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2 Índice Agradecimentos Prefácio O cérebro e a filosofia Consciência, intenção e liberdade O cérebro como problema filosófico A neurofilosofia Conclusão Sugestões de leitura Bibliografia 3 Para Malu, Jujuba e Tâmara, o amor que nunca acaba. 4 Agradecimentos Em primeiro lugar, à minha ex-aluna e amiga Suely Molina, que, mais uma vez, me ajudou com a revisão final do texto. Aos meus amigos Gustavo Leal-Toledo e Kleber Candiotto, pelas sugestões. Ao meu ex-aluno André Sathler Guimarães, pelas críticas sempre construtivas. À minha esposa, Malu. A Lili, minha assistente. 5 O antigo dualismo da alma e do corpo foi substituído pelo dualismo do cérebro e do restante do corpo. John Dewey 6 Prefácio Não é mais possível ignorar o impacto da neurociência sobre as ciências humanas, sobretudo depois que ela se tornou neurociência cognitiva e tomou para si a resolução de problemas que antes estavam confinados somente à psicologia e à filosofia. Há, hoje em dia, muitos livros de qualidade que expõem para o público leigo os últimos avanços e resultados das novas ciências do cérebro. Mas estava faltando um livro curto e acessível, que tratasse das novas relações mútuas que hoje existem entre a filosofia e a neurociência. Essa é a proposta deste livro. Para elaborar este texto, além de uma ampla investigação nos mais atuais estudos científicos sobre o assunto, utilizei-me de vários livros e artigos de minha autoria. Aprofundei posições acerca da neurociência já sustentadas nos meus livros Filosofia e Ciência Cognitiva (2004) e A Mente Pós-Evolutiva (2010). Utilizei-me, também, em algumas passagens, de colunas escritas para a revista Filosofia Ciência & Vida nos últimos cinco anos. O leitor que me acompanhou nesses últimos anos talvez as reconheça em alguns trechos. Sinto-me feliz de poder reunir essas passagens em um texto maior, que expressa de forma mais coerente e detalhada minhas posições filosóficas acerca da neurociência e da filosofia da mente. Um dos maiores filósofos da neurociência na atualidade, Carl F. Craver, escreveu que, se a neurociência explicar o mistério da consciência, a ilusão do livre-arbítrio e como funciona a memória humana, mudaremos nossa autoimagem tão radicalmente como quando Copérnico nos tirou do centro do universo. Será que Craver está certo? 7 O cérebro e a filosofia Este pequeno livro visa iniciar o leitor em uma área ainda pouco explorada no Brasil: a reflexão sobre a neurociência e seus fundamentos, que tem levado, nas últimas décadas, a uma expansão da temática da filosofia. A neurociência é uma disciplina relativamente jovem, que adquiriu grande importância a partir dos anos 1990, a chamada década do cérebro. Essa década marca uma descoberta fundamental: a neuroimagem. Ela foi a contribuição mais recente e mais importante para que a neurociência se tornasse neurociência cognitiva, ou seja, uma investigação das bases neurais da atividade psicológica de alguns animais e, em especial, dos seres humanos. Desde o surgimento da neuroimagem, quase semanalmente jornais e revistas passaram a publicar imagens coloridas do cérebro que correspondem à descoberta da localização de mais algum tipo de atividade mental cujas bases neurais eram até então desconhecidas. As técnicas de neuroimagem ou de imageamento do cérebro surgiram na metade da década de 1990. Seu pioneiro foi o radiologista americano Marcus Raichle, cujas pesquisas levaram ao desenvolvimento do PET (Positron Emission Tomography) e do fMRI (Functional Magnetic Resonance Imaging) ou ressonância magnética do cérebro. O livro publicado por Raichle (escrito em conjunto com Michael Posner) em 1997, Images of Mind, fez grande sucesso na época. O entusiasmo pelas teorias biológicas da consciência se acentuou após a invenção dessas novas tecnologias. Até pouco tempo, a única maneira de se examinar o cérebro humano era através de autópsias realizadas após a morte de pacientes que apresentavam alguma disfunção cognitiva. O cérebro era, praticamente, uma caixa- preta. Foi esse panorama que mudou radicalmente com o aparecimento do PET e do fMRI. Eles proporcionam imagens do cérebro vivo, quase em tempo real, o que nos permite visualizar como ele funciona. As imagens coloridas do PET e do fMRI correspondem a níveis de atividade neural. O paciente submetido a essas técnicas deve relatar a execução de alguma atividade cognitiva e, em seguida, seu cérebro é escaneado, o que permite a localização dessa atividade no tecido cerebral. As imagens obtidas pelo PET detectam a atividade neural através das variações metabólicas que ocorrem no cérebro. Eventos neurais requerem oxigênio, que, por sua vez, requer afluxo sanguíneo. A suposição é a de que onde esse afluxo aumenta está ocorrendo atividade neural. Esta, por sua vez, está correlacionada com atividade mental. Uma das propostas é estabelecer uma identidade ponto a ponto entre, por um lado, as áreas cintilantes obtidas pela neuroimagem e, por outro, as funções cognitivas. Essa identidade, em princípio, permitiria um mapeamento da mente no cérebro. O impacto dessas novas tecnologias de observação do cérebro sobre a imagem que 8 o homem tem de si mesmo no século XXI é muito grande. Para a nova neurociência, que surgiu na década do cérebro, somos apenas uma imensa coleção de neurônios que evoluiu ao longo de milhares de anos, e cuja atividade é, em última análise, regida por genes ou proteínas que, em sua interação com o meio ambiente, acabam tendo um papel decisivo sobre nossa mente e nosso comportamento. O materialismo teria, finalmente, triunfado sobre as concepções do eu que o associam a algum tipo de alma imortal. Como sugeriu o neurocientista indo-americano Vylanour Ramachandran, a herança platônica que nos vê como uma alma aprisionada no corpo tende a acabar. Somos apenas nossos cérebros, e nossas diferenças individuais nada mais são do que pequenas diferenças cerebrais. O impacto da neurociência sobre questões filosóficas tradicionais também é muito grande. A neurociência sugere que o problema mente-cérebro, do qual se ocuparam as filosofias e as religiões, logo será resolvido pela ciência. A mente é o cérebro; hoje em dia, na comunidade científica, poucos se atrevem a questionar essa proposição. Se ainda há crenças religiosas que pregam a distinção entre mente e cérebro, a neurociência nos diz que elas podem não ser nada além de eventos cerebrais ou até mesmo experiências induzidas no cérebro humano a partir da ingestão de algumas drogas com efeitos específicos. Nessa nova perspectiva, a neurociência torna-se a ciência fundamental, usurpando a posição ocupada pela física por várias décadas, pois da neurociência podemos esperar compreender a organização de todo conhecimento humano, incluindo, até mesmo, o modo como o cérebro humano produz a própria física, até então considerada como o saber fundamental ao qual se esperava que um dia todas as ciências pudessem ser reduzidas. Tudo cedeu à neurociência. Não se atribui mais um papel determinante à cultura e à história individual na produção do transtorno mental, mas, ao contrário, é o transtorno cerebral que é considerado o produtor das distorções na cultura e nas histórias individuais. Entende-se que a explicação neurocientífica deve prevalecer sobre outros tipos de explicações, pois ela é considerada a mais científica. É nesse ponto que a neurociência começou a disputar o espaço da psicologia e da psicanálise, criando um conflito que não se resolverá tão cedo. Nem mesmo criações mais recentes, como a neuropsicanálise, parecem poder dar conta desses atritos. A neurociência está tão impregnada nas sociedades contemporâneas que já afetou até a linguagem popular. As pessoas não ficam mais tristes, mas deprimidas. Não ficam mais furiosas, elas “surtam”. Para tristeza e fúria ministram-se drogas que podem evitá-las. A angústia existencial, típica do século XX, não é mais vista como resultado da condição humana, mas apenas como um estado patológico transitório que pode ser eliminado através de novas medicaçõesbiopsiquiátricas resultantes da pesquisa neurocientífica. Mas as ambições científicas cada vez mais abrangentes da neurociência se 9 expandiram também para a filosofia, levando ao surgimento de uma nova disciplina, a neurofilosofia. Seu propósito é tratar problemas filosóficos a partir da neurociência. A neurofilosofia aposta que outras questões, além do problema mente- cérebro, poderão ser solucionadas pela neurociência em um futuro próximo. Entre tais questões estão também incluídas as de ordem ética, já que a neurociência tomou para si a explicação do comportamento e das decisões dos seres humanos. Origina-se, daí, uma subseção importante da neurofilosofia – a neuroética. Contudo, apesar de todas essas ambições, a reflexão filosófica sobre os limites da investigação neurocientífica ainda se mantém como tarefa fundamental para os filósofos. Se há filosofia da ciência, ela deve abranger também a neurociência e nos conduzir em direção a uma filosofia da neurociência. Esse tipo de reflexão tem como proposta discutir questões básicas, como, por exemplo: O que é o cérebro? Quando falamos dele, estamos nos referindo a uma entidade física ou a uma construção teórica? Haverá leis da neurociência da mesma maneira que há leis da física? O que significa explicar um fenômeno mental em termos neurocientíficos? Será que basta localizá-lo no cérebro a partir de técnicas de neuroimagem? A filosofia da neurociência deve manter uma via de mão dupla com a neurofilosofia. Os filósofos não podem mais ignorar a neurociência, principalmente após os trabalhos de Paul e Patrícia Churchland, que passaram a ser conhecidos como “o casal Churchland”. Não é mais possível falar de memória, de consciência e de outros fenômenos mentais como se fazia há cem anos, pois agora eles são investigados empiricamente. Da mesma maneira que espaço e tempo deixaram de ser assuntos de filósofos e foram apropriados pelos físicos, mente, consciência, memória etc. deixaram de ser domínio