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2 SUMÁRIO Capa Rosto Apresentação Artigo 1 - Juventude em pauta Artigo 2 - Pentecostes juvenil Artigo 3 - Evangelização dos jovens Artigo 4 - Compunção do coração Artigo 5 - O prazer da pertença Artigo 6 - O déficit de iniciação Artigo 7 - Raízes do déficit de iniciação Artigo 8 - Procurando caminhos Artigo 9 - A proposição da fé cristã Artigo 10 - Iniciar na fé Artigo 11 - Encontros catequéticos I Artigo 12 - Encontros catequéticos II Artigo 13 - A mudança epocal Artigo 14 - Uma chance para a fé Artigo 15 - A fé como proposta Artigo 16 - A força instituinte do cristianismo Artigo 17 - O encontro com Deus Artigo 18 - Falar ao coração Artigo 19 - Desafio da interioridade Artigo 20 - Desafio querigmático Artigo 21 - Desafio educativo Artigo 22 - Desafio comunitário Artigo 23 - Em busca de um novo paradigma catequético Artigo 24 - Pedagogias catequéticas Artigo 25 - Pedagogia do ensino Artigo 26 - Pedagogia da aprendizagem Artigo 27 - Pedagogia da iniciação Artigo 28 - O mistério pascal na catequese Artigo 29 - Catequese orante Artigo 30 - Catequistas testemunhas 3 kindle:embed:0008?mime=image/jpg Artigo 31 - Testemunhas do Ressuscitado Artigo 32 - Formação dos catequistas Artigo 33 - Ainda a formação dos catequistas Artigo 34 - Aula ou encontro de catequese Artigo 35 - Des-escolarização da catequese Artigo 36 - Ambiente catequético Artigo 37 - Preparação dos encontros Artigo 38 - Preparação dos encontros II Artigo 39 - Palavra de Deus I Artigo 40 - Palavra de Deus II Artigo 41 - Atividades pedagógicas I Artigo 42 - Atividades pedagógicas II Artigo 43 - Músicas I Artigo 44 - Música II Artigo 45 - As Orações I Artigo 46 - As Orações II Artigo 47 - Catequese e liturgia I Artigo 48 - Catequese e liturgia II Artigo 49 - Catequese e Sacramentos I Artigo 50 - Catequese e Sacramentos II Sobre a autora Ficha Catalográfica 4 APRESENTAÇÃO Temos neste ebook uma série de textos catequéticos publicados pela professora Solange Maria do Carmo no portal da editora Paulus. Foram reunimos aqui com o título “Catequese em pauta”, no desejo de não deixar perder sua reflexão, devido à preciosidade de seu conteúdo. Os artigos começaram a ser publicados logo depois da Jornada Mundial da Juventude, quando a professora foi convidada para contribuir como articulista do site, e esse reflexo aparece no primeiro escrito. São pequenos textos, de meia lauda ou pouco mais, de fácil leitura e densidade teológica comprovada. Sua escrita clara e simples anima o leitor. E sua pedagogia catequética cativa e faz pensar e repensar a catequese. Solange é mestra em teologia bíblica e doutora em teologia catequética. Professora de catequese na PUC-Minas e no Instituto Santo Tomás de Aquino (ISTA), em Belo Horizonte. Além disso, trabalha com catequese há trinta anos e tem longo currículo pastoral no campo da evangelização. Sua tese de doutorado sobre a teologia da catequese se encontra publicada também pela Editora Paulus, como também uma enorme coleção de catequese que ela vem publicando há anos em parceria com o saudoso padre Orione Silva, chamada “Coleção Catequese Permanente”. Sua tese, “Catequese no mundo atual: desafios, crises e um novo paradigma”, traz uma pesquisa consistente sobre a catequese, em sua dimensão histórica, teológica e pastoral. A autora se debruça sobre os paradigmas da catequese antes e depois do Vaticano II, propondo como resposta aos desafios da pós-modernidade um terceiro paradigma, que ela colhe de um importante teólogo catequeta francês, Denis Villelepet. A “Coleção Catequese Permanente” da autora segue na linha teológica de sua pesquisa doutoral São encontros profundamente bíblicos e orantes. A Bíblia, centro de todos os encontros, não é utilizada para ensinar doutrinas, mas unicamente para comunicar a experiência de Deus em Jesus Cristo. A autora entende que a catequese existe em vista desta experiência, pois bem mais importante que saber sobre Deus é experimentar o sabor de Deus. Por isso os encontros partem de textos bíblicos, dos quais brotam a partilha, a conversa, e também esclarecimentos consistentes, embora a catequese não seja aula de teologia bíblica. A oração no contexto da catequese é vista como o lugar do encontro com Jesus Cristo. Sua catequese mistagógica leva ao encontro pessoal com Cristo, com a Igreja e com o mundo. Os encontros são encontros com Deus 5 por meio de sua Palavra e encontro com os irmãos num processo que provoca crescimento, amadurecimento e uma nova presença na sociedade, não mais de reclusão nos limites da Igreja ou de engajamento militante, mas de colaboração, de presença discreta e dialogal no meio de um mundo plural. Talvez nos perguntemos: mas onde entram os sacramentos, os ritos, a moral proposta pela Igreja nessa teologia catequética? A autora propõe uma catequese que converte e faz o catequizando conhecer a Cristo e se comprometer com ele enquanto membro da Igreja. Os sacramentos e os ritos entram no contexto dessa experiência, assim como na Igreja antiga, quando o batismo só acontecia depois de provada conversão. Tudo o que existe na Igreja, segundo o Papa Francisco, é para levar a Jesus. “Todos os cristãos, em qualquer lugar e situação em que se encontram, estão convidados a renovar hoje mesmo o seu encontro pessoal com Jesus Cristo ou, pelo menos, a tomar a decisão de se deixar encontrar por Ele, a procurá-lo dia a dia, sem cessar” (Evangelii Gaudium 11). Os sacramentos, os ritos e a moral são mediações para o verdadeiro encontro com Cristo. O risco de se tornarem ritos vazios com teor mágico-supersticioso é grande. Para alguns, são meras obrigações que não transformam a vida nem fazem viver com sentido novo os acontecimentos do dia a dia. Solange propõe que sejam expressões de uma experiência vivida de Jesus e seu evangelho, fora da qual estariam destituídos do seu significado original. A teóloga apresenta a fé como “sentido para a vida”, não como meio para manipular Deus em vista de egoístas necessidades subjetivas. E também não apenas como dispositivo para alcançar a salvação eterna, que acontecerá depois da morte. A fé inclui a salvação, mas só se mostra consistente quando é portadora de sentido para a vida. Ela se torna, assim, um dom precioso, “capaz de comunicar vida para o homem e a mulher contemporâneos, capacitando-os para enfrentar os desafios do tempo presente”. Belíssima definição da fé, que vai ao encontro do que temos aprendido com o Papa Francisco. A leitura dos textos da Solange sempre vale a pena, por sua densidade, seu conteúdo, sua fundamentação sólida, transmitidos em linguagem acessível, poética, apaixonada e prazerosa, que revela o encantamento da autora pela beleza do mistério de Cristo. E ainda que não concordemos com tudo, suas palavras carregam força centrífuga que pouco o pouco acende em nós o desejo de experimentar o mistério de Deus que se aproximou de nós em verdade e amor na pessoa do seu Filho Jesus Cristo e do Espírito Santo. Seus escritos são, em última instância, um serviço à Palavra de Deus que ressoa em nossas vidas, renovando nossa alegria de crer. Que este ebook ajude catequistas e catequetas, alunos e professores, 6 presbíteros e cristãos em geral, a aprofundarem suas reflexões acerca do mistério que a catequese transmite! Desejamos a todos uma boa leitura e que se deixem contagiar pela teologia catequética da autora! Pe. Paulo Sérgio Carrara, CSSR Professor na Faculdade Jesuíta de Filosofia e teologia e no Instituto Santo Tomás de Aquino, em Belo Horizonte. 7 ARTIGO 1 8 JUVENTUDE EM PAUTA Quando sentimos ainda o sopro refrigerador do Espírito, que pairou sobre as praias de Copacabana por ocasião da 28ª Jornada Mundial da Juventude que reuniu e reanimou a vida de milhões de pessoas, parece oportuno não deixar esse frescor passar sem colocar em pauta a catequese dos jovens. A catequese juvenil se apresenta como verdadeiro desafio em nossos dias. Mas não foi preciso muita coisa para agradar nossos jovens nestes dias de JMJ. Bastou somar umpouco do carisma, da bondade e da simpatia de nosso Papa com uma dose de alegria, de descontração, de naturalidade, de espiritualidade, de bom gosto e muita música, mais uma boa porção da Palavra de Deus, proclamada em ambiente de fé e festa, para que nossos jovens se sentissem atraídos para o seguimento de Jesus Cristo. Não foi preciso dissimular o evangelho como pensam alguns, que os jovens de hoje não estão prontos para a radicalidade e o escândalo da cruz. Não foi preciso adocicar a boa-nova para que ela fosse digerida por eles, pois os jovens são também capazes do Deus de Jesus Cristo e estão sedentos de sua palavra que faz viver. Não foi preciso transformar a celebração em show, mas foi preciso rejeitar uma liturgia engessada e sem vigor que muitas vezes insistimos em manter em nossas comunidades. Não foi preciso ambiente confortável, cadeiras almofadadas, nem templo liturgicamente projetado. Bastaram as areias de Copacabana como banco e o céu estranhamente cinzento e chuvoso do RJ como teto. O que falou mais alto não foi a beleza do templo, nem a rubrica litúrgica seguida à risca, mas a alegria de estarem reunidos em nome da fé e de poderem se expressar com gestos, palavras, canções, abraços, silêncios, preces… Se o conforto não foi quesito indispensável, foi, no entanto, indispensável abrir mão do conforto de nossas Igrejas e secretarias, abandonar nossas burocracias, romper protocolos e acolher o novo, para que os jovens pudessem se sentir Igreja e ter desejo de celebrar sua fé novamente. Certamente que a pastoral juvenil ou a catequese de jovens não poderá viver só disso; tem muito trabalho pela frente. Mas em terras brasileiras, onde por muito tempo se rejeitou – em nome da fidelidade aos pobres – todo tipo de pastoral ou movimento que se permitisse uma manifestação mais efusiva do Espírito, parece oportuno realçar que a JMJ no RJ quebrou paradigmas e ajudou a vencer preconceitos. Resta agora saber se nossas comunidades eclesiais vão saber aproveitar em seu seio os jovens que o Espírito de Pentecostes congregou em Copacabana. Basta um pouco de 9 conhecimento das Escrituras para ver que, em Atos dos Apóstolos, não foram suficientes o derramamento do Espírito e a pregação de Pedro. Se a Igreja não se organizasse para acolher os que a palavra congregou, de nada adiantaria toda a obra do Espírito. 