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2 SUMÁRIO Capa Rosto PREFÁCIO DE RITANNA ARMENI ISABEL — Epifania de um encontro PETRONILA — A filha de São Pedro CECÍLIA — A santa dos músicos INÊS — A jovem e o estrangeiro CATARINA DE ALEXANDRIA — Leite, roda e livro MARTINA — Os dias do melro ÁGATA — O milagre do véu LUZIA — Vestes brancas e velas CLOTILDE — Converter os maridos CLARA DE ASSIS — Carta a Francisco ROSA — A pregadora perdida ISABEL — Uma rainha de paz BRÍGIDA — As palavras coloridas CATARINA DE SENA — Uma mulher “feita fogo” RITA — O voo milagroso FRANCISCA ROMANA — A tela terminada JOANA D’ARC — A primogênita da Igreja TERESA DE ÁVILA — Uma ferida no coração MADALENA DE CANOSSA — A gerente espiritual FRANCISCA CABRINI — A coragem de desbravar BAKHITA — A teóloga da humildade TERESA DE LISIEUX — A menina que implorou ao Papa TERESA BENEDITA DA CRUZ — A judia cristã AUTORES Coleção Ficha Catalográfica 3 kindle:embed:0008?mime=image/jpg N PREFÁCIO Ritanna Armeni as páginas que se seguem, o leitor encontrará os perfis de mais de vinte santas, publicados em “Donne Chiesa Mondo” [Mulheres Igreja Mundo], encarte mensal de L’Osservatore Romano. Estudiosos e estudiosas, escritoras e escritores, historiadores e historiadoras, jornalistas, fiéis e leigos, todos nomes de inquestionável prestígio, narram a vida de uma santa com a qual tiveram um relacionamento especial de conhecimento, de fé, de estudo. Os perfis colocam em realce suas diferenças e particularidades, sua relação especial com a fé. Daí emerge um afresco extraordinário e inesperado. Esses retratos, livres no estilo, nos tons e na escritura, rompem, de fato, muitos dos lugares- comuns que afligiram a história das mulheres — e, portanto, também das santas —, colocando-as novamente como protagonistas na história da Igreja e retificando alguma injustiça praticada contra elas, a começar pelo reconhecimento de sua vulnerabilidade. Com efeito, os casos de santidade feminina, embora numerosos — ultrapassam os 1.500, mais do que o calendário pode conter —, são, no entanto, uma minoria em relação aos mais de 9.000 casos de santidade masculina. É quase certo que, durante muito tempo, a santidade feminina tenha sentido a força negativa do estereótipo: apareceu ligada a uma função de serviço, ainda que sublime, a uma obediência carente de consciência, a uma abnegação absoluta e natural. Ou somente à concretitude do relacionamento com os corpos, ao trabalho humilde e cotidiano. Narrando as santas, frequentemente se valorizaram qualidades e virtudes importantes, descartando-se outras, igualmente importantes, e certamente presentes em sua vida e em seu caráter, como a coragem, a sabedoria, a liberdade. Os retratos aqui publicados dão uma guinada, mostram rostos inéditos, trazem à luz aquelas virtudes que até agora não têm sido completamente visíveis. As santas já não aparecem — como muitas vezes se quis apresentar — quais protagonistas de um mundo antigo, representantes de virtudes incapazes de convencer o mundo de hoje, mas como intérpretes importantes da modernidade. De maneira poderosa, manifesta-se sua sabedoria, sua capacidade de dar à Igreja amor e intelecto, de estimular a renovação da doutrina, de criar novas modalidades de expressão da fé. Nesses perfis aflora uma sabedoria diferente que, de resto, a Igreja reconheceu, dando a quatro dentre elas o título raro e solene de “doutoras”: Teresa de Lisieux, a quem João Paulo II reconheceu “a ciência de um amor divino”; Hildegarda de Bingen, que — disse Bento XVI 4 —, “em sua vontade de pertença total ao Senhor, sabe envolver seus dotes humanos incomuns, sua aguda inteligência e sua capacidade de penetração nas realidades celestes”; Teresa de Ávila, cuja doutrina — afirmou Paulo VI — “resplandece dos carismas da verdade, da conformidade com a fé católica, da utilidade para a erudição das almas”; Catarina de Sena, cuja “sabedoria infusa, ou seja, a lúcida, profunda e inebriante assimilação das verdades divinas e dos mistérios da fé contidos nos livros sagrados do Antigo e do Novo Testamento” , o mesmo Paulo VI elogiou. Ao lado delas, encontramos a sabedoria simples de Isabel, mulher comum e extraordinária, a quem, em idade tardia, foi dada uma gravidez e que, consciente da graça recebida e cheia de gratidão, afastou-se do mundo para melhor acolhê-la. Mulheres cultas, mulheres sábias, portanto, mas também mulheres livres. De uma liberdade especialíssima, que não padece condicionamentos, porque expressão direta da vontade divina, e que, por conseguinte, supera os lugares-comuns, é capaz de grandes batalhas e é vivida frequentemente de modo potente e grandioso. Expressão plena dessa liberdade é Clara, que, desagregando os poderes e as hierarquias, pretendeu ser pobre, embateu-se contra a Igreja corrupta, sem deixar um instante sequer de pertencer-lhe, e construiu para sua fé um caminho autônomo que até mesmo os pontífices tiveram de reconhecer. Como muitas protagonistas deste livro, não se deixou impor obediência — quando muito a escolheu —, voltou aos princípios do Evangelho mesmo ao preço de confrontar-se com a hierarquia. Clara tem coragem, mas não é uma exceção. Muitas santas mostram em sua vida e em sua fé uma audácia insuspeitada em mulheres jovens e humildes, em monjas muitas vezes de origem social modesta. Exemplo disso é Joana d’Arc, a moça guerreira que soube ir além do destino reservado a uma mulher, capaz de exercitar sua liberdade em grandes empreendimentos e de vivê-la de modo tão extremo a ponto de entrar, filha da Igreja, na mitologia de toda uma nação. Bakhita, a santa africana cuja coragem na escravidão tem algo de sobrenatural, é igualmente exemplo de extraordinária ousadia; ou Rosa, que ninguém conseguiu deter em sua pregação pelas ruas de Viterbo contra o imperador e o desvio herético. Por fim, é peculiar a muitas dessas figuras a autonomia, a menos reconhecida das qualidades da santidade feminina, que, no entanto, numa leitura da vida delas não condicionada pelo preconceito, aparece forte e indiscutível. A fé que elas vivem não se ajusta mecanicamente aos modelos dominantes, muito menos quando estes se identificam com o poder. As santas permanecem estranhas a ele; sua fé é quase sempre fundada sobre um distanciamento; a compreensão jamais é desligada da inteligência e da crítica. Santa Catarina ajuda a Igreja, mas compreende plenamente os erros desta e os condena. Quer tornar-se “outro Cristo através da união com ele no 5 Amor”. Com frequência, por fim, foi elogiada a humildade dessas mulheres que se tornaram santas. Contudo, não se realçou que não temeram o escândalo que, a miúdo, a santidade delas provocou. E não se deu o devido relevo ao fato de que muitas foram precursoras: Martinha praticou a acolhida cristã antes de Francisco. De igual modo, não foi valorizado completamente o extraordinário poder espiritual que exerceram sobre quem nelas acreditou. Rita tem tal poder a ponto de tornar-se “santa das causas impossíveis”. Ela tem poder também onde tudo falha. Coragem, liberdade, autonomia são virtudes modernas que as mulheres de hoje buscam praticar em uma síntese difícil, mas não impossível, como o amor, o cuidado, a alegria de serem elas mesmas. Não admira que, nestes últimos anos, as biografias, os romances e até mesmo os livros infantis a respeito das histórias das santas tenham retornado às estantes das livrarias; que um mundo intelectual católico e leigo as tenha redescoberto e, acima de tudo, esteja relendo a vida delas de modo diferente. Tampouco causa espanto que muitas santas tenham se tornado modelo até mesmo para os não crentes que nelas reencontram a capacidade de viver uma existência completa, livre dos pesos dos hábitos e das escravidões pessoais. A coletânea que apresentamos neste livro assume, por fim, uma importância especial hoje, no momento em que a Igreja de Francisco pretende valorizar o papel feminino. A Igreja é “feminina”, disse o pontífice num de seus primeiros pronunciamentos, e acrescentou que “uma Igreja sem as mulheres é como oColégio Apostólico sem Maria”, e que o papel da mulher na Igreja “não é apenas a maternidade”. A mulher, com efeito, não é somente “a mãe de família” e não é nem mesmo “a arquiteta, a presidente da Caritas”. É aquela que ajuda a Igreja “a crescer”. Disso decorre a necessidade, muitas vezes reiterada, de prosseguir, de uma “teologia da mulher”, de uma revisitação da doutrina, da fé, da ciência de Deus à luz dos versículos do Gênesis: “Deus criou o homem à sua imagem, à imagem de Deus ele o criou, homem e mulher ele os criou” (Gn 1,27). Se para a Igreja de Francisco Deus exprime-se também através da mulher, do seu ser, de sua identidade e de sua diversidade, a vida das santas e sua releitura adquirem novo sentido, nova relevância, nova luz. Podem ser, mais do que no passado, modelos de uma fé mansa e triunfante, que sabe ensimesmar-se com a modernidade e, ao mesmo tempo, transcendê-la e melhorá-la. 6 Elisabetta Rasy 7 E ISABEL Epifania de um encontro m 1995, um artista nova-iorquino de pouco mais de quarenta anos, Bill Viola, considerado o mestre de uma nova arte que estava conquistando os museus do mundo, a videoarte, apresentou uma série de cinco obras intitulada Buried Secrets [Segredos enterrados], que lhe garantiram, após o reconhecimento internacional, sucesso e prestígio também na Itália. De modo especial, uma obra surpreendente: The Greeting [A saudação]. Nesta, três figuras femininas em descontraídas vestimentas hodiernas, um pouco casuais e um pouco étnicas (saias longas, blusas e xales coloridos), davam nova vida a uma imagem da arte e da história sagrada que atravessou os séculos: a Visitação. A fonte direta era a belíssima e célebre pintura que dedicou a esse motivo o mais criativo dos maneiristas, Jacopo da Pontormo, na prepositura dos santos Miguel e Francisco, em Carmignano, mas também Giotto, da capela dos Scrovegni, não estava longe. Nesse vídeo, Bill Viola desenvolve numa ação a epifania do encontro entre Maria e sua prima Isabel, do qual