exclusivo da psicologia e da filosofia, e hoje tornaram- se tema de neurociência. Não é mais possível negar que a neurociência invadiu a filosofia. Mas poderá a neurociência dar respostas definitivas sobre questões fundamentais como as relações entre mente e cérebro, e a problemas éticos, que sempre foram um espaço privilegiado dos filósofos? Esse é um problema que também precisa ser discutido. Há muito entusiasmo ingênuo entre os neurocientistas, mesmo entre os mais brilhantes como Ramachandran e Gerald Edelman. Talvez seja ainda muito cedo para afirmar que a neurociência pode tomar o lugar da filosofia. Parece que muitos dos neurocientistas de hoje são como os filósofos anteriores a Kant, que não viam limites à expansão do conhecimento. E falar de limites à expansão do conhecimento não significa fazer uma aposta contra a ciência, mas colocar os pés no chão e lembrar que da ciência talvez não seja possível esperar respostas para questões metafísicas. Não há dúvida de que nas duas últimas décadas a neurociência avançou mais do que na sua história inteira. Também não há dúvida acerca do quanto esses avanços se refletiram na vida prática das pessoas, a começar pela quantidade de medicamentos neurológicos e biopsiquiátricos de que dispomos hoje e que podem nos trazer um alívio inegável para vários tipos de desconforto psíquico. Em breve, a pesquisa 10 neurocientífica nos livrará de doenças neurológicas graves, como, por exemplo, o Parkinson e o Alzheimer. Mas será isso suficiente para dar à neurociência o papel de pedra filosofal, como a imprensa leiga o faz? Já houve quem dissesse que a neuroimagem representou para o século XX aquilo que o telescópio foi para o século XVII, ou seja, um instrumento fundamental que permitiu à nova astronomia confirmar que a Terra não é o centro do universo. Novas técnicas de observação do cérebro em funcionamento, como a optogenética, desenvolvida em 2006 por Karl Deisseroth na Universidade de Stanford, prometem avanços cada vez maiores para a neurociência. Através dessa nova técnica, é possível modificar geneticamente alguns neurônios de modo que, quando ativados, tornam-se sensíveis a raios luminosos. Certamente, essa nova tecnologia permitirá que aperfeiçoemos o mapeamento cerebral e talvez traga um salto qualitativo tão importante quanto a neuroimagem. Uma das grandes vantagens da optogenética é a possibilidade de “ligar” e “desligar” regiões específicas do cérebro sem que ocorram efeitos colaterais, como no caso do implante de chips ou no de uso de drogas biopsiquiátricas. O desenvolvimento dessas novas técnicas nos leva a acreditar, cada vez mais, que podemos esperar muito da neurociência nas próximas décadas. Mas será que os neurocientistas não estarão reeditando, de forma ingênua e pouco se dando conta, questões filosóficas que a filosofia da mente tem debatido nas últimas décadas? E até que ponto a ausência dessa reflexão filosófica não pode estar influenciando a própria maneira como a neurociência tem sido desenvolvida nos últimos anos? Essa é uma questão polêmica, debatida de forma crítica por Bennett e Hacker, os autores do livro Fundamentos Filosóficos da Neurociência, um dos textos pioneiros de filosofia da neurociência, publicado em 2003. O pano de fundo de sua crítica poderia ser expresso pela sentença “na neurociência, há métodos experimentais, mas confusão conceitual”, adaptada de Wittgenstein. Ao escrever essa sentença nas Investigações Filosóficas, em 1958, Wittgenstein se referia à psicologia, dizendo que nela “há métodos experimentais e confusão conceitual”. Segundo Bennett e Hacker, poderíamos, hoje em dia, substituir “psicologia” por “neurociência” quase sem alterar a intenção crítica que motivou, originariamente, essa afirmação. Sem me deter nas análises propostas por esses dois autores, pretendo, nos próximos capítulos, apresentar e discutir as relações entre neurociência e filosofia em seus vários aspectos. Não acredito que haja uma ciência de tudo, como os físicos do século XX tentaram em vão encontrar, nem tampouco que tal ciência, com tanta abrangência, seja a neurociência atual. Desta, é preciso analisar limites e pretensões, e essa é a tarefa que a filosofia da neurociência, ou a nova “filosofia do cérebro”, se propõe a realizar. CONTINUAR A PENSAR 11 Até que ponto você acha que a neurociência pode afetar a imagem que o homem tem de si mesmo? Você acha que a divulgação das realizações da neurociência na mídia tem sido exagerada? 12 Consciência, intenção e liberdade I Há três temas que, frequentemente, são abordados pelos neurocientistas ao tentar extrair conclusões ou fazer considerações acerca das consequências de seus experimentos e observações. O primeiro é o problema mente-cérebro; o segundo, a questão da ação intencional ou da natureza das intenções que movem os seres humanos; e o terceiro, a questão da liberdade versus o determinismo. Esses três temas sempre estiveram na agenda dos filósofos e, mais recentemente, reaparecem como as principais questões da filosofia da mente. O problema mente-cérebro já foi muito discutido pelos filósofos da mente nas últimas décadas, mas algumas descobertas recentes da neurociência sugerem que ele precisa ser reconsiderado a partir dessas novas perspectivas. Uma delas, e talvez a principal, é a neuroimagem. Se pudermos localizar as atividades mentais em determinados pontos do cérebro, não seria isso uma prova em favor da identidade entre o mental e o físico? Não serão mente e cérebro a mesma coisa? Será que nossas experiências subjetivas não são apenas um efeito colateral do metabolismo do cérebro? O principal desafio colocado pelo problema mente-cérebro é que nossa introspecção não dá acesso a neurônios e sinapses com os quais poderíamos relacionar diretamente nossos pensamentos. A introspecção não dá acesso a um cérebro, e sim à mente, com seus estados mentais, imagens mentais e emoções. Se caminharmos inversamente e tentarmos resgatar estados subjetivos a partir da observação do cérebro, a dificuldade será a mesma. Há um hiatoentre mente e cérebro batizado pelo americano Joseph Levine, em 1983, com o nome de hiato explicativo, expressão que passou a ser adotada pelos filósofos da mente que o sucederam. O hiato explicativo é mais uma formulação do tradicional problema mente- cérebro, que permanece na agenda da filosofia da mente ao longo das últimas décadas. Contudo, os neurocientistas têm se mostrado cada vez mais entusiasmados com a possibilidade de encontrar a solução a partir do estudo do funcionamento do cérebro. Quase todos os neurocientistas são materialistas, ou seja, acreditam em uma identidade entre mente e cérebro ou, pelo menos, no sucesso das tentativas de reduzir o mental ao cerebral. Foi com base nesse entusiasmo que Francis Crick nos fala de uma “hipótese assombrosa” ao se referir à possibilidade da consciência ser apenas um produto da atividade cerebral. Contudo, não é algo tão assombroso assim, pois o materialismo já existe há séculos na história da filosofia. Mas há algo que nos chama a atenção na hipótese sobre a qual Crick insistiu: sua 13 influência, a partir dos anos 1990, que levou os filósofos da mente a reformularem o problema mente-cérebro de forma a nele incluir a questão da consciência. Por que a consciência parece resistir tanto a uma possível redução a estados cerebrais? Se a ciência pode, em um futuro próximo, explicar a natureza do mental, ainda assim restaria o problema da consciência. Os neurocientistas, a partir da década de 1990, parecem ter acompanhado essa mudança e passaram a falar do problema da consciência como a principal questão a ser resolvida pela neurociência. Acompanhando a proliferação de teorias da consciência que se espalhou pela filosofia da mente, em vez de falar de uma redução da experiência subjetiva a estados cerebrais, os neurocientistas passaram, então, a buscar pelos correlatos neurais da consciência. A ideia de um correlato neural pode ter dois sentidos. O primeiro é o da existência de uma correspondência entre o mental e o cerebral, ou seja, a ideia de que todos os estados mentais são acompanhados de algum estado cerebral que pode ser detectado pela observação do cérebro. Esse estado cerebral não precisaria ser necessariamente a causa do estado mental, nem tampouco algo a que esse estado mental tivesse de ser reduzido. Nesse sentido, podemos buscar correlatos mentais para diversas atividades, tais como a memória e a linguagem. Mas há outro sentido para correlato neural. Nesse caso, buscam-se no cérebro as características da experiência subjetiva que a tornam consciente. Isso significa a crença de que a consciência possa ser mapeada no cérebro, ou seja, de que a consciência tem uma representação neural. Esse rastro no cérebro poderia ser detectado pela neuroimagem ou por algum outro instrumento de observação da atividade cerebral. Da mesma maneira que o eletroencefalograma possibilitou a identificação das fases do sono (em especial a fase REM, que ocorre, supostamente, quando sonhamos), deveria ser possível identificar quando uma experiência se torna consciente no cérebro. Será que em algum momento a neuroimagem conseguirá identificar o aspecto distintivo que torna certas experiências conscientes? A busca pelos correlatos neurais da consciência já dura pelo menos duas décadas. Para alguns neurocientistas, ela se equipara à tentativa de descobrir o lugar da consciência no cérebro; a busca pela verdadeira sede da alma. Mas as dificuldades podem não ser apenas técnicas, como muitos pressupõem. Na verdade, não se sabe exatamente o que se está procurando, pois não há um consenso acerca do que se deve entender por consciência. Há, também, aqueles que questionam a possibilidade de sucesso desse tipo de projeto. Neurocientistas respeitáveis, como o finlandês Antti Revonsuo, já questionaram se os correlatos neurais da consciência seriam detectáveis pelas técnicas de imageamento de que dispomos no momento. Outros, como Baars, Dehaene, Tononi e Edelman, questionam se a consciência não seria um evento