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Filosofia do cérebro - João de Fernandes Teixeira

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2
Índice
Agradecimentos
Prefácio
O cérebro e a filosofia
Consciência, intenção e liberdade
O cérebro como problema filosófico
A neurofilosofia
Conclusão
Sugestões de leitura
Bibliografia
3
Para Malu, Jujuba e Tâmara,
o amor que nunca acaba.
4
Agradecimentos
Em primeiro lugar, à minha ex-aluna e amiga Suely Molina, que, mais uma vez,
me ajudou com a revisão final do texto.
Aos meus amigos Gustavo Leal-Toledo e Kleber Candiotto, pelas sugestões.
Ao meu ex-aluno André Sathler Guimarães, pelas críticas sempre construtivas.
À minha esposa, Malu.
A Lili, minha assistente.
5
O antigo dualismo da alma e do corpo foi substituído pelo dualismo do cérebro e
do restante do corpo.
John Dewey
6
Prefácio
Não é mais possível ignorar o impacto da neurociência sobre as ciências humanas,
sobretudo depois que ela se tornou neurociência cognitiva e tomou para si a resolução
de problemas que antes estavam confinados somente à psicologia e à filosofia.
Há, hoje em dia, muitos livros de qualidade que expõem para o público leigo os
últimos avanços e resultados das novas ciências do cérebro. Mas estava faltando um
livro curto e acessível, que tratasse das novas relações mútuas que hoje existem entre
a filosofia e a neurociência. Essa é a proposta deste livro.
Para elaborar este texto, além de uma ampla investigação nos mais atuais estudos
científicos sobre o assunto, utilizei-me de vários livros e artigos de minha autoria.
Aprofundei posições acerca da neurociência já sustentadas nos meus livros Filosofia
e Ciência Cognitiva (2004) e A Mente Pós-Evolutiva (2010). Utilizei-me, também,
em algumas passagens, de colunas escritas para a revista Filosofia Ciência & Vida
nos últimos cinco anos. O leitor que me acompanhou nesses últimos anos talvez as
reconheça em alguns trechos. Sinto-me feliz de poder reunir essas passagens em um
texto maior, que expressa de forma mais coerente e detalhada minhas posições
filosóficas acerca da neurociência e da filosofia da mente.
Um dos maiores filósofos da neurociência na atualidade, Carl F. Craver, escreveu
que, se a neurociência explicar o mistério da consciência, a ilusão do livre-arbítrio e
como funciona a memória humana, mudaremos nossa autoimagem tão radicalmente
como quando Copérnico nos tirou do centro do universo. Será que Craver está certo?
7
O cérebro e a filosofia
Este pequeno livro visa iniciar o leitor em uma área ainda pouco explorada no
Brasil: a reflexão sobre a neurociência e seus fundamentos, que tem levado, nas
últimas décadas, a uma expansão da temática da filosofia.
A neurociência é uma disciplina relativamente jovem, que adquiriu grande
importância a partir dos anos 1990, a chamada década do cérebro. Essa década marca
uma descoberta fundamental: a neuroimagem. Ela foi a contribuição mais recente e
mais importante para que a neurociência se tornasse neurociência cognitiva, ou seja,
uma investigação das bases neurais da atividade psicológica de alguns animais e, em
especial, dos seres humanos. Desde o surgimento da neuroimagem, quase
semanalmente jornais e revistas passaram a publicar imagens coloridas do cérebro
que correspondem à descoberta da localização de mais algum tipo de atividade
mental cujas bases neurais eram até então desconhecidas.
As técnicas de neuroimagem ou de imageamento do cérebro surgiram na metade
da década de 1990. Seu pioneiro foi o radiologista americano Marcus Raichle, cujas
pesquisas levaram ao desenvolvimento do PET (Positron Emission Tomography) e do
fMRI (Functional Magnetic Resonance Imaging) ou ressonância magnética do
cérebro. O livro publicado por Raichle (escrito em conjunto com Michael Posner) em
1997, Images of Mind, fez grande sucesso na época.
O entusiasmo pelas teorias biológicas da consciência se acentuou após a invenção
dessas novas tecnologias. Até pouco tempo, a única maneira de se examinar o cérebro
humano era através de autópsias realizadas após a morte de pacientes que
apresentavam alguma disfunção cognitiva. O cérebro era, praticamente, uma caixa-
preta.
Foi esse panorama que mudou radicalmente com o aparecimento do PET e do
fMRI. Eles proporcionam imagens do cérebro vivo, quase em tempo real, o que nos
permite visualizar como ele funciona. As imagens coloridas do PET e do fMRI
correspondem a níveis de atividade neural. O paciente submetido a essas técnicas
deve relatar a execução de alguma atividade cognitiva e, em seguida, seu cérebro é
escaneado, o que permite a localização dessa atividade no tecido cerebral. As
imagens obtidas pelo PET detectam a atividade neural através das variações
metabólicas que ocorrem no cérebro.
Eventos neurais requerem oxigênio, que, por sua vez, requer afluxo sanguíneo. A
suposição é a de que onde esse afluxo aumenta está ocorrendo atividade neural.
Esta, por sua vez, está correlacionada com atividade mental. Uma das propostas é
estabelecer uma identidade ponto a ponto entre, por um lado, as áreas cintilantes
obtidas pela neuroimagem e, por outro, as funções cognitivas. Essa identidade, em
princípio, permitiria um mapeamento da mente no cérebro.
O impacto dessas novas tecnologias de observação do cérebro sobre a imagem que
8
o homem tem de si mesmo no século XXI é muito grande. Para a nova neurociência,
que surgiu na década do cérebro, somos apenas uma imensa coleção de neurônios que
evoluiu ao longo de milhares de anos, e cuja atividade é, em última análise, regida
por genes ou proteínas que, em sua interação com o meio ambiente, acabam tendo um
papel decisivo sobre nossa mente e nosso comportamento. O materialismo teria,
finalmente, triunfado sobre as concepções do eu que o associam a algum tipo de alma
imortal. Como sugeriu o neurocientista indo-americano Vylanour Ramachandran, a
herança platônica que nos vê como uma alma aprisionada no corpo tende a acabar.
Somos apenas nossos cérebros, e nossas diferenças individuais nada mais são do que
pequenas diferenças cerebrais.
O impacto da neurociência sobre questões filosóficas tradicionais também é muito
grande.
A neurociência sugere que o problema mente-cérebro, do qual se ocuparam as
filosofias e as religiões, logo será resolvido pela ciência. A mente é o cérebro; hoje
em dia, na comunidade científica, poucos se atrevem a questionar essa proposição.
Se ainda há crenças religiosas que pregam a distinção entre mente e cérebro, a
neurociência nos diz que elas podem não ser nada além de eventos cerebrais ou até
mesmo experiências induzidas no cérebro humano a partir da ingestão de algumas
drogas com efeitos específicos.
Nessa nova perspectiva, a neurociência torna-se a ciência fundamental, usurpando
a posição ocupada pela física por várias décadas, pois da neurociência podemos
esperar compreender a organização de todo conhecimento humano, incluindo, até
mesmo, o modo como o cérebro humano produz a própria física, até então
considerada como o saber fundamental ao qual se esperava que um dia todas as
ciências pudessem ser reduzidas. Tudo cedeu à neurociência. Não se atribui mais um
papel determinante à cultura e à história individual na produção do transtorno mental,
mas, ao contrário, é o transtorno cerebral que é considerado o produtor das distorções
na cultura e nas histórias individuais. Entende-se que a explicação neurocientífica
deve prevalecer sobre outros tipos de explicações, pois ela é considerada a mais
científica. É nesse ponto que a neurociência começou a disputar o espaço da
psicologia e da psicanálise, criando um conflito que não se resolverá tão cedo. Nem
mesmo criações mais recentes, como a neuropsicanálise, parecem poder dar conta
desses atritos.
A neurociência está tão impregnada nas sociedades contemporâneas que já afetou
até a linguagem popular. As pessoas não ficam mais tristes, mas deprimidas. Não
ficam mais furiosas, elas “surtam”. Para tristeza e fúria ministram-se drogas que
podem evitá-las. A angústia existencial, típica do século XX, não é mais vista como
resultado da condição humana, mas apenas como um estado patológico transitório
que pode ser eliminado através de novas medicaçõesbiopsiquiátricas resultantes da
pesquisa neurocientífica.
Mas as ambições científicas cada vez mais abrangentes da neurociência se
9
expandiram também para a filosofia, levando ao surgimento de uma nova disciplina,
a neurofilosofia. Seu propósito é tratar problemas filosóficos a partir da
neurociência. A neurofilosofia aposta que outras questões, além do problema mente-
cérebro, poderão ser solucionadas pela neurociência em um futuro próximo.
Entre tais questões estão também incluídas as de ordem ética, já que a
neurociência tomou para si a explicação do comportamento e das decisões dos seres
humanos. Origina-se, daí, uma subseção importante da neurofilosofia – a neuroética.
Contudo, apesar de todas essas ambições, a reflexão filosófica sobre os limites da
investigação neurocientífica ainda se mantém como tarefa fundamental para os
filósofos. Se há filosofia da ciência, ela deve abranger também a neurociência e nos
conduzir em direção a uma filosofia da neurociência. Esse tipo de reflexão tem como
proposta discutir questões básicas, como, por exemplo: O que é o cérebro? Quando
falamos dele, estamos nos referindo a uma entidade física ou a uma construção
teórica? Haverá leis da neurociência da mesma maneira que há leis da física? O que
significa explicar um fenômeno mental em termos neurocientíficos? Será que basta
localizá-lo no cérebro a partir de técnicas de neuroimagem?