10 ARTIGO 2 11 PENTECOSTES JUVENIL O Pentecostes descrito em Atos 2, com tons de transbordamento do Espírito e exagero da parte da assembléia, parece ser um bom ponto de partida para falarmos da catequese juvenil, sempre exagerada e exuberante nas suas manifestações. Lucas não poupou cores fortes para pintar o quadro da efusão do Espírito: vento, barulho, fogo, línguas… Certamente símbolos de teofanias já descritas no Antigo Testamento, especialmente àquela acontecida no Sinai. A festa de Pentecostes, que antes comemorava a colheita e a alegria dos primeiros e abundantes frutos, ganhou sentido novo com o decorrer do tempo. Passou a significar a festa da entrega da Torá, por meio de Moisés, ao povo. Os judeus entenderam que o fruto novo e abundante com o qual Deus os alimentava era sua palavra e não os grãos colhidos no campo. Vento, fogo, barulho… Para Lucas, Deus continua se manifestando como outrora para comunicar (línguas) aos seus (a Igreja nascente) a sua palavra que alimenta e gera comunhão. Apesar de descrever um público de origem judaica (judeus da diáspora – cf. At 2,5), que deveria estar acostumado a este tipo de linguagem, o autor sagrado não deixou escapar que tanta espontaneidade e liberdade fossem alvo de críticas de alguns mais comedidos e racionais – a ponto de dizerem: “Estão cheios de vinho doce!” (At 2,13). Como em pentecostes, as assembléias de jovens causam certamente algum estupor e admiração (cf. At 2,12). O barulho dos encontros juvenis cheios de exuberância e de suas canções em volumes sempre alto nos irritam. O frescor de suas idéias nada presas às tradições, e que como o vento nos escapam, parece dizer que não temos mais o controle da situação. O fogo de seu vigor e de sua jovialidade, insistindo em queimar a frieza de nossas liturgias e pedindo para aquecer nossos encontros, nos fazem pensar que arrefecemos no primeiro amor (cf. Ap 2,4). E ainda mais: suas línguas ferinas e espontâneas a dizer muitas vezes o que não queremos ouvir, a recusar nossos ensinamentos prontos – sem dialogar com eles – e a pleitear direitos que insistimos em negar-lhes também nos incomodam. Vai ser difícil ver nossa juventude retomar seu espaço na Igreja sem reagir como aqueles que estavam do lado de fora do Cenáculo: “Estão bêbados e não devem ser levados a sério!”. De alguma forma, já passamos por isto, quando fomos às ruas lutar contra a ditadura ou quando enchemos nossas comunidades eclesiais com o sangue novo de uma pastoral militante. A diferença é que, em tempos de pós-modernidade, nossos jovens não militam em 12 prol de uma causa social ou da utopia do Reino, mas em prol da experiência de Deus que lhes foi negada, na utopia que a comunhão com Deus é possível em qualquer tempo. Já passou da hora de pagarmos a nossos jovens a conta que eles estão cobrando: o déficit de iniciação cristã que deixamos como rastro na nossa pastoral católica. 13 ARTIGO 3 14 EVANGELIZAÇÃO DOS JOVENS Após o Pentecostes, relata Lucas, Pedro abriu as portas do Cenáculo e pregou (cf. At 2,14). Cheios do Espírito, os apóstolos e os demais presentes têm necessidade de partilhar a fé, de anunciar aos outros a experiência forte que acabaram de fazer. Então Pedro, de pé, como um profeta a proclamar um oráculo ou um juiz a pronunciar uma sentença, se põe a proclamar às multidões. Sua palavra não é um ensinamento, mas uma partilha: Pedro comunica sua experiência de transbordamento, cuja causa não é o vinho mas o cumprimento das Escrituras em suas vidas (cf. At 2,14-21). E, logo em seguida, anuncia o centro de tudo: o causador de todo aquele tumulto é Jesus de Nazaré que foi morto, mas está vivo. É para cumprir sua promessa que o Espírito fora derramado em abundância sobre eles (cf. At22-24.32-33). A pregação querigmática de Pedro, colocada logo no começo do livro dos Atos dos Apóstolos, é emblemática: Lucas vai dedicar esta obra ao anúncio da boa- nova e, para ele, a boa-nova é Jesus. Aquele que passou a vida anunciando a palavra tornou-se agora a palavra anunciada. O evangelizador tornou-se evangelho. Lucas sabe que ninguém pode aderir ao Caminho (a Igreja nascente) se não fizer sua experiência pessoal com Jesus Cristo, se não aceitar sua pessoa, sua obra, sua missão. Por isso não se cansa de pôr na boca dos apóstolos – especialmente de Pedro e Paulo – o anúncio do querigma. Para fazer parte da comunidade cristã era preciso ser iniciado na fé no Cristo morto e ressuscitado, um apelo que Lucas não desiste de fazer aos seus leitores até o final de seu livro. Salta aos olhos a lógica lucana: o transbordamento do Espírito não pode ficar preso dentro das paredes do Cenáculo. A fé precisa ser partilhada e testemunhada ao mundo, pois tal é sua preciosidade que seria crueldade negá- la a nossos irmãos e irmãs ainda não iniciados. Plagiando o esquema lucano, poderíamos dizer que é hora de a Igreja abrir suas portas e anunciar aos que estão de fora, principalmente nossos jovens – excluídos da vida eclesial pelo desinteresse pela fé cristã – a boa-nova que é Jesus Cristo. É hora de corrigir o défict de iniciação que a fé católica deixou, tão acostumada estava com o regime de cristandade que não se empenhou na tarefa da evangelização como deveria. E este é um direito não só dos jovens, mas de todos. Até mesmo de nós que já estamos engajados na vida eclesial, pois a iniciação jamais termina, afinal Jesus não cessa de nos surpreender com sua presença amorosa e de exigir de nós novas respostas de seguimento. 15 ARTIGO 4 16 COMPUNÇÃO DO CORAÇÃO Quando a multidão ouviu a pregação de Pedro, continua relatando Lucas em Atos dos Apóstolos, não ficou inerte, nem indiferente ao anúncio. A força da boa-novaanunciada saiu devastando corações e fazendo sua obra (cf. At 2, 37- 41). A primeira reação foi a compunção do coração. Ficar com o coração compungido é ser tocado lá no íntimo; é ver as entranhas remexidas; é ter as estruturas abaladas pela palavra que fora anunciada. Não é possível ser tocado assim e não se interrogar acerca do que fazer a partir de então. Quem tem seu coração compungido sabe que nunca mais será o mesmo; algo novo aconteceu dentro de si. À pergunta dos ouvintes, Lucas aconselha a conversão e o batismo. A conversão é a conseqüência primeira e imediata do encontro com Jesus boa- nova. Não é condição para encontrá-lo, mas é algo intrínseco a esse encontro. O batismo é a adesão ao caminho dos seguidores, ou seja, é sinal da pertença ao grupo dos que pertencem ao Ressuscitado. Apesar de a experiência do encontro com Jesus ser pessoal e exigir uma resposta personalizada, a fé cristã é eclesial e não pode ser vivida no isolamento a não ser ao preço de cair no intimismo e deixar de ser fé cristã tornando-se pura ilusão. Só depois de propor o mergulho em Cristo na comunidade cristã, Lucas anuncia aos novos convertidos que também eles podem e devem ficar cheios do Espírito Santo, pois a promessa é para todos. Mas Lucas sabe que o Espírito não respeita a lógica eclesial: primeiro a pertença; depois o recebimento do Espírito. É só ver o que aconteceu na casa de Cornélio (cf. At 10,44-48). Lucas organiza a comunidade; o Espírito, no entanto, faça o que bem lhe aprouver. E, depois de responder às indagações dos ouvintes, Pedro continua dando testemunho da fé que ele mesmo experimentava. Diante do esquema lucano, nossa catequese é colocada em xeque. A palavra que anunciamos tem compungido os corações dos ouvintes ao ponto de eles se perguntam: “O que fazer?”. Se nossa palavra não é testemunho de uma novidade que faz viver, mas mera transmissão de doutrina, de dogmas, de preceitos morais e normais eclesiais, não dispomos de elementos suficientes para tocar os corações dos ouvintes, especialmente dos jovens. Como afirmou o Papa Bento XVI: “Não se começa a ser cristão por uma decisão ética ou uma grande ideia, mas através do encontro com um acontecimento, com uma pessoa, que dá um novo horizonte à vida e, com isso, uma orientação decisiva” (Deus Caritas Est, 12). É o encontro pessoal com Jesus Cristo, com o acontecimento de sua 17 morte e ressurreição, que pode mexer com nossas entranhas e nos fazer questionar os caminhos seguidos e as convicções mantidas até agora. Nossa catequese, tão dogmática e doutrinária, voltada quase que exclusivamente para a recepção dos sacramentos da iniciação, não tem iniciado nossa gente. Não é de estranhar, então, que, uma vez recebidos os sacramentos, nosso povo abandone a vida eclesial. Nossos jovens têm recebido os sacramentos da iniciação, mas não têm sido iniciados na fé, logo a pertença e o engajamento ficam comprometidos na base. 18 ARTIGO 5 19 O PRAZER DA PERTENÇA Terminando esta série sobre os jovens, façamos nossa reflexão ainda a partir dos Atos dos Apóstolos. Lucas é um grande pastoralista. Ele sabe armar esquemas inteligentes para atrair o leitor para a fé que ele testemunha. Em At 2,42-47, encontramos o relato da vida das primeiras comunidades, descrito depois de mostrar a reação favorável que o testemunho dos apóstolos desencadeou nos ouvintes (cf. At 2,41). Os crentes, segundo o ideal lucano, se organizam espontaneamente em torno dos apóstolos e não por coerção ou laços contratuais. O ensinamento deles é precioso e todos perseveram para ouvi-lo. O testemunho da comunhão fraterna lhes atrai; a alegria de partilhar o pão da eucaristia e da palavra não pode ser dispensada; a oração comum fortalece os ânimos e revigora para a luta. Cheios de temor – ou seja, de um desejo enorme de não perder a fé conquistada ou a fé no Deus que os conquistou –, os novos seguidores do Caminho presenciam a ação de Deus no meio deles, dita por Lucas como prodígios e sinais. Lucas insiste em dizer que