global distribuído por várias partes do cérebro. Para eles, não haveria correlatos neurais específicos e localizáveis. Do ponto de vista da filosofia da mente, a questão da existência de tais correlatos neurais 14 é um problema que merece uma discussão filosófica preliminar, antes dos neurocientistas se aventurarem na busca por qualidades distintivas entre a atividade neural associada com a consciência e o processamento inconsciente de informação no cérebro, que ocorre em muitos comportamentos humanos. Uma das razões para a persistência de dificuldades nessas pesquisas é o fato de que não existe um modelo consensual entre os neurocientistas acerca do funcionamento cerebral. Até hoje, existe uma disputa entre três posições possíveis: o localizacionismo, o holismo e o equipotencialismo. Para o localizacionismo, o cérebro é um conjunto de módulos especializados, cada um responsável por uma determinada função. O localizacionismo tornou-se o localizacionismo funcional, ou seja, a localização de áreas obedece a um critério essencialmente funcional. O localizacionista pode correlacionar uma função com um tipo especial de célula no cérebro, mas ela pode estar difusa em várias regiões do tecido cerebral. A localização nesse caso perde o sentido especificamente geográfico ou espacial, ela pode ser relacionada com diferentes tipos ou grupos de células. O holismo nega que funções mentais possam ser entendidas em termos de áreas isoladas, mas não se choca com o localizacionismo, pois ele não precisa negar a especialização das áreas. Em outras palavras, o holista não se opõe necessariamente ao localizacionista, mas enfatiza que o funcionamento do cérebro ocorre pela interação e coordenação dessas partes especializadas. Para os equipotencialistas, não existiria especificidade funcional; o cérebro funciona o tempo todo como um grande mutirão que, para executar suas funções, convoca todas as suas partes, pois elas seriam equivalentes. Atualmente, os equipotencialistas concordam com um certo localizacionismo de funções mais simples, como as sensórias e as motoras, mas não estendem o localizacionismo para o caso das funções cognitivas mais complexas, como a memória e a consciência. A tendência mais recente da neurociência é o localizacionismo. O sucesso da neuroimagem e outras técnicas de observação cerebral tradicionais, como a introdução de eletrodos ou microeletrodos no cérebro para identificar regiões de atividade neural, nos aproxima da elaboração de um mapeamento cerebral cada vez mais preciso. Essa técnica, também conhecida como eletrofisiologia do neurônio individual, busca registrar a atividade de neurônios específicos através de uma interação com seu campo elétrico, quando o cérebro recebe estímulos que vêm de canais sensoriais. Os eletrodos podem ser posicionados de forma a tocar a membrana do neurônio para medir sua atividade elétrica, ou, em alguns casos, devem atravessá-la. A medição da atividade elétrica de um neurônio ou de um grupo deles é a pista para saber onde e como o cérebro reage ao mundo exterior. Ou, em outras palavras, para saber o que tem algum significado para o cérebro. Essa técnica exige uma pesquisa meticulosa por parte dos neurocientistas, o que torna o seu trabalho particularmente árduo. Não bastasse isso, às vezes fica muito 15 difícil isolar neurônios para medir sua atividade elétrica, pois eles estão todos interconectados. Para superar essas dificuldades, Rodolfo Llinás, um neurocientista colombiano radicado nos Estados Unidos, fala-nos até de realizar experimentos mais ousados no futuro, como a introdução de bilhões de nanoeletrodos na corrente sanguínea, que acabariam se instalando na superfície do cérebro, sem penetrá-lo profundamente, e que trariam a possibilidade de mapear com precisão a atividade elétrica do tecido cerebral em seus mínimos detalhes. No caso da neuroimagem, a localização de eventos no cérebro está restrita à identificação de regiões cúbicas entre 2 e 5 milímetros, nas quais há centenas de milhares de células.Se existir algum grau de especialização ou diferenciação entre essas células, isso não será captado. Ademais, eventos cerebrais ocorrem numa escala de milhares por segundo. A neuroimagem detecta apenas eventos num intervalo de quase um minuto. Os dados fornecidos por ela têm sempre de ser padronizados, pois cada cérebro tem suas diferenças. Apesar das dificuldades, essas duas técnicas, a neuroimagem e a eletrofisiologia do neurônio, têm reforçado a crença dos neurocientistas contemporâneos na possibilidade de encontrar os correlatos neurais da consciência e de resolver o problema mente-cérebro pelo estudo do funcionamento cerebral. Essa crença resulta da ideia de que essas novas tecnologias finalmente abrirão um caminho para que se estabeleça uma interface entre a fisiologia e a psicologia. Mas o localizacionismo teve ainda como consequência a radicalização de posições reducionistas na discussão do problema mente-cérebro. Uma das formas do reducionismo contemporâneo é a chamada redução psiconeural, defendida pelo filósofo americano John Bickle. O mental deve ser reduzido ao físico numa trajetória que passa pelo bioquímico, pelo químico e finalmente pelo molecular. John Bickle toma como modelo de redução psiconeural as pesquisas sobre as bases neurais da memória realizadas pelo neurocientista Eric Kandel, que recebeu o Prêmio Nobel de Medicina e Fisiologia em 2000. Ele defendeu o reducionismo mais como método científico do que como posição filosófica, embora sempre acreditando que o trabalho do neurocientista seja sempre o de encontrar as bases moleculares das atividades mentais. É nesse sentido que ele chegou a defender a existência de um gene da sociabilidade. Kandel tomou como ponto de partida o estudo do comportamento da lesma marinha Aplysia e mostrou em detalhes como ocorrem as mudanças nas conexões entre neurônios em processos conhecidos como habituação e sensibilização de um reflexo, que são formas simples de aprendizado. A habituação é o desconhecimento de um estímulo por ele se tornar repetitivo e excessivamente trivial. A sensibilização, ao contrário, é o reconhecimento de um estímulo pela sua novidade e caráter inusitado. Quando moramos numa rua muito barulhenta, passamos, com o tempo, a não ouvir o ruído dos carros, pois nos acostumamos com esse tipo de estímulo. Mas 16 se um carro buzinar fortemente por alguns segundos, reagiremos com irritação a esse novo estímulo. Kandel mostrou que as mudanças químicas nas células durante a habituação envolvem a liberação de íons de cálcio necessários para que ocorra a conexão entre dois neurônios (sinapse). Quando os canais pelos quais circulam íons de cálcio pela membrana do neurônio se fecham, o reflexo não ocorre, e é isso que se passa no processo de habituação. Reflexos que se tornaram habituados podem ficar inativos por horas ou dias, mas podem ser reativados por estímulos em outras partes do corpo da Aplysia. Kandel mostrou que nesse pequeno animal a sensibilização ocorre através da ativação de um canal paralelo entre neurônios que libera o neurotransmissor serotonina nas sinapses que ficam sem íons de cálcio. Quando isso acontece, os canais de cálcio se reabrem, o cálcio penetra e o reflexo é reestabelecido. É dessa forma que funcionam as bases neurais do aprendizado da Aplysia, que depende da mudança entre as conexões de alguns de seus neurônios. A mudança dessas conexões pode, por sua vez, ser explicada em nível químico e molecular. Com isso, Kandel pretende ter dado um passo inicial para a compreensão das mudanças em conexões nos cérebros mais complexos, o que permitiria, no futuro, desvendar os processos de aprendizagem em outros animais, incluindo o ser humano. A Aplysia é só o começo na trajetória em direção a explicações neuromoleculares. Entre o DNA da Aplysia e o de animais com cérebros complexos como o ser humano, há poucas diferenças. O trabalho de Kandel é um exemplo da chamada doutrina do neurônio, um termo cunhado pelos filósofos da neurociência Ian Gold e Daniel Stoljar. A doutrina do neurônio pressupõe que a mente será explicada por uma teoria neurocientífica inteiramente biológica. Se a mente é o cérebro e se a neurociência é a ciência do cérebro, ela será também uma teoria da mente que poderá explicar todos os fenômenos mentais. A psicologia desaparecerá no decorrer do desenvolvimento da neurobiologia. Essa é uma posição defendida por vários neurocientistas contemporâneos, inclusive Antonio Damásio e Gerald Edelman. Do lado da filosofia, o casal Churchland defende posição semelhante, com o nome de materialismo eliminativo. Embora tenha se tornado uma ideologia espontânea de vários neurocientistas e também de muitos psiquiatras contemporâneos, a doutrina do neurônio ainda não pôde ser integralmente aceita. Estamos longe de explicar as bases moleculares das atividades mentais humanas, e as tentativas de sua compreensão através de intervenções no cérebro pelo uso de medicamentos ainda são muito imprecisas. Não sabemos, tampouco, o quanto a intervenção química no cérebro pode nos ajudar no sentido de solucionar o problema mente-cérebro e consolidar uma teoria da mente inteiramente biológica. O consumo de medicamentos parece afetar as emoções associadas a estados 17 mentais, mas não sabemos ainda se esses estados mentais são de fato modificados. Por exemplo, impulsos suicidas podem ser aliviados por algum tipo de ansiolítico ou neuroléptico. Contudo, isso não significa que possamos afirmar que a ideação suicida tenha sido eliminada ou afetada pela medicação. Um ansiolítico pode atuar apenas para ajudar a esquecê-la ou adiá-la temporariamente. É por isso que podemos questionar se antidepressivos alteram ou suprimem estados mentais e supor que esse tipo de efeito constitua uma evidência em favor da ideia de que a mente é inteiramente determinada pelo cérebro. Da mesma maneira, emoções e humor podem ser alterados ou estabilizados através de agentes químicos. Mas será que esses agentes químicos podem alterar o conteúdo afetivo das emoções? Posso