A filosofia da neurociência deve manter uma via de mão dupla com a
neurofilosofia. Os filósofos não podem mais ignorar a neurociência, principalmente
após os trabalhos de Paul e Patrícia Churchland, que passaram a ser conhecidos como
“o casal Churchland”. Não é mais possível falar de memória, de consciência e de
outros fenômenos mentais como se fazia há cem anos, pois agora eles são
investigados empiricamente. Da mesma maneira que espaço e tempo deixaram de ser
assuntos de filósofos e foram apropriados pelos físicos, mente, consciência, memória
etc. deixaram de ser domínio exclusivo da psicologia e da filosofia, e hoje tornaram-
se tema de neurociência. Não é mais possível negar que a neurociência invadiu a
filosofia.
Mas poderá a neurociência dar respostas definitivas sobre questões fundamentais
como as relações entre mente e cérebro, e a problemas éticos, que sempre foram um
espaço privilegiado dos filósofos? Esse é um problema que também precisa ser
discutido. Há muito entusiasmo ingênuo entre os neurocientistas, mesmo entre os
mais brilhantes como Ramachandran e Gerald Edelman. Talvez seja ainda muito cedo
para afirmar que a neurociência pode tomar o lugar da filosofia. Parece que muitos
dos neurocientistas de hoje são como os filósofos anteriores a Kant, que não viam
limites à expansão do conhecimento. E falar de limites à expansão do conhecimento
não significa fazer uma aposta contra a ciência, mas colocar os pés no chão e lembrar
que da ciência talvez não seja possível esperar respostas para questões metafísicas.
Não há dúvida de que nas duas últimas décadas a neurociência avançou mais do
que na sua história inteira. Também não há dúvida acerca do quanto esses avanços se
refletiram na vida prática das pessoas, a começar pela quantidade de medicamentos
neurológicos e biopsiquiátricos de que dispomos hoje e que podem nos trazer um
alívio inegável para vários tipos de desconforto psíquico. Em breve, a pesquisa
10
neurocientífica nos livrará de doenças neurológicas graves, como, por exemplo, o
Parkinson e o Alzheimer. Mas será isso suficiente para dar à neurociência o papel de
pedra filosofal, como a imprensa leiga o faz?
Já houve quem dissesse que a neuroimagem representou para o século XX aquilo
que o telescópio foi para o século XVII, ou seja, um instrumento fundamental que
permitiu à nova astronomia confirmar que a Terra não é o centro do universo. Novas
técnicas de observação do cérebro em funcionamento, como a optogenética,
desenvolvida em 2006 por Karl Deisseroth na Universidade de Stanford, prometem
avanços cada vez maiores para a neurociência. Através dessa nova técnica, é possível
modificar geneticamente alguns neurônios de modo que, quando ativados, tornam-se
sensíveis a raios luminosos. Certamente, essa nova tecnologia permitirá que
aperfeiçoemos o mapeamento cerebral e talvez traga um salto qualitativo tão
importante quanto a neuroimagem. Uma das grandes vantagens da optogenética é a
possibilidade de “ligar” e “desligar” regiões específicas do cérebro sem que ocorram
efeitos colaterais, como no caso do implante de chips ou no de uso de drogas
biopsiquiátricas.
O desenvolvimento dessas novas técnicas nos leva a acreditar, cada vez mais, que
podemos esperar muito da neurociência nas próximas décadas.
Mas será que os neurocientistas não estarão reeditando, de forma ingênua e
pouco se dando conta, questões filosóficas que a filosofia da mente tem debatido nas
últimas décadas? E até que ponto a ausência dessa reflexão filosófica não pode estar
influenciando a própria maneira como a neurociência tem sido desenvolvida nos
últimos anos?
Essa é uma questão polêmica, debatida de forma crítica por Bennett e Hacker, os
autores do livro Fundamentos Filosóficos da Neurociência, um dos textos pioneiros
de filosofia da neurociência, publicado em 2003. O pano de fundo de sua crítica
poderia ser expresso pela sentença “na neurociência, há métodos experimentais, mas
confusão conceitual”, adaptada de Wittgenstein. Ao escrever essa sentença nas
Investigações Filosóficas, em 1958, Wittgenstein se referia à psicologia, dizendo que
nela “há métodos experimentais e confusão conceitual”. Segundo Bennett e Hacker,
poderíamos, hoje em dia, substituir “psicologia” por “neurociência” quase sem alterar
a intenção crítica que motivou, originariamente, essa afirmação.
Sem me deter nas análises propostas por esses dois autores, pretendo, nos
próximos capítulos, apresentar e discutir as relações entre neurociência e filosofia em
seus vários aspectos. Não acredito que haja uma ciência de tudo, como os físicos do
século XX tentaram em vão encontrar, nem tampouco que tal ciência, com tanta
abrangência, seja a neurociência atual. Desta, é preciso analisar limites e pretensões, e
essa é a tarefa que a filosofia da neurociência, ou a nova “filosofia do cérebro”, se
propõe a realizar.
CONTINUAR A PENSAR
11
Até que ponto você acha que a neurociência pode afetar a imagem que o homem tem de si mesmo? Você
acha que a divulgação das realizações da neurociência na mídia tem sido exagerada?
12
Consciência, intenção e liberdade
I
Há três temas que, frequentemente, são abordados pelos neurocientistas ao tentar
extrair conclusões ou fazer considerações acerca das consequências de seus
experimentos e observações. O primeiro é o problema mente-cérebro; o segundo, a
questão da ação intencional ou da natureza das intenções que movem os seres
humanos; e o terceiro, a questão da liberdade versus o determinismo. Esses três temas
sempre estiveram na agenda dos filósofos e, mais recentemente, reaparecem como as
principais questões da filosofia da mente.
O problema mente-cérebro já foi muito discutido pelos filósofos da mente nas
últimas décadas, mas algumas descobertas recentes da neurociência sugerem que ele
precisa ser reconsiderado a partir dessas novas perspectivas. Uma delas, e talvez a
principal, é a neuroimagem. Se pudermos localizar as atividades mentais em
determinados pontos do cérebro, não seria isso uma prova em favor da identidade
entre o mental e o físico? Não serão mente e cérebro a mesma coisa? Será que nossas
experiências subjetivas não são apenas um efeito colateral do metabolismo do
cérebro?
O principal desafio colocado pelo problema mente-cérebro é que nossa
introspecção não dá acesso a neurônios e sinapses com os quais poderíamos
relacionar diretamente nossos pensamentos. A introspecção não dá acesso a um
cérebro, e sim à mente, com seus estados mentais, imagens mentais e emoções. Se
caminharmos inversamente e tentarmos resgatar estados subjetivos a partir da
observação do cérebro, a dificuldade será a mesma. Há um hiatoentre mente e
cérebro batizado pelo americano Joseph Levine, em 1983, com o nome de hiato
explicativo, expressão que passou a ser adotada pelos filósofos da mente que o
sucederam.
O hiato explicativo é mais uma formulação do tradicional problema mente-
cérebro, que permanece na agenda da filosofia da mente ao longo das últimas
décadas. Contudo, os neurocientistas têm se mostrado cada vez mais entusiasmados
com a possibilidade de encontrar a solução a partir do estudo do funcionamento do
cérebro. Quase todos os neurocientistas são materialistas, ou seja, acreditam em uma
identidade entre mente e cérebro ou, pelo menos, no sucesso das tentativas de reduzir
o mental ao cerebral. Foi com base nesse entusiasmo que Francis Crick nos fala de
uma “hipótese assombrosa” ao se referir à possibilidade da consciência ser apenas um
produto da atividade cerebral. Contudo, não é algo tão assombroso assim, pois o
materialismo já existe há séculos na história da filosofia.
Mas há algo que nos chama a atenção na hipótese sobre a qual Crick insistiu: sua
13
influência, a partir dos anos 1990, que levou os filósofos da mente a reformularem o
problema mente-cérebro de forma a nele incluir a questão da consciência.
Por que a consciência parece resistir tanto a uma possível redução a estados
cerebrais? Se a ciência pode, em um futuro próximo, explicar a natureza do mental,
ainda assim restaria o problema da consciência.
Os neurocientistas, a partir da década de 1990, parecem ter acompanhado essa
mudança e passaram a falar do problema da consciência como a principal questão a
ser resolvida pela neurociência. Acompanhando a proliferação de teorias da
consciência que se espalhou pela filosofia da mente, em vez de falar de uma redução
da experiência subjetiva a estados cerebrais, os neurocientistas passaram, então, a
buscar pelos correlatos neurais da consciência.
A ideia de um correlato neural pode ter dois sentidos. O primeiro é o da existência
de uma correspondência entre o mental e o cerebral, ou seja, a ideia de que todos os
estados mentais são acompanhados de algum estado cerebral que pode ser detectado
pela observação do cérebro. Esse estado cerebral não precisaria ser necessariamente a
causa do estado mental, nem tampouco algo a que esse estado mental tivesse de ser
reduzido. Nesse sentido, podemos buscar correlatos mentais para diversas atividades,
tais como a memória e a linguagem.
Mas há outro sentido para correlato neural. Nesse caso, buscam-se no cérebro as
características da experiência subjetiva que a tornam consciente. Isso significa a
crença de que a consciência possa ser mapeada no cérebro, ou seja, de que a
consciência tem uma representação neural. Esse rastro no cérebro poderia ser
detectado pela neuroimagem ou por algum outro instrumento de observação da
atividade cerebral. Da mesma maneira que o eletroencefalograma possibilitou a
identificação das fases do sono (em especial a fase REM, que ocorre, supostamente,
quando sonhamos), deveria ser possível identificar quando uma experiência se torna
consciente no cérebro. Será que em algum momento a neuroimagem conseguirá
identificar o aspecto distintivo que torna certas experiências conscientes?
A busca pelos correlatos neurais da consciência já dura pelo menos duas décadas.
Para alguns neurocientistas, ela se equipara à tentativa de descobrir o lugar da
consciência no cérebro; a busca pela verdadeira sede da alma. Mas as dificuldades
podem não ser apenas técnicas, como muitos pressupõem.