o pintor do século XVI colhera a intensidade do instante: num tempo dilatado por um lentear que transforma todo movimento, gesto e olhar em ocasião de meditação, sob os olhos de uma terceira figura feminina — a testemunha que encarna cada um de nós —, duas mulheres, uma jovem e uma mais avançada em anos, se encontram. A mãe de João Batista, uma figura fundamental, mas humilde e secreta, a respeito da qual somente o Evangelho de Lucas nos conta, depois de ter atraído o olhar dos artistas de todos os tempos, volta, portanto, na tecnologia expressiva da mais recente modernidade com o mesmo páthos, pleno de significado. Não há muitas notícias a respeito dela: Elisheba, esposa do sacerdote Zacarias, era parente de Nossa Senhora, talvez por parte materna. A cidade de Judá, onde acontece o encontro, foi identificada pela tradição com Ain Karim, onde, no alto de uma montanha, diante do vilarejo, surge o santuário da Visitação. Mas o essencial dessa santa cheia de poder e de mistério é contado por Lucas em poucas palavras. De fato, desde a primeira página de seu Evangelho, Isabel impõe-se ao leitor com sua história de mulher comum e ao mesmo tempo extraordinária. Chegamos a saber que ela e seu marido eram “justos diante de Deus e, de modo irrepreensível, seguiam todos os mandamentos e estatutos do Senhor” (Lc 1,6). No entanto, logo ficamos sabendo também que não eram felizes, porque “Isabel era estéril e os dois eram de idade avançada” (Lc 1,7). Ademais, Isabel não só não tivera a alegria da maternidade, mas também envergonhava-se de sua esterilidade. Zacarias também devia ter uma raiva sóbria dentro de si, um tormento que lhe obscurecia o coração, pois não 8 acreditou no anjo Gabriel, que lhe anunciara a futura paternidade: “Sou velho, e minha esposa é de idade avançada” (Lc 1,18), disse-lhe desconfiado perante o anúncio divino. Não podemos deixar de sentir a dor humana dessa resposta: é a voz da velhice, a idade em que às vezes tudo parece perdido. Devido à sua desconfiança, o homem fica mudo, mas no relato evangélico, onde cada coisa é manifestação divina mas, ao mesmo tempo, extraordinariamente humana e extremamente próxima de nós, também Isabel, quando se dá conta de que está grávida, fecha-se num silêncio reservado, embora sabendo reconhecer a obra do Criador: “Isto fez por mim o Senhor, quando se dignou retirar o meu opróbio perante os homens!” (Lc 1,25). Não quer vangloriar-se daquela gravidez concedida pelo céu, mas dela fazer uma oportunidade de recolhimento: Isabel afasta-se por cinco meses dos olhos do mundo. Foi mais perspicaz do que o marido em reconhecer a graça recebida, mas seu comportamento é também o de uma mulher qualquer, de idade avançada, suficientemente sábia para não se gabar e para saber cultivar com discrição a alegria. Agora é que, no Evangelho de Lucas, enquanto a prima anciã está oculta, acontece o Anúncio a Maria. A fim de dissipar seu estupor, o anjo, quase como numa confidência afetuosa, conta-lhe a respeito da gravidez de Isabel. Imediatamente Maria põe-se em viagem para ficar junto dela, e dá-se o encontro entre as duas na casa para onde a mais velha se havia retirado, a visita a que chamamos “Visitação”, e que na Igreja oriental é chamada também de Aspasmos, saudação, como no vídeo de Bill Viola. E é aqui, no encontro entre as duas, que a fisionomia da santidade de Isabel se delineia, porque ela nos vem ao encontro mediante as páginas de Lucas como santa do pensamento que se faz palavra. Enquanto o menino que ela espera lhe salta no ventre, ela se dirige a Maria com a célebre frase: “Bendita és tu entre as mulheres” (Lc 1,42). Por conseguinte, ela é símbolo da ajuda entre mulheres, da solidariedade e da confiança feminina, mas é também aquela que pensa (compreendeu que foi Deus quem lhe concedeu o dom da fertilidade), que decide (decidiu retirar-se do mundo) e que fala, e fala para anunciar a salvação. É a primeira santa da palavra feminina autorizada. E falando com autoridade, cede o lugar à palavra de Maria, que lhe responde com a belíssima oração do Magnificat. Não é apenas um encontro entre duas primas, mas também um colóquio, um colóquio de importância fundamental. Os artistas compreenderam-no, compreenderam o significado sagrado e humano desse relacionamento peculiar entre mulheres. Na densa iconografia da Visitação, desde os mais antigos mosaicos até Luca della Robbia, de Raffaello a Mantegna, vislumbra-se a percepção do sentido profundo daquela expansividade respeitosa e afetuosa da mais velha entre as duas como expansão do Espírito e, concomitantemente, da inteligência feminina do mundo. Mas naquilo que Lucas nos narra com entusiasmo e precisão e que magnetizou a sensibilidade de tanta pintura através dos séculos, ainda existe 9 algo mais: a imagem que se torna ícone sagrado, de um inédito protagonismo feminino, na história da salvação e na história da humanidade. 10 Giovanni Maria Vian 11 U PETRONILA A filha de São Pedro ma missa, um quadro e um misterioso afresco: eis o que resta de Petronila. A cada ano, no dia 31 de maio, na basílica vaticana, celebra-se a missa em honra da santa, no dia e no altar dedicados à memória da filha do apóstolo Pedro, diante da grande reprodução, em mosaico, da tela de Guercino que representa sua sepultura e sua glória. Mas a celebração e a enorme pintura do século XVII são apenas o ponto de chegada de uma história intrincada e de quase vinte séculos de duração. No início, há o aceno à mulher de Cefas numa carta autêntica de Paulo (1Cor 9,5) e um famoso episódio evangélico, a saber, quando Jesus cura da febre a sogra do primeiro dos apóstolos (Mt 8,14-15). A essas magras informações históricas sobrepõe- se, mais tarde, em meados do século IV, um dado igualmente seguro: a imagem de uma mártir, Petronila, retratada num afresco na catacumba romana de Domitila. Pedro, portanto, era casado, e, apesar de nos textos do Novo Testamento não haver alusão a sua descendência, nada impede de pensar que realmente tenha tido uma. Ao contrário, sua filha entraabertamente em cena, embora anônima, mais tarde, no fragmento copto (século IV ou V), pertencente a um texto apócrifo grego, os Atos de Pedro, escritos por volta do fim do século II. “Por que não socorreste tua filha, virgem, que cresceu bela e acreditou no nome do Senhor? Vê, ela tem um lado completamente paralisado e jaz ali num canto, impotente. Vemos aqueles que curaste, ao passo que não concedeste nenhuma cura à tua filha”, diz a multidão ao apóstolo, quase a repreendê-lo. A partir daqui, o relato assume um andamento dramático: a fim de demonstrar que Deus tudo pode, Pedro obtém a cura da menina, mas somente por um instante; imediatamente depois, ordena-lhe voltar ao estado precedente. Posteriormente, diante do pranto e das súplicas dos presentes, explica que a filha ficara paralisada justamente em resposta às suas orações, depois de ter sido raptada pelo riquíssimo Ptolomeu, que, por fim, restituiu-a aos pais. “Trouxemo-la de volta, louvando o Senhor que havia poupado sua serva da violência, do opróbrio e da corrupção. Eis por que a menina se encontra em tal estado”, conclui o apóstolo. O pretendente rico arrepende-se e, morrendo, deixa em testamento um terreno para a jovem: Pedro vende-o, mas, sem reter nada para si ou para a filha, distribui a renda aos pobres. Texto de origem gnóstica, os Atos de Pedro mostram no episódio uma concepção negativa e, consequentemente, uma desvalorização radical do corpo, da dimensão sexual e do matrimônio. Tendência acentuada na alusão ao mesmo episódio em outro apócrifo gnóstico, os Atos de Filipe, escrito em grego e que remonta ao início do século IV: “Pedro, o chefe, por essa razão 12 fugia de todo lugar onde se encontrava uma mulher. Além do mais, ficou escandalizado por causa de sua filha, que era muito bonita. Portanto, rogou ao Senhor, e ela ficou paralisada de um lado, de modo a não ser seduzida”. No século VI, tem-se uma correção em sentido ortodoxo da lenda gnóstica, quando na Paixão de São Nereu e de Santo Aquiles aparece o nome de Petronila (que, por assonância, lembra o de Pedro), curada pelo pai e, em seguida, suposta esposa do pagão Flaco, mas que morre depois de três dias, evitando núpcias indesejadas. Na segunda metade do século XIII, essa última versão foi inserida e enormemente difundida pela Legenda áurea do dominicano Iacopo da Varazze: a paralisia, porém, é enfraquecida em febre, enquanto a menina é perfeitamente curada por Pedro, para depois escapar à coação ao matrimônio com a morte. Daí a iconografia, até a pintura de Guercino. Filha que morre sem deixar descendência, na Antiguidade tardia, Petonila sublinha com sua história a rejeição de toda pretensão dinástica na sucessão ao apóstolo, justamente enquanto severas disposições proíbem a designação do sucessor por parte do bispo de Roma em exercício. Entrementes, a presença da sepultura de uma Petronila “filha dulcíssima” no cemitério de Domitila sugere a identificação com a do apóstolo e a denominação de uma basílica vizinha. Em contrapartida, parece permanecer ignorado o afresco que na mesma catacumba representa uma jovem cristã mártir, Petronila, que introduz no paraíso outra mulher, Veneranda. O tempo passa, e em meados do século VIII, para apoiar simbolicamente a aliança estratégica com os soberanos francos, o sarcófago de Petronila é transferido para a basílica mandada construir por Constantino sobre o sepulcro do apóstolo, num pequeno mausoléu teodosiano, que se torna lugar de culto dos novos protetores da sé romana. Assim, desde então, a “filha primogênita da Igreja” aproxima-se da filha de São Pedro. Com efeito, um cardeal francês é que pagará a um juveníssimo escultor florentino, Michelangelo Buonarroti, por uma admirável Pietà, que é colocada na antiquíssima capela, em seguida demolida. Mas a nova basílica hospedará, à direita do altar berniniano da Cátedra, o altar em honra de Santa Petronila. E se a modernidade parece opor-se à ligação com a França, são justamente seus embaixadores junto à sé apostólica, desde Chateaubriand até os representantes da República, sem distinção, que a mantêm viva, até a restauração da missa anual, em meados do século XX, em honra de uma menina misteriosa, mas da qual permanece, com certeza, o testemunho cristão nas pegadas de Pedro. 