o Deus da história, que agiu no Antigo Testamento por meio de muitos líderes e profetas e no Evangelho por meio de Jesus de Nazaré, continua agindo em Atos por meio da Igreja. E todos vivem uma experiência edificante: tendo abraçado a fé, se encontram unidos, repartem seus bens, frequentam diariamente a comunidade, rezam juntos, vivem com alegria e simplicidade de oração. Como conseqüência desse testemunho, cada dia aumentava mais o número dos que aderiam à fé. Lamenta-se muito, hoje em dia, que os cristãos tenham perdido o sentido de pertença. A comunidade eclesial, antes referência máxima da fé cristã, foi relegada a segundo plano para realçar a experiência pessoal. Não falta quem critique a juventude de crer sem pertencer, de aderir a Jesus, mas rejeitar a sua família, a Igreja. Não é bem verdade que os jovens querem crer, mas não querem pertencer. Eles só não querem pertencer a uma comunidade fria e de laços contratuais, com a qual não têm vínculos afetivos e nenhuma identificação. Não é que na Igreja a gente escolha com quem faz laços; os laços são éticos, ou seja, são dados pelo Pai do Céu pelo simples fato de sermos irmãos em Jesus Cristo. Mas vamos admitir: não adianta saber que somos irmãos de alguém se não cultivamos laços afetivos com ele. Pertença não é obrigação; é conseqüência natural de laços fortes de fraternidade e comunhão. Parece urgente que recuperemos na Igreja a alegria da pertença ou nossos jovens vão 20 continuar formando comunidades alternativas de convivência, no desejo de partilhar a fé e proporcionar seu crescimento. 21 ARTIGO 6 22 O DÉFICIT DE INICIAÇÃO A expressão déficit de iniciação, usada em artigos anteriores, causou curiosidade. Alguns leitores sugeriram que retomássemos o assunto. Pois bem, vamos lá! São muitas as perguntas: “O que significa déficit de iniciação? Quais suas raízes? Como lidar com ele? Como contribuir para que a iniciação saia do ‘vermelho’”? Etc. Façamos o seguinte: a cada artigo, respondamos a uma questão. O que significa a expressão déficit de iniciação? Tomemos os termos. Primeiramente, iniciação. Ser iniciado na fé, que é o nosso caso, é começar a fazer parte de um mundo de significações e símbolos que passam a orientar toda a vida da gente: nossos valores, nossas decisões, nossas referências… tudo ganha novo rumo quando somos mergulhados no mistério do amor de Deus que é revelado em Jesus Cristo por força de seu Espírito. O iniciado é aquele que foi mergulhado neste mistério; por isso, o sacramento da iniciação por excelência é o batismo. Por ele, fomos mergulhados em Cristo para uma vida nova; a vida velha ficou sepultada no passado, pois já não significa nada mais para nós cristãos. Então, iniciação é o processo pelo qual a entrada na fé acontece; é o processo pelo qual o mergulho em Deus é realizado. A partir desse processo, uma vida nova começa para o iniciado. E o que significa déficit? Déficit, diz o dicionário do Aurélio, é “o que falta para completar uma quantidade”. A definição parece boa para falar da iniciação. Se a iniciação é o mergulho em Deus, logo, déficit de iniciação é uma lacuna, uma falta nesse processo. Falta muito pra nossa gente ser mergulhada no mistério maravilhoso do amor de Deus. Os católicos sabem algumas coisas sobre Deus, decoraram algumas orações, conservaram alguns costumes religiosos, mas não experimentaram o mergulho, não ficaram impregnadas da presença do Espírito, essa água viva que renova. Sobre a iniciação, já ouviram falar; sabem os ritos que a acompanham, as orações que são feitas… Mas não basta isso. Ao longo dos anos, a Igreja – sobre isso falaremos no próximo artigo – dedicou-se muito aos sacramentos, mas não o mesmo tanto ao processo evangelizador. Acontece, porém, que a iniciação – ou seja, o processo de adesão a Jesus Cristo – não acontece num passe de mágica. Não se dá só pelos sacramentos. Não basta batizar, crismar e dar a comunhão – os sacramentos da iniciação cristã – para a pessoa ser iniciada na fé. Os sacramentos devem ser o sinal visíveldo que acontece no interior da pessoa. Eles efetivam o mistério 23 celebrado; exteriorizam o que interiormente já vinha acontecendo na vida daquele que os recebe. Às vezes, a pessoa pode ser sacramentalmente iniciada e não ser iniciada na fé. Aí vem o déficit de iniciação. As duas coisas – sacramentos da iniciação e iniciação na fé – deveriam andar juntas, mas nem sempre funciona assim. Então a iniciação sacramental é alta, mas a iniciação na fé é baixa. Logo, temos um déficit de iniciação. Falta fé cristã genuína, autêntica… falta experiência de Deus… falta encontro com o Senhor… falta discipulado… falta seguimento. Se falta tudo isso, a iniciação sacramental somente não dá conta de sustentar as pessoas diante dos desafios da vida. Ela é importante, é claro, mas não suficiente. Os problemas da vida são muitos e grandes. Se a fé não cresce, não amadurece, não se firma a cada dia, se ela não acompanha os desafios que encontramos na vida, logo temos um déficit de iniciação. Falta iniciação na fé para completar a quantidade de fé exigida pelos desafios da vida. Falta experiência cristã de Deus, apesar de as pessoas serem batizadas. Falta iniciação na fé em relação ao processo sacramental desenvolvido: a isso chamamos de déficit de iniciação. 24 ARTIGO 7 25 RAÍZES DO DÉFICIT DE INICIAÇÃO Hoje trataremos das raízes do déficit de iniciação. Se está faltando algo, há uma dívida. E essa dívida da Igreja com sua gente não é de hoje. Há muito escutamos falar que os católicos foram batizados e não evangelizados. O Documento de Aparecida falou muito sobre isso. Mas quando foi que a Igreja se esmerou em dar os sacramentos e se esqueceu de investir seus melhores dons na evangelização? Por que a prática sacramental se firmou e a prática evangelizadora arrefeceu? Vejamos! No período da cristandade, quando o poder temporal (o Estado) e o poder espiritual (a Igreja) estavam unidos, a cultura, o meio social e político, tudo era permeado pela fé cristã. Tudo falava de Deus, de Jesus, da Virgem Maria… Os pintores se inspiravam na religião para retratar sua arte, os melhores músicos usavam sua intuição musical e genialidade para produzir peças religiosas, os arquitetos e pedreiros construíam belas catedrais, os reis assumiam posturas religiosas arrebanhando grupos atrás de si… O ar respirado estava impregnado de sinais do cristianismo. Logo, para ser cristão não era preciso muita coisa: nascia-se numa família cristã e a fé era naturalmente herdada dos pais. Ela passava de pai pra filho. E parecia que isso bastava! A evangelização não era uma urgência. Para que evangelizar, se a pessoa já “nascia cristã’? Bastava dar os sacramentos para celebrar a fé que a família se encarregava de transmitir. No máximo, fazia-se uma catequese para burilar a fé, ou seja, para esclarecer pontos doutrinais e morais. E isso parecia suficiente. Com o passar do tempo, a cristandade foi desbancada pela modernidade, que rejeitou todo traço religioso e trouxe a secularização que hoje presenciamos. A Igreja e o Estado se separaram. Cada qual passou a ter seu estatuto, sem que um dependesse mais do outro. Foi aí que a coisa desandou. Não que a modernidade seja má e queiramos retomar a cristandade. Não. Mas, para novos tempos, novos métodos são necessários. Se chegou novo tempo, a evangelização precisava de novos rumos. Porém, acostumada à cristandade, a pastoral católica continuou seu ritmo, sem muito se preocupar com as novidades que se impunham. Não houve grandes mudanças pastorais: continuamos batizando as crianças como se as famílias ainda fossem cristãs e como se elas transmitissem a fé a seus filhos; insistimos na primeira comunhão de crianças sem nos preocupar com os adultos nos quais deveriam ser investidos os melhores esforços da evangelização. E assim foi. Transmitimos costumes religiosos, conservamos a piedade religiosa, aprendemos orações e até 26 mantivemos o costume de receber os sacramentos. Mas isso não basta para se ter fé. A fé é uma reposta pessoal que se dá a Deus, não um pacote automaticamente herdado do meio em que vivemos. Uma vez recebida a cultura cristã, mas não a fé cristã, implantou-se o déficit de iniciação. Ou seja, as pessoas não estão suficientemente iniciadas na fé a ponto de poder dar sua resposta pessoal a Deus, mesmo já estando inseridas na vida religiosa que a Igreja disponibilizou para elas. Falaremos mais disso no próximo número. 27 ARTIGO 8 28 PROCURANDO CAMINHOS Ainda sobre o déficit de iniciação, podemos afirmar que a Igreja está procurando caminhos e a catequese tem muito a contribuir com esse processo. Primeiramente, falemos da Igreja em geral. Depois, especificamente da catequese. Façamos uma comparação. Toda comparação é boa porque visibiliza o problema e a gente ganha em expressão e significado. Mas toda comparação é ruim, pois tem seus limites. Mesmo assim vou arriscar. Para que o déficit de iniciação seja superado, há de se ter um planejamento, um conhecimento real e concreto das entradas e despesas. É como uma família que está com déficit no orçamento, ou seja, está gastando mais do que o tanto que recebe. Para superar o déficit, a família precisa planejar as contas, os gastos; tem que saber exatamente quanto entra e quanto sai de dinheiro. Precisa pensar como pode economizar e também como pode aumentar sua arrecadação. Imagine só uma família rica, sempre acostumada a luxos e gastos exorbitantes. De repente, vem uma crise econômica e ela entra em processo de empobrecimento. O que ela arrecada não dá mais para manter o padrão de vida de antes. E ignorar a crise não ajuda em nada, só piora a situação. É preciso encarar os desafios e planejar os gastos, ver como é possível aumentar a arrecadação para sobreviver dignamente no momento difícil. O mesmo se dá com a Igreja. Se há um déficit de iniciação, a Igreja precisa ver onde foi que gastou mais que o tanto que arrecadou. Nós, a Igreja, demoramos a entender que no “caixa do catolicismo” não entrava mais o tanto de fé de outros