Na verdade, não se sabe exatamente o que se está procurando, pois não há um
consenso acerca do que se deve entender por consciência. Há, também, aqueles que
questionam a possibilidade de sucesso desse tipo de projeto. Neurocientistas
respeitáveis, como o finlandês Antti Revonsuo, já questionaram se os correlatos
neurais da consciência seriam detectáveis pelas técnicas de imageamento de que
dispomos no momento. Outros, como Baars, Dehaene, Tononi e Edelman,
questionam se a consciência não seria um evento global distribuído por várias partes
do cérebro. Para eles, não haveria correlatos neurais específicos e localizáveis. Do
ponto de vista da filosofia da mente, a questão da existência de tais correlatos neurais
14
é um problema que merece uma discussão filosófica preliminar, antes dos
neurocientistas se aventurarem na busca por qualidades distintivas entre a atividade
neural associada com a consciência e o processamento inconsciente de informação no
cérebro, que ocorre em muitos comportamentos humanos.
Uma das razões para a persistência de dificuldades nessas pesquisas é o fato de
que não existe um modelo consensual entre os neurocientistas acerca do
funcionamento cerebral. Até hoje, existe uma disputa entre três posições possíveis: o
localizacionismo, o holismo e o equipotencialismo.
Para o localizacionismo, o cérebro é um conjunto de módulos especializados, cada
um responsável por uma determinada função. O localizacionismo tornou-se o
localizacionismo funcional, ou seja, a localização de áreas obedece a um critério
essencialmente funcional. O localizacionista pode correlacionar uma função com um
tipo especial de célula no cérebro, mas ela pode estar difusa em várias regiões do
tecido cerebral. A localização nesse caso perde o sentido especificamente geográfico
ou espacial, ela pode ser relacionada com diferentes tipos ou grupos de células.
O holismo nega que funções mentais possam ser entendidas em termos de áreas
isoladas, mas não se choca com o localizacionismo, pois ele não precisa negar a
especialização das áreas. Em outras palavras, o holista não se opõe necessariamente
ao localizacionista, mas enfatiza que o funcionamento do cérebro ocorre pela
interação e coordenação dessas partes especializadas.
Para os equipotencialistas, não existiria especificidade funcional; o cérebro
funciona o tempo todo como um grande mutirão que, para executar suas funções,
convoca todas as suas partes, pois elas seriam equivalentes. Atualmente, os
equipotencialistas concordam com um certo localizacionismo de funções mais
simples, como as sensórias e as motoras, mas não estendem o localizacionismo para o
caso das funções cognitivas mais complexas, como a memória e a consciência.
A tendência mais recente da neurociência é o localizacionismo. O sucesso da
neuroimagem e outras técnicas de observação cerebral tradicionais, como a
introdução de eletrodos ou microeletrodos no cérebro para identificar regiões de
atividade neural, nos aproxima da elaboração de um mapeamento cerebral cada vez
mais preciso.
Essa técnica, também conhecida como eletrofisiologia do neurônio individual,
busca registrar a atividade de neurônios específicos através de uma interação com seu
campo elétrico, quando o cérebro recebe estímulos que vêm de canais sensoriais. Os
eletrodos podem ser posicionados de forma a tocar a membrana do neurônio para
medir sua atividade elétrica, ou, em alguns casos, devem atravessá-la.
A medição da atividade elétrica de um neurônio ou de um grupo deles é a pista
para saber onde e como o cérebro reage ao mundo exterior. Ou, em outras palavras,
para saber o que tem algum significado para o cérebro.
Essa técnica exige uma pesquisa meticulosa por parte dos neurocientistas, o que
torna o seu trabalho particularmente árduo. Não bastasse isso, às vezes fica muito
15
difícil isolar neurônios para medir sua atividade elétrica, pois eles estão todos
interconectados. Para superar essas dificuldades, Rodolfo Llinás, um neurocientista
colombiano radicado nos Estados Unidos, fala-nos até de realizar experimentos mais
ousados no futuro, como a introdução de bilhões de nanoeletrodos na corrente
sanguínea, que acabariam se instalando na superfície do cérebro, sem penetrá-lo
profundamente, e que trariam a possibilidade de mapear com precisão a atividade
elétrica do tecido cerebral em seus mínimos detalhes.
No caso da neuroimagem, a localização de eventos no cérebro está restrita à
identificação de regiões cúbicas entre 2 e 5 milímetros, nas quais há centenas de
milhares de células.Se existir algum grau de especialização ou diferenciação entre
essas células, isso não será captado. Ademais, eventos cerebrais ocorrem numa escala
de milhares por segundo. A neuroimagem detecta apenas eventos num intervalo de
quase um minuto. Os dados fornecidos por ela têm sempre de ser padronizados, pois
cada cérebro tem suas diferenças.
Apesar das dificuldades, essas duas técnicas, a neuroimagem e a eletrofisiologia
do neurônio, têm reforçado a crença dos neurocientistas contemporâneos na
possibilidade de encontrar os correlatos neurais da consciência e de resolver o
problema mente-cérebro pelo estudo do funcionamento cerebral. Essa crença resulta
da ideia de que essas novas tecnologias finalmente abrirão um caminho para que se
estabeleça uma interface entre a fisiologia e a psicologia.
Mas o localizacionismo teve ainda como consequência a radicalização de posições
reducionistas na discussão do problema mente-cérebro.
Uma das formas do reducionismo contemporâneo é a chamada redução
psiconeural, defendida pelo filósofo americano John Bickle. O mental deve ser
reduzido ao físico numa trajetória que passa pelo bioquímico, pelo químico e
finalmente pelo molecular.
John Bickle toma como modelo de redução psiconeural as pesquisas sobre as
bases neurais da memória realizadas pelo neurocientista Eric Kandel, que recebeu o
Prêmio Nobel de Medicina e Fisiologia em 2000. Ele defendeu o reducionismo mais
como método científico do que como posição filosófica, embora sempre acreditando
que o trabalho do neurocientista seja sempre o de encontrar as bases moleculares das
atividades mentais. É nesse sentido que ele chegou a defender a existência de um
gene da sociabilidade.
Kandel tomou como ponto de partida o estudo do comportamento da lesma
marinha Aplysia e mostrou em detalhes como ocorrem as mudanças nas conexões
entre neurônios em processos conhecidos como habituação e sensibilização de um
reflexo, que são formas simples de aprendizado. A habituação é o desconhecimento
de um estímulo por ele se tornar repetitivo e excessivamente trivial. A sensibilização,
ao contrário, é o reconhecimento de um estímulo pela sua novidade e caráter
inusitado. Quando moramos numa rua muito barulhenta, passamos, com o tempo, a
não ouvir o ruído dos carros, pois nos acostumamos com esse tipo de estímulo. Mas
16
se um carro buzinar fortemente por alguns segundos, reagiremos com irritação a esse
novo estímulo.
Kandel mostrou que as mudanças químicas nas células durante a habituação
envolvem a liberação de íons de cálcio necessários para que ocorra a conexão entre
dois neurônios (sinapse). Quando os canais pelos quais circulam íons de cálcio pela
membrana do neurônio se fecham, o reflexo não ocorre, e é isso que se passa no
processo de habituação.
Reflexos que se tornaram habituados podem ficar inativos por horas ou dias, mas
podem ser reativados por estímulos em outras partes do corpo da Aplysia. Kandel
mostrou que nesse pequeno animal a sensibilização ocorre através da ativação de um
canal paralelo entre neurônios que libera o neurotransmissor serotonina nas sinapses
que ficam sem íons de cálcio. Quando isso acontece, os canais de cálcio se reabrem, o
cálcio penetra e o reflexo é reestabelecido. É dessa forma que funcionam as bases
neurais do aprendizado da Aplysia, que depende da mudança entre as conexões de
alguns de seus neurônios. A mudança dessas conexões pode, por sua vez, ser
explicada em nível químico e molecular.
Com isso, Kandel pretende ter dado um passo inicial para a compreensão das
mudanças em conexões nos cérebros mais complexos, o que permitiria, no futuro,
desvendar os processos de aprendizagem em outros animais, incluindo o ser humano.
A Aplysia é só o começo na trajetória em direção a explicações neuromoleculares.
Entre o DNA da Aplysia e o de animais com cérebros complexos como o ser humano,
há poucas diferenças.
O trabalho de Kandel é um exemplo da chamada doutrina do neurônio, um termo
cunhado pelos filósofos da neurociência Ian Gold e Daniel Stoljar. A doutrina do
neurônio pressupõe que a mente será explicada por uma teoria neurocientífica
inteiramente biológica. Se a mente é o cérebro e se a neurociência é a ciência do
cérebro, ela será também uma teoria da mente que poderá explicar todos os
fenômenos mentais. A psicologia desaparecerá no decorrer do desenvolvimento da
neurobiologia. Essa é uma posição defendida por vários neurocientistas
contemporâneos, inclusive Antonio Damásio e Gerald Edelman. Do lado da filosofia,
o casal Churchland defende posição semelhante, com o nome de materialismo
eliminativo.
Embora tenha se tornado uma ideologia espontânea de vários neurocientistas e
também de muitos psiquiatras contemporâneos, a doutrina do neurônio ainda não
pôde ser integralmente aceita. Estamos longe de explicar as bases moleculares das
atividades mentais humanas, e as tentativas de sua compreensão através de
intervenções no cérebro pelo uso de medicamentos ainda são muito imprecisas. Não
sabemos, tampouco, o quanto a intervenção química no cérebro pode nos ajudar no
sentido de solucionar o problema mente-cérebro e consolidar uma teoria da mente
inteiramente biológica.
O consumo de medicamentos parece afetar as emoções associadas a estados
17
mentais, mas não sabemos ainda se esses estados mentais são de fato modificados.
Por exemplo, impulsos suicidas podem ser aliviados por algum tipo de ansiolítico ou
neuroléptico. Contudo, isso não significa que possamos afirmar que a ideação suicida
tenha sido eliminada ou afetada pela medicação. Um ansiolítico pode atuar apenas
para ajudar a esquecê-la ou adiá-la temporariamente. É por isso que podemos
questionar se antidepressivos alteram ou suprimem estados mentais e supor que esse
tipo de efeito constitua uma evidência em favor da ideia de que a mente é
inteiramente determinada pelo cérebro.