deixar de agredir uma pessoa que odeio se tomar medicamentos que refreiem meus impulsos agressivos, mas será que eles farão com que eu deixe de sentir ódio por essa pessoa? Essa é uma pista para um problema com o qual a neurociência tem de lidar: até que ponto estados mentais, ainda que ocorram dentro do cérebro, não são determinados pelo ambiente que o circunda? Tomemos, por exemplo, a sensação de medo. Estudos de Joseph LeDoux mostram que, em grande parte, a sensação de medo ocorre quando uma certa parte do cérebro, a amígdala, é ativada. Mas será isso suficiente para sentirmos medo? Podemos ter medo de carros, de um assaltante ou até mesmo de algum tipo de sensação que nos chega subitamente. Mas será que no sentimento de medo não há sempre um componente externo, ambiental, que determina, em grande parte, o conteúdo que vem associado com esse sentimento? Ou, em outras palavras, para ter medo, não é necessário sempre ter medo de alguma coisa? Será que esse sentimento não evoluiu assim precisamente para que evitemos aquilo que pode nos ameaçar ou nos danificar? Talvez um dia consigamos manipular o cérebro de tal forma a produzir sensações de pânico insuportáveis, mesmo que elas não sejam causadas por algum fator externo. Através da disseminação de algum agente químico no ar, poderíamos induzir o pânico das pessoas que estavam nas torres gêmeas e nos seus arredores no 11 de setembro. Nesse caso, não seria mais preciso produzir atos terroristas, mas simplesmente simulá-los nos cérebros das pessoas. Entraríamos na fase do neuroterrorismo. II Nas duas últimas décadas, a filosofia da mente e a neurociência foram pródigas em propor novas teorias da consciência. Contudo, nenhuma delas conseguiu propor uma solução convincente para o que o filósofo australiano David Chalmers chamou de problema difícil da consciência. Com isso, ele quis dizer que a neurociência poderá desvendar, nas próximas décadas, o funcionamento mental humano, ou seja, 18 explicar como funcionam a percepção,a memória e a linguagem. Mas por que esse funcionamento mental ocorre de forma consciente continuará a ser um mistério. As afirmações de Chalmers não parecem ter influenciado muito o entusiasmo dos neurocientistas quanto à possibilidade de resolver problemas filosóficos. A história das tentativas de redução do mental ao cerebral teve outros episódios. A busca por correlatos neurais da consciência também continuou. No início da década de 1980, foi descoberto um grupo de neurônios em primatas chamados neurônios canônicos. Essas células são responsáveis pela identificação de movimentos e de ações que podem ser realizadas envolvendo objetos próximos. No início da década de 1990, Giacomo Rizzolatti, professor de fisiologia na Universidade de Parma, juntamente com sua equipe, descobriu outro grupo de neurônios, os chamados neurônios espelho. Esses neurônios não apenas disparam quando ocorre um movimento envolvendo objetos próximos, mas também quando outros primatas executam ações. Os neurônios espelho foram descobertos por acaso no laboratório de Rizzolatti. Um dia, eles estavam registrando os sinais que vinham de microeletrodos inseridos no córtex motor do cérebro de um primata para pesquisar quais seriam os neurônios responsáveis pelo planejamento do movimento. Na hora do almoço, os pesquisadores decidiram não sair e comer no próprio laboratório e, por isso, não desligaram os microeletrodos. Quando começaram a comer, verificaram que esses microeletrodos entraram em ação, mostrando que estava ocorrendo uma ativação nos neurônios motores do primata. O primata não estava se movendo, mas apenas observando as ações das pessoas, o que pareceu aos pesquisadores uma situação muito peculiar. Resolveram, então, repetir a situação e observar o comportamento desses neurônios quando o primata observava alguém executando alguma ação. Como eles sempre disparavam, concluíram que estavam diante de uma classe especial de neurônios. O passo seguinte foi mostrar, através de técnicas de neuroimagem, que esses neurônios também existem nos seres humanos. Segundo Rizzolatti, esses neurônios identificam as intenções dos outros, e foi por isso que ele os chamou de neurônios espelho. Mas será que os neurônios espelho são realmente capazes de detectar as intenções dos outros ou apenas seus movimentos? Sobre esse ponto parecem pairar algumas dúvidas, que foram levantadas pela filósofa Emma Borg. Imagine que eu esteja sentado a uma mesa e que em determinado momento levante um copo e o segure bem na minha frente. Como saber minha intenção? Será que eu o levanto para beber a água que está nele ou para alguém passar um pano sob ele e secar a mesa? Certamente, não é possível perceber a intenção pela observação desse ato isolado, nem para um primata nem para outro ser humano. A intenção se revelará pelo contexto no qual a ação ocorre, mas, mesmo assim, podemos questionar se a percepção do movimento é suficiente para inferir uma intenção e o que ocorreria com os neurônios espelho quando essa percepção é ambígua. Será que a interpretação 19 de uma ação pode ser reduzida ao disparo de um grupo de neurônios? Imagine, agora, a situação descrita pelo filósofo da mente inglês Gilbert Ryle. Ryle afirmava que, pela observação do comportamento, não podemos distinguir quando um palhaço cai por acaso ou de propósito. Em um de seus ensaios, “The thinking of thoughts: What is Le Penseur” (1968/2009), ele descreve uma situação peculiar. Ryle considera a situação hipotética de dois garotos numa reunião de condomínio. Ambos piscam simultânea e rapidamente um de seus olhos. Em um deles, esse é um tique involuntário; no outro, é uma piscadela conspiratória para um amigo. Ora, vendo essa cena através de uma câmera, ou seja, a partir de uma observação do comportamento, não poderíamos saber qual deles estava piscando por motivos conspiratórios e qual piscava por conta de um tique nervoso. O piscador voluntário está se comunicando de uma forma precisa e especial: a) deliberadamente, b) para alguém em particular, c) transmitindo uma mensagem específica, d) de acordo com um código socialmente estabelecido e e) sem o conhecimento dos demais companheiros. Segundo Ryle, o piscador voluntário executa duas ações – contrair a pálpebra e piscar, enquanto o que tem tique nervoso executou apenas uma, ou seja, contraiu a pálpebra. A diferença entre um tique nervoso e uma piscadela é grande. Poderia, ainda, ser o caso de que o piscador voluntário, que pisca para o outro em atitude conspiratória, esteja fazendo isso apenas para imitar a existência de uma possível conspiração. Também poderia haver um terceiro tipo de ação: a de alguém que imitasse a ação dos outros dois apenas para ridicularizá-los. Como alguém, na posição de estar apenas assistindo a um filme do que aconteceu, poderia saber se há duas ou até três ações em uma piscadela? Esse exemplo é um caso limite da dificuldade de inferir intenções a partir da observação do movimento. Rizzolatti e seu colaborador Vittorio Gallese reconhecem que esse é um problema que afeta o quanto podemos concluir com a descoberta dos neurônios espelho. Talvez não possamos exigir da detecção do disparo dos neurônios espelho uma leitura precisa e infalível das intenções dos outros. Contudo, para que essa descoberta faça algum sentido e seja, de fato, um acréscimo à descoberta dos neurônios canônicos (que apenas detectam movimento), é preciso sustentar, de alguma maneira, a existência de uma correlação entre movimento e intenção, e que ambos sejam detectados simultaneamente, pelo menos no caso da observação do movimento dos outros. Rizzolatti e Gallese sugerem, como possível solução, que devemos modificar nossa percepção habitual das relações entre movimento e intenção. Baseados na filosofia de Merleau-Ponty, eles argumentam que ambos não devem ser separados, ou seja, o movimento (ou, em termos merleau- pontyanos, o gesto) deve ser visto como intrinsecamente intencional. Não há uma atribuição de intenção posterior ao movimento, pois ele já é, ao mesmo tempo, a expressão da intenção. O mais curioso na solução de Rizzolatti e Gallese é o apelo à filosofia para 20 defender seus pontos de vista acerca dos neurônios espelho. A neurociência, que quis se livrar da filosofia, acaba admitindo-a pela porta dos fundos. Talvez um experimento crucial que poderia esclarecer até que ponto neurônios espelho detectam intenções, e não apenas movimentos, fosse expor primatas a robôs manipulando objetos próximos. Nesse caso, os neurônios espelho deveriam apresentar alguma diferença ao disparar, ou deveríamos esperar que apenas seus neurônios canônicos disparassem, pois, supostamente, o movimento dos robôs é puramente mecânico e sem intenções. Mas isso tampouco resolve o problema. Dependendo da filosofia da mente que adotemos, é possível atribuir intenções também ao movimento dos robôs. Como sugere Daniel Dennett, robôs podem ser sistemas intencionais, e, da mesma maneira que aos seres humanos, podemos atribuir a eles intenções a partir da interpretação de seus movimentos. Isso significa que, em última análise, não podemos afirmar com certeza que robôs não têm intenções quando se movimentam. A exposição de primatas ao movimento dos robôs não pode, nesse caso, ser considerada um experimento crucial para testar a hipótese de que neurônios espelho detectam intenções e não apenas movimentos. O pano de fundo da discussão continua o mesmo. O pressuposto de Rizzolatti e Gallese é que há correlatos neurais das intenções. Mas, como no caso da consciência, não sabemos se isso é verdadeiro. É possível que as intenções sejam apenas uma construção linguística que não possa ser mapeada no cérebro. Talvez seja por isso que quase sempre possamos atribuir interpretações tão diversas a um comportamento. III Muito antes da descoberta dos neurônios espelho, a neurociência já suscitava questões filosóficas. Uma delas era o tradicional confronto entre liberdade e determinismo. Será que nossos comportamentos são totalmente determinados pela bioquímicado cérebro