13 Alberto Batisti 14 N CECÍLIA A santa dos músicos o dia 22 de novembro de 1913, nasceu em Lowestoft, Suffolk, Benjamin Britten. Ter nascido no dia de Santa Cecília fazia dele um predestinado, e não somente para a vocação à música, de resto, manifestada com excepcional precocidade. O maior compositor inglês do século XX, vindo ao mundo justamente naquele dia consagrado à santa dos músicos, coroava uma tradição inteiramente britânica de culto ceciliano, começada no século XVIII. Corria o ano de 1683 quando um círculo de entendidos, reunidos na Musical Society, fez nascer o primeiro festival dedicado à santa, celebrado solenemente no dia 22 de novembro, com a encomenda de textos poéticos e musicais que logo tiveram a ilustre contribuição de artistas como John Dryden e Henry Purcell. Da Song for St. Cecilia’s Day [Canção para o dia de Santa Cecília], escrita em 1687 por Dryden, o irlandês Nicholas Brady extraiu o texto de uma ode que Purcell musicou em 1692 e que se encontra entre as obras-primas absolutas da música inglesa do século XVII. Estando em curso a Guerra de Sucessão Espanhola, a partir de 1703, a tradição dos festivais cicilianos se interrompe para, em seguida, readquirir vigor incomum graças a Georg Friedrich Haendel, que, em 1736, retomou outro texto de Dryden dedicado à santa, a ode Alexander’s Feast or The Power of Music [O banquete de Alexandre ou O poder da música]. Naqueles versículos, Dryden narrava como, durante um magnífico convite de Alexandre Magno para festejar a vitória sobre os persas, o músico Timóteo provocava, com seu canto, as mais diversas reações no ânimo do grande líder, movendo-o ora à exaltação bélica, ora ao pranto, graças ao poder psicológico das diversas escalas empregadas na entonação. Repentinamente, no auge da demonstração, o poder da música alcança o mais elevado de seus objetivos à medida que o papel de Timóteo é realçado pessoalmente por Santa Cecília, que se manifesta anunciada por um som de órgão que encarna o etos musical mais sublime, o místico da música sacra. O tema é examinado novamente por Haendel em 1739, com outra Ode for St. Cecilia’s Day [Ode para o dia de Santa Cecília], sempre sobre versos do final do século XVII, de Dryden, uma vez mais compostos como ilustração do poder metafísico da música, símbolo da harmonia universal que, com a força do som, organiza o caos dos átomos até que outro som, o da trombeta do Juízo, novamente os dissolverá. O mito ceciliano, na interpretação poética de Dryden, retomada por Haendel, assumia o significado moderno de uma exaltação da poética dos afetos, ligada à afirmação do sistema tonal, que precisamente naqueles anos alcançou sua codificação definitiva com o Traité de l’harmonie réduite à ses 15 principes naturels [Tratado da harmonia reduzida a seus princípios naturais], de Rameau, e à demonstração prática com o cravo bem temperado de Bach. Com efeito, a harmonia moderna, com sua sutil capacidade de restituição psicológica, renovava o poder dos etos gregos ligados à música. Certamente é devido a esse significado de refinada simbologia estética que, em 1790, Mozart retomou as duas partituras cecilianas de Haendel e lhes deu uma nova versão orquestral, adaptando-as ao gosto sinfônico de seu tempo e, simultaneamente, elevando-as à autoridade exemplar do moderno classicismo musical. Depois das celebrações litúrgico-musicais que jamais faltaram ao longo dos séculos, depois das homenagens devocionais do barroco católico (do qual as partituras oratórias de Charpentier e Scarlatti são os vértices extraordinários), Santa Cecília voltava a exprimir o primado da música na Viena laica e maçônica de José II. A segunda metade do século XIX, em contrapartida, colocará sob a imagem de Santa Cecília um movimentode redescoberta e de exaltação da pureza polifônica palestriniana. A edição completa da obra do Prenestino,[1] organizada por Haberl, consagrou o mito do príncipe da música católica com um monumento editorial aere perennius [mais duradouro que o bronze]. Por outro lado, foi justamente o maestro romano que colocou sob a proteção de Santa Cecília aquela “Companhia dos músicos” que estava perigosamente questionando seu primado. Quando, em 1585, nasceu a Congregação que, como Academia, ainda hoje traz o nome da santa, Palestrina conseguiu controlar toda tendência revolucionária a respeito de sua autoridade, colocando-a sob a proteção pontifícia e, portanto, sob sua influência pessoal de maestro da capela papal. O milagre de Santa Cecília, aquela moça romana mártir imortalizada no mármore sublime do Maderno, é ter inspirado, ao longo dos séculos, partituras maravilhosas. No século XX, bastaria aquela joia que justamente Britten lhe dedicou, o Hymn to St. Cecilia [Hino a Santa Cecília], sobre versos excelsos de Auden, para testemunhar a vitalidade de uma inspiração que jamais faltou e confirmada em tempos recentíssimos pelo trabalho de Arvo Pärt Cecilia, vergine romana [Cecília, virgem romana], composto em 2002. E pensar que talvez tudo tenha nascido de um equívoco. Com efeito, parece que a referência à música na célebre antífona Cantantibus organis [com órgãos ressoantes] do proprium missae [próprio da missa] do dia 22 de novembro tenha nascido de um erro de um escrevente que, ao copiar o texto antiquíssimo da Passio ceciliana [Paixão ceciliana], teria substituído o candentibus organis [estando em brasa os instrumentos], ou seja, os incandescentes instrumentos de tortura à que a virgem foi submetida em seu martírio, por órgãos ressoantes, que desde então acompanham inseparavelmente sua iconografia. Felix culpa [erro feliz]. [1] Natural de Preneste, antiga cidade do Lazio; corresponde à atual Palestrina. (N.R.) 16 Dario Fertilio 17 T INÊS A jovem e o estrangeiro ão logo a luz se apagou, a jovem Inês se levantou da cama e se sentou à mesa, inquieta diante da tela acesa, à espera de que ali aparecesse o Estrangeiro. De fato, ele estava ali. No retângulo azul, permanecia seu ícone taurino vermelho com o qual a tinha atraído. “Então você está aí”, dirigiu-se prontamente a ela, como se tivesse adivinhando sua presença. O tremeluzir da mensagem provocou na menina um estremecimento de temor. De fato, ela estava às vésperas do encontro tantas vezes projetado com o Estrangeiro; havia acariciado isso como o início de um destino feliz. No entanto, alguma coisa, um temor semelhante a um dedo indicador reluzente, apontado contra seu peito, deteve, por um instante, a mão prestes a tocar o teclado; no entanto, já havia chegado a advertência do Estrangeiro: “Amanhã à noite!”. Ao contemplá-lo, ficou cheia de alegria, uma vez que o temor de antes se dissolvera. “Onde?”. “Monte Sacro, Casale Giuliani, 66, terceiro andar; lembre-se de tocar a campainha de baixo.” “Como chego lá?”, quis saber a menina. “Tome um táxi, dê o endereço ao motorista e depois toque. Eu pago tudo”, garantiu-lhe lampejante aquele que falava por trás da figura do touro. “A que horas?”, informou-se Inês. “Estarei lá às seis e meia. Não se atrase demais.” Mas justamente ao entregar-lhe o sim definitivo, aquele dedo invisível voltou a fixar-se em seu coração. Ela esperou um minuto, dois e depois três, respirando com força, incapaz de vencer um tremor que de repente tomou conta dela, e como a menina que havia sido antes de encontrar o Estrangeiro, por fim escreveu: “Amanhã, não; tenho que estudar”. O “Como?” que teve como resposta esbofeteou-a, quase parecendo que o ícone taurino, tendo aumentado, se tornara sangue vermelho. “Não banque a Santa Inês, agora”, ordenou-lhe rapidamente o Estrangeiro. Agora, pela primeira vez, chocou-a o fato de não saber o verdadeiro nome dele. E foi tomada de um desejo curioso de saber pelo menos quem seria a Santa Inês que poderia assemelhar-se a ela. Confinou a forma de touro ao ângulo mais baixo da tela e buscou rapidamente entre os mil contatos do éter, até que apareceu um ícone precedido das palavras: “O milagre de Santa Inês”. E leu ali: “No décimo terceiro ano de idade, perdeu a morte e encontrou a vida, cujo autor amou… Voltando Inês da escola, o filhinho do prefeito da cidade de Roma enamorou-se dela”. Inutilmente — continuou, admirando-se da coincidência com seu nome e idade — o filho do prefeito tinha-a coberto de todo tipo de presentes sempre mais preciosos, desde que consentisse com o matrimônio; sempre e 18 invariavelmente, ela havia respondido ser amante e amada de outro, tendo em mente o Senhor Jesus, sem mencioná-lo, como um noivo terreno. O filho do prefeito, porém, ferido e furioso com a rejeição, voltara-se para o pai, e este mandou buscar “quem fosse aquele esposo a quem Inês tanto amava, e um de seus parasitas contou-lhe como Inês era cristã desde a infância e é tão hábil na arte mágica, que diz ser Cristo seu esposo”. Por conseguinte — continuou a ler Inês —, foi chamada pelo prefeito ao tribunal, e ele fez-lhe promessas, depois ameaças terríveis, a fim de demovê- la de sua fé: ela, no entanto, “zombava de tudo”... Até que ele quis adverti-la: “Entre duas opções, escolha a que você prefere: ou você se sacrifica juntamente com as virgens da deusa Vesta, ou verdadeiramente você irá para a praça pública com as meretrizes”. E assim se fez, uma vez que a virgem não cedeu, afirmando que “a divindade não consiste em pedras, mas no céu”. De modo que “foi levada à praça pública e despida, mas de repente seus cabelos cresceram e em tamanha quantidade que parecia estar coberta até o chão, assentando-lhe melhor do que um vestido”. Nesse momento, Inês não pôde evitar de tocar os próprios cabelos, presos por trancinhas à moda afro, e ficou sabendo, mais adiante, como toda a cela da beata resplandecia, então, de uma luz “feita e preparada por mão de anjos”, tão forte que amedrontava os cobiçosos de seu corpo; não, porém, o