Da mesma maneira, emoções e humor podem ser alterados ou estabilizados
através de agentes químicos. Mas será que esses agentes químicos podem alterar o
conteúdo afetivo das emoções? Posso deixar de agredir uma pessoa que odeio se
tomar medicamentos que refreiem meus impulsos agressivos, mas será que eles farão
com que eu deixe de sentir ódio por essa pessoa?
Essa é uma pista para um problema com o qual a neurociência tem de lidar: até
que ponto estados mentais, ainda que ocorram dentro do cérebro, não são
determinados pelo ambiente que o circunda? Tomemos, por exemplo, a sensação de
medo. Estudos de Joseph LeDoux mostram que, em grande parte, a sensação de medo
ocorre quando uma certa parte do cérebro, a amígdala, é ativada. Mas será isso
suficiente para sentirmos medo? Podemos ter medo de carros, de um assaltante ou até
mesmo de algum tipo de sensação que nos chega subitamente. Mas será que no
sentimento de medo não há sempre um componente externo, ambiental, que
determina, em grande parte, o conteúdo que vem associado com esse sentimento? Ou,
em outras palavras, para ter medo, não é necessário sempre ter medo de alguma
coisa? Será que esse sentimento não evoluiu assim precisamente para que evitemos
aquilo que pode nos ameaçar ou nos danificar?
Talvez um dia consigamos manipular o cérebro de tal forma a produzir sensações
de pânico insuportáveis, mesmo que elas não sejam causadas por algum fator externo.
Através da disseminação de algum agente químico no ar, poderíamos induzir o
pânico das pessoas que estavam nas torres gêmeas e nos seus arredores no 11 de
setembro. Nesse caso, não seria mais preciso produzir atos terroristas, mas
simplesmente simulá-los nos cérebros das pessoas. Entraríamos na fase do
neuroterrorismo.
II
Nas duas últimas décadas, a filosofia da mente e a neurociência foram pródigas
em propor novas teorias da consciência. Contudo, nenhuma delas conseguiu propor
uma solução convincente para o que o filósofo australiano David Chalmers chamou
de problema difícil da consciência. Com isso, ele quis dizer que a neurociência
poderá desvendar, nas próximas décadas, o funcionamento mental humano, ou seja,
18
explicar como funcionam a percepção,a memória e a linguagem. Mas por que esse
funcionamento mental ocorre de forma consciente continuará a ser um mistério.
As afirmações de Chalmers não parecem ter influenciado muito o entusiasmo dos
neurocientistas quanto à possibilidade de resolver problemas filosóficos. A história
das tentativas de redução do mental ao cerebral teve outros episódios. A busca por
correlatos neurais da consciência também continuou.
No início da década de 1980, foi descoberto um grupo de neurônios em primatas
chamados neurônios canônicos. Essas células são responsáveis pela identificação de
movimentos e de ações que podem ser realizadas envolvendo objetos próximos.
No início da década de 1990, Giacomo Rizzolatti, professor de fisiologia na
Universidade de Parma, juntamente com sua equipe, descobriu outro grupo de
neurônios, os chamados neurônios espelho. Esses neurônios não apenas disparam
quando ocorre um movimento envolvendo objetos próximos, mas também quando
outros primatas executam ações.
Os neurônios espelho foram descobertos por acaso no laboratório de Rizzolatti.
Um dia, eles estavam registrando os sinais que vinham de microeletrodos inseridos
no córtex motor do cérebro de um primata para pesquisar quais seriam os neurônios
responsáveis pelo planejamento do movimento. Na hora do almoço, os pesquisadores
decidiram não sair e comer no próprio laboratório e, por isso, não desligaram os
microeletrodos. Quando começaram a comer, verificaram que esses microeletrodos
entraram em ação, mostrando que estava ocorrendo uma ativação nos neurônios
motores do primata. O primata não estava se movendo, mas apenas observando as
ações das pessoas, o que pareceu aos pesquisadores uma situação muito peculiar.
Resolveram, então, repetir a situação e observar o comportamento desses neurônios
quando o primata observava alguém executando alguma ação. Como eles sempre
disparavam, concluíram que estavam diante de uma classe especial de neurônios.
O passo seguinte foi mostrar, através de técnicas de neuroimagem, que esses
neurônios também existem nos seres humanos. Segundo Rizzolatti, esses neurônios
identificam as intenções dos outros, e foi por isso que ele os chamou de neurônios
espelho.
Mas será que os neurônios espelho são realmente capazes de detectar as intenções
dos outros ou apenas seus movimentos? Sobre esse ponto parecem pairar algumas
dúvidas, que foram levantadas pela filósofa Emma Borg.
Imagine que eu esteja sentado a uma mesa e que em determinado momento
levante um copo e o segure bem na minha frente. Como saber minha intenção? Será
que eu o levanto para beber a água que está nele ou para alguém passar um pano sob
ele e secar a mesa? Certamente, não é possível perceber a intenção pela observação
desse ato isolado, nem para um primata nem para outro ser humano. A intenção se
revelará pelo contexto no qual a ação ocorre, mas, mesmo assim, podemos questionar
se a percepção do movimento é suficiente para inferir uma intenção e o que ocorreria
com os neurônios espelho quando essa percepção é ambígua. Será que a interpretação
19
de uma ação pode ser reduzida ao disparo de um grupo de neurônios?
Imagine, agora, a situação descrita pelo filósofo da mente inglês Gilbert Ryle.
Ryle afirmava que, pela observação do comportamento, não podemos distinguir
quando um palhaço cai por acaso ou de propósito. Em um de seus ensaios, “The
thinking of thoughts: What is Le Penseur” (1968/2009), ele descreve uma situação
peculiar.
Ryle considera a situação hipotética de dois garotos numa reunião de condomínio.
Ambos piscam simultânea e rapidamente um de seus olhos. Em um deles, esse é um
tique involuntário; no outro, é uma piscadela conspiratória para um amigo. Ora,
vendo essa cena através de uma câmera, ou seja, a partir de uma observação do
comportamento, não poderíamos saber qual deles estava piscando por motivos
conspiratórios e qual piscava por conta de um tique nervoso.
O piscador voluntário está se comunicando de uma forma precisa e especial: a)
deliberadamente, b) para alguém em particular, c) transmitindo uma mensagem
específica, d) de acordo com um código socialmente estabelecido e e) sem o
conhecimento dos demais companheiros. Segundo Ryle, o piscador voluntário
executa duas ações – contrair a pálpebra e piscar, enquanto o que tem tique nervoso
executou apenas uma, ou seja, contraiu a pálpebra. A diferença entre um tique
nervoso e uma piscadela é grande. Poderia, ainda, ser o caso de que o piscador
voluntário, que pisca para o outro em atitude conspiratória, esteja fazendo isso apenas
para imitar a existência de uma possível conspiração. Também poderia haver um
terceiro tipo de ação: a de alguém que imitasse a ação dos outros dois apenas para
ridicularizá-los. Como alguém, na posição de estar apenas assistindo a um filme do
que aconteceu, poderia saber se há duas ou até três ações em uma piscadela?
Esse exemplo é um caso limite da dificuldade de inferir intenções a partir da
observação do movimento. Rizzolatti e seu colaborador Vittorio Gallese reconhecem
que esse é um problema que afeta o quanto podemos concluir com a descoberta dos
neurônios espelho. Talvez não possamos exigir da detecção do disparo dos neurônios
espelho uma leitura precisa e infalível das intenções dos outros.
Contudo, para que essa descoberta faça algum sentido e seja, de fato, um
acréscimo à descoberta dos neurônios canônicos (que apenas detectam movimento), é
preciso sustentar, de alguma maneira, a existência de uma correlação entre
movimento e intenção, e que ambos sejam detectados simultaneamente, pelo menos
no caso da observação do movimento dos outros. Rizzolatti e Gallese sugerem, como
possível solução, que devemos modificar nossa percepção habitual das relações entre
movimento e intenção. Baseados na filosofia de Merleau-Ponty, eles argumentam que
ambos não devem ser separados, ou seja, o movimento (ou, em termos merleau-
pontyanos, o gesto) deve ser visto como intrinsecamente intencional. Não há uma
atribuição de intenção posterior ao movimento, pois ele já é, ao mesmo tempo, a
expressão da intenção.
O mais curioso na solução de Rizzolatti e Gallese é o apelo à filosofia para
20
defender seus pontos de vista acerca dos neurônios espelho. A neurociência, que quis
se livrar da filosofia, acaba admitindo-a pela porta dos fundos.
Talvez um experimento crucial que poderia esclarecer até que ponto neurônios
espelho detectam intenções, e não apenas movimentos, fosse expor primatas a robôs
manipulando objetos próximos. Nesse caso, os neurônios espelho deveriam
apresentar alguma diferença ao disparar, ou deveríamos esperar que apenas seus
neurônios canônicos disparassem, pois, supostamente, o movimento dos robôs é
puramente mecânico e sem intenções.
Mas isso tampouco resolve o problema. Dependendo da filosofia da mente que
adotemos, é possível atribuir intenções também ao movimento dos robôs. Como
sugere Daniel Dennett, robôs podem ser sistemas intencionais, e, da mesma maneira
que aos seres humanos, podemos atribuir a eles intenções a partir da interpretação de
seus movimentos. Isso significa que, em última análise, não podemos afirmar com
certeza que robôs não têm intenções quando se movimentam. A exposição de
primatas ao movimento dos robôs não pode, nesse caso, ser considerada um
experimento crucial para testar a hipótese de que neurônios espelho detectam
intenções e não apenas movimentos.
O pano de fundo da discussão continua o mesmo. O pressuposto de Rizzolatti e
Gallese é que há correlatos neurais das intenções. Mas, como no caso da consciência,
não sabemos se isso é verdadeiro. É possível que as intenções sejam apenas uma
construção linguística que não possa ser mapeada no cérebro. Talvez seja por isso que
quase sempre possamos atribuir interpretações tão diversas a um comportamento.