ou haverá algum espaço para a decisão livre? Experimentos conduzidos por Benjamin Libet, na década de 1980, levaram neurocientistas e filósofos a questionar a existência do livre-arbítrio. Já se sabia que ocorria um pequeno intervalo de tempo entre a introdução de eletrodos no cérebro e sua detecção, em geral através de algum tipo de movimento muscular. Mas a descoberta de Libet foi que mudanças no cérebro ocorrem antes que as pessoas tomem a decisão de executar uma determinada ação. O relato da intenção de executar a ação é posterior à mudança detectável no cérebro. Essa mudança ocorre 350 milissegundos antes do relato da existência da intenção de executar a ação. Ou seja, o cérebro é ativado antes da intenção consciente de agir e tudo se passa como se essa intenção não fosse nada mais do que um subproduto da atividade cerebral. As consequências filosóficas da descoberta de Libet são discutidas até hoje. Há 21 quem sustente que ela seria uma prova de que nada mais somos do que nossos cérebros e que o livre-arbítrio não passaria de uma ilusão. A neurociência estaria dando uma resposta definitiva (e negativa) a uma questão filosófica milenar. Mas será que essa descoberta de Libet constitui, de fato, uma prova final contra a existência do livre-arbítrio? Ele mesmo nos diz que sua descoberta não constitui um ataque frontal à ideia de liberdade humana, pois, uma vez iniciada uma ação, existe sempre a possibilidade de refreá-la. Com isso, Libet ameniza uma conclusão radical em favor de um determinismo que nos tornaria apenas marionetes. Mas o que nos garante que a decisão de refrear uma ação não é ela também tomada pelo cérebro alguns milissegundos antes de sua execução? Até que seja provado que isso não ocorre, permanecemos na mesma situação, ou seja, executar ou refrear uma ação dependeriam unicamente de eventos cerebrais. A ideia de um “eu” que toma decisões seria suprimida. Suponhamos que realizemos o experimento de Libet convidando uma pessoa a erguer o braço. Se Libet estiver certo, haverá um evento cerebral 350 milissegundos antes de a pessoa comunicar a intenção de erguer o braço, mas a ação de erguer o braço pode ser descrita a partir de vários tipos de intenções. Uma mesma pessoa pode dizer que “queria erguer o braço” ou que “queria erguer a mão” ou que “ergueu o braço para que parassem com o experimento”. Contudo, essa variação na descrição das intenções que precedem uma mesma ação pode complicar a interpretação do experimento de Libet. Se a ação tem de ocorrer primeiro, para depois começar o relato da intenção que a causa, e se essa ação pode ser descrita como sendo causada por vários tipos de intenções, o que nos garantiria que o evento cerebral que a precede é, de fato, a intenção que está precedendo aquela ação? Não temos como ler e identificar uma intenção no cérebro, o que provaria a existência de uma ligação entre o relato da intenção e a ação que lhe corresponde. Até agora, não foi possível provar a existência de algum tipo de código cerebral no qual a intenção estivesse gravada. Uma das provas de que esse código pode não existir é que podemos sempre redescrever nossas ações como tendo sido causadas por vários tipos de intenções. Associar essa mudança cerebral antecedente com uma intenção de fazer algo é sempre uma reconstrução posterior feita pelo próprio agente, algo que ocorre depois que a ação já ocorreu. Ora, como associar tantas descrições possíveis a um único evento cerebral que teria ocorrido no córtex pré-frontal 350 milissegundos antes da ação ocorrer? A quantos relatos de intenções pode corresponder um único evento cerebral? Se Libet estivesse certo, e se houvesse um código cerebral no qual a intenção estivesse registrada, seria razoável esperar que houvesse um relato único sobre seu papel na determinação da ação. Esse parece ser o pressuposto da interpretação que Libet dá ao seu experimento. Ou seja, a existência de uma relação causal entre o evento cerebral, a ação e seu relato verbal subsequente. Essa relação causal seria determinística, ou seja, sempre que a intenção ocorresse, ela deveria ser seguida da 22 ação e de seu posterior relato verbal. Em outras palavras, Libet já pressupõe a existência de um tipo de determinismo entre intenção (evento cerebral relatado a posteriori) e ação. O determinismo é o pano de fundo na construção e interpretação de seu experimento, que, na verdade, acaba pressupondo aquilo que ele quer demonstrar. Nesse sentido, o experimento de Libet pouco contribui para o esclarecimento do debate filosófico que opõe livre-arbítrio e determinismo. As conclusões que ele quer extrair de seu experimento extrapolam o que ele efetivamente pode comprovar. Na verdade, seu experimento só nos permite concluir, no máximo, que podemos reconstruir uma história causal entre uma ação, o evento que a precede no cérebro e seu relato posterior. Reconstruir essa história causal não nos garante que possamos associar, de forma determinística, uma intenção, uma ação e um evento cerebral relatado em seguida. A relação causal pressuposta por Libet é peculiar, pois é sempre uma causação a posteriori. Não é possível ler no cérebro algo que está no futuro, pois podemos sempre variar a atribuição de intenções aos nossos atos a posteriori. Como fixar, então, a existência de um único evento cerebral que corresponde a uma determinada intenção? Como poderia haver várias intenções correspondendo a vários eventos cerebrais que ocorrem 350 milissegundos antes de um único relato? A única saída seria pressupor que a cada ação há uma única intenção correspondente gravada em algum lugar do cérebro, em algum tipo de código cerebral cuja existência teríamos de pressupor. A dificuldade que ocorre com Libet é, então, a mesma de Rizzolatti e Gallese com os neurônios espelho. Nem sempre os mesmos movimentos correspondem às mesmas intenções. Mas isso fica difícil de aceitar, pois eles acreditam que as intenções têm correlatos neurais, embora não discutam esse pressuposto. Tanto a descoberta de Libet como a de Rizzolatti e Gallese pressupõem a existência de um código cerebral no qual estariam gravadas nossas intenções, crenças e desejos. Essa ideia, que passou a ser disseminada na neurociência contemporânea, consiste em supor que, se esse código for desvendado, teremos a possibilidade, através de instrumentos de observação do cérebro, de saber o que outras pessoas estão pensando. Esse é o famoso mindreading, ou leitura de mentes, cuja possibilidade tem sido apregoada pela neurociência na mídia. A ideia central do mindreading é abrir a perspectiva de uma tradução do pensamento em termos de sinais elétricos dos neurônios. Se pudéssemos assumir um modelo simplificado de neurônio, haveria uma sequência de sinais que corresponderia a sua ativação ou desativação e poderia ser interpretada em termos de “0s” ou “1s” como o software de um supercomputador. O problema é que, mesmo que um dia isso fosse possível, uma sequência de “0s” e “1s” de um software pode sempre ser interpretada de várias maneiras. O software de um computador jogando uma partida de xadrez ou simulando a guerra do Iraque pode ter a mesma sequência 23 de “0s” e “1s”, ou seja, a chamada linguagem de máquina pode coincidir. A partir do exame da linguagem de máquina, não há como inferir com precisão o software que um computador está executando. (Essa é a versão computacional do problema do hiato explicativo. Se, a partir do cérebro, não podemos determinar o pensamento, do hardware não conseguimos chegar ao software.) O filósofo Daniel Dennett aponta que existem várias dificuldades envolvidas na ideia de um código cerebral. Seria ele único? Por que não poderiam existir vários códigos em um único cérebro? E se for possível decifrá-lo, poderemos também, algum dia, reescrever algumas de suas partes, interferindo diretamente no cérebro. Poderíamos, por exemplo, apagar lembranças e também enxertá-las. Seria possível, também, enxertar falsas lembranças, o que rapidamente levaria a paradoxos. Imagine, por exemplo,alguém que seja filho único, mas que, repentinamente, lhe seja enxertada a lembrança de que tem um irmão morando em Itajubá. Como seria possível conciliar esses dados contraditórios? É claro que o cérebro não tem um ritmo – nós é que interpretamos suas oscilações elétricas como se formassem uma linguagem ou uma sinfonia. Será que a matemática criada pelo cérebro é suficiente para descrevê-lo? Ou não será o cérebro mais complexo do que aquilo que ele produz? Continuando com as indagações, não podemos saber se a neuroimagem é o resultado da atividade de um cérebro ou da atividade de uma mente que o examina. Mas essas indagações não parecem ocorrer aos neurocientistas, e, por isso, a busca pelo código cerebral continua. Apoiados no entusiasmo recente com as técnicas de neuroimagem, muitos pesquisadores supõem que, um dia, seremos capazes de localizar precisamente o neurônio que dispara na cabeça de alguém quando essa pessoa pensa, por exemplo, em uma vaca amarela. Eles dirão que esse disparo elétrico do neurônio é a mesma coisa que a vaca amarela que essa pessoa imagina naquele momento. Com isso, pretendem ter resolvido o problema mente-cérebro, pois, nesse caso, os estados subjetivos teriam se tornado estados cerebrais. Não mais seria necessário supor a existência de uma mente; um cérebro bastaria. O problema mente-cérebro se dissolveria. Contudo, essas suposições dos neurocientistas parecem enfrentar alguns problemas que têm sido apontados pelos filósofos da mente. Ao examinarmos as áreas ativadas de um cérebro, podemos ter alguns palpites sobre o tipo de pensamento que ocorre à pessoa, mas só poderemos saber com certeza o que ela está pensando se ela nos contar. Para fazer a neuroimagem de alguma atividade mental minha, é preciso que eu conte sobre o que estarei pensando, ou que alguém, em algum momento, me diga sobre o que pensar, e isso terá sempre a forma de um relato subjetivo que precede o imageamento. Assim, nunca podemos nos livrar totalmente da mente, mesmo que seja para reduzi-la