filho do prefeito, que, indiferente, aproximou-se para pegá-la, mas de repente “caiu por terra com as mãos no rosto, e assim expirou”. Dado que a notícia se espalhou, continuou ainda Inês, o prefeito foi assaltado por uma dúvida que era um desespero, e ordenou-lhe — ou melhor: suplicou-lhe — fazer seu filho ressuscitar para que demonstrasse que não dispunha de artes mágicas, mas de fé certa e verdadeira. Então, por meio das orações dela, o filho do prefeito voltou a viver e se foi louvando aquele Deus operador de milagres. Contudo, o substituto daquele prefeito, lembrado de sua função pela multidão, quis atender suas reclamações e ordenou que a bruxa, como se decidiu chamá-la, fosse queimada. “Mas as chamas, então, dividiram-se em duas partes, de um lado e do outro, e a beata Inês permaneceu no meio e não sentiu nenhuma queimadura, nem calor, nem fogo, nem mal algum lhe fez o fogo. Então o substituto, vendo que o povo não se detinha nem se refreava, ordenou que se cortasse com uma faca a garganta da beata Inês. E imediatamente saiu seu sangue como rosas vermelhas”. “Deste modo”, concluiu-se o relato, “consagrou Cristo sua esposa Inês, virgem e mártir”. Então, sentindo-se mudada, Inês viu-se invadida por uma dúvida: que o dedo reluzente, anteriormente apontado para ela, poderia justamente revelar-se aquele da santa. E a esse simples pensamento, deu-se conta de que tinha os olhos úmidos de lágrimas. Resolveu, pois, voltar ao lugar de antes, e abriu o retângulo azul do qual a forma de touro lhe falava. Mas o Estrangeiro já não estava ali. 19 Luisa Muraro 20 “S CATARINA DE ALEXANDRIA Leite, roda e livro anta Catarina era filha de um rei.” Assim começava uma parlenda que cantávamos quando meninas. Narrava o conflito entre Catarina de Alexandria e seu pai pagão. Na realidade, ou seja, na lenda oficial (não há história documentada), o conflito que a leva ao martírio é com o imperador romano Massimino. Mas se trata sempre de homens que fazem a lei. As origens régiassão um atributo metafórico das mulheres que demonstram independência simbólica, aquelas a que Annarosa Buttarelli chama “soberanas”, em um livro que tem justamente este título. A respeito de Guilhermina de Boêmia, diziam que era filha e irmã de rei (e talvez fosse literalmente verdadeiro); Margarida Porete atribui simbolicamente ascendência régia às “almas aniquiladas”, e a poetisa Emily Dickinson atribui a si. A iconografia confirma as origens régias de Catarina, que, entre os santos, é reconhecível por alguns símbolos que são a coroa na cabeça, um livro em uma das mãos, frequentemente a palma do martírio na outra, e uma roda a seus pés. O imperador tinha-a condenado à tortura da roda, que miraculosamente não funcionou; ordenou, então, a decapitação: quando a cabeça se apartou do corpo, não jorrou sangue, mas leite. Assim, ela tornou-se a patrona dos fabricantes de rodas e das mulheres que amamentam. E o livro? O imperador tentou reconduzi-la ao culto dos deuses e enviou-lhe, para esse fim, cinquenta filósofos; no entanto, ela é que os convenceu da superioridade da mensagem cristã, tornando-se, dessa forma, a patrona dos filósofos. Leite, roda, livro — verdadeiramente uma magnífica constelação de símbolos. Dessa grande santa da Igreja oriental, muitas coisas evocam a figura histórica de Hipátia de Alexandria, filósofa neoplatônica, martirizada no ano 415 por um grupo de cristãos fanáticos, no tempo do bispo e padre da Igreja Cirilo, que a considerava com uma sombra de inveja, devido ao grande séquito de que gozava. Alguns aventaram a hipótese de que Santa Catarina de Alexandria seria uma figura criada a fim de reparar e cobrir esse delito. Não há provas. Por outro lado, não existem tampouco provas da existência histórica da mártir cristã. Por isso é que seu culto foi limitado, mas, felizmente, não suprimido. A vantagem das figuras lendárias é que se oferecem à nossa fantasia sem exclusões. Durante séculos, Catarina foi uma presença viva na piedade popular e um exemplo de grandeza feminina. Quando do Oriente se difundiram no Ocidente os relatos dos peregrinos e dos cruzados, a Europa se povoou de mulheres com o nome de Catarina, e de capelas ou igrejas com o 21 mesmo título. Na basílica de São Clemente, em Roma, uma capela com afrescos de Masolino da Panicale é dedicada a Santa Catarina. Entre as igrejas, a mais imponente talvez seja a basílica de Galatina, em Salento. O ciclo pictórico dedicado a ela começa por mostrá-la entrando, seguida de outras mulheres, no lugar de um culto pagão, a levantar o braço indicando o céu e pregando; os adoradores dos ídolos — alguns vestidos de prelados! — não lhe prestam atenção, mas o imperador sim: do trono, aponta o dedo para a contestadora, e os dois, ambos coroados, confrontam-se em primeiro plano, à direita e à esquerda do quadro. Há também testemunhos escritos. Lê-se, nos atos do processo contra a “seita” guilhermita, nos tempos do papa Bonifácio VIII, que as devotas de Guilhermina burlavam as proibições da Inquisição, venerando sua santa sob a semelhança de Santa Catarina, que mandavam pintar nessa ou naquela igreja da cidade. Chegando à Europa, Catarina não perdeu sua característica de mulher livre, capaz de desobedecer aos homens para obedecer a Deus. O documento mais impressionante disso é oferecido pelo processo de condenação de Joana d’Arc. Santa Catarina, juntamente com Santa Margarida, também esta vinda do Oriente, é uma presença constante ao lado de Joana, acusada de ser uma bruxa e herege: “Santa Catarina disse que virá em meu socorro”, “Santa Catarina me responde imediatamente”, “A esse respeito, Santa Catarina me aconselhará”, e assim por diante. Nas primeiras audiências, ela fala das vozes que lhe transmitem a vontade divina, mas sem dar-lhes nome. O inquisidor pressiona-a, quer que diga se era a voz de um anjo, de um santo ou de uma santa, ou “a de Deus sem intermediários”. Fórmula insidiosa, essa última, contra a qual a jovem mulher — contava dezenove anos — parece estar prevenida, porque, a essa altura, dá ao juiz a informação solicitada: “Eram as vozes de Santa Catarina e de Santa Margarida, que têm a cabeça cingida com belas coroas, ornadas e preciosas”. Acrescenta: “Deus me permitiu revelá-lo”, explicando assim sua hesitação anterior. O texto do processo representa um documento surpreendente, histórico e espiritual ao mesmo tempo. Ilustra um conflito que parece fatalmente desigual, sendo tudo da parte do tribunal, autoridade, experiência, doutrina, poder, e, ao contrário, tudo o que termina por desequilibrar-se, do outro lado, de uma jovem de dezenove anos, que defende sua honra de cristã e sua liberdade de consciência. Para isso é que servem as santas e os santos, suponho. 22 Francesca Romana de’ Angelis 23 Q MARTINHA Os dias do melro “uero um mês de janeiro com sol de abril”, cantava na Parlenda de Ano Novo Gianni Rodari, narrador extraordinário de histórias para os “grandes de amanhã”. E, ao contrário, neve, gelo, dias breves e noites longas, porque em janeiro estamos em pleno inverno. Uma lenda pagã acompanha os últimos três dias desse mês que a tradição considera os mais frios do ano. Para fugir do gelo, um melro, com seus filhotes, encontrou abrigo em uma chaminé, e quando dali saiu, em fevereiro, esperando que o pior tivesse passado, suas penas brancas se haviam tornado escuras pela fuligem. Desde então, os melros tornaram-se de uma cor preta reluzente, embora tenham conservado o alaranjado do bico e o canto melodioso e aflautado. Quem aquece o coração nos “dias do melro” é Santa Martinha, celebrada no dia 30 de janeiro. A seu respeito, como, de resto, em relação a grande parte dos mártires da cristandade das origens, sabemos pouquíssimo, porque muitas vezes as únicas fontes que restam são as Passiones [Paixões], escritos hagiográficos que, envolvendo essas figuras na lenda, esvanecem a verdade histórica. Diferentemente de outros mártires mais famosos, Martinha não teve o dom de uma devoção constante, capaz de conservar sua lembrança no tempo. Sua história é fascinante, feita de esquecimento e de recuperação da memória, até que o entusiasmo de um pontífice e a emoção de um grande artista lhe restituíram voz, gestos e sentimentos. Estamos na primeira metade do século III, quando a juveníssima Martinha, nascida numa nobre família romana, fica órfã de pai e mãe. Sozinha, mulher e cristã: uma condição de fragilidade extrema que Martinha sabe transformar numa força inexaurível. O seu primeiro ato — renunciar a todas as suas riquezas para doá-las aos necessitados, precede de séculos a pobreza na alegria de Francisco. Martinha faz-se testemunha da acolhida, dedicando a vida aos pobres e aos doentes, interpretando, assim, o papel ativo que as mulheres tinham nas primeiras comunidades cristãs, um modelo feminino que bebia diretamente da fonte da palavra evangélica, onde as mulheres sabem acolher e compreender Jesus. Nesse período, reinava Alexandre Severo, mas a tolerância desse imperador, vindo da distante Fenícia, que havia incluído Cristo em seu larário, não é suficiente para proteger Martinha da perseguição de Ulpiano, célebre jurisconsulto e poderoso prefeito do Pretório. Aprisionada e submetida a torturas cruéis, foi decapitada no ano de 228. A partir desse momento, cai o silêncio a respeito de Martinha. Depois de quatro séculos de seu martírio, Honório I dedica-lhe uma pequena igreja aos pés do Capitólio. Nos séculos subsequentes, enquanto a igreja é usada para usos civis, perde-se novamente a memória dessa mártir 24 das origens. Em 1256, sob o pontificado de Alexandre IV, durante os trabalhos de restauração da igreja, vêm à luz as relíquias de Martinha e de outros três mártires, Concórdio, Epifânio e um terceiro, que permaneceu anônimo. Restaurada e reconsagrada, a igreja vai ao encontro de um novo destino de abandono, e de Martinha se perde mais uma vez a lembrança. Em 1588, o Papa Sisto V entrega a igreja de Santa Martinha à Universidade das Artes da pintura, da escultura e do desenho (a atual AcademiaNacional