tempos. Vamos dizer que vivemos tempos de carestia, de dificuldades nesse campo. Os tempos mudaram e as referências de fé se tornaram tênues neste mundo plural e secularizado. Logo, diminuíram as entradas da experiência cristã de Deus, da iniciação. Se isso é fato, é preciso diminuir as despesas ou bolar uma estratégia para aumentar a entrada da fé. Ora, diminuir as “despesas da fé” parece impossível. Cada dia a vida exige de nós uma fé mais madura, mais esclarecida, mais pessoal, mais consciente e livre, não só porque as ofertas religiosas são muitas e variadas, mas também porque a vida apresenta desafios sempre inesperados. Então, se os gastos não cessam, ao contrário, se multiplicam, é preciso investir; é preciso proporcionar a experiência da fé, coisa que não é mais natural na sociedade contemporânea. Para proporcionar a experiência cristã de Deus, a primeira condição – penso eu 29 – é a Igreja tomar consciência de que ela está em regime de diáspora, ou seja, está espalhada no meio do mundo, não mais como maioria absoluta, mas como um grupo a mais no meio do mundo. A sociedade ocidental não é mais cristã, muito menos católica. Em situação de diáspora, a Igreja não é mais uma força instituída, algo estabelecido e pronto. Mas ela tem uma força instituinte, por causa do evangelho que ela transmite. O evangelho é força para viver e já atraiu multidões antes de nós; por causa dele muitos até perderam a vida. Se a Igreja se comporta como uma instituição a mais e não como a instituição por excelência, como na cristandade, então há esperança para a fé. Essa atitude coloca a Igreja em posição de diálogo e acolhida: ela tem algo a oferecer ao mundo e tem algo a aprender dele. É uma atitude de humildade e respeito com a sociedade e a cultura atual. Neste mundo plural e multirreferencial, a Igreja não pode mais impor sua fé; só pode propor. A proposição da fé é uma urgência. Aí entra a tarefa da catequese. Mas isto é assunto dos próximos textos. Não perca! 30 ARTIGO 9 31 A PROPOSIÇÃO DA FÉ CRISTÃFinalmente, chegamos à catequese. Em meio a esse mundo plural e multirreferencial, a voz da Igreja não ressoa mais solitária. Há uma multidão de propostas e as pessoas não estão mais obrigadas à fé cristã, como única opção para seu encontro com o Transcendente e para sua salvação. Isso significa que a fé cristã não é mais necessária para a salvação. E que ninguém se escandalize! Desde o Vaticano II, a Igreja tem dito isso em alto e bom tom (cf. GS 22; LG 16; AG 7). Ela sabe que Deus tem mil caminhos para atingir o coração humano e que o Espírito Santo age de formas inusitadas, nem sempre protocolares, nem sempre previsíveis… Deus está sempre agindo por meio da Igreja, mas a Igreja não é o único meio que Deus tem para sua ação salvadora. Deus salva sempre e de mil modos que nem podemos imaginar. É a força maravilhosa do amor de Deus atuando no meio do mundo. Ora, se a fé cristã não é necessária para salvar, então para que propor a fé? Aí é que está o mais bacana, o mais interessante, o mais curioso. Deus age de tal modo que ele não quis ser uma obrigação, mas uma opção livre. Se a fé cristã não é obrigatória, ela é, no entanto, preciosa, absolutamente maravilhosa e transformadora. É como a pérola preciosa do Evangelho de Mateus. Um homem procurava pérolas preciosas. Sua vida transcorria normalmente. Ele vivia normalmente sem a pérola. Mas, quando ele a encontrou, não pode mais viver sem ela. Largou tudo o que tinha, vendeu todos os seus bens para adquirir a pérola. A vida ganhou novo significado a partir daquele encontro. Assim é a fé cristã. Ela é boa, é linda, é maravilhosa. Mas vamos admitir a verdade: é possível viver sem ela. Muita gente boa vive sem a fé cristã e vive até dignamente, muito mais dignamente que muitos que se dizem cristãos. Mas a fé cristã genuína é algo tão valioso, tão precioso, tem uma força tal que altera os rumos de nossa vida. Por causa dela, a gente larga tudo; a gente considera tudo esterco ou lixo, como disse Paulo aos Filipenses. A fé cristã é algo a mais, é um acréscimo de vida e sentido, é uma força transformadora que faz viver. Logo, propor a fé é algo maravilhoso. Não é proselitismo, nem sectarismo, nem fechamento ao diálogo com outras religiões e crenças. E esta é a tarefa que a catequese tem diante de si: anunciar o evangelho; propor ao mundo a boa nova de Jesus, ou seja, ele próprio, vivo e ressuscitado no meio do mundo. A tarefa 32 da catequese não é outra senão criar condições para que os catequizandos façam sua experiência do encontro com Jesus Cristo: a isso damos o nome de iniciação. Essa experiência deve ser proposta, devemos criar condições para que ela aconteça, pois não é mais uma herança natural da família ou da sociedade. 33 ARTIGO 10 34 INICIAR NA FÉ Dissemos que a fé está no campo da proposição e não da obrigação, está no campo do precioso e não do obrigatório. Ora, se Deus mesmo não se impõe a nós, mas simplesmente oferece, na mais plena gratuidade, o seu amor, por que com a fé cristã seria diferente? Exatamente porque estamos nesse âmbito da gratuidade é que a iniciação cristã se faz tão necessária. A iniciação cristã é o processo pelo qual o catequizando – seja ele criança, jovem ou adulto – entra em contato com o mistério de Deus, por meio de ritos, símbolos, celebrações, reflexões, estudos, meditações, orações, cânticos… O mistério de Deus, o que é isso? Bom, quando falamos de mistério de Deus, muitas vezes pensamos em uma incógnita de uma equação que deve ser encontrada ou um código a ser decifrado. Não é o caso do mistério de Deus. O mistério de Deus não tem nada a ver com aquilo que desconhecemos e precisamos decifrar. Deus não é decifrável; ele é muito maior do que nós, ele nos ultrapassa. E por isso é mistério. Por mais que o conheçamos, por mais que entremos em comunhão com ele, por mais que estreitemos laços com ele… ele nos escapa. Seu amor é tão grande, tão sublime, tão gratuito que não dá para entender. Não há explicação possível para sua bondade, para sua generosidade, que se concretiza na encarnação de seu Filho e ganha máxima potencialidade na cruz. No Calvário, Deus se entrega inteiro a nós por amor: isso é um mistério. Mas esse mistério não é uma coisa incompreensível; ao contrário, se ele nos ultrapassa, ao mesmo tempo, podemos experimentá-lo, podemos gozar da presença maravilhosa de Deus. Pois bem, iniciar na fé é introduzir as pessoas nesse mistério de amor. Mas, se o mistério é inesgotável, contínua deve ser a iniciação. Ela não cessa jamais, pois a fé é eterna iniciante. Não somos nunca cristãos maduros, capazes de dar conta dos desafios da vida. Estamos sempre a caminho, à procura do Ressuscitado, como disse Paulo aos Filipenses: “Não penso que já alcancei o alvo, mas persigo-o insistentemente” (Fl 3,13- 14). A catequese tem, pois, a tarefa maravilhosa de propor caminhos para esse encontro com o mistério insondável de Deus. Sua missão é comunicar o amor de Deus revelado em Jesus cristo pela força de seu Espírito. Não é primeiramente 35 ensinar doutrinas, dogmas, verdades morais ou mandamentos e preceitos. Se ela também o faz, é exclusivamente porque a fé cristã não pode ser desvinculada da vida eclesial, muito menos de um estilo de viver (a vida ética). A fé cristã não é uma invenção, mas um patrimônio de uma comunidade eclesial (sobre isso já falamos em artigo anterior intitulado “O prazer da pertença”). A catequese, como ação evangelizadora da Igreja, transmite a fé da Igreja, cria condições para que ela seja experimentada. Ela testemunha a preciosidade da fé e convida os catequizandos a fazer sua experiência cristã de Deus. A essa experiência de encontro com Deus, damos o nome de iniciação. Sobre a pedagogia mais viável para proporcionar esse encontro, falaremos nos próximos artigos. 36 ARTIGO 11 37 ENCONTROS CATEQUÉTICOS I Quando o objetivo da catequese era burilar a fé, ou seja, dar-lhe o acabamento, o método catequético mais usado aproximava-se de um aula de religião. A doutrina, os dogmas, a moral, as orações da Igreja e seus rituais litúrgicos deviam ser ensinados aos catequizandos. Esse formato de catequese ganhou força por ocasião do Concílio de Trento. Vamos entender isso melhor. No século XVI, a fé cristã, antes professada somente no formato católico, deparou-se com outra possibilidade: a fé cristã da Reforma Protestante. Isso causou muita confusão, especialmente na cabeça do povo simples, que não sabia distinguir uma coisa da outra. Preocupada com essa confusão e desejosa de manter seus fiéis no seu redil, para que não debandassem na corrente luterana que se formou, a Igreja deu logo jeito de providenciar um catecismo que fosse fonte de esclarecimento para o povo. Esta foi uma das tarefas do Concílio de Trento, que fez frente à Reforma Protestante. Carlos Borromeu e alguns outros foram encarregados deste trabalho e formularam o famoso Catecismo dos Párocos, um manual da fé para os párocos ensinarem à sua gente após a Missa. Assim, após a celebração, os párocos ensinavam a verdadeira religião para seu rebanho. Este catecismo, porém, apesar de grande acolhida, encontrou resistências. Não era lá muito fácil. Parecia a Suma Teológica de Tomás de Aquino, em linguagem mais acessível, mas nem por isso era fácil. Nem todo mundo se adaptou. Foi aí que Pedro Canísio fez um catecismo mais facilitado: um manual com perguntas e respostas. Bingo! Bem na mosca! Agora sim, haviam acertado, pensavam eles. O catecismo trazia a pergunta teológica que causava transtorno e a resposta dava jeito de logo eliminar a polêmica. Tal catecismo facilitou muito a dinâmica catequética. A catequese se tornou sinônimo de catecismo, a tal ponto de a gente dizer na infância: “Mãe, vou para o catecismo” e não “Mãe, vou para a catequese”. A pedagogia catequética que mais combinava com os catecismos era a pedagogia do ensino. O foco dessa pedagogia eram o catequista e a verdade que ele ensinava, não o catequizando. O catequista ensinava a fé, como numa aula ao modo antigo. Para saber o catecismo, era precisoum esforço de memória, de assimilação, de retenção do conteúdo. Mas não era preciso 38 construir o conhecimento: as verdades da fé eram dadas, bastava acolhê-las na obediência da fé. Essa pedagogia considerava o catequizando como uma tábula rasa, ou seja, um cabeça-oca da fé a quem era preciso ensinar tudo. A lógica era assim: Deus havia revelado as verdades da fé à Igreja; a Igreja então compilou essas verdades no catecismo, que fora confiado ao catequista; o catequista transmitia essas verdades aos catequizandos e eles as guardavam na obediência da fé. Por isso, a importância das perguntas. Partia-se do princípio que as perguntas dos catequizandos eram as perguntas do catecismo e não outras. Assim sendo, bastava guardá-las no seu coração: decorar. Ou seja, a catequese era uma aula de religião facilitada, com perguntas e respostas que eram anotadas no caderno e decoradas em casa. Pensava-se que o catequizando já trazia a fé, a experiência de Deus, vinda do seio familiar. Uma aula de religião era mais que suficiente para burilar a fé. Mas isso mudou… Essa mudança será tema do próximo artigo. 