III
Muito antes da descoberta dos neurônios espelho, a neurociência já suscitava
questões filosóficas. Uma delas era o tradicional confronto entre liberdade e
determinismo. Será que nossos comportamentos são totalmente determinados pela
bioquímicado cérebro ou haverá algum espaço para a decisão livre? Experimentos
conduzidos por Benjamin Libet, na década de 1980, levaram neurocientistas e
filósofos a questionar a existência do livre-arbítrio.
Já se sabia que ocorria um pequeno intervalo de tempo entre a introdução de
eletrodos no cérebro e sua detecção, em geral através de algum tipo de movimento
muscular. Mas a descoberta de Libet foi que mudanças no cérebro ocorrem antes que
as pessoas tomem a decisão de executar uma determinada ação. O relato da intenção
de executar a ação é posterior à mudança detectável no cérebro. Essa mudança ocorre
350 milissegundos antes do relato da existência da intenção de executar a ação. Ou
seja, o cérebro é ativado antes da intenção consciente de agir e tudo se passa como se
essa intenção não fosse nada mais do que um subproduto da atividade cerebral.
As consequências filosóficas da descoberta de Libet são discutidas até hoje. Há
21
quem sustente que ela seria uma prova de que nada mais somos do que nossos
cérebros e que o livre-arbítrio não passaria de uma ilusão. A neurociência estaria
dando uma resposta definitiva (e negativa) a uma questão filosófica milenar.
Mas será que essa descoberta de Libet constitui, de fato, uma prova final contra a
existência do livre-arbítrio? Ele mesmo nos diz que sua descoberta não constitui um
ataque frontal à ideia de liberdade humana, pois, uma vez iniciada uma ação, existe
sempre a possibilidade de refreá-la. Com isso, Libet ameniza uma conclusão radical
em favor de um determinismo que nos tornaria apenas marionetes. Mas o que nos
garante que a decisão de refrear uma ação não é ela também tomada pelo cérebro
alguns milissegundos antes de sua execução? Até que seja provado que isso não
ocorre, permanecemos na mesma situação, ou seja, executar ou refrear uma ação
dependeriam unicamente de eventos cerebrais. A ideia de um “eu” que toma decisões
seria suprimida.
Suponhamos que realizemos o experimento de Libet convidando uma pessoa a
erguer o braço. Se Libet estiver certo, haverá um evento cerebral 350 milissegundos
antes de a pessoa comunicar a intenção de erguer o braço, mas a ação de erguer o
braço pode ser descrita a partir de vários tipos de intenções. Uma mesma pessoa pode
dizer que “queria erguer o braço” ou que “queria erguer a mão” ou que “ergueu o
braço para que parassem com o experimento”.
Contudo, essa variação na descrição das intenções que precedem uma mesma ação
pode complicar a interpretação do experimento de Libet. Se a ação tem de ocorrer
primeiro, para depois começar o relato da intenção que a causa, e se essa ação pode
ser descrita como sendo causada por vários tipos de intenções, o que nos garantiria
que o evento cerebral que a precede é, de fato, a intenção que está precedendo aquela
ação? Não temos como ler e identificar uma intenção no cérebro, o que provaria a
existência de uma ligação entre o relato da intenção e a ação que lhe corresponde. Até
agora, não foi possível provar a existência de algum tipo de código cerebral no qual a
intenção estivesse gravada. Uma das provas de que esse código pode não existir é que
podemos sempre redescrever nossas ações como tendo sido causadas por vários tipos
de intenções. Associar essa mudança cerebral antecedente com uma intenção de fazer
algo é sempre uma reconstrução posterior feita pelo próprio agente, algo que ocorre
depois que a ação já ocorreu. Ora, como associar tantas descrições possíveis a um
único evento cerebral que teria ocorrido no córtex pré-frontal 350 milissegundos
antes da ação ocorrer? A quantos relatos de intenções pode corresponder um único
evento cerebral?
Se Libet estivesse certo, e se houvesse um código cerebral no qual a intenção
estivesse registrada, seria razoável esperar que houvesse um relato único sobre seu
papel na determinação da ação. Esse parece ser o pressuposto da interpretação que
Libet dá ao seu experimento. Ou seja, a existência de uma relação causal entre o
evento cerebral, a ação e seu relato verbal subsequente. Essa relação causal seria
determinística, ou seja, sempre que a intenção ocorresse, ela deveria ser seguida da
22
ação e de seu posterior relato verbal. Em outras palavras, Libet já pressupõe a
existência de um tipo de determinismo entre intenção (evento cerebral relatado a
posteriori) e ação. O determinismo é o pano de fundo na construção e interpretação
de seu experimento, que, na verdade, acaba pressupondo aquilo que ele quer
demonstrar.
Nesse sentido, o experimento de Libet pouco contribui para o esclarecimento do
debate filosófico que opõe livre-arbítrio e determinismo. As conclusões que ele quer
extrair de seu experimento extrapolam o que ele efetivamente pode comprovar. Na
verdade, seu experimento só nos permite concluir, no máximo, que podemos
reconstruir uma história causal entre uma ação, o evento que a precede no cérebro e
seu relato posterior. Reconstruir essa história causal não nos garante que possamos
associar, de forma determinística, uma intenção, uma ação e um evento cerebral
relatado em seguida.
A relação causal pressuposta por Libet é peculiar, pois é sempre uma causação a
posteriori. Não é possível ler no cérebro algo que está no futuro, pois podemos
sempre variar a atribuição de intenções aos nossos atos a posteriori. Como fixar,
então, a existência de um único evento cerebral que corresponde a uma determinada
intenção? Como poderia haver várias intenções correspondendo a vários eventos
cerebrais que ocorrem 350 milissegundos antes de um único relato? A única saída
seria pressupor que a cada ação há uma única intenção correspondente gravada em
algum lugar do cérebro, em algum tipo de código cerebral cuja existência teríamos de
pressupor.
A dificuldade que ocorre com Libet é, então, a mesma de Rizzolatti e Gallese com
os neurônios espelho. Nem sempre os mesmos movimentos correspondem às mesmas
intenções. Mas isso fica difícil de aceitar, pois eles acreditam que as intenções têm
correlatos neurais, embora não discutam esse pressuposto.
Tanto a descoberta de Libet como a de Rizzolatti e Gallese pressupõem a
existência de um código cerebral no qual estariam gravadas nossas intenções, crenças
e desejos. Essa ideia, que passou a ser disseminada na neurociência contemporânea,
consiste em supor que, se esse código for desvendado, teremos a possibilidade,
através de instrumentos de observação do cérebro, de saber o que outras pessoas estão
pensando. Esse é o famoso mindreading, ou leitura de mentes, cuja possibilidade tem
sido apregoada pela neurociência na mídia.
A ideia central do mindreading é abrir a perspectiva de uma tradução do
pensamento em termos de sinais elétricos dos neurônios. Se pudéssemos assumir um
modelo simplificado de neurônio, haveria uma sequência de sinais que
corresponderia a sua ativação ou desativação e poderia ser interpretada em termos de
“0s” ou “1s” como o software de um supercomputador. O problema é que, mesmo
que um dia isso fosse possível, uma sequência de “0s” e “1s” de um software pode
sempre ser interpretada de várias maneiras. O software de um computador jogando
uma partida de xadrez ou simulando a guerra do Iraque pode ter a mesma sequência
23
de “0s” e “1s”, ou seja, a chamada linguagem de máquina pode coincidir. A partir do
exame da linguagem de máquina, não há como inferir com precisão o software que
um computador está executando. (Essa é a versão computacional do problema do
hiato explicativo. Se, a partir do cérebro, não podemos determinar o pensamento, do
hardware não conseguimos chegar ao software.)
O filósofo Daniel Dennett aponta que existem várias dificuldades envolvidas na
ideia de um código cerebral. Seria ele único? Por que não poderiam existir vários
códigos em um único cérebro? E se for possível decifrá-lo, poderemos também,
algum dia, reescrever algumas de suas partes, interferindo diretamente no cérebro.
Poderíamos, por exemplo, apagar lembranças e também enxertá-las. Seria possível,
também, enxertar falsas lembranças, o que rapidamente levaria a paradoxos. Imagine,
por exemplo,alguém que seja filho único, mas que, repentinamente, lhe seja
enxertada a lembrança de que tem um irmão morando em Itajubá. Como seria
possível conciliar esses dados contraditórios?
É claro que o cérebro não tem um ritmo – nós é que interpretamos suas
oscilações elétricas como se formassem uma linguagem ou uma sinfonia. Será que a
matemática criada pelo cérebro é suficiente para descrevê-lo? Ou não será o cérebro
mais complexo do que aquilo que ele produz?
Continuando com as indagações, não podemos saber se a neuroimagem é o
resultado da atividade de um cérebro ou da atividade de uma mente que o examina.
Mas essas indagações não parecem ocorrer aos neurocientistas, e, por isso, a busca
pelo código cerebral continua.
Apoiados no entusiasmo recente com as técnicas de neuroimagem, muitos
pesquisadores supõem que, um dia, seremos capazes de localizar precisamente o
neurônio que dispara na cabeça de alguém quando essa pessoa pensa, por exemplo,
em uma vaca amarela. Eles dirão que esse disparo elétrico do neurônio é a mesma
coisa que a vaca amarela que essa pessoa imagina naquele momento. Com isso,
pretendem ter resolvido o problema mente-cérebro, pois, nesse caso, os estados
subjetivos teriam se tornado estados cerebrais. Não mais seria necessário supor a
existência de uma mente; um cérebro bastaria. O problema mente-cérebro se
dissolveria.