de São Lucas), em substituição à igreja no Esquilino, dedicada a Lucas, o santo evangelista protetor dos pintores, que fora demolida. Os trabalhos de reconstrução da igreja, agora dedicada a dois santos, começaram somente em 1634, por iniciativa de Pietro de Cortona, o pintor arquiteto então protagonista da cena artística romana. A redescoberta das relíquias de Martinha durante as escavações preliminares suscita o entusiasmo de Urbano VIII, que, tendo ido imediatamente prestar homenagem à mártir, decide financiar a obra juntamente com seu sobrinho, o cardeal Francesco Barberini, fixa a data de 30 de janeiro para a celebração de Martinha e a eleva a copatrona de Roma. Quanto a Pietro de Cortona, a emoção intensa que sente pela redescoberta das relíquias modifica suas perspectivas, e o projeto arquitetônico torna-se um testemunho de comovida devoção. Na realização da igreja, investe tudo: talento, paixão, empenho, dinheiro, e o resultado é uma joia do barroco romano. No coração do Fórum romano, ao lado dos mármores historiados do Arco de Sétimo Severo e do umbilicus Urbis [umbigo da cidade], ou seja, o centro ideal da cidade de Roma, a igreja de São Lucas e de Santa Martinha, que se eleva entre tanto céu, é uma obra-prima de harmonia, de suavidade e de luz, com a curvatura amena da fachada, a preciosidade da cúpula, a sagaz sucessão de reentrâncias e de saliências, a brancura dos estuques muito ornamentados e da estátua de Martinha aí situada. Na cripta, onde são conservadas as relíquias da santa e de seus companheiros de martírio, bronze, mármores multicores, alabastro e a escuridão, aliviada por um fio de luz que filtra através de uma grade circular colocada no teto, em correspondência com a cúpula. Talvez, se quiséssemos conferir um rosto a Martinha, deveríamos imaginá- la como uma das santas virgens no cortejo de Santo Apolinário Novo, em Ravenna, estatuetas imateriais e flutuantes que, com as coroas do martírio e o véu branco, símbolo da virgindade, avançam olhando para o infinito e para o divino. Martinha, ao contrário, tem para sempre as formas plenas, as cores reluzentes, a beleza límpida e suave que Pietro de Cortona, o pintor que tinha “o fogo no pincel”, conferiu-lhe em suas telas. Diante do Matrimônio místico de Santa Martinha, um pequeno quadro precioso a óleo sobre cobre que o cortonense fez como ex-voto dedicado a Filipe Neri, outro santo de quem era devoto, experimentamos a mesma sensação envolvente de serenidade de quando entramos na igreja por ele finalizada. A dramaticidade 25 dos ganchos que a santa segura com a mão esquerda, simbolizando seu martírio, cede diante do esplendor do lírio que ocupa o centro da tela. Porque a imagem narra, mais do que como saiu do mundo, como Martinha esteve no mundo. No dia 30 de janeiro de 1948, caía ferido mortalmente Mahatma Gandhi. Dezessete séculos separam a morte violenta da menina cristã da do moderno apóstolo da não violência. O mundo melhorou, mas não o suficiente. E então, no dia dedicado a Martinha, naquela nesga do mês que abre as portas para o ano novo, talvez o melhor modo de recordá-la é repetindo as palavras de Santo Agostinho: “A esperança tem duas filhas belíssimas: a indignação e a coragem; a primeira, diante de como estão as coisas; a segunda, para mudá- las”. 26 Pietrangelo Buttafuoco 27 T ÁGATA O milagre do véu irados do leito, todos correm pela rua. Ainda é plena noite. Vestem apenas a camisa e o solidéu. Homens e mulheres, crianças e velhinhos estão com a vela na mão e pululam por toda parte. O bispo também está com eles. Em seguida, o prefeito. Eis Ágata. Sagrada ainda antes de ser santa. Catânia venera-a, e o presságio de suas virtudes começa já desde 235, ano de seu nascimento, quando reinava Décio, no tempo de Quinciano. Procônsul de Roma, Quinciano foi o homem que lhe dedicou — jamais correspondido — o amor e o desejo carnal a ponto de confiá-la à lascívia de duas grandes damas e de Afrodísia, uma cortesã, a fim de que lhe corrompessem as virtudes, mas em vão. Esse amor jamais correspondido foi narrado em uma tragédia por Antônio Aniante. Quinciano, precisamente. Uma obra dos anos trinta, um enxerto de vanguarda no tronco sólido da hagiografia confiada a Turi Giordano, um ator. Eis Ágata. Menina de grande educação, instruída segundo os costumes da aristocracia que a acompanhou até os braços da tortura para sustentar-lhe a respiração e fazê-la proclamar, ao modo de uma aristocrata: “Não apenas sou livre de nascimento, mas provenho de alta linhagem”. Vestida de sólida riqueza, falou diante das autoridades do palácio pretório. E, com a consciência do próprio status, acrescentou: “Assim como é sabido de todos vós, estando aqui presente toda a minha nobre parentela”. Ágata, cujo nome encontra-se entre os mais antigos no martirológio da Igreja ortodoxa e da santa Igreja romana, teve de padecer o tormento enquanto uma mão, piedosa, lhe protegesse o pudor, cobrindo-a com um véu que ainda hoje consegue acalmar a fornalha do Etna, sempre pronto a engolir a cidade. Em 252, um ano depois da morte (que aconteceu no dia 5 de fevereiro, a data em que a celebramos), da cratera do vulcão transbordou a lava até espalhar-se pelas casas. Foi aquele véu que deteve a corrida. O mesmo milagre repetiu-se em 1886. Abriu-se no cone uma nova boca, e a lava precipitou-se, buscando fácil via na descida. Era o dia 24 de maio, e o cardeal Dusmet subia de Catânia em procissão, ao longo da mesma trajetória. Trazia consigo o véu, e toda aquela morte ardente deteve-se contra toda a lei da gravidade e ali se extinguiu. Um altar, ainda hoje, recorda-o. Conduzido em procissão, o véu protegeu o povo do tremendo terremoto de 1169. E assim, da peste, da fúria sarracena que somente na costa catanense — receando ofender Ágata — deteve os massacres e os saques; Frederico II da Suábia, pronto para submeter Catânia a ferro e fogo, consentiu que fosse celebrada uma última missa em honra de Ágata, presenciou ele mesmo, mas — segundo a lenda —, em seu breviário 28 chegou a ler uma admoestação e poupou-a. Noli offendere patriam Agathae quia ultrix iniuriarum est [Não ofenda a terra de Ágata, pois é vingadora de toda injustiça]. Jamais houve um instante em que Catânia tenha ficado sem Ágata, e quando os americanos, de suas forças aéreas, em julho de 1943, bombardearam minuciosamente cada ângulo, até mesmo os hospitais, viram- se diante de um único escudo, colocado para servir de proteção antiaérea: aquele véu. E foi aquele véu que conseguiu, em seguida, conservá-los longe; e foi assim que as sagradas, mais do que santas, relíquias não se tornaram, então, pedregulho entre os escombros. Ágata, cujo símbolo é uma autoridade régia, chama a si os anjos e o azul dos céus para testemunhar a unicidade de Deus. Santa protetora de Palermo, que a venera nos Quatro Cantos, o ponto culminante dos quatro bairros da felicíssima caput regni et sedes regis [chefe do reino e sede do rei], portanto, ao lado dos quatro reis e das outras santas — Cristina, Ninfa e Olívia —, Ágata é patrona de Catânia, que se torna magma aos seus pés. Todos são tirados do leito, e todo aquele liquefazer de fogo — cada um com a vela — transforma as ruas, de negras que são, escurecidas de pedra lávica, em uma mistura de bruxuleio e devoção. Mais sagrada do que santa, Ágata de Catânia faz seus os atributos de Íside, a divindade remota do Mediterrâneo sagrado. A religião é propriamente re-ligere, o unir o tempo e os lugares, as almas e o eterno. Eis Ágata. É virgem e mártir. Bela de toda beleza — no culto que ainda lhe é dedicado como patrona etnea, de Galatea, de Malta e da livre República de San Marino —, Ágata confirma tudo o que a deusa dedicada à fé em Hórus, o Renascido, já difunde nos milênios: tornar igual o poder das mulheres e dos homens. E fazer da lua um sol vivo, fazer da sofreguidão uma consolação, e assim transformar a tumba em um infinito sublime, onde o ex-voto de um menino que escapou de um câncer fulminante convive com a necessidade — para um pai de família— de ver estabilizado o próprio contrato de trabalho precário junto à administração estatal siciliana. Um completo intercâmbio de oração e misericórdia, tangível já nos recantos, diante do mar, onde todos — vestidos com o saco da noite, com o barrete preto na cabeça —, na edificação dos nichos votivos e, em seguida, no sair pela rua, invocando-lhe a presença, repetem a chamada do dia 17 de agosto de 1126, quando Gilberto e Goselmo, dois soldados, conseguiram reconduzir as carnes de Ágata, roubadas de Constantinopla em 1040. Tudo se repete e toda a municipalidade está de pijama, enfim: todos os cidadãos acorrem à notícia. Até mesmo os mafiosos. Mas estes a esperam para dela se vangloriarem, obrigam o andor a uma parada embaixo da varanda de suas casas. Aconteceu que, na noite do dia 4 de fevereiro de 1993, nas proximidades da rua Plebiscito, um malfeitor quis deter, por orgulho pessoal, uma das doze candelárias e, assim, engrandecer o instante 29 de presença de Ágata. No entanto, padre Alfio Spampinato, capelão militar da Folgore [Brigada de Paraquedistas Italiana], ao dar a bênção com muitos sinais da cruz, deu uma bofetada no rosto do prepotente a fim de fazê-lo ajoelhar-se e permitir que os devotos caminhassem, finalmente livres de pagar penhor à prepotência, e dar continuidade, entre velas e coros, à festa agatina. Um intercâmbio completo de mundos e de épocas, ainda hoje. No triunfo de sua imagem, cheia de vida, no orgulho dos seios, Íside levava conforto às pessoas. Das areias do Egito até o templo erguido em sua honra pelas virgens de Benevento, sob Diocleciano, Íside — conduzida em triunfo — fazia papinha de seu próprio corpo místico no sinal da doçura de um seio multiplicado, na felicidade de dar vida. Como dá vida aquela ideia de gastronomia que se tornou, depois, com Giuseppina Torregrossa, Il Cunto delle Minne [Mamas sicilianas, trad. Editora Objetiva]: os bolinhos de Catânia, feitos em forma de seios, com os mamilos de maçapão. Aqueles que são dados pelas avós às meninas. E sempre aos pares. Íside habitou o culto de Deméter, em seguida foi transfigurada na Virgem — trazendo entre os braços a criança —, e Ágata também, como o arquétipo, tornou-se soberana por meio de São Pedro, que a visitou na prisão a fim de levar-lhe conforto antes que lhe fossem arrancados os seios. Coroada, Ágata está sentada na glória da fé em Cristo, o Ressuscitado, e, portanto, intermediária das abundantes bênçãos e intercessões para os devotos junto a Deus, o fim definitivo de um domínio onde aquelas mesmas marés, as agitações da crosta terrestre e, não por último, os pesadelos são desfeitos em sonhos; em encostas superabundantes de giestas — aquela terra, como quando as plantas perfuram a pedra — e, mais ainda, em fragrante espuma cujo marulhar, nas ondas, repete a oração de Ágata. 