39 ARTIGO 12 40 ENCONTROS CATEQUÉTICOS II Com a chegada da modernidade e a reviravolta antropológica causada pelo iluminismo, a pedagogia do ensino se viu desacreditada. Pedagogos e psicólogos perceberam que havia algo errado. O aprendiz não é um ser passivo que apenas acolhe, apreende, assimila, decora o que foi ensinado. Ele, a partir de suas próprias categorias, constrói seu conhecimento, afirmaram eles. Então, houve uma reviravolta pedagógica e a catequese não ficou fora dela. Outra pedagogia catequética se impôs: a pedagogia da aprendizagem. Nessa pedagogia, o foco era bem outro: não o catequista, nem a verdade que ele ensina, mas o catequizando que constrói seu conhecimento, sua experiência de fé. Surgiram, a partir daí, muitos catecismos ou manuais catequéticos, cada qual adaptado à realidade do catequizando, partindo da realidade social, cultural e política na qual o catequizando estava imerso. Houve um avanço sem conta. Apesar de todos os avanços, a catequese continuou entendida como aula, um lugar para conhecer as coisas de Deus, para aprender a religião. Certamente, o foco era outro. Nessa pedagogia, a religião não era só acolhida na obediência da fé; era construída passo a passo, a partir da experiência concreta da vida dos catequizandos. Mas, mesmo assim, a preocupação em dar as razões da fé não era pequena. Ao contrário, crescia cada vez mais. Não era possível ficar satisfeito com as respostas prontas que haviam sido dadas tempos atrás. A fé exigia reflexão, interpretação, justificação e razoabilidade; não era mais possível crer numa fé absurda em nome do mistério de Deus. Entendeu-se que Deus se fez homem, assumiu a realidade humana e essa realidade inclui com certeza a razão. Deus não pode ser contra a razão; a fé não pode ser contra a ciência; a experiência humana não é alheia a Deus. Essas inovações fizeram história, mas mesmo assim a catequese continuou sendo aula; uma aula mais moderna da qual o catequizando era parte integrante. A doutrina cedeu lugar à mensagem evangélica. O relato evangélico passou a ser entendido como fruto da cultura e da experiência humana, concomitante à inspiração divina. A hermenêutica se tornou peça fundamental dessa catequese. 41 Mas, mesmo assim, o catequizando continuou tendo aulas de catequese, continuou sendo um aluno. Certamente, um aluno que protagoniza seu conhecimento, mas ainda assim um aluno que busca conhecer a religião ou Deus, como se Deus fosse uma incógnita a ser encontrada. A pedagogia da aprendizagem deu passos gigantes, mas ainda deixou uma lacuna. A iniciação, que é bem mais que ensino ou aprendizagem, apesar de contemplar também essas facetas, não aconteceu. A iniciação está no âmbito do encontro com Deus e não da aula de religião. Este assunto vem nos próximos artigos. 42 ARTIGO 13 43 A MUDANÇA EPOCAL Se tem algo que anda falado por aí é a tal mudança epocal, expressão que aparece vez ou outra nos documentos da Igreja e em muitos textos teológicos. Para falarmos da necessidade de uma catequese sob outro formato, precisamos antes compreender as mudanças do mundo. Na cristandade, evangelizamos com a força dos catecismos e priorizamos a pedagogia do ensinamento, cuja preocupação era transmitir as verdades da fé. Na modernidade, evangelizamos a partir da realidade do catequizando: admitimos que o conhecimento tem bases na experiência cognitiva do próprio aprendiz e percebemos que sua história é ponto de partida para toda reflexão. Mas, diante de tão grandes mudanças, será que esses paradigmas catequéticos ainda dão conta do mundo pós-moderno, também caracterizado como pós- cristão? Parece-me que os caminhos outrora percorridos – todos com valor reconhecido para seu tempo – não têm mais respaldo diante do mundo em mudanças que ora se delineia aos nossos olhos. Mas o que mudou? Houve mudanças somente no campo tecnológico, no campo da ciência, dos costumes e da moral? Não! Hoje, as mudanças são bem mais significativas: o modo de ver a vida mudou, os valores mudaram, os parâmetros que tínhamos para avaliar e mensurar a vida também mudaram. A linguagem mudou, a gramática existencial mudou, ou seja, nosso modo de nos posicionar diante da vida, das pessoas, das coisas… Tudo mudou e não seria razoável continuar o trabalho catequético sem considerar essa nova realidade. Para cada tempo, uma evangelização própria. Vejamos, pois, algumas características do mundo contemporâneo que devem ser levadas em consideração na hora de escolher o modo de evangelizar. Nosso mundo é complexo, plural, multirreferencial, bem diferente dos tempos anteriores – tanto da cristandade quanto da modernidade – ainda bem homogêneos. Na cristandade, a formatação do mundo era dada por Deus e seus afins: religião, Igreja, fé, etc. Na modernidade, a razão tornou-se responsável por esta tarefa, juntamente com a técnica, a ciência e o progresso. Hoje, porém, a uniformidade é algo que escapa ao mundo. As referências do sujeito – antes 44 postas em Deus ou na razão –, migraram para sua interioridade, para sua subjetividade. E, como cada cabeça é uma sentença, a pluralidade floresceu, desabrochou vigorosa, exigindo seus direitos. É tal essa mudança que, mais importante que a religião ou que o próprio Deus, é a liberdade religiosa, o direito de expressar a fé, de crer ou, inclusive, de não crer. Ora, se a cristandade ficou na quimera e se a modernidade perdeu seu elã, não adianta mais evangelizar a partir do parâmetro dessas duas realidades. É tempo de aceitar que vivemos em tempos de secularização galopante e que essa nova realidade não é inimiga da fé cristã, nem profetiza o fim do cristianismo. Ao contrário, tal mudança poderá ser uma chance maravilhosa para a fé cristã: uma oportunidade única para o anúncio do evangelho. Nos próximos artigos falaremos sobre essas mudanças e os desafios que o tempo atual impõe à catequese. 45 ARTIGO 14 46 UMA CHANCE PARA A FÉ A fé cristã sempre se assentou sobre o chamado de Deus à humanidade e sobre a resposta da humanidade ao seu Senhor. O chamado de Deus não acontece no exterior daquele que o escuta, mas no mais íntimo do coração humano que, sendo transformado pela presença de Deus, é capaz de atender a seu apelo de amor. Se, em outros tempos, a catequese se baseou na difusão de doutrina e dogmas ou na luta por melhores condições de vida, era porque entendia que o apelo do coração já estava, de alguma forma, respondido pelo meio cultural no qual se estava imerso ou pela abertura de todo ser humano a Deus, que o impelia para o transcendente e suas causas, numa espécie de humanismo cristão. O modelo catequético que resultou não só da cristandade mas também modernidade (Renovação Catequética) pressupunha a fé católica ativamente presente no catequizando. Hoje, no entanto, bem longe de uma sociedade cristã, está nossa sociedade secular. E cada um de nossos contemporâneos vive bem distante daqueleser humano cheio de sonhos e projetos cristãos. Nem a cultura é cristã, nem as pessoas são cristãs. O Deus de Jesus Cristo se tornou um Deus-desconhecido, a quem a humanidade atual precisa ser apresentada. Esta realidade, desafiadora e intrigante, não é má, nem coisa do diabo. É só um tempo com seus limites e possibilidades como qualquer outro. Se a catequese quer ter chance hoje, deve ver as possibilidades incríveis que este tempo lhe proporciona. O evangelho – que sempre foi força para viver – tem espaço garantido neste mundo turbulento, diversificado e plural. No momento em que nossas referências sociais, familiares e culturais tendem à ruína, o evangelho pode manifestar toda sua força. Para isso, primeiramente devemos reconhecer que não estamos só diante de um problema de método. Não basta trocar o modo de dar catequese, mas é preciso rever a pertinência do que tem sido anunciado. Nossa gente não busca mais uma religião pronta, que dê normas, regras e 47 princípios doutrinários, mas um espaço para experimentar a força do amor que é própria do evangelho. Mas como fazer isso? Bom, primeiramente teremos que rever nossos métodos, sempre tão absolutos, e reconhecer que a fé cristã não é mais uma herança cultural, mas uma proposta em meio a tantas outras. O mundo plural hoje obriga a fé cristã a uma atitude de humildade. Podemos propor a fé, mas é só o que podemos fazer. A fé cristã vai se impor, vai encontrar respaldo ou não na sociedade, apenas se ela for força para viver neste mundo conturbado e sem referências estáveis. Aliás, a instabilidade do mundo e das instituições não desfavorece o anúncio do evangelho, ao contrário ela o facilita. A boa nova de Jesus, seu amor desmensurado pelo mundo e sua proposta de amar sem medidas podem ser a força que muita gente procura, a razão para sua vida, tão marcadas pelo niilismo e pela falta de sentido. E parafraseando o Evangelho de Lucas, tendo a concordar com Karl Rahner, quando afirmou que “há mais alegria por um só cristão convertido, que de fato fez a experiência do encontro com Deus, do que por noventa e nove que receberam a fé como herança da cristandade”. Pensemos nisso! 