Contudo, essas suposições dos neurocientistas parecem enfrentar alguns
problemas que têm sido apontados pelos filósofos da mente. Ao examinarmos as
áreas ativadas de um cérebro, podemos ter alguns palpites sobre o tipo de pensamento
que ocorre à pessoa, mas só poderemos saber com certeza o que ela está pensando se
ela nos contar. Para fazer a neuroimagem de alguma atividade mental minha, é
preciso que eu conte sobre o que estarei pensando, ou que alguém, em algum
momento, me diga sobre o que pensar, e isso terá sempre a forma de um relato
subjetivo que precede o imageamento. Assim, nunca podemos nos livrar totalmente
da mente, mesmo que seja para reduzi-la ao cérebro.
É possível que levemos muito tempo até podermos construir um cerebroscópio de
24
verdade. Por enquanto, a “leitura de mentes” é quase sempre baseada em inferências
que podem ser extraídas da observação do comportamento. Uma das técnicas é
utilizar a neuroimagem para identificar as áreas cerebrais estimuladas que precedem a
realização de um determinado comportamento. Ou seja, seria possível prever o
comportamento a partir da identificação dessas áreas, e com isso estaríamos “lendo”
as intenções que estariam ocorrendo no cérebro de uma pessoa. Mas o sucesso dessa
estratégia é limitado, pois se baseia em uma estatística das ações que se seguem à
ativação de certas regiões do cérebro. Contudo, nem sempre as ações que se seguem a
certas ativações cerebrais são as mesmas. Na mesma linha de nossa objeção à
interpretação do experimento de Libet, tampouco nesse caso podemos pressupor a
existência de uma relação determinista entre eventos cerebrais e as ações que os
sucedem.
Da mesma maneira, já se tentou “ler” os sonhos de ratos através da comparação de
certas áreas cerebrais que são ativadas enquanto eles dormem com aquelas que
correspondem a algum tipo de comportamento, como, por exemplo, aprender a entrar
e sair de um labirinto em um laboratório. Se essas áreas são ativadas durante o sono,
tenta-se daí extrair a conclusão de que o animal está sonhando com o caminho que
aprendeu a percorrer. Mas é possível que ele esteja apenas sonhando com uma
caminhada em uma floresta, cujo percurso se assemelhe ao do labirinto. Não há como
verificar essas suposições, pois nunca teremos acesso a relatos subjetivos de ratos. O
que dispomos no momento é ainda uma aproximação. Muitos processos mentais em
organismos com cérebros complexos se superpõem à ativação de uma mesma área
cerebral, e essa tem sido a principal dificuldade do mindreading.
Os capacetes de leitura de pensamento também estão ainda numa fase rudimentar.
Eles não são verdadeiros tradutores da informação que está sendo processada no
cérebro, mas apenas detectores das áreas cerebrais nas quais ocorrem impulsos
elétricos mais acentuados. Esses impulsos podem ser detectados, ampliados e
transformados em vários tipos de atividades como, por exemplo, escolher as teclas de
um alfabeto em um teclado ou mover a direção de um carro. Essas são formas
incipientes, porém interessantes, de interfaces entre cérebros e máquinas.
O neurocientista brasileiro Miguel Nicolelis, atualmente pesquisador na Duke
University, nos Estados Unidos, vem se dedicando ao estudo e desenvolvimento
dessas interfaces entre cérebros e máquinas. Através de experimentos com as famosas
macacas Belle e Aurora, ele mostrou ser possível detectar ondas cerebrais no córtex
motor de animais para mover braços ou pernas mecânicas. A utilidade dessa pesquisa
é poder, em um futuro próximo, usar essa neurotecnologia para, através da
transmissão desses impulsos elétricos, permitir que paraplégicos voltem a mover
partes paralisadas de seus corpos. O cérebro desses pacientes poderia se comunicar
com os membros paralisados através de uma interface computacional que captaria os
impulsos elétricos cerebrais e os retransmitiria ao membro paralisado, permitindo que
ele se movesse novamente.
25
Em um primeiro momento, a ideia de Nicolelis era fazer com que as macacas
movessem membros mecânicos, imitando o movimento de seus membros biológicos.
Em seguida, era fazer com que uma das macacas transmitisse, através do rádio ou da
internet, suas ondas elétricas cerebrais, de modo que elas pudessem mover corpos
robóticos situados em um lugar remoto. Essas duas etapas do programa de pesquisa
de Nicolelis foram realizadas com sucesso.
Mas essa neurotecnologia ainda está incipiente e longe de ser algo parecido com
uma autêntica leitura do pensamento. Entre a macaca Belle e seu braço mecânico, há
um computador que interpreta os movimentos que correspondem às ondas cerebrais
que ocorrem no animal quando ele deseja executar movimentos simples, como, por
exemplo, pressionar uma barra de metal para obter algumas gotas de suco de laranja.
Os neurochips (microeletrodos inseridos e cimentados no córtex) do cérebro de Belle,
são apenas detectores de impulsos elétricos, e por isso, sem o computador
previamente programado para interpretar os sinais, a macaca não saberia quais
comandos transmitir para o braço mecânico.
Ou seja, os neurochips por si só não interpretam a informação que circula pelo
cérebro de Belle na forma de ondas cerebrais e que determina qual parte do corpo
deve ser movida. No caso de Belle, foi estabelecida uma correspondência entre os
impulsos elétricos que normalmente ocorrem quando alguns movimentos são
executados. Essa informação passou a ser codificada e transmitida pelo computador
que orienta, a partir de dados comportamentais previamente coletados e de estatísticas
observadas, como os membros artificiais devem se mover. Em outras palavras, o
impulso elétrico tem de ser previamente convertido em informação por um
programador.
Depois dos experimentos com Belle e Aurora, Nicolelis dedicou-se à tarefa de
transmitir os impulsos elétricos cerebrais de outra macaca para um robô localizado
remotamente, em outro lugar do planeta, o que consolidou mais uma etapa de seu
programa de pesquisa. Ele conseguiu que sua macaca Idoya, em seu laboratório nos
Estados Unidos, movimentasse as pernas de um robô no Japão. Mas, também nesse
caso, foi necessária uma interface computacional entre as áreas nas quais ocorre o
disparo de neurônios responsáveis pelo movimento e os membros artificiais do robô.
O aperfeiçoamento progressivo dessas interfaces computacionais tem feito com
que o repertório de movimentos que as ondas cerebrais das macacas de Nicolelis
podem produzir nos seus braços e pernas artificiais fosse se tornando cada vez maior,
contudo ainda limitado ao que o computador que serve de interface pode decodificar.
O passo seguinte será usar essas interfaces computacionais para detectar as ondas
cerebrais deum rato e utilizá-las para estimular regiões previamente escolhidas no
cérebro de um outro. Com isso, seria possível ligar os cérebros dos dois animais, o
que seria a primeira etapa de um projeto mais ambicioso de ligar vários cérebros entre
si para que eles colaborem mutuamente na realização de algumas tarefas.
Nicolelis chama a atenção para o fato de que é possível dissociar a detecção dos
26
impulsos elétricos dos cérebros de Belle e de Aurora da realização dos movimentos
musculares aos quais eles correspondem. Nesse caso, teríamos dado um passo a mais
na identificação das intenções motoras que precedem as ações das macacas, como se
estivéssemos lendo suas mentes.
Mas o contexto no qual foram realizados os experimentos com Belle e Aurora
pode se tornar mais complicado. O estímulo de uma determinada área motora do
cérebro não determina a produção de um único tipo de comportamento. Embora haja
correspondência frequente entre a área do sistema motor ativada e um padrão de onda
cerebral, a determinação do comportamento depende da informação que está contida
nas ondas cerebrais. É possível que nem sempre a transdução entre impulso elétrico e
comportamento seja unívoca. Ou será que a cada intenção corresponde um impulso
elétrico diferente que poderia ser detectado? Haverá um impulso elétrico para
levantar-me e outro para desejar abrir a porta? Ou apenas uma onda cerebral que me
impulsiona até a porta para abri-la? Informação é algo físico, mas certamente é muito
mais do que simplesmente impulso elétrico.
Como ainda há um abismo entre a detecção de impulsos elétricos que resultam da
ativação de neurônios e a tradução de informação processada pelo cérebro, é
provável que esses capacetes e essas interfaces cérebro-máquina fiquem restritos à
detecção da informação contida apenas em ondas cerebrais ligadas a
comportamentos elementares.
A identificação de impulsos elétricos ou de informações contidas em ondas
cerebrais do que não pode ser expresso em termos de comportamentos observáveis
provavelmente continuará inacessível aos instrumentos de observação do cérebro.
Ainda estamos longe de uma autêntica leitura de pensamentos, mesmo que os casos
de Belle e Aurora nos pareçam encorajadores.
Isso significa que grande parte do pensamento humano, que é composto por
proposições formatadas pela linguagem e que não se manifesta de forma observável,
continuará de fora dos cerebroscópios que podemos construir hoje em dia.
Pensamento é informação, mas ainda não sabemos como ela circula no cérebro,
embora possamos detectar os impulsos elétricos que constituem sua base física.
Mesmo assim, ainda é difícil prever até que ponto os cerebroscópios futuros
poderão ser aperfeiçoados. Se um dia descobrirmos como o cérebro gera e processa
informação, eles poderão se tornar poderosos instrumentos de invasão da privacidade,
verdadeiras máquinas fantasmagóricas, típicas de um cenário cyberpunk. Pois, além
de ler os pensamentos dos outros, eles também permitirão a inserção de novas
informações na cabeça das pessoas para manipulá-las. Com o cerebroscópio, teríamos
a consumação do projeto totalitário de algumas sociedades contemporâneas nas quais,
já perdido o direito de falar, agora seria perdido o último que restou: a privacidade do
pensamento.
O aspecto privado do pensamento é uma das grandes marcas da subjetividade. A
privacidade faz parte de experiências subjetivas que podem se tornar específicas e
27
incomunicáveis, como, por exemplo, a intensidade do sabor de um vinho ou a
tonalidade de uma cor. Essas características da experiência subjetiva são chamadas,
pelos filósofos da mente, de qualia. A neurociência ainda não sabe o que fazer com os
qualia e até agora não conseguiu explicá-los. Tampouco se conseguiu, até agora,
encontrar correlatos neurais para os qualia.
