou ainda pode reduzi-lo a um macaco,
que imita todos os modos de pensar e de agir dos outros. Em tal caso, a sociabilidade
torna-se um instrumento de massificação.
Em suma, o homem é essencialmente sociável, mas a sociedade deve estar a
serviço do homem e não contra ele, contra os valores que dignificam a sua pessoa.
36
1.2.1.6 Homem: um ser culto
Para responder à pergunta: “Quem é o homem?”, podemos considerar o que ele
produz.
Há uma maravilhosa série de produtos humanos: cidades, estradas, canais, pontes,
ferrovias, trens, catedrais, instrumentos musicais, obras de arte de todos os gêneros
(pinturas, esculturas, obras arquitetônicas), línguas, romances, jornais, teatros, ritos,

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