48 ARTIGO 15 49 A FÉ COMO PROPOSTA Diante de tantas mudanças que observamos, seria totalmente imprudente imaginar que a fé cristã continua se difundido pela força da sua tradição como outrora, ou seja, por osmose social. A fé cristã aparece no atual cenário multirreferencial religioso como uma proposta entre tantas outras. Na grande feira do mundo, a barraca da fé cristã não é mais a única opção como já fora um dia, como a única opção para a vida plena. Muita gente tem encontrado a paz, a alegria de viver e a vida em plenitude em outros caminhos… E mais: a Igreja Católica não detém o monopólio da fé cristã. Dentro do universo cristão, outras estrelas têm atraído olhares curiosos, corações sedentos de verdade e paz. A Igreja Católica perdeu sua hegemonia. E isso não é ruim; nem bom nem mal; apenas está aí e com essa realidade devemos viver. Se soubermos entender bem o momento que vivemos, essa situação pode favorecer a difusão da fé cristã, como falamos no artigo anterior. Ora, se a fé cristã, especificamente a fé católica – pois falamos de catequese da Igreja Católica – não se impõe mais por força da tradição, como fazer para transmitir a fé? A primeira atitude importante de um evangelizador, um catequista, é a postura humilde diante do mundo e de suas múltiplas ofertas religiosas. Não somos os únicos a ofertar uma possibilidade de paz; nem os únicos que buscamos a verdade. A fé cristã é mensagem de amor sem medidas, de um Deus tão apaixonado por nós que ele próprio não se impôs como obrigatório. Deus criou e recria o mundo, amou-o e continua amando-o em Cristo, santificou-o e continua santificando-o pelo Espírito. Mas é bom perceber que, nesse movimento de amor, a marca maior de Deus é a oferta: Deus se oferece, não se impõe. Essa deveria também ser a marca da fé cristã: a oferta. A catequese transmite a fé cristã, que não deve ser entendida como imposição, como necessidade. Sua aceitação deveria acontecer pela força de sua proposta, pela beleza de sua mensagem, pela atração de seu amor… O evangelho não é uma doutrina que tem que ser acolhida; é uma proposta de vida que é aceita, amada. Ela não precisa de imposições para encontrar seu espaço na sociedade. O próprio Deus da fé seduz, conquista, atrai aqueles que escutam sua mensagem. Se a 50 catequese hoje admite essa verdade, mudam-se os caminhos catequéticos. Deixamos os caminhos tradicionais da catequese e passamos à catequese da proposição: propomos a fé cristã no que ela tem de mais belo e radical (inclusive suas exigências) e acreditamos que sua força de atração agirá. Deus mesmo vai seduzir os corações para acolher sua palavra de vida, pois ela é força para viver, como ele próprio seduziu cada um de nós e nos atraiu a ele. Confiemos nisso! 51 ARTIGO 16 52 A FORÇA INSTITUINTE DO CRISTIANISMO No artigo anterior, falamos sobre a catequese da proposição. A fé cristã é uma oferta de Deus aos homens, sem nenhuma imposição da parte dele, e o mesmo deveria acontecer na prática catequética. O ato catequético, por causa da gratuidade do amor de Deus, favorece o exercício da liberdade, da acolhida, sem constrangimentos, sem demarcações desnecessárias – só as que são próprias do amor! –, sem estreitezas institucionais ou históricas, sem coerção dogmática ou violência simbólica. Vivemos outrora, tempos em que o cristianismo era uma força instituída na sociedade. Com isso, a fé cristã se impunha por força dessa presença institucional. Uma força instituída é aquela cujas bases estão muito bem assentadas na história, em que o espaço da instituição se encontra estabelecido e a instituição não sofre ameaças de fora que venham a desacreditá-la. O cristianismo – e a fé cristã, consequentemente – gozava de privilégios na sociedade tradicional e até mesmo na sociedade moderna. Na sociedade moderna, a força do cristianismo advinha de sua mensagem humanizadora; a fé cristã foi entendida como humanismo cristão e, mesmo com toda secularização, não lhe faltava o respeito da sociedade, exceto de alguns poucos que lhe faziam oposição frontal. Entendia-se, com isso, a Igreja como instituição digna de credibilidade, pois portadora de uma mensagem que humanizava, que trazia melhores condições de vida ao meio no qual ela se estabelecia, graças à sua defesa dos valores humanos. Mas, hoje em dia, nem isso sobrou ao cristianismo. O tempo mostrou que é possível ser humano sem ser cristão, pois ONGs sem nenhuma vertente cristã deixaram marcas maravilhosas de humanismo na história e homens não-cristãos viveram e defenderam valores verdadeiros com a própria vida. Vivemos, pois, atualmente num mundo pós-cristão, no qual o cristianismo não é mais força instituída, mas força instituinte. Mas o que é isso? Uma força instituinte é uma força que não ordena mais o mundo, mas nem por isso perdeu sua potência. Observemos que o mundo secularizado e sem Deus não permite mais pensar a fé cristã como ordenadora da vida cultural, social, política e econômica como já foi um dia. 53 De uma situação fortemente instituída, bem estabelecida e com reconhecimento, o cristianismo pode se tornar efetivamente instituinte. Para isso, há de pagar um preço: reconhecer que foi destituído por outras forças instituintes da sociedade, que funcionam muito bem sem ele e contra as quais o cristianismo não pode grande coisa. O mundo não precisa mais da hipótese Deus para se manter, para se explicar, para se humanizar. Essa humildade é condição imprescindível para uma boa catequese hoje. Deixemos a catequese da obrigação e da imposição da fé cristã para a catequese da proposição da fé. Esse é grande passo catequético, muito importante para nossos tempos! 54 ARTIGO 17 55 O ENCONTRO COM DEUS O cristianismo não se estabelece mais na sociedade como força instituída, mas pode revelar toda sua força instituinte, se deixarmos o evangelho virà tona com todo seu poder sedutor. O evangelho de Jesus Cristo é força para viver! Milhares e milhões de pessoas já encontraram a razão de suas vidas nessa boa- nova e os Evangelhos canônicos não se cansam de mostrar isso, em cada relato, em cada ensinamento, em cada discurso… Jesus é aquele que vai ao encontro do ser humano caído, sofrido, machucado… e cura-lhe as feridas e lhe enfaixa as machucaduras. E, nesse encontro, a vida desabrocha, recomeça… O evangelho, a boa-nova que é o próprio Jesus, faz viver, pois ele mesmo é a vida. Eis, pois, a tarefa principal da catequese: tornar conhecida essa boa-nova que faz viver. Mas essa boa-nova não é um preceito moral, nem uma doutrina; é o encontro com uma pessoa: Jesus Cristo. Promover o encontro com Jesus Cristo, o filho querido de Deus, nosso Pai, que nos ama, nos acolhe e nos estende sempre sua mão é a tarefa mais nobre e mais sublime do ato catequético. Como, porém, promover esse encontro? Basta ensinar o catecismo, com seus dogmas, doutrinas, mandamentos, ritos e orações? Basta refletir sobre a realidade humana e suas vertentes, dando voz ao catequizando para que retome suas realidades e, a partir delas, construa sua experiência religiosa? Parece que não! Apesar do valor de todas essas coisas, a experiência cristã de Deus não se dá pelo conhecimento da doutrina, nem pela reflexão elaborada da realidade. A experiência cristã de Deus acontece por pura gratuidade de Deus. Por ação do Espírito, o Filho se faz conhecer e nos mergulha no mistério de amor do Pai. O catequista hoje é convidado a ser muito mais que um professor que ensina a religião. É também convidado a ser muito mais que um orientador que acompanha os passos e as descobertas de seu aprendiz. O catequista é convidado a ser um mistagogo: aquele que introduz o outro no mistério. E essa introdução no mistério não se dá senão pelo testemunho sedutor daquele que 56 vive o próprio mistério, daquele que se regozija nessa experiência e encontra nela seu sentido. O próprio catequista, ao promover o encontro de seus catequizandos com Jesus Cristo, refaz sua experiência, reencontra Jesus em cada encontro com seus catequizandos… Tomemos a sério esta tarefa catequética: promover o encontro com Deus que é amor, por meio de Jesus Cristo, na ação do Espírito que não cessa de nos interpelar e agir em nós. 57 ARTIGO 18 58 FALAR AO CORAÇÃO A tarefa mais urgente da catequese hoje é promover o encontro com Jesus Cristo, favorecer ocasião para que o catequizando faça sua experiência cristã de Deus. Ora, tal experiência não acontece desde fora, mas desde dentro: lá no íntimo do coração onde Deus habita. Nosso Deus é um Deus que fala ao coração; que se manifesta na interioridade, no escondido da consciência. Eis o mistério cristão: um Deus gigante, transcendente, maior que tudo e todos, faz morada em nosso íntimo e se revela no escondimento de nosso interior, e o faz de forma discreta, singela, quase imperceptível. Esse mistério do Deus revelado não é inacessível aos catequizandos, mas também não é evidente à primeira vista. É preciso ser iniciado no mistério para se deixar penetrar por ele. O mistério não se conhece pela capacidade da razão ou por esforço, por méritos morais ou aprofundamentos doutrinários. A pessoa é iniciada no mistério, mergulhada nele. Ele se revela à medida que é acolhido e que a pessoa se deixa contagiar, se deixa ser seduzida por ele. Na humilde atitude de acolhida, o mistério é vivido. Quem o acolhe se envereda por caminhos desconhecidos, cujos significados ganham sentido ao longo do trajeto. O mistério transcende o indivíduo; ele escapa à razão e só se deixa conhecer na interioridade de cada um. Certamente, ele fala mais ao coração que à razão, pois é o próprio Deus que se dá a conhecer como puro amor em seu filho Jesus Cristo; e essa realidade ultrapassa qualquer explicação que a razão poderia ensaiar, tendo sentido somente para o coração que se inclina diante dele. É preciso ser iniciado no mistério para acolhê-lo. Quando falamos em iniciação, pensamos em mergulho num banho de significações que a pessoa não pode inventar nem descobrir por si mesma. Quando experimenta esse mergulho no mistério, o iniciado decide se quer esse estilo de vida para si ou não. Ele experimenta a fé, saboreia a presença de Deus na qual a comunidade vive mergulhada, nutre-se do alimento da Palavra que é o pão cotidiano da comunidade crente. As explicações, as formulações necessárias que tentam dar as razões da fé, não ficam esquecidas, mas o mergulho no mistério as precede. Os preceitos, os contratos, as obrigações não foram eliminados, mas tornam-se consequência do estilo de vida abraçado. 