A tentativa de incluir aspectos subjetivos na investigação neurocientífica para que
ela adquira a abrangência de uma teoria da mente levou ao aparecimento de
estratégias inovadoras, como é o caso da neurofenomenologia, proposta pelo cientista
cognitivo Francisco Varela. A fenomenologia, como método filosófico, passa a ter
um papel fundamental nessa perspectiva: ela serve para organizar a descrição da
experiência subjetiva, para a qual se busca estabelecer um mapeamento cerebral
através das técnicas de neuroimagem.
O método fenomenológico vai poder nos dizer o que estamos mapeando,
afastando-nos, assim, da vagueza habitual da linguagem e da autodescrição dos
estados de consciência. É preciso treinar e refinar a introspecção antes de tentar
mapear estados subjetivos, o que tem criado uma aliança crescente entre
neurocientistas e fenomenólogos. Por exemplo, Jaak Panksepp, um dos fundadores da
neurociência afetiva, tem afirmado que o método fenomenológico é fundamental para
delimitar o tipo de emoções cujas bases neurais se quer investigar.
A novidade da neurofenomenologia é a inclusão do discurso subjetivo, ou discurso
em primeira pessoa, na investigação científica. Não se busca a redução ou eliminação
dos estados subjetivos, mas uma aproximação entre as perspectivas internas e
externas acerca do sujeito. De uma perspectiva externa, sei o que está acontecendo
em sua mente/cérebro/consciência – sua base neurobiológica. Mas não sei nada
acerca da manifestação desses fenômenos enquanto suas experiências. Nesse sentido,
informação em primeira e em terceira pessoa podem ser vistas como sendo
complementares, e não opostas. A natureza da mente é revelada por aquilo que
aparece a partir de ambas as perspectivas; a mente não é física ou consciente, é ambas
ao mesmo tempo, ou seja, psicofísica.
A psicofísica estabelece a existência de uma correlação ou uma correspondência
entre dois tipos de séries: uma constituída de eventos mentais e outra de eventos
cerebrais. Ela é uma espécie de pedra de Roseta, uma peça famosa que hoje é
guardada no Museu Britânico, em Londres. Nessa pedra, havia inscrições de um
decreto real em línguas diferentes, e foi pela correlação entre elas que se tornou
possível a decifração dos hieróglifos egípcios. A neurociência ainda busca sua pedra
de Roseta para tentar estabelecer uma correlação mais precisa entre as séries de
eventos mentais e cerebrais.
Correlações podem significar muita coisa. Mas também podem não significar
nada. “Toda vez que o lixeiro passa, o sol se levanta”. Essa é uma correlação que
sempre ocorre no lugar onde moro. Certamente, ela não significa nada, muito menos
uma relação causal entre o lixeiro e o amanhecer.
28
CONTINUAR A PENSAR
Você acha que algum dia poderemos resolver o problema mente-cérebro? E se isso acontecer, quais serão
suas consequências filosóficas, éticas e sociais? Se for provado que o livre-arbítrio não existe, como isso
afetará nossa legislação futura?
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O cérebro como problema filosófico
O problema mais importante da filosofia da neurociência é: o que é o cérebro? O
que o torna um objeto de estudo tão especial? Afinal, com o que estamos lidando ao
falarmos de cérebros? Será que podemos esperar que algum dia a neurociência
resolva o problema mente-cérebro? Mas como poderíamos supor, por exemplo, que
mente e cérebro são a mesma coisa, se mal conhecemos as propriedades do cérebro?
A resposta para essas questões está na quantidade, e não apenas na qualidade. O
cérebro humano é incomensurável. É por isso que a neurociência ainda não tem uma
teoria geral acerca de seu funcionamento, o que a impede, pelo menos por enquanto,
de suplantar a psicologia, da mesma maneira que a química substituiu a alquimia.
Existem alguns dados quantitativos acerca do cérebro humano que são
sistematicamente ignorados nas discussões filosóficas envolvendo o problema mente-
cérebro. Esses dados, se desvelados, podem causar muita perplexidade e influir de
maneira decisiva nos debates que são travados hoje na filosofia da mente.
Para alguns, o cérebro é apenas o órgão da mente. Mas se isso for verdade, ainda
assim, é preciso notar que estamos lidando com um órgão muito peculiar. Temos
tamanha quantidade de neurôniose de sinapses em nosso cérebro que isso torna seu
estudo quase impossível. Calcula-se, por exemplo, que o número de sinapses seja
parecido com o número de partículas existentes no universo desde o Big-Bang (cada
um dos neurônios, cujo número chega a cem bilhões, ou seja, 1011, tem, em média,
sete mil conexões sinápticas com outros). Por isso, não devemos nos sentir pequenos
quando olhamos para o céu e para as estrelas.
O cérebro tem a complexidade do universo condensada num espaço tão pequeno
quanto a caixa craniana. Seu maior enigma é conter e estar contido no universo ao
mesmo tempo.
Até mesmo aqueles que acreditam que a neurociência desvendará todos os
mistérios acerca do cérebro humano, como, por exemplo, o filósofo americano Paul
Churchland, se impressionam diante desses fatos.
Esses números astronômicos podem facilmente levar-nos a considerações
insólitas. Se tomarmos uma decisão por minuto e ela depender da ativação de um
neurônio, serão necessários trinta mil anos para que todos os neurônios que temos
tenham sido ativados num processo decisório. Isso significa dizer que, muito
provavelmente, temos neurônios que, ao longo de nossas vidas, nunca serão ativados,
o que nos coloca uma questão intrigante: teremos, porventura, mais estados cerebrais
do que estados mentais? E, se confirmado, teremos então uma razão preliminar para
sustentar que todos estados mentais são estados cerebrais?
Já houve quem dissesse, entre os filósofos da mente, que o problema mente-
cérebro é insolúvel. O filósofo contemporâneo Colin McGinn e outros, chamados de
“novos misterianos”, defendem esse ponto de vista. A ideia básica é que não é
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possível para a mente compreender a si mesma. Para esses filósofos, o problema
mente-cérebro é insolúvel porque o cérebro não é suficientemente poderoso para
formular uma teoria que explique seu próprio funcionamento. É possível que nunca
consigamos resolver um problema desse tipo. Há problemas insolúveis, e a questão
da natureza da consciência seria um deles, pois supera as capacidades cognitivas
humanas.
Nessa linha de argumentação do inglês McGinn e outros misterianos, temos de
lidar com dois tipos de possibilidades. De acordo com a primeira, a solução do
problema estaria além dos limites da nossa razão. Não poderíamos resolver o
problema mente-cérebro, da mesma maneira que um rato não poderia nunca resolver
equações de segundo grau. Mas há um segundo argumento: a mente não poderia
conhecer-se a si mesma, da mesma maneira que um microscópio não poderia
enxergar a cor de seu próprio tubo, por mais poderoso que fosse. À mente faltaria um
observador externo a ela mesma que pudesse validar proposições acerca de sua
natureza. São argumentos diferentes que, no entanto, convergem para uma mesma
conclusão.
Mas não é nenhum desses pontos de vista que quero defender aqui. Sustento que o
problema mente-cérebro é intratável. Se isso o torna também insolúvel, no sentido de
McGinn, não vou discutir. Utilizo-me de um conceito da teoria da computação para
iluminar um problema filosófico, numa típica abordagem da filosofia da mente na
qual ciência e filosofia se mesclam. Insisto que são os aspectos quantitativos do
problema mente-cérebro, os números do cérebro, que impedem sua solução. Para
iniciar nossa jornada nessa direção, começamos por perguntar: o que podemos saber
acerca de nosso próprio cérebro?
Em outras palavras, estamos perguntando se o cérebro pode fornecer uma
descrição completa de si mesmo, e se, a partir de tal descrição, poderemos desvendar
se mente e cérebro são, de fato, a mesma coisa. Não se trata apenas de fazer boa
neurociência: não queremos tão somente uma ciência do cérebro em que ele se
apresente como objeto natural, numa proveta de laboratório. Mas queremos saber se
dessa ciência poderemos derivar um saber sobre a subjetividade, um saber que possa
nos fornecer um caminho do cerebral ao mental, para a tão desejada intersecção entre
primeira e terceira pessoa, entre subjetividade e neurociência, ou seja, entre
experiência vivida e descrição científica.
O primeiro passo para tentar responder a essa indagação é certamente saber se
podemos representar nosso próprio cérebro. Se não pudermos fazê-lo, como
testaremos nossas hipóteses acerca do problema mente-cérebro? Pois, para testá-las,
teremos de construir redes de neurônios artificiais que contenham, pelo menos, um
número próximo ao de neurônios e sinapses que existem no cérebro humano – só
assim poderíamos verificar se o mental emergiria dessas redes. E só assim estaríamos
levando a sério o aspecto numérico dos neurônios e sinapses do cérebro humano, e
não o ignorando através de um esquema ou mapa qualquer.
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Assim sendo, não se trata de fazer uma figura e colori-la, como fazem as revistas.
Por representação entendemos, aqui, nossa capacidade de figuração de um objeto
geométrico cuja característica principal é a complexidade. Posso imaginar, posso
conceber, posso simular. Concebo um polígono de mil lados, mas não poderia
imaginá-lo. Esse é o quilógono de que nos falava Descartes nas suas Meditações de
Filosofia Primeira. Ele dizia que só poderíamos concebê-lo, não poderíamos imaginá-
lo.
No entanto, podemos hoje representá-lo numa tela de computador.
Mas será que o mesmo ocorre com nosso cérebro? Teremos meios para concebê-
lo, imaginá-lo ou simulá-lo? Dada qualquer noção de complexidade que possamos
vir a ter, se ela surge do cérebro, será tal noção capaz de representar a
complexidade do próprio cérebro? Seremos capazes de construir replicações
completas de nosso cérebro que simulem seu comportamento global?