ao cérebro. É possível que levemos muito tempo até podermos construir um cerebroscópio de 24 verdade. Por enquanto, a “leitura de mentes” é quase sempre baseada em inferências que podem ser extraídas da observação do comportamento. Uma das técnicas é utilizar a neuroimagem para identificar as áreas cerebrais estimuladas que precedem a realização de um determinado comportamento. Ou seja, seria possível prever o comportamento a partir da identificação dessas áreas, e com isso estaríamos “lendo” as intenções que estariam ocorrendo no cérebro de uma pessoa. Mas o sucesso dessa estratégia é limitado, pois se baseia em uma estatística das ações que se seguem à ativação de certas regiões do cérebro. Contudo, nem sempre as ações que se seguem a certas ativações cerebrais são as mesmas. Na mesma linha de nossa objeção à interpretação do experimento de Libet, tampouco nesse caso podemos pressupor a existência de uma relação determinista entre eventos cerebrais e as ações que os sucedem. Da mesma maneira, já se tentou “ler” os sonhos de ratos através da comparação de certas áreas cerebrais que são ativadas enquanto eles dormem com aquelas que correspondem a algum tipo de comportamento, como, por exemplo, aprender a entrar e sair de um labirinto em um laboratório. Se essas áreas são ativadas durante o sono, tenta-se daí extrair a conclusão de que o animal está sonhando com o caminho que aprendeu a percorrer. Mas é possível que ele esteja apenas sonhando com uma caminhada em uma floresta, cujo percurso se assemelhe ao do labirinto. Não há como verificar essas suposições, pois nunca teremos acesso a relatos subjetivos de ratos. O que dispomos no momento é ainda uma aproximação. Muitos processos mentais em organismos com cérebros complexos se superpõem à ativação de uma mesma área cerebral, e essa tem sido a principal dificuldade do mindreading. Os capacetes de leitura de pensamento também estão ainda numa fase rudimentar. Eles não são verdadeiros tradutores da informação que está sendo processada no cérebro, mas apenas detectores das áreas cerebrais nas quais ocorrem impulsos elétricos mais acentuados. Esses impulsos podem ser detectados, ampliados e transformados em vários tipos de atividades como, por exemplo, escolher as teclas de um alfabeto em um teclado ou mover a direção de um carro. Essas são formas incipientes, porém interessantes, de interfaces entre cérebros e máquinas. O neurocientista brasileiro Miguel Nicolelis, atualmente pesquisador na Duke University, nos Estados Unidos, vem se dedicando ao estudo e desenvolvimento dessas interfaces entre cérebros e máquinas. Através de experimentos com as famosas macacas Belle e Aurora, ele mostrou ser possível detectar ondas cerebrais no córtex motor de animais para mover braços ou pernas mecânicas. A utilidade dessa pesquisa é poder, em um futuro próximo, usar essa neurotecnologia para, através da transmissão desses impulsos elétricos, permitir que paraplégicos voltem a mover partes paralisadas de seus corpos. O cérebro desses pacientes poderia se comunicar com os membros paralisados através de uma interface computacional que captaria os impulsos elétricos cerebrais e os retransmitiria ao membro paralisado, permitindo que ele se movesse novamente. 25 Em um primeiro momento, a ideia de Nicolelis era fazer com que as macacas movessem membros mecânicos, imitando o movimento de seus membros biológicos. Em seguida, era fazer com que uma das macacas transmitisse, através do rádio ou da internet, suas ondas elétricas cerebrais, de modo que elas pudessem mover corpos robóticos situados em um lugar remoto. Essas duas etapas do programa de pesquisa de Nicolelis foram realizadas com sucesso. Mas essa neurotecnologia ainda está incipiente e longe de ser algo parecido com uma autêntica leitura do pensamento. Entre a macaca Belle e seu braço mecânico, há um computador que interpreta os movimentos que correspondem às ondas cerebrais que ocorrem no animal quando ele deseja executar movimentos simples, como, por exemplo, pressionar uma barra de metal para obter algumas gotas de suco de laranja. Os neurochips (microeletrodos inseridos e cimentados no córtex) do cérebro de Belle, são apenas detectores de impulsos elétricos, e por isso, sem o computador previamente programado para interpretar os sinais, a macaca não saberia quais comandos transmitir para o braço mecânico. Ou seja, os neurochips por si só não interpretam a informação que circula pelo cérebro de Belle na forma de ondas cerebrais e que determina qual parte do corpo deve ser movida. No caso de Belle, foi estabelecida uma correspondência entre os impulsos elétricos que normalmente ocorrem quando alguns movimentos são executados. Essa informação passou a ser codificada e transmitida pelo computador que orienta, a partir de dados comportamentais previamente coletados e de estatísticas observadas, como os membros artificiais devem se mover. Em outras palavras, o impulso elétrico tem de ser previamente convertido em informação por um programador. Depois dos experimentos com Belle e Aurora, Nicolelis dedicou-se à tarefa de transmitir os impulsos elétricos cerebrais de outra macaca para um robô localizado remotamente, em outro lugar do planeta, o que consolidou mais uma etapa de seu programa de pesquisa. Ele conseguiu que sua macaca Idoya, em seu laboratório nos Estados Unidos, movimentasse as pernas de um robô no Japão. Mas, também nesse caso, foi necessária uma interface computacional entre as áreas nas quais ocorre o disparo de neurônios responsáveis pelo movimento e os membros artificiais do robô. O aperfeiçoamento progressivo dessas interfaces computacionais tem feito com que o repertório de movimentos que as ondas cerebrais das macacas de Nicolelis podem produzir nos seus braços e pernas artificiais fosse se tornando cada vez maior, contudo ainda limitado ao que o computador que serve de interface pode decodificar. O passo seguinte será usar essas interfaces computacionais para detectar as ondas cerebrais deum rato e utilizá-las para estimular regiões previamente escolhidas no cérebro de um outro. Com isso, seria possível ligar os cérebros dos dois animais, o que seria a primeira etapa de um projeto mais ambicioso de ligar vários cérebros entre si para que eles colaborem mutuamente na realização de algumas tarefas. Nicolelis chama a atenção para o fato de que é possível dissociar a detecção dos 26 impulsos elétricos dos cérebros de Belle e de Aurora da realização dos movimentos musculares aos quais eles correspondem. Nesse caso, teríamos dado um passo a mais na identificação das intenções motoras que precedem as ações das macacas, como se estivéssemos lendo suas mentes. Mas o contexto no qual foram realizados os experimentos com Belle e Aurora pode se tornar mais complicado. O estímulo de uma determinada área motora do cérebro não determina a produção de um único tipo de comportamento. Embora haja correspondência frequente entre a área do sistema motor ativada e um padrão de onda cerebral, a determinação do comportamento depende da informação que está contida nas ondas cerebrais. É possível que nem sempre a transdução entre impulso elétrico e comportamento seja unívoca. Ou será que a cada intenção corresponde um impulso elétrico diferente que poderia ser detectado? Haverá um impulso elétrico para levantar-me e outro para desejar abrir a porta? Ou apenas uma onda cerebral que me impulsiona até a porta para abri-la? Informação é algo físico, mas certamente é muito mais do que simplesmente impulso elétrico. Como ainda há um abismo entre a detecção de impulsos elétricos que resultam da ativação de neurônios e a tradução de informação processada pelo cérebro, é provável que esses capacetes e essas interfaces cérebro-máquina fiquem restritos à detecção da informação contida apenas em ondas cerebrais ligadas a comportamentos elementares. A identificação de impulsos elétricos ou de informações contidas em ondas cerebrais do que não pode ser expresso em termos de comportamentos observáveis provavelmente continuará inacessível aos instrumentos de observação do cérebro. Ainda estamos longe de uma autêntica leitura de pensamentos, mesmo que os casos de Belle e Aurora nos pareçam encorajadores. Isso significa que grande parte do pensamento humano, que é composto por proposições formatadas pela linguagem e que não se manifesta de forma observável, continuará de fora dos cerebroscópios que podemos construir hoje em dia. Pensamento é informação, mas ainda não sabemos como ela circula no cérebro, embora possamos detectar os impulsos elétricos que constituem sua base física. Mesmo assim, ainda é difícil prever até que ponto os cerebroscópios futuros poderão ser aperfeiçoados. Se um dia descobrirmos como o cérebro gera e processa informação, eles poderão se tornar poderosos instrumentos de invasão da privacidade, verdadeiras máquinas fantasmagóricas, típicas de um cenário cyberpunk. Pois, além de ler os pensamentos dos outros, eles também permitirão a inserção de novas informações na cabeça das pessoas para manipulá-las. Com o cerebroscópio, teríamos a consumação do projeto totalitário de algumas sociedades contemporâneas nas quais, já perdido o direito de falar, agora seria perdido o último que restou: a privacidade do pensamento. O aspecto privado do pensamento é uma das grandes marcas da subjetividade. A privacidade faz parte de experiências subjetivas que podem se tornar específicas e 27 incomunicáveis, como, por exemplo, a intensidade do sabor de um vinho ou a tonalidade de uma cor. Essas características da experiência subjetiva são chamadas, pelos filósofos da mente, de qualia. A neurociência ainda não sabe o que fazer com os qualia e até agora não conseguiu explicá-los. Tampouco se conseguiu, até agora, encontrar correlatos neurais para os qualia. A tentativa de incluir aspectos subjetivos na investigação neurocientífica para que ela adquira a abrangência de uma teoria da mente levou ao aparecimento de estratégias inovadoras, como é o caso da neurofenomenologia, proposta pelo