59 Nesse processo, percebe-se que é mais importante sentir e experimentar que conhecer e refletir. Não que o conhecimento ou a reflexão não sejam necessários, mas ganha valor incomensurável a conhecida expressão de Santo Agostinho que, ao fazer sua experiência de fé, exclamou: “Tarde te amei, ó beleza tão antiga e tão nova! Tarde demais eu te amei! Eis que habitavas dentro de mim e eu te procurava do lado de fora” (Conf. X, 27, 38). É preciso se deixar amar por Deus e também amá-lo. É preciso se deixar conhecer e, em reposta, buscar conhecê-lo. Mas conhece-se a Deus sentindo e experimentando sua presença amorosa e não especulando doutrinas e desvendando dogmas. O encontro com Deus acontece no sacrário da interioridade, por meio da acolhida da presença de Deus que se oferece a nós como dom e não por meio de elaborações esclarecidas acerca da fé, apesar de essas serem também necessárias. Sobre esse encontro com Deus que se dá na interioridade, falaremos mais nos próximos artigos. 60 ARTIGO 19 61 DESAFIO DA INTERIORIDADE “O mundo mudou muito”, quase todo mundo concorda com essa afirmação. Uma das mudanças mais notáveis é que hoje não podemos mais nos fiar numa ordem das coisas, como nos tempos de outrora, quando tudo parecia estável ou, pelo menos, previsível. Não contamos mais com um farol na hora de atracar o barco de nossa vida. Nós nos tornamos o único autor de nossas escolhas morais e existenciais, pois vivemos hoje alienados de pertenças familiares, sociais, religiosas ou políticas. Não dispomos mais de referências estáveis; as que nos sobraram são sempre mais provisórias. E, apesar da multiplicidade de referências, nenhuma delas tem peso definitivo e isso nos confunde, exigindo-nos uma tomada de decisão para traçar os rumo de nossa vida. Diante desse quadro, nós nos vemos obrigados a buscar dentro de nós as referências que não são mais visíveis desde fora. É, no interior de cada um, que reside a baliza que orienta a vida. Ora, construir esse quadro de referências lá na interioridade não é trabalho fácil; ao contrário, é tarefa árdua e para toda a vida, que exige autoconhecimento, além de coragem para fazer as escolhas e autenticidade para assumi-las. Há um caminho peregrino para o interior de nós mesmos que o tempo presente nos interpela a fazer, ou seremos estraçalhados pela sociedade multirreferencial que nos dá mil possibilidades, mas também nos atordoa. Eis o desafio da interioridade. Não é no exterior que se encontram as respostas buscadas, mas lá dentro de nós, no íntimo de nosso coração, na identidade escondida de cada um. Tal desafio não pode ser ignorado pela catequese a não ser ao preço de a fé cristã que ela transmite cair no descrédito. Na catequese, também o caminho interior se impõe. A catequese é convidada não a dar respostas prontas para seus catequizandos, mas a ajudá-los a encontrar tais repostas dentro de si, a partir da experiência cristã de Deus que vão fazendo no percurso catequético. A catequese não está sem recursos diante desse desafio, pois é no íntimo do coração que Deus mora; é a partir de lá que ele fala na primeira pessoa com cada um dos catequizandos, interpelando-os a responder a seu apelo. Eis por que hoje – ainda mais que em outros tempos – a catequese é interpelada a se des-escolarizar. Não é na exposição dogmática e doutrinária de62 temas religiosos que experimentamos a presença do Ressuscitado, mas no diálogo, na partilha, na oração, no silêncio, no canto, nas atividades pedagógicas, na escuta da Escritura… Eis por que hoje – ainda mais que em outros tempos – a catequese é interpelada a se des-escolarizar. Não é na exposição dogmática e doutrinária de temas religiosos que experimentamos a presença do Ressuscitado, mas no diálogo, na partilha, na oração, no silêncio, no canto, nas atividades pedagógicas, na escuta da Escritura… Deus, que é mistério de amor, vai envolvendo-nos com sua presença amorosa. A catequese tem muito a contribuir nesse processo de interiorização, desde que não queira impor – em nome da fé – respostas prontas. O Deus-amor, que a catequese anuncia e que é íntimo ao coração, precisa ser conhecido, acolhido, escutado… Para nós cristãos, é ele mesmo quem vai nos ajudar a construir nossa interioridade, dando-nos coragem para abrir mão de uma vida sem significado e para recomeçar nossos caminhos a partir de dentro. 63 ARTIGO 20 64 DESAFIO QUERIGMÁTICO Em tempos de cristandade, quando toda a sociedade respirava ares de cristianismo, o anúncio primeiro da fé parecia dispensável. Mas não mais agora, em mundo pós-cristão, quando a secularização da sociedade tirou as evidências da fé de debaixo de nossos olhos, trazendo consequentemente a perda da memória cristã. Para nossos contemporâneos, o Deus cristão não é mais conhecido; a fé cristã se tornou artigo de luxo e a lista dos não-apresentados pode ser maior que se mostra à primeira vista. Esse quadro atual desafia a catequese a dar aos processos de transmissão do evangelho uma orientação mais querigmática que antropológica. Mas o que é isso? Vejamos! Na modernidade, enquanto a sociedade passava pelo processo de secularização, o homem moderno ainda conservava as raízes da fé cristã no seu interior. Ainda fossem negadas, elas estavam lá como memória, como recurso disponível para orientar a vida. Ora, quando a razão ocupava o centro de tudo, era urgente mostrar a razoabilidade da fé, dar as razões do crer. Por isso a catequese ganhou uma orientação antropológica. Partindo da realidade do catequizando, buscava-se chegar a Deus. Ganhou espaço uma catequese mais indutiva, mais humanista, mais baseada nas verdades universais que transcendem a fé cristã. Hoje, desconfiados da razão e já sem a memória cristã de outrora, nossos contemporâneos querem mais que muitas razões para crer: querem fazer a experiência cristã de Deus, desde o coração, pois não buscam razões para crer, mas força para viver. Daí a necessidade de anunciar Jesus Cristo, ou seja, sua vida, morte e ressurreição, para nossos contemporâneos. A catequese hoje se vê desafiada a apresentar Jesus Cristo a nossos contemporâneos. Não cabe mais a ela a tarefa de burilar a fé, de dar-lhe acabamento, pois a fé cristã não é mais um pressuposto no nosso meio. Ela desapareceu do horizonte de nossos catequizandos. Jesus para eles não é ninguém mais que um super-herói, ou um humanista, ou um líder religioso de peso. Ele é alguém que ficou no passado. Para a maioria de nossos contemporâneos, a fé cristã se tornou lenga-lenga que não fala ao coração, um blá-blá-blá moralista que não tem nada a ver com nossa vida, um conjunto de 65 doutrinas caducas sem pertinência. Anunciar Jesus Cristo, morto e ressuscitado, como aquele que dá sentido às nossas vidas é mais que urgente. A essa tarefa damos o nome de desafio querigmático. E, a esse desafio, a catequese não pode mais se furtar ou não cumprirá sua função primeira: propor a fé cristã, dar condições para que cada catequizando faça seu encontro pessoal com Jesus Cristo vivo. 66 ARTIGO 21 67 DESAFIO EDUCATIVO Além dos dois desafios já citados – desafio da interioridade e desafio querigmático –, a catequese atual se vê ainda diante de outra grande tarefa: achar uma pedagogia compatível com o anúncio da fé cristã, para viabilizar o anúncio do evangelho, a boa nova de Jesus Cristo. Trata-se do desafio educativo da catequese. Quando a secularização crescia a passos velozes e muitos apostavam no declínio da fé, foi preciso dar traços antropológicos à catequese. A pedagogia da aprendizagem tornou-se a mais apropriada para comunicar os valores cristãos, pois valorizou a condição do catequizando, colocando o foco na sua realidade (catequese antropológica). Essa pedagogia humanista parecia oportuna para tempos em que a luz da razão ocupava o centro de tudo. Com o apagamento da memória cristã e o descrédito da razão para dar resposta aos anseios mais profundos da humanidade, a pedagogia da aprendizagem também entra em crise. Se, de fato, a catequese deve proporcionar a experiência de Deus em Jesus Cristo, que os contemporâneos ainda não fizeram, a pedagogia da aprendizagem não dá conta dessa tarefa. Sabemos que o encontro com o Ressuscitado ultrapassa todo entendimento, apesar de o pressupor. A catequese querigmática atua, então, mais no campo da acolhida do mistério que no campo da racionalização da fé, apesar de todo esforço para dar suas razões. Na catequese atual, a categoria de mistério se apresenta inegociável; ela é seu cerne, seu cume. A fé cristã não quer eliminar o mistério, pois ela não o entende como um enigma a decifrar, nem uma ilusão a denunciar. Esse mistério do Deus revelado não se conhece pela capacidade da razão ou por esforço. A pessoa é iniciada nele. O mistério se revela à medida que é acolhido e a pessoa se deixa penetrar por ele. Na humilde atitude de acolhida, o mistério é vivido. Quem o acolhe se envereda por caminhos desconhecidos, cujos significados ganham sentido ao longo do trajeto. O mistério escapa à razão e só se deixa conhecer no íntimo do coração. Ele é o próprio Deus que se dá a conhecer como puro amor em seu filho Jesus Cristo; e essa realidade ultrapassa qualquer explicação que a razão poderia ensaiar, tendo sentido somente para o coração que se inclina diante dele. 68 Se o desafio da interioridade nos impõe a árdua tarefa de construir nossas referências, pois elas não nos