Como produzir uma representação realista de um cérebro? Trata-se, sem dúvida,
de representar uma complexa máquina eletroquímica com formato e arquitetura
específicos. Iniciar essa tarefa significa, numa primeira aproximação, sermos capazes
de produzir representações de neurônios e representações de sinapses. Um
determinado número de neurônios e de sinapses tem de ser acomodado dentro de uma
determinada forma anatômica que conhecemos.
Esse número tem de ser mantido para que se preserve a alta conectividade de onde
se crê vir toda potencialidade do cérebro humano. Como vimos, o grande número de
neurônios e sinapses a ser replicado é parte fundamental da hipótese daqueles que
acreditam na possibilidade de reduzir o mental ao cerebral: o que não foi reduzido
ainda o será, progressivamente, na medida em que pudermos gerar e conhecer
circuitarias neurais cada vez mais complexas.
Representar neurônios e sinapses significa gerar pontos no espaço e conexões
entre esses pontos. E tal tarefa tem de ser realizada por um computador, pois as
quantidades com as quais estamos lidando são astronômicas: estima-se que o número
n de neurônios seja da ordem de 1012 ou 1013, e o número de sinapses, por volta de
1014 ou 1015; isso sem falar que o cálculo das conexões binárias eleva n a n2. Mas
será que podemos apostar na existência de algum tipo de padrão que permita essa
geração automática? Não se pode identificar um padrão estável entre as sinapses,
sobretudo se levarmos em conta a alta plasticidade do cérebro.
Encontramos aqui um problema que pode comprometer essa tarefa – ou seja, um
problema que talvez não possa ser resolvido por um algoritmo ou programa de
computador. Nesse caso, como poderíamos gerar uma representação do cérebro?
Antes de tentar responder a essa pergunta, quero divagar um pouco.
Existem algumas analogias interessantes na ciência da computação que podem
ilustrar a ordem das dificuldades das quais estamos falando. Para gerar essa
representação de que falamos, é preciso recobrir uma figura geométrica
tridimensional que seria o cérebro. Mas mesmo se tomássemos como ponto de partida
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uma figura bidimensional, já encontraríamos problemas. Por exemplo, não
chegaremos nunca a uma única solução possível sobre o modo como um plano
euclidiano pode ser recoberto por diferentes formas geométricas.
Supondo que essas formas representam sinapses, nossa representação do cérebro
estaria, mais uma vez,comprometida. Esse é o chamado problema do azulejo. Uma
maneira simples de enunciar o problema do azulejo é afirmar que haverá sempre
várias maneiras de arrumar a mesma carga na carroceria de um caminhão e que um
computador não poderia saber quantas são possíveis nem qual seria a melhor.
Em outras palavras, o problema do azulejo emerge de uma demonstração
matemática de que não existe um procedimento algorítmico (um programa de
computador) que possa nos informar de quantas maneiras uma determinada área pode
ou não ser inteiramente recoberta por figuras geométricas regulares. Podemos
combinar essas figuras (azulejos) e verificar se uma área pode ser recoberta. Fazemos
isso intuitivamente. Mas nenhum computador é capaz de calcular quantas
combinações possíveis dessas figuras geométricas podem, em princípio, recobrir uma
área qualquer.
No caso dos problemas colocados por áreas muito grandes ou específicas, saber
quais e quantas combinações poderiam recobri-las escapa, também, do nosso
conhecimento intuitivo. No caso do cérebro, isso significa que não temos como saber
quantas combinações geométricas possíveis entre neurônios poderiam recobrir sua
área, mesmo assumindo que eles pudessem ser uma figura geométrica regular,
concebida a partir de uma estilização. Tampouco nenhum programa de computador
poderia nos dizer isso. O número de combinações possíveis não é computável. Em
outras palavras, não saberemos quais combinações de neurônios no espaço poderiam
recobrir o cérebro. Ou seja, não há, em princípio, como calcular quais configurações
possíveis de cérebros são concebíveis. Não há um ponto de partida para uma
descrição matemática do cérebro.
Outra analogia interessante entre cérebros e conceitos da teoria da computação
seria com o tradicional problema do caixeiro-viajante. Um caixeiro tem de sair de
uma cidade e percorrer um dado número de outras, digamos, cem, sem repetir
caminhos.
O problema tem de ser resolvido por um programa de computador que, entretanto,
começa a encontrar tantas soluções possíveis que entra em explosão combinatorial.
Ora, não poderia ocorrer o mesmo se, em vez de pensarmos em caminhos,
pensássemos em sinapses ligando neurônios e quiséssemos elaborar um programa
para ligá-los? Será que esse programa também não entraria em explosão
combinatorial?
Hoje em dia, já existem programas de computador que podem fornecer soluções
para o problema do caixeiro-viajante se o número de cidades envolvidas não for
muito grande. Certamente, esse não seria o caso do cérebro, em que há bilhões de
neurônios cujas conexões precisamos representar. Contudo, no cérebro não ocorre
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uma situação semelhante à do caixeiro, que tem de evitar repetir caminhos. No
cérebro, existem redes neurais recorrentes, ou seja, que nos devolvem ao mesmo
ponto de partida, formando circuitos em loop. Há também muitas redes que são
redundantes.
Tudo se passa como se estivéssemos diante de uma rede neural cuja complexidade
se tornou incompreensível até mesmo para seus programadores. O relojoeiro cego da
evolução mais parece, no caso do cérebro, ter agido com base na improvisação. O
resultado é o que os cientistas da computação chamam de kludge, um outro nome
para o que chamamos de gambiarra. Nesse cenário, fica praticamente impossível
imaginar que as conexões entre neurônios obedeçam a algum tipo de padrão que
possa ser reproduzido por um programa de computador.
A ausência de padrões de conexão sináptica é um grande obstáculo para elaborar
modelos do cérebro. Que geometria devemos usar para descrevê-lo? Certamente, a
mais indicada é a geometria fractal. Com uma geometria poderosa desse tipo,
podemos descrever figuras completamente irregulares, como, por exemplo, uma costa
marítima. Mas até uma geometria fractal precisa de um padrão, o chamado padrão de
autossimilaridade, a partir do qual seja possível compor figuras irregulares. Qual será
esse padrão? O neurônio ou algum comprimento sináptico específico?
Mesmo adotando um modelo mais simplificado do cérebro no qual tivéssemos um
padrão de conexão sináptica que pudesse ser simulado por um programa de
computador, há ainda outra complicação mais séria que surge por causa do tempo
envolvido na execução do programa que geraria essa representação. Um programa
significa um algoritmo, ou seja, um processo que é executado passo a passo. Ele
envolve um número de passos e um tempo para que eles sejam executados. Ocorre
que, no caso desse programa para gerar uma representação do cérebro, o tempo
envolvido para a execução de tantos – e tantos! – passos torna-se problemático.
Isso nos leva para um outro terreno, o da chamada teoria da complexidade
computacional – uma teoria que lida com questões práticas relativas à velocidade e
eficiência da realização de procedimentos algorítmicos na solução de problemas. A
teoria da complexidade computacional parte da ideia de que podemos dividir (grosso
modo) os problemas computacionais em duas classes, a dos chamados problemas
tratáveis e a dos problemas intratáveis. Essa classificação baseia-se no número de
passos e, consequentemente, no tempo requerido para a execução do algoritmo num
computador.
Problemas intratáveis são aqueles que comportam uma solução algorítmica,
porém, o tempo envolvido para a execução do algoritmo torna-o ineficiente. Se
pensarmos na ordem das grandezas envolvidas, esse seria, certamente, o caso da
representação de conexões sinápticas se pensarmos na ordem das grandezas
envolvidas. Quanto tempo levaria um supercomputador para gerar uma representação
completa do cérebro humano com um número n de sinapses equivalente a 1015 além
do cálculo das conexões binárias que eleva n a n2?
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Certamente, temos esperança de que a velocidade de nossos computadores
aumentará muito em um futuro próximo, por causa da invenção de novos hardwares e
novos estilos de computação, como é o caso, por exemplo, da computação quântica.
Mas até que ponto poderemos avançar?
Trabalhos pioneiros na área de teoria da complexidade desenvolvidos na década
de 1970 por H. J. Bremermann mostram que há limites físicos na arquitetura de
computadores de qualquer tipo e que tais limites físicos condicionam o tempo
consumido por essas máquinas, não importando o nível de aperfeiçoamento do
hardware.
De acordo com Bremermann, há um limite fundamental para a velocidade dos
computadores que não pode ser ultrapassado. Tal limite fundamental deriva-se da
ideia de que a velocidade máxima de transmissão de sinal entre os componentes
internos de um computador é limitada pela velocidade da luz, ou seja, 3.108
m/segundo. O tempo de propagação ou intervalo de transmissão de sinal entre os
componentes internos do computador é determinado pela distância na qual se situam
tais componentes. Mesmo se supusermos a possibilidade tecnológica de construir um
computador muito pequeno para minimizar e otimizar a trajetória de transmissão de
sinal, tal limite fundamental não pode, em princípio, ser ultrapassado, a não ser que
provemos a possibilidade de computar em tempo superluminal e descartemos a
velocidade da luz como uma constante que não possa ser fisicamente superada. Já foi
cogitada a existência de partículas que viajariam a uma velocidade ligeiramente
maior do que a da luz, os neutrinos. Mas a diferença, se existir, é ínfima, e essa
anomalia não é suficiente para abalar o modelo padrão de partículas, o que não
permite afirmar com certeza a existência de velocidades superluminares no universo.
Contudo, mesmo com hardwares muito poderosos, com um tempo de comutação
praticamente nulo, haveria problemas cuja complexidade pode ser dita
transcomputável. Um problema transcomputável é um problema intratável, cujo
procedimento algorítmico de solução não pode ser obtido em tempo eficiente, a
despeito de qualquer aperfeiçoamento do hardware do computador utilizado.
O intervalo de tempo requerido para executar alguns algoritmos
transcomputáveis pode ser tão longo quanto a própria idade do universo. Não seria
esse o caso do cérebro, cujo número de sinapses equivale ao

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