30 Ulla Birgitta Gudmundson 31 T LUZIA Vestes brancas e velas alvez o leitor pensasse que, se há uma santa bem conhecida na Suécia (pós-)protestante, esta é Santa Brígida, única mulher sueca a ter sido oficialmente canonizada pela Igreja católica. Mas não é assim. Há outra santa, que tem um papel muito mais importante na sociedade sueca atual: Santa Luzia, a virgem siciliana que, no século IV, teve os olhos arrancados e foi martirizada por sua fé. Praticamente em todas as escolas, colégios e creches, como também em muitos hotéis, restaurantes, lojas e estabelecimentos de trabalho de qualquer gênero, se organiza a procissão de Santa Luzia todo dia 13 de dezembro. Muitos vencedores do prêmio Nobel, hospedados no Grand Hotel de Estocolmo para a cerimônia, ficaram surpresos ao encontrar cedo de manhã, à sua porta, uma menina vestida de branco, com uma coroa flamejante, tendo à mão uma bandeja com vinho quente aromático, fogaças de açafrão e biscoito ao gengibre. Também me lembro de que, quando menina, meus pais me arrastavam do leito, relutante, em plena noite, e me levavam a representar Santa Luzia para meus avós. No que diz respeito ao aspecto, eu era adequadíssima para o papel: cabelos longos até a cintura, perfeitos para a coroa feita de folhas de mirtilo e velas verdadeiras. A faixa de seda vermelha que é usada tradicionalmente com a veste branca de Luzia quer simbolizar o martírio da santa. Não penso, porém, que todos os suecos conheçam o nexo com a mártir. De fato, seria justo falar de duas tradições, uma siciliana e outra escandinava. Como o Natal, a tradição de Santa Luzia na Suécia é um misto de elementos cristãos e pré-cristãos. O nome Luzia está ligado à palavra latina lux, luz. Na Escandinávia, os invernos são longos e escuros, e a tradição de celebrar uma festa de esperança para o retorno da luz provavelmente é muito antiga. No século XIV, Suécia e Finlândia seguiam o calendário Juliano, no qual a festa de Santa Luzia coincidia com o solstício de inverno, a noite mais escura e mais longa do ano. De acordo com o folclore, nessa noite os trolls e outros seres sobrenaturais vagam pelas florestas e vilarejos, e os animais podem falar. Na Suécia rural, todos os preparativos para o Natal deviam ser concluídos nesse período: o porco devia ter sido matado, as salsichas preparadas, o pão e as fogaças doces cozidos, a cerveja fermentada e a aguardente destilada. Santa Luzia era um primeiro ensaio das festas natalinas. Também o excesso de bebida é, infelizmente, uma característica dos jovens que celebram Santa Luzia. Com efeito, também isso tem origens muito 32 antigas, visto que os jovens, na festa da Santa Luzia, iam pelas casas cantando, esperando em troca não apenas comida ou, talvez, uma moedinha, mas também um ou vários tragos. Não é exagero dizer que os suecos — muitas vezes considerados um povo moderno, se não até mesmo futurista — são apegados de modo fanático à tradição de Santa Luzia. E o coração da tradição é, em minha opinião, o canto. A canção de Santa Luzia, certamente, é importada da Itália. Todavia, tradicionalmente, Santa Luzia e suas donzelas cantam também hinos e cantos suecos antigos, alguns dos quais radicados na Idade Média e entoados também nas igrejas católicas, como Det är en ros utsprungen (em alemão: Es ist ein Ros entsprungen [Brotou uma rosa]). Os costumes culturais têm uma origem, mas podem também transcender os confins. Nos últimos quatro anos, Mtarfa, pequena paróquia católica na ilha de Malta, cuja igreja paroquial é consagrada a Santa Luzia, celebrou uma versão maltesa da festa sueca. Recentemente, uma procissão de Santa Luzia percorreu a nave central de São Pedro, cantando um hino de Advento sueco, Bereden väg för Herran [Preparai os caminhos ao Senhor], com uma melodia antiga, inspirada no canto gregoriano. Mas a beleza da celebração tradicional de Santa Luzia talvez tenha sido mais bem expressa por uma ex-aluna de meu pai. Tendo desmaiado durante a procissão, quando voltou a si, disse: “Foi belíssimo. Verdadeiramente belíssimo. As vestes brancas. As velas. A música e o canto. Pensei estar no céu. Mas depois vi a diretora”. 33 Sandra Isetta 34 N CLOTILDE Converter os maridos a alta Idade Média, a construção das civilizações europeias apoia- se também sobre fundamentos ocultos: a força e a inteligência de grandes mulheres cristãs. É o caso das origens do reino francês, ligado à vigorosa personalidade de Clotilde, filha, esposa e mãe de reis, pecadora e depois santa. Clotilde insere-se numa longa tradição, inaugurada por Helena, mãe de Constantino, que conjuga a vocação religiosa com um destino político, a Igreja e a estirpe. Não é única entre as mulheres medievais — desposadas por reis conquistadores para ampliar seu domínio com laços de parentesco — cuja vida é marcada por uma série de tragédias e de assassinatos régios, mas cuja missão é a conversão dos reis consortes e, portanto, de povos inteiros: na Inglaterra, Berta, esposa de Etelberto de Kent; na Espanha, Teodósia, mulher do duque de Toledo. Na Rússia, a princesa de Kiev, Olga, é a primeira soberana batizada, e Edviges, da Polônia, começa a conversão dos países bálticos. As notícias a respeitode Clotilde estão na Historia Francorum [História dos francos], de Gregório de Tours, e no anônimo Liber historiae Francorum [Livro da história dos francos]. Nasceu em Lião, em 475, enquanto o Império Romano, no Ocidente, desmoronava (476) e a Gália romana se desagregava em diversos reinos bárbaros. Era filha de Chilpérico II, rei dos burgúndios, grupo germânico estabelecido ao longo do Reno e do Ródano, de religião ariana. Sua infância foi de violências, transcorrida em luta fratricida entre os tios e o pai, de quem, no ano 486, o irmão Gundebaldo decepou a cabeça. A mãe foi lançada na água com uma pedra amarrada ao pescoço. Clotilde jamais se esqueceu dessas violências brutais, e sua missão será justamente a pretensão de substituir a justiça divina com a vingança pessoal. Órfã, com a irmã mais velha, Crona, foi exilada para Genebra, para junto do outro tio, Godegisil. Aqui, as duas irmãs converteram-se ao catolicismo e dedicaram-se à oração e à assistência. A fama de seus dotes morais e de sua beleza chegou às cortes reais. Assim, foi pedida em casamento por Clóvis, o jovem rei dos francos, que subiu ao trono aos quinze anos; descendente do mítico Meroveu, tornar-se-á o antepassado dos merovíngios, povo germânico estabelecido ao norte do Sena. Com o matrimônio, o cenário religioso da família não melhora. Se o pai era ariano, o marido era um pagão que, embora bastante rude, tratava os cristãos com humanidade: era seduzido pela suavidade com que Clotilde falava de sua religião. Consentiu com o batismo do primeiro filho, que morreu quase de repente, ainda com a veste branca. As reivindicações contra o “Deus de Clotilde” cederam, porém, à admiração pela fé com que a rainha 35 enfrentou a provação, que se repetiu com o nascimento do segundo filho, Clodomiro, salvo pelas orações. Clóvis converteu-se em 496, em Tolbíaco, junto a Colônia, no decurso da batalha contra os alamanos. Instruído pela rainha, como Constantino na ponte Mílvia, implorou a ajuda de Cristo, mudando a temida derrota em vitória: “Acreditarei em vós e me farei batizar em vosso nome”, promessa que cumpriu, juntamente com três mil francos, na noite de Natal do mesmo ano, na catedral de Reims, recebendo de São Remígio também o “toque real”, o poder taumatúrgico contra as escrófulas. Em 511, Clóvis morreu, saudado como soberano dado por Deus à Gália católica, futura França, “primogênita da Igreja”. As provas mais duras deviam ainda chegar: Clotilde pediu a seus filhos que vingassem o assassínio dos avós, e Deus, para purificá-la, puniu-a com dores. A filha morreu devido aos maus-tratos do marido; Clodomiro, o filho, foi morto. Ela tomou os filhos deles a seus cuidados, incorrendo em uma culpa mais grave: do momento em que os tios queriam eliminar os herdeiros do irmão, colocaram Clotilde diante da escolha de matá-los ou de cortar-lhes os cabelos (os longos cachos eram privilégio e, portanto, sinal da condição régia; cortando-os, tê-la-iam perdido). Clotilde preferiu “vê-los mortos a privados do reino”: a pátria terrena tinha obscurecido a celeste no espírito da rainha. Para expirar essa culpa, retirou-se do mundo, em Tours, e viveu em humildade tal a ponto de esquecer-se de ter sido rainha. Como muitos santos, anunciou sua morte, que aconteceu no dia 3 de junho de 545. Foi proclamada santa por aclamação e, em seguida, canonizada pelo Papa Pelágio. Seu culto difundiu-se na Normandia, em Andelys-sur-Seine, onde a água de uma fonte, misturada a vinho, é dada a beber aos doentes, em recordação de um milagre de Clotilde, que teria revigorado os trabalhadores que construíam o mosteiro com aquela água que assumira sabor de vinho. As mulheres dirigem-se a ela para a conversão dos maridos, e é invocada contra a morte súbita, as febres e os males das perdas (por causa da analogia entre a raiz de seu nome e o verbo claudiquer [claudicar, manquejar]). A ela se deve também a substituição dos três sapos por três lírios no escudo da monarquia francesa, que um misterioso eremita lhe deu na floresta de Saint-Germain- en-Laye. Na Argentina, é protetora dos órfãos e patrona do povoado de Beruti, na província de Buenos Aires. 