cientista cognitivo Francisco Varela. A fenomenologia, como método filosófico, passa a ter um papel fundamental nessa perspectiva: ela serve para organizar a descrição da experiência subjetiva, para a qual se busca estabelecer um mapeamento cerebral através das técnicas de neuroimagem. O método fenomenológico vai poder nos dizer o que estamos mapeando, afastando-nos, assim, da vagueza habitual da linguagem e da autodescrição dos estados de consciência. É preciso treinar e refinar a introspecção antes de tentar mapear estados subjetivos, o que tem criado uma aliança crescente entre neurocientistas e fenomenólogos. Por exemplo, Jaak Panksepp, um dos fundadores da neurociência afetiva, tem afirmado que o método fenomenológico é fundamental para delimitar o tipo de emoções cujas bases neurais se quer investigar. A novidade da neurofenomenologia é a inclusão do discurso subjetivo, ou discurso em primeira pessoa, na investigação científica. Não se busca a redução ou eliminação dos estados subjetivos, mas uma aproximação entre as perspectivas internas e externas acerca do sujeito. De uma perspectiva externa, sei o que está acontecendo em sua mente/cérebro/consciência – sua base neurobiológica. Mas não sei nada acerca da manifestação desses fenômenos enquanto suas experiências. Nesse sentido, informação em primeira e em terceira pessoa podem ser vistas como sendo complementares, e não opostas. A natureza da mente é revelada por aquilo que aparece a partir de ambas as perspectivas; a mente não é física ou consciente, é ambas ao mesmo tempo, ou seja, psicofísica. A psicofísica estabelece a existência de uma correlação ou uma correspondência entre dois tipos de séries: uma constituída de eventos mentais e outra de eventos cerebrais. Ela é uma espécie de pedra de Roseta, uma peça famosa que hoje é guardada no Museu Britânico, em Londres. Nessa pedra, havia inscrições de um decreto real em línguas diferentes, e foi pela correlação entre elas que se tornou possível a decifração dos hieróglifos egípcios. A neurociência ainda busca sua pedra de Roseta para tentar estabelecer uma correlação mais precisa entre as séries de eventos mentais e cerebrais. Correlações podem significar muita coisa. Mas também podem não significar nada. “Toda vez que o lixeiro passa, o sol se levanta”. Essa é uma correlação que sempre ocorre no lugar onde moro. Certamente, ela não significa nada, muito menos uma relação causal entre o lixeiro e o amanhecer. 28 CONTINUAR A PENSAR Você acha que algum dia poderemos resolver o problema mente-cérebro? E se isso acontecer, quais serão suas consequências filosóficas, éticas e sociais? Se for provado que o livre-arbítrio não existe, como isso afetará nossa legislação futura? 29 O cérebro como problema filosófico O problema mais importante da filosofia da neurociência é: o que é o cérebro? O que o torna um objeto de estudo tão especial? Afinal, com o que estamos lidando ao falarmos de cérebros? Será que podemos esperar que algum dia a neurociência resolva o problema mente-cérebro? Mas como poderíamos supor, por exemplo, que mente e cérebro são a mesma coisa, se mal conhecemos as propriedades do cérebro? A resposta para essas questões está na quantidade, e não apenas na qualidade. O cérebro humano é incomensurável. É por isso que a neurociência ainda não tem uma teoria geral acerca de seu funcionamento, o que a impede, pelo menos por enquanto, de suplantar a psicologia, da mesma maneira que a química substituiu a alquimia. Existem alguns dados quantitativos acerca do cérebro humano que são sistematicamente ignorados nas discussões filosóficas envolvendo o problema mente- cérebro. Esses dados, se desvelados, podem causar muita perplexidade e influir de maneira decisiva nos debates que são travados hoje na filosofia da mente. Para alguns, o cérebro é apenas o órgão da mente. Mas se isso for verdade, ainda assim, é preciso notar que estamos lidando com um órgão muito peculiar. Temos tamanha quantidade de neurôniose de sinapses em nosso cérebro que isso torna seu estudo quase impossível. Calcula-se, por exemplo, que o número de sinapses seja parecido com o número de partículas existentes no universo desde o Big-Bang (cada um dos neurônios, cujo número chega a cem bilhões, ou seja, 1011, tem, em média, sete mil conexões sinápticas com outros). Por isso, não devemos nos sentir pequenos quando olhamos para o céu e para as estrelas. O cérebro tem a complexidade do universo condensada num espaço tão pequeno quanto a caixa craniana. Seu maior enigma é conter e estar contido no universo ao mesmo tempo. Até mesmo aqueles que acreditam que a neurociência desvendará todos os mistérios acerca do cérebro humano, como, por exemplo, o filósofo americano Paul Churchland, se impressionam diante desses fatos. Esses números astronômicos podem facilmente levar-nos a considerações insólitas. Se tomarmos uma decisão por minuto e ela depender da ativação de um neurônio, serão necessários trinta mil anos para que todos os neurônios que temos tenham sido ativados num processo decisório. Isso significa dizer que, muito provavelmente, temos neurônios que, ao longo de nossas vidas, nunca serão ativados, o que nos coloca uma questão intrigante: teremos, porventura, mais estados cerebrais do que estados mentais? E, se confirmado, teremos então uma razão preliminar para sustentar que todos estados mentais são estados cerebrais? Já houve quem dissesse, entre os filósofos da mente, que o problema mente- cérebro é insolúvel. O filósofo contemporâneo Colin McGinn e outros, chamados de “novos misterianos”, defendem esse ponto de vista. A ideia básica é que não é 30 possível para a mente compreender a si mesma. Para esses filósofos, o problema mente-cérebro é insolúvel porque o cérebro não é suficientemente poderoso para formular uma teoria que explique seu próprio funcionamento. É possível que nunca consigamos resolver um problema desse tipo. Há problemas insolúveis, e a questão da natureza da consciência seria um deles, pois supera as capacidades cognitivas humanas. Nessa linha de argumentação do inglês McGinn e outros misterianos, temos de lidar com dois tipos de possibilidades. De acordo com a primeira, a solução do problema estaria além dos limites da nossa razão. Não poderíamos resolver o problema mente-cérebro, da mesma maneira que um rato não poderia nunca resolver equações de segundo grau. Mas há um segundo argumento: a mente não poderia conhecer-se a si mesma, da mesma maneira que um microscópio não poderia enxergar a cor de seu próprio tubo, por mais poderoso que fosse. À mente faltaria um observador externo a ela mesma que pudesse validar proposições acerca de sua natureza. São argumentos diferentes que, no entanto, convergem para uma mesma conclusão. Mas não é nenhum desses pontos de vista que quero defender aqui. Sustento que o problema mente-cérebro é intratável. Se isso o torna também insolúvel, no sentido de McGinn, não vou discutir. Utilizo-me de um conceito da teoria da computação para iluminar um problema filosófico, numa típica abordagem da filosofia da mente na qual ciência e filosofia se mesclam. Insisto que são os aspectos quantitativos do problema mente-cérebro, os números do cérebro, que impedem sua solução. Para iniciar nossa jornada nessa direção, começamos por perguntar: o que podemos saber acerca de nosso próprio cérebro? Em outras palavras, estamos perguntando se o cérebro pode fornecer uma descrição completa de si mesmo, e se, a partir de tal descrição, poderemos desvendar se mente e cérebro são, de fato, a mesma coisa. Não se trata apenas de fazer boa neurociência: não queremos tão somente uma ciência do cérebro em que ele se apresente como objeto natural, numa proveta de laboratório. Mas queremos saber se dessa ciência poderemos derivar um saber sobre a subjetividade, um saber que possa nos fornecer um caminho do cerebral ao mental, para a tão desejada intersecção entre primeira e terceira pessoa, entre subjetividade e neurociência, ou seja, entre experiência vivida e descrição científica. O primeiro passo para tentar responder a essa indagação é certamente saber se podemos representar nosso próprio cérebro. Se não pudermos fazê-lo, como testaremos nossas hipóteses acerca do problema mente-cérebro? Pois, para testá-las, teremos de construir redes de neurônios artificiais que contenham, pelo menos, um número próximo ao de neurônios e sinapses que existem no cérebro humano – só assim poderíamos verificar se o mental emergiria dessas redes. E só assim estaríamos levando a sério o aspecto numérico dos neurônios e sinapses do cérebro humano, e não o ignorando através de um esquema ou mapa qualquer. 