são dadas mais pela sociedade; e o desafio querigmático arranca-nos o costume de apenas burilar a fé, exigindo de nós o anúncio explícito do mistério pascal por meio do testemunho da fé; o desafio educativo nos leva a pensar que os processos do ensino e da aprendizagem não dão mais conta dos anseios do homem atual, que prefere experimentar a fé a explicá-la. 69 ARTIGO 22 70 DESAFIO COMUNITÁRIO Não incomum se tornou a reclamação de que as gerações mais jovens não têm laços de pertença, que não se identificam mais com as instituições, que entram e saem delas conforme suas conveniências. De fato, todos nós notamos que os vínculos institucionais se encontram afrouxados. Já foi o tempo em que a gente se identificava pela pertença institucional: “sou católico” ou “sou da família Correia” ou “sou professor”. Atualmente, podemos ser o que quiser; nossa liberdade – como já dissemos – se tornou nossa maior obrigação. Os laços que nos prendiam e davam as balizas do nosso ser, que direcionavam nossas escolhas, enfraqueceram-se. Temos dificuldades para estreitar esses laços, para manter vínculos comunitários, até porque – hoje em dia – a vida muda rápido demais e a pertença a um grupo acaba sendo provisória. Mas como falar em fé cristã sem pertença, se a fé cristã é essencialmente eclesial? A fé que professamos, nós não a inventamos, nós a recebemos, foi-nos transmitida por uma comunidade eclesial, que a recebeu de outros e que a recebeu de outros… E veio sendo transmitida desde os apóstolos até chegar até nós. A fé cristã, apesar de ser resposta pessoal a Deus, é comunitária; é patrimônio dos que creem, ou seja, da Igreja. Por meio dela é que fomos interpelados pelo Deus de Jesus Cristo e demos a ele nosso assentimento de fé. A catequese transmite a fé cristã quando proporciona oportunidade para que as pessoas possam entrar em contato com o Deus de Jesus Cristo, experimentá- lo, amá-lo, conhecê-lo. A fé que a catequese transmite é a féda Igreja, assumida e professada pelo catequista e pela turma de catequese. Ora, então, como fazer tal transmissão em tempos que não favorecem os laços comunitários? Em tempos que – como dizem alguns pessimistas – o individualismo tomou conta do cenário social e as novas gerações não têm instinto gregário? Certamente, as motivações dos laços comunitários devem ser bem outras. A pertença institucional não se dá mais por vínculos contratuais imutáveis como outrora, nem na família, nem na sociedade, nem nas igrejas. Ela se dá pelo desejo de pertencer, pelo prazer do convívio, pela alegria da partilha, pela identificação com o grupo que deve afirmar a interioridade do sujeito e não 71 sufocá-la. As novas gerações não são avessas à pertença, como dizem alguns. Só não querem mais aquele modelo institucional oferecido em outros tempos. Querem comunidades mais abertas, mais livres, que sejam espaços sem violência simbólica, onde cada um possa ser o que quer ser (ou o que consegue ser). Em vez de cobrar pertença das gerações jovens, o que parece ser inútil, as comunidades eclesiais devem ser esses espaços de convívio e ajuda mútua, espaços para de amor e comunhão, muito mais que espaços das obrigações impostas, formais e contratuais. Afinal, o que é o cristianismo senão a religião do amor e do respeito ao outro? O que fez Jesus senão resgatar o outro de suas misérias e lhe oferecer espaço para desabrochar seu melhor eu? Os laços comunitários, dizem alguns, estão comprometidos. Eu diria: os laços contratuais, talvez; os de amor, jamais! 72 ARTIGO 23 73 EM BUSCA DE UM NOVO PARADIGMA CATEQUÉTICO Tudo ao redor mostra que os paradigmas catequéticos herdados de tempos anteriores caminham para a falência. As novas gerações se interessam cada vez menos pelo anúncio da fé cristã e, quando aceitam participar da catequese, quase sempre é por uma motivação meio estranha e não por interesse genuíno no que lhes é anunciado: receber um sacramento, cumprir um ritual familiar, manter as tradições, encerrar um ciclo iniciado, cumprir um rito meio mágico ou supersticioso etc. Tendo se sujeitado aos modelos que as comunidades eclesiais oferecem, as crianças, jovens e até mesmo os adultos mostram-se aflitos para encerrar o itinerário proposto e verem-se livres das obrigações catequéticas impostas. Poucos perseveram depois dos sacramentos; a maioria dá adeus definitivo à comunidade eclesial na crisma ou até mesmo na primeira comunhão e, para muitos, última comunhão. Além disso, a catequese com adultos é praticamente inexistente e a dedicação quase exclusiva da catequese às crianças já sinaliza a falência dos paradigmas que aí estão. Então, o que fazer? Parece que é tempo de arriscarmos em novos paradigmas catequéticos, pois, ainda que desconhecidos, podem oferecer ares novos à Igreja. Deixar um paradigma certeiro para ir ao encontro de outro desconhecido é sempre arriscado. Os paradigmas anteriores certamente se firmaram por oferecerem conquistas importantes; nenhum deles se estabeleceu sem apresentar resultados positivos, sem ajudar a encontrar respostas para problemas antigos. É o caso do paradigma da renovação catequética, aqui no Brasil conhecido como Catequese Renovada ou Catequese Libertadora. Esse paradigma fez conquistas maravilhosas; ajudou a superar aquele modelo doutrinário do catecismo de Trento, quando propôs uma catequese que unisse fé e vida. Mas os tempos mudaram e as conquistas da renovação catequética não podem se tornar agora um obstáculo epistemológico para novas conquistas. Mas o que é isso: obstáculo epistemológico? Um obstáculo epistemológico é um impedimento do conhecimento, do pensar… Pode acontecer de ficarmos tão felizes com as conquistas anteriores, que nos prendemos a elas. Aí elas nos impedem de pensar novas possibilidades, novos caminhos, pois o conhecimento 74 adquirido se cristaliza, fica engessado e não nos permite mais pensar o novo. É o caso da pedagogia da aprendizagem que se firmou com a catequese renovada aqui no Brasil, suplantando a pedagogia do ensino – própria dos catecismos. Certamente, essa pedagogia deu sua contribuição quando considerou o catequizando como sujeito de seu próprio conhecimento. Mas, hoje em dia, tal pedagogia já exige ser repensada. Em tempos de pós- cristandade, fala mais ao homem pós-moderno a pedagogia da iniciação, que favorece seu mergulho no mistério pascal. A pedagogia da iniciação se apresenta hoje como a aquela que melhor favorece a transmissão da fé cristã, pois possibilita o encontro do catequizando com Deus. É hora de dar passos nessa direção! 75 ARTIGO 24 76 PEDAGOGIAS CATEQUÉTICAS Ao se falar em novo paradigma catequético, certamente o pensamento voa logo para o campo pedagógico da catequese. O ato catequético é o exercício da comunicação da fé, da transmissão da fé apostólica recebida, do testemunho da experiência cristã de Deus, que se dá por meio do anúncio da transformadora palavra do evangelho. Como comunicar essa fé? Como transmiti-la? Como testemunhar a experiência do encontro com Jesus Cristo Ressuscitado que transformou nossas vidas? Como ajudar alguém a se abrir para experimentar a força do evangelho que faz viver, que ressignifica toda a existência da gente? Certamente há várias pedagogias que são capazes de levar ao conhecimento. Mas o conhecimento de Deus pode ser favorecido por qualquer caminho pedagógico? A fé cristã, que a catequese comunica, se sustenta no princípio da revelação. Entendemos que não somos nós que, por nossa força e capacidade, conhecemos a Deus, mas – ao contrário – estamos convictos que Deus mesmo, na sua bondade, se autocomunica, se revela, entra em relação conosco. Se é assim, seria estranho enclausurar Deus em nossas pedagogias, como se ele só conhecesse um caminho e só pudesse se dar a nós por uma via, por meio de uma didática ou metodologia. Deus, de mil caminhos e de mil maneiras, se dá a nós. Se essa é nossa alegria, é conveniente também lembrar que, apesar dessa liberdade de ação de Deus, há caminhos catequéticos mais oportunos que outros para comunicar a fé. O Diretório Geral da Catequese fala que há uma “pedagogia original da fé”, uma pedagogia que favorece sobremaneira essa experiência. Logo, nem toda pedagogia favorece a comunicação da boa-nova que é o mistério pascal. Por ser algo bem maior que nós e que nos envolve, o mistério não cabe em nossa compreensão. Nenhuma formulação dá conta de dizê-lo; nenhuma definição dogmática dá conta de esgotá-lo. Tal é o amor de Deus e sua manifestação entre os homens – seus amados – que toda tentativa epistemológica fica sempre devedora do tamanho desse mistério. Eis porque a transmissão da fé exige algo mais que um caminho que faça a gente entender ou decorar a verdade, ou até mesmo construir a partir de nossa experiência uma compreensão de Deus. O mistério da fé exige uma pedagogia que favorece o encontro com Deus, 77 bem mais que o conhecimento ou a compreensão de verdades e dogmas. Deus age em nós “desde dentro”, lá no mais íntimo de nós, onde ele habita, onde fez morada na nossa carne. A relação com Deus passa muito mais pelas vias do amor, da entrega, da doação de si, que pelas vias cognitivas, da compreensão, da explicação, da apreensão de conteúdos. A catequese – se quer de fato comunicar Deus e não apenas ensinar verdades sobre ele – deve redescobrir essa “pedagogia original da fé”, perdida no tempo da história. Trata-se da pedagogia da iniciação, um modo testemunhal de comunicar a fé, que favorece a acolhida do Ressuscitado desde o coração. Continuaremos a falar sobre essas pedagogias nos próximos artigos. 78 ARTIGO 25 79 PEDAGOGIA DO ENSINO Por muito tempo, a catequese se dedicou a ensinar a fé. Essa pedagogia do ensino tem raízes antigas. Remonta no mínimo ao século XVI, ao tempo da Reforma Protestante, quando – convencida da urgência de distinguir a doutrina católica da doutrina luterana que se difundia – a Igreja se empenhou em fomentar os catecismos, pequenas sumas teológicas ou compêndios que explicitavam
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