36 Liliana Cavani 37 C CLARA DE ASSIS Carta a Francisco “aríssimo irmão em Cristo, que o Pai te dê paz e saúde. Gostaria de haver te escrito somente para dar-te notícias de alegria, mas não é este o momento. Todas juntas, nós, tuas irmãzinhas, refletimos e, sobretudo, rezamos muito para tocar-te em Espírito, a fim de que as palavras que leres não te firam demasiado, mas alcancem o propósito que é o de iluminar-te a respeito da urgente necessidade de deixar a Terra dos Mouros e voltar. A fraternitas é como uma pobre barca em meio a uma grande tempestade e corre o risco de ser submersa. Eis a causa. Quem a guia em tua ausência dá ordens aos Irmãos e às Irmãs opostas e contrárias àquelas que tinhas em mente. Isso provoca discussões e contínuas disputas que conheces, mas que sabias gerir com paciência e sabedoria. Três meses depois de tua partida para a Terra Santa, houve assembleias de Irmãos sempre mais frequentes, das quais nós, Irmãs, jamais éramos chamadas a participar. Leão, Egídio e alguns outros, com muita tristeza, vinham contar-nos o que acontecia. Repropunham para a Fraternidade uma Regra de vida oposta àquela que havias indicado com tanta clareza e paciência. Quem se opunha era silenciado e expulso. Por essa razão, tantos Irmãos estão confusos, outros muito tristes e dispersos. Muitos, ao contrário, estão contentes com seguir as novas diretrizes. A primeira consequência é que nossa amadíssima Senhora Pobreza, fiel companheira de nossas vidas, é expulsa com enfado e até mesmo com desprezo. Os Irmãos que continuam a amá-la são acusados de heresia e expulsos, mas o verdadeiro motivo é que são considerados demasiado fiéis às tuas orientações. O coração de toda a questão, tu o conheces bem. Dizem que tu lhes negavas o direito de estudar e de aprofundar com o estudo a palavra de Jesus Cristo. Sabem muito bem que dizias coisa bem diferente. Dizias que o estudo é importante quando ajuda as pessoas a serem livres, e dizias também que o estudo é até mesmo santo se está a serviço da Verdade e da Vida. E, para ti, justamente Cristo é Verdade e Vida. Para muitos deles, ao contrário, o estudo é um meio para subjugar quem não estudou e não conhece as palavras para pedir justiça. E é precisamente a palavra fraternitas que parece irritar esses doutos, como se não compreendessem seu significado arrebatador, que te impeliu e, por meio de ti, tantos homens e mulheres, inclusive a mim. Isso nos traz grande tristeza, e podemos apenas rezar por esses irmãos doutos, a fim de que Jesus Cristo os ilumine, mas, por enquanto — é amargo dizê-lo — são vencedores e levados em consideração por Roma. E é por causa de tudo isso que a tempestade se abateu também sobre nós, tuas irmãzinhas. Faz dois meses que chegou de Roma a ordem de fazer de São Damião, que para nós sempre foi simplesmente a Casa, um verdadeiro 38 convento, como todos os outros conventos. Se tu bem te lembras, havia uma ameaça no ar antes mesmo de tua partida, mas, graças à tua presença, a autoridade ficava parada, como uma fera mantida em correntes. A ordem de Roma impôs imediatamente a nós, irmãs, não sair jamais e não mais encontrar os irmãos, nenhum deles. No entanto, jamais houve escândalo de nenhuma espécie, mas intercâmbio de auxílio e de conselhos, e nos ajudávamos com os enfermos no asilo para casos difíceis, como os paralíticos que deviam ser removidos. Éramos, de fato, uma fraternitas. Além dos portões e das cancelas, também as barras das janelas nos separam de todos. Já não temos podido sair para trabalhar, seja a serviço em uma casa de abastados, seja na fábrica, a fim de obter o sustento para nós e para nossos irmãos pobres ou enfermos. Tu te perguntarás do que vivemos. Eis a maior surpresa. A alimentação vem-nos das entregas dos ‘nossos camponeses’, que nos trazem todos os bens de Deus. De fato, tornamo-nos suas ‘patroas’. Enfim, a Igreja concedeu-nosrendas, e assim vivemos de renda. Parece quase uma brincadeira, se pensares que eu e outras irmãs deixamos cômodos palácios e fartas mesas para abraçar a Senhora Pobreza, por vergonha para com os irmãos em desvantagem. Somos, de novo, privilegiadas e protegidas, e nos sentimos como aquelas bonecas com as quais brincamos quando meninas, e que são jogadas de um lado a outro. O Oficial Pontifício que nos trouxe o documento a respeito do usufruto das terras que nos conferiram riu quando lhe disse que não queríamos aquele privilégio de renda, mas, ao contrário, o privilégio de ser pobres. Ele nos fez ver que muitíssimos irmãos estavam bem felizes com terem obtido lugares confortáveis para o estudo e a oração. Não houve jeito de fazê-lo compreender que estávamos felizes em ganhar o sustento, como o faz a maior parte dos ‘irmãos’. Não conseguia compreender que não me referia a irmãos de sangue, mas aos irmãos em Deus, o que é bem mais importante. Foi um diálogo impossível. Nos primeiros tempos, quase não conseguíamos comer, tão embaraçadas estávamos. Nós nos envergonhávamos e doávamos tudo. Depois, juntamente com Leão e Pedro, fui ter com o bispo para falar-lhe; assim, tendo feito um acordo com ele, somente com ele, mal escurece, eu e algumas irmãs saímos para levar alimento e assistência aos nossos irmãos em dificuldade. Mas o principal impulso para nossa resistência é a certeza de que, quando voltares, esse equívoco será esclarecido. Uma interpretação tão errada das palavras do Evangelho só pode ser um equívoco. E justamente por causa desse equívoco tantos irmãos aceitaram casas e até mesmo palácios para viver no conforto. Dizem que estudam e, por isso, precisam repousar tranquilamente, alimentar-se com iguarias finas e vestir-se com tecidos macios. Não pensam assim os primeiros que chegaram à fraternitas, Leão, Rufino, Pedro, Egídio e outros. Permaneceram fiéis ao Evangelho ao pé da letra e, portanto, continuam a viver como antes, mas esperam e rezam para que logo tudo se 39 esclareça. Tu não podes imaginar quanto é necessário que existas. Chegou até nós a notícia, graças a um comerciante que a difundiu, de que encontraste o sultão e que vocês falaram sobre uma possível paz. O bispo veio contar-nos pessoalmente a respeito. Exultava de alegria, mas parece que em Roma eles têm outras ideias. É evidente que na Terra Santa precisam de ti e eu e as irmãs corremos o risco de ser inoportunas. Mas é justo que saibas de tudo para poder decidires, e para isso rezamos muito e…” A carta interrompe-se aqui. Certamente trouxe muito desgosto a Francisco. Sabia que Clara jamais a teria escrito se os fatos não tivessem sido ainda piores. Elias de Cortona, que estava com ele na Terra Santa, recorda que o amigo, ao lê-la, tinha lágrimas nos olhos, mas não revelou o conteúdo a ninguém. No entanto, decidiu voltar para a Itália com a primeira nau possível. Essa carta jamais foi lida por algum biógrafo. Nas Fontes Franciscanas, porém, se lê a respeito de uma carta enviada por Clara a Francisco, na qual lhe pedia que voltasse. Com efeito, era o período no qual, dentro da fraternitas, havia grandes dissensões. Escrevi-a usando a imaginação. Agora me parece tão verdadeira que não posso destruí-la. 40 Rosa Matteucci 41 E ROSA A pregadora perdida m 1233, em Viterbo, fortaleza cátara, na rota de Roma, nasceu Rosa, menina empreendedora, mas sempre frágil de saúde, como se o temperamento, levado a coisas mais elevadas que sua natureza, encontrasse contraste na caducidade do corpo. Afligida por uma doença que lhe privara do esterno desde o nascimento, trazia consigo uma esperança mínima de vida, não além dos três anos e, portanto, antes da primeira infância. Pequenas como eram as mulheres naquele tempo, na compleição já modesta e enfraquecida pela incapacitação, pobremente vestida, Rosa encontrou na oração sua razão de vida, seu modo de ser e de dar graças por aquilo que havia sido querido. Precocemente raptada pelo ascetismo, diáfana e minúscula, Rosa queria absolutamente falar com o imperador, Frederico II, venenosamente propenso a subjugar o Papa, contestando, em nome da fé, suas pretensões de submissão do trono de Pedro. Rosa, no entanto, com os poucos meios à sua disposição, defendia a fé e o santo padre do desvio cátaro, que semeava o niilismo, rejeitando os dons de Deus tais quais os do demônio, fortalecido pelas teses dos peritos bizantinos, que falavam da oposição nítida e feroz entre pureza do espírito e caducidade da carne. Pouco mais que adolescente, Rosa teria desejado ser recebida no convento das clarissas, que considerava o domicílio mais idôneo para seu desejo de absoluto, para seu anseio que a chamava à perfeição divina, único remédio possível para as fraquezas humanas. Ofereceu-se a elas com espontaneidade e coração límpido, sem imaginar que sua fragilidade física, unida à carência de um senso adequado, jamais lhe haveria aberto as portas do convento de São Damião. Em tempos difíceis como aqueles, os pobres desse tipo ficavam, sem esperança de libertação, marginalizados e ignorados, obrigados a optar mais por sobreviver do que por viver uma vida digna desse nome. Portanto, embora a jovem fosse sincera, as clarissas mantiveram-na a distância, artífices inconscientes de uma dificuldade que teria refinado a pureza de espírito e a determinação da pessoa que decidiam não acolher. Rosa, porém, não se deu por vencida, pediu e obteve permissão para pregar como terciária fora dos muros do convento que tão dolorosamente a havia rejeitado, de modo que inaugurou sua espontânea pregação pelas ruas de Viterbo, povoada de cátaros apoiados pelo potentíssimo imperador que mais do que nunca pretendia a radical redefinição das relações hierárquicas a respeito do vigário de Cristo, no sinal de uma submissão do altar à profissão das armas. Sua ardente pregação cotidiana, sua declarada intolerância para com os 42 cátaros fizeram-na ganhar um golpe de espada, durante o assédio que o imperador empreendeu contra Viterbo. Em consequência desses fatos, a autoridade emitiu um decreto