31 Assim sendo, não se trata de fazer uma figura e colori-la, como fazem as revistas. Por representação entendemos, aqui, nossa capacidade de figuração de um objeto geométrico cuja característica principal é a complexidade. Posso imaginar, posso conceber, posso simular. Concebo um polígono de mil lados, mas não poderia imaginá-lo. Esse é o quilógono de que nos falava Descartes nas suas Meditações de Filosofia Primeira. Ele dizia que só poderíamos concebê-lo, não poderíamos imaginá- lo. No entanto, podemos hoje representá-lo numa tela de computador. Mas será que o mesmo ocorre com nosso cérebro? Teremos meios para concebê- lo, imaginá-lo ou simulá-lo? Dada qualquer noção de complexidade que possamos vir a ter, se ela surge do cérebro, será tal noção capaz de representar a complexidade do próprio cérebro? Seremos capazes de construir replicações completas de nosso cérebro que simulem seu comportamento global? Como produzir uma representação realista de um cérebro? Trata-se, sem dúvida, de representar uma complexa máquina eletroquímica com formato e arquitetura específicos. Iniciar essa tarefa significa, numa primeira aproximação, sermos capazes de produzir representações de neurônios e representações de sinapses. Um determinado número de neurônios e de sinapses tem de ser acomodado dentro de uma determinada forma anatômica que conhecemos. Esse número tem de ser mantido para que se preserve a alta conectividade de onde se crê vir toda potencialidade do cérebro humano. Como vimos, o grande número de neurônios e sinapses a ser replicado é parte fundamental da hipótese daqueles que acreditam na possibilidade de reduzir o mental ao cerebral: o que não foi reduzido ainda o será, progressivamente, na medida em que pudermos gerar e conhecer circuitarias neurais cada vez mais complexas. Representar neurônios e sinapses significa gerar pontos no espaço e conexões entre esses pontos. E tal tarefa tem de ser realizada por um computador, pois as quantidades com as quais estamos lidando são astronômicas: estima-se que o número n de neurônios seja da ordem de 1012 ou 1013, e o número de sinapses, por volta de 1014 ou 1015; isso sem falar que o cálculo das conexões binárias eleva n a n2. Mas será que podemos apostar na existência de algum tipo de padrão que permita essa geração automática? Não se pode identificar um padrão estável entre as sinapses, sobretudo se levarmos em conta a alta plasticidade do cérebro. Encontramos aqui um problema que pode comprometer essa tarefa – ou seja, um problema que talvez não possa ser resolvido por um algoritmo ou programa de computador. Nesse caso, como poderíamos gerar uma representação do cérebro? Antes de tentar responder a essa pergunta, quero divagar um pouco. Existem algumas analogias interessantes na ciência da computação que podem ilustrar a ordem das dificuldades das quais estamos falando. Para gerar essa representação de que falamos, é preciso recobrir uma figura geométrica tridimensional que seria o cérebro. Mas mesmo se tomássemos como ponto de partida 32 uma figura bidimensional, já encontraríamos problemas. Por exemplo, não chegaremos nunca a uma única solução possível sobre o modo como um plano euclidiano pode ser recoberto por diferentes formas geométricas. Supondo que essas formas representam sinapses, nossa representação do cérebro estaria, mais uma vez,comprometida. Esse é o chamado problema do azulejo. Uma maneira simples de enunciar o problema do azulejo é afirmar que haverá sempre várias maneiras de arrumar a mesma carga na carroceria de um caminhão e que um computador não poderia saber quantas são possíveis nem qual seria a melhor. Em outras palavras, o problema do azulejo emerge de uma demonstração matemática de que não existe um procedimento algorítmico (um programa de computador) que possa nos informar de quantas maneiras uma determinada área pode ou não ser inteiramente recoberta por figuras geométricas regulares. Podemos combinar essas figuras (azulejos) e verificar se uma área pode ser recoberta. Fazemos isso intuitivamente. Mas nenhum computador é capaz de calcular quantas combinações possíveis dessas figuras geométricas podem, em princípio, recobrir uma área qualquer. No caso dos problemas colocados por áreas muito grandes ou específicas, saber quais e quantas combinações poderiam recobri-las escapa, também, do nosso conhecimento intuitivo. No caso do cérebro, isso significa que não temos como saber quantas combinações geométricas possíveis entre neurônios poderiam recobrir sua área, mesmo assumindo que eles pudessem ser uma figura geométrica regular, concebida a partir de uma estilização. Tampouco nenhum programa de computador poderia nos dizer isso. O número de combinações possíveis não é computável. Em outras palavras, não saberemos quais combinações de neurônios no espaço poderiam recobrir o cérebro. Ou seja, não há, em princípio, como calcular quais configurações possíveis de cérebros são concebíveis. Não há um ponto de partida para uma descrição matemática do cérebro. Outra analogia interessante entre cérebros e conceitos da teoria da computação seria com o tradicional problema do caixeiro-viajante. Um caixeiro tem de sair de uma cidade e percorrer um dado número de outras, digamos, cem, sem repetir caminhos. O problema tem de ser resolvido por um programa de computador que, entretanto, começa a encontrar tantas soluções possíveis que entra em explosão combinatorial. Ora, não poderia ocorrer o mesmo se, em vez de pensarmos em caminhos, pensássemos em sinapses ligando neurônios e quiséssemos elaborar um programa para ligá-los? Será que esse programa também não entraria em explosão combinatorial? Hoje em dia, já existem programas de computador que podem fornecer soluções para o problema do caixeiro-viajante se o número de cidades envolvidas não for muito grande. Certamente, esse não seria o caso do cérebro, em que há bilhões de neurônios cujas conexões precisamos representar. Contudo, no cérebro não ocorre 33 uma situação semelhante à do caixeiro, que tem de evitar repetir caminhos. No cérebro, existem redes neurais recorrentes, ou seja, que nos devolvem ao mesmo ponto de partida, formando circuitos em loop. Há também muitas redes que são redundantes. Tudo se passa como se estivéssemos diante de uma rede neural cuja complexidade se tornou incompreensível até mesmo para seus programadores. O relojoeiro cego da evolução mais parece, no caso do cérebro, ter agido com base na improvisação. O resultado é o que os cientistas da computação chamam de kludge, um outro nome para o que chamamos de gambiarra. Nesse cenário, fica praticamente impossível imaginar que as conexões entre neurônios obedeçam a algum tipo de padrão que possa ser reproduzido por um programa de computador. A ausência de padrões de conexão sináptica é um grande obstáculo para elaborar modelos do cérebro. Que geometria devemos usar para descrevê-lo? Certamente, a mais indicada é a geometria fractal. Com uma geometria poderosa desse tipo, podemos descrever figuras completamente irregulares, como, por exemplo, uma costa marítima. Mas até uma geometria fractal precisa de um padrão, o chamado padrão de autossimilaridade, a partir do qual seja possível compor figuras irregulares. Qual será esse padrão? O neurônio ou algum comprimento sináptico específico? Mesmo adotando um modelo mais simplificado do cérebro no qual tivéssemos um padrão de conexão sináptica que pudesse ser simulado por um programa de computador, há ainda outra complicação mais séria que surge por causa do tempo envolvido na execução do programa que geraria essa representação. Um programa significa um algoritmo, ou seja, um processo que é executado passo a passo. Ele envolve um número de passos e um tempo para que eles sejam executados. Ocorre que, no caso desse programa para gerar uma representação do cérebro, o tempo envolvido para a execução de tantos – e tantos! – passos torna-se problemático. Isso nos leva para um outro terreno, o da chamada teoria da complexidade computacional – uma teoria que lida com questões práticas relativas à velocidade e eficiência da realização de procedimentos algorítmicos na solução de problemas. A teoria da complexidade computacional parte da ideia de que podemos dividir (grosso modo) os problemas computacionais em duas classes, a dos chamados problemas tratáveis e a dos problemas intratáveis. Essa classificação baseia-se no número de passos e, consequentemente, no tempo requerido para a execução do algoritmo num computador. Problemas intratáveis são aqueles que comportam uma solução algorítmica, porém, o tempo envolvido para a execução do algoritmo torna-o ineficiente. Se pensarmos na ordem das grandezas envolvidas, esse seria, certamente, o caso da representação de conexões sinápticas se pensarmos na ordem das grandezas envolvidas. Quanto tempo levaria um supercomputador para gerar uma representação completa do cérebro humano com um número n de sinapses equivalente a 1015 além do cálculo das conexões binárias que eleva n a n2? 34 Certamente, temos esperança de que a velocidade de nossos computadores aumentará muito em um futuro próximo, por causa da invenção de novos hardwares e novos estilos de computação, como é o caso, por exemplo, da computação quântica. Mas até que ponto poderemos avançar? Trabalhos pioneiros na área de teoria da complexidade desenvolvidos na década de 1970 por H. J. Bremermann mostram que há limites físicos na arquitetura de computadores de qualquer tipo e que tais limites físicos condicionam o tempo consumido por essas máquinas, não importando o nível de aperfeiçoamento do hardware. De acordo com Bremermann, há um limite fundamental para a velocidade dos computadores que não pode ser ultrapassado. Tal limite fundamental deriva-se da ideia de que a velocidade máxima de transmissão de sinal entre os componentes internos de um computador é limitada pela velocidade da luz, ou seja, 3.108 m/segundo. O tempo de propagação ou intervalo de transmissão de sinal entre os componentes internos do computador é determinado pela distância na qual se situam tais componentes. Mesmo se supusermos a possibilidade tecnológica de construir um computador muito pequeno para minimizar e otimizar a trajetória de transmissão de sinal, tal limite fundamental não pode, em princípio, ser ultrapassado, a não ser que provemos a possibilidade de computar em tempo superluminal e descartemos a velocidade da luz como uma constante que não possa ser fisicamente superada. Já foi cogitada a existência de partículas que viajariam a uma velocidade ligeiramente maior do que a da luz, os neutrinos. Mas a diferença, se existir, é ínfima, e essa anomalia não é suficiente para abalar o modelo padrão de partículas, o que não permite afirmar com certeza a existência de velocidades superluminares no universo. Contudo, mesmo com hardwares muito poderosos, com um tempo de comutação praticamente nulo, haveria problemas cuja complexidade pode ser dita transcomputável. Um problema transcomputável é um problema intratável, cujo procedimento algorítmico de solução não pode ser obtido em tempo eficiente, a despeito de qualquer aperfeiçoamento do hardware do computador utilizado. O intervalo de tempo requerido para executar alguns algoritmos transcomputáveis pode ser tão longo quanto a própria idade do universo. Não seria esse o caso do cérebro, cujo número de sinapses equivale ao
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