de banimento com o qual expulsava da cidade a jovem pregadora e sua família, o pai e a mãe. Desse modo, a pequena Rosa dos magnéticos olhos azuis, pobremente vestida, abrigou-se — estava-se em pleno inverno — com sua família em Soriano del Cimino, portanto, em Vitorchiano. Continuou a lutar contra o superpoder imperial em condições sempre mais míseras, assediada pelo frio e pela carestia, forte apenas de uma arma aparentemente inútil, mas, ao contrário, poderosíssima. Seu único instrumento era, de fato, a oração oferecida em dom à Igreja católica, atividade que tampouco lhe valerá o prêmio da entrada no Carmelo. A jovem fica sozinha, a levar adiante sua guerra contra o desvio herético ao longo dos calçamentos e dos muros varridos pelos ventos. Com a morte do imperador, por ela profetizada, reabrem-se-lhe as portas da cidade. Pareceria uma vitória, mas seu caráter estranho às coisas do mundo levava-a a raciocinar e a argumentar em termos diversos daqueles das vitórias e das derrotas: categorias terrenas e, portanto, viciadas pela caducidade. Sua batalha era, ao contrário, por algo que não podia ser medido com a norma das coisas mundanas. Na cidade, que fora e não fora a sua, morre em 1251. Seu corpo foi sepultado fora da igreja de Santa Maria, em Poggio. Imediatamente, seguiram-se os prodígios, como se a verdadeira vida de Rosa tivesse começado depois daquela que nos obstinamos em chamar de vida. Curas de cegueira e de qualquer outro mal, fenômenos reclamam e aumentam a devoção popular de quem começa a invocar como santa a pequena e perdida pregadora, portadora de uma mensagem que não é apenas sua. Inesperadamente, Inocêncio IV, empenhado na furiosa luta contra os gibelinos, indistinguíveis dos cátaros, com o respeito que se deve a uma alma piedosa e aos seus restos mortais, ordena que o corpo de Rosa seja trasladado do campo ao convento de São Damião, de modo que o lugar a que não pudera ter acesso em vida tornou-se sua morada eterna:o convento das clarissas. Aqui o corpo de Rosa, miraculosamente intacto, guardado em uma urna, teve a honra de ser deixado à veneração dos fiéis. A permanência de suas aparências terrenas é considerada sinal do poder inerente à sua palavra: uma pregação capaz de impor-se seja sobre a fraqueza do corpo, seja sobre a transitoriedade de tudo. A flor que Rosa trouxe no nome é algo mais do que um símbolo, como tal, capaz de sair incólume também das chamas, herança do incêndio que em 1357 tudo devora, exceto o corpo incorrupto da santa. Em sua passagem, havia algo que teria iluminado o mundo. 43 Oddone Camerana 44 U ISABEL Uma rainha de paz “ma santa mulher”, “um santo” — assim são definidas e lembradas as pessoas que carregam ou carregaram a cruz no silêncio, que padeceram fadigas, abuso de força, opressões, injustiças, tormentos, sem lamentar-se e com espírito de sacrifício. Uma figura do passado, mas também do presente, reconhecível hoje em quem tolera a adversidade ou assume o peso da dos outros. Exceto que, em relação a Isabel de Aragão (1271-1336), é evidente que a santidade é outra coisa, e não passaria pela cabeça de ninguém definir Isabel como uma “santa mulher”. Filha de Pedro III de Aragão e de Constança, descendente do imperador Frederico II, rei da Sicília, Isabel era uma aristocrata que praticava a santidade com a oração, com a religiosidade, mas também com a generosidade devida à sua posição. Tendo se tornado rainha ao casar-se com Dinis, rei de Portugal, na corte real não abandonou os bons hábitos de uma santidade ativa. Não negligenciando os deveres de esposa, continuou a levantar-se cedo para ir à capela ouvir a missa de joelhos, receber a comunhão e rezar o Ofício da Virgem e dos mortos. De espírito contemplativo, no entanto, prestava atenção às obras de necessidade pública e, de fato, não houve igrejas, hospitais e mosteiros para cuja construção não tivesse contribuído com régia generosidade. A santidade de Isabel encontrou jeito de exprimir-se não só em sua condição de rainha e de religiosa franciscana, mas também como mãe. Dando ao marido dois filhos, Constança e, a seguir, Afonso, herdeiro do trono, Isabel manifestou, com efeito, seu caráter e sua dureza de mulher enérgica e ativa, não apenas aguentando heroicamente os amores ilícitos do marido, mas cuidando, em seguida, da educação dos filhos naturais dele como se fossem dela. Mas foi no papel de pacificadora e de reconciliadora que as virtudes de Isabel assumiram um colorido heroico e shakespeariano, lá onde a rainha se sentiu no dever de intervir na luta que irrompeu entre o filho e o pai, tomando o partido deste, recebendo em retribuição por seu gesto o encarceramento numa fortaleza. Contudo, essa não foi a única obra de paz em que Isabel se empenhou. Outros conflitos, como aquele entre o marido e o cunhado, ou entre influentes e ambiciosos serviçais da corte, viram o esforço da santa rainha, devotado a enfrentar, sob a inspiração do senso do bem e da paz, os exércitos opostos enfileirados, e a dissolver obscuras intrigas de corte e a inveja. Disposta a curvar-se à mudança das situações e dos contextos em que se encontrava, Isabel descobriu o caminho da santidade também depois da 45 morte do marido. A essa altura, Isabel renunciou ao mundo, cortou os cabelos, vestiu o hábito da Ordem Terceira Franciscana e foi em peregrinação a Santiago de Compostela, aonde voltou no último ano de vida depois de, nesse intervalo de tempo, ter se retirado num mosteiro para rezar, conversar com as religiosas e dar audiência aos pobres, aos doentes e aos pecadores que a ela recorriam. Jamais deixou de oferecer sua capacidade de mediadora entre familiares em litígio, como teria procurado fazer com o filho e o neto em guerra entre si, se não tivesse sido impedida por uma febre que a levou à morte. Alinhada ao espírito do tempo e do contexto em que se encontrou, Isabel foi protagonista de milagres caracterizados pela cortesia e pela gentileza, como o da transformação em vinho de um jarro de água em compensação pelas penitências e jejuns dos quais fazia participar o pessoal da corte que lhe era vizinho; ou as curas obtidas ao tocar os enfermos com suas mãos. Fala-se também de uma aparição de Maria, para quem Isabel pediu que fosse oferecida uma cadeira a fim de que se sentasse junto a seu leito de morte. Contudo, mais espetacular e, ao mesmo tempo, mais relacionado com sua ação de paz foi o milagre que assumiu forma no decurso da guerra entre os filhos ilegítimos de seu marido Dinis e o herdeiro do trono, o futuro Afonso IV, quando Isabel se interpôs entre os dois exércitos alinhados, milagrosamente divididos por uma barreira luminosa que se elevou à sua passagem. De Isabel permanecem dois retratos relacionados à sua dupla natureza de rainha e de religiosa. No primeiro caso, ela aparece ao lado do marido com a coroa oferecida, em seguida, juntamente com outros dons, ao santuário no qual se retirou. No segundo, vemo-la em hábito religioso, com o crucifixo na mão direita, enquanto com a esquerda segura o véu no qual encontram lugar os acessórios que ela confeccionava para as igrejas pobres. Mas como seria Isabel hoje? Como se moveria num contexto tão diferente daquele no qual teve de agir? Como poderia Isabel manifestar sua generosidade e exercitar sua santidade? Confesso encontrar-me num tipo de embaraço. Sinto o prevalecer dos sentimentos de distanciamento, sinal do empobrecimento na concepção hodierna do bem e do altruísmo. Os gestos, o comportamento, as escolhas de Isabel dificilmente ajudam a mostrar o caminho da virtude. Já é muito se evitarmos o risco de confundir a santidade com a tentação de submeter-se e com a inclinação à obediência. Isabel não nos manda imitá- la, mas consultar o “tribunalzinho” interior de nossa consciência. É preciso escavar ali. Esperamos ser bem-sucedidos. 46 Ulla Birgitta Gudmundson 47 S BRÍGIDA As palavras coloridas obre minha estante, tenho um molde para queijos herdado dos meus avós. É quadrado, de madeira, assinalado com a data de 6 de maio de 1794 e as iniciais de quem o confeccionou. Sobre o fundo, na parte interna, há um desenho intricado, que servia para decorar o queijo, decoração que poderia ser vista tirando-se o queijo do prato e virando-o. Pequenos furos permitiam que o soro escorresse durante o processo de maturação. Na Suécia rural, o modo de fazer queijo não mudou muito entre os séculos XIV e XVIII. Portanto, a imagem que Brígida (1303-1373), única santa sueca canonizada pela Igreja católica, tinha em mente quanto fez Cristo comparar a alma a um queijo, e o corpo a uma forma para queijos, não pode ter sido muito diferente daquela que vejo agora enquanto escrevo. Santa Brígida foi ridicularizada por causa de tal comparação tão rasteira. Contudo, é uma imagem de grande força explicativa. Como o queijo em seu molde, a alma humana deve esperar certo tempo para amadurecer no corpo, libertando-se gradualmente das impurezas, como o queijo se livra do soro. O fim último, porém, é que o queijo saia do molde, maduro e perfeito. Brígida é a primeira grande escritora em língua sueca. Sua criação — o convento de Vadstena — foi, durante duzentos anos, o centro cultural da Europa do Norte. Ebba Witt-Brattström, feminista e professora de literatura, afirma que o sueco escrito, de fato, nasceu das atividades de tradução da ordem brigidina. A imagem do queijo, utilizada pela santa, é apenas uma entre tantas outras, todas muito coloridas. Compara os papas às borboletas e aos passarinhos recém-nascidos; um bispo a uma mutuca; uma abadessa a uma vaca gorda; reis e rainhas a macacos, serpentes e caroços de maçã. No entanto, consegue também evocar a elegância da corte. A Virgem, patrona e principal interlocutora de Brígida em suas Revelações, é majestosa, suntuosamente vestida com uma túnica de ouro, com um manto azul-celeste e uma coroa com “sete lírios e sete pedras”. Erich Auerbach, autor do clássico literário Mimesis, sublinha que esse movimento entre alto e baixo estilo, entre
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