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Mulheres à Frente do seu Tempo - VV AA

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SUMÁRIO
Capa
Rosto
PREFÁCIO DE RITANNA ARMENI
ISABEL — Epifania de um encontro
PETRONILA — A filha de São Pedro
CECÍLIA — A santa dos músicos
INÊS — A jovem e o estrangeiro
CATARINA DE ALEXANDRIA — Leite, roda e livro
MARTINA — Os dias do melro
ÁGATA — O milagre do véu
LUZIA — Vestes brancas e velas
CLOTILDE — Converter os maridos
CLARA DE ASSIS — Carta a Francisco
ROSA — A pregadora perdida
ISABEL — Uma rainha de paz
BRÍGIDA — As palavras coloridas
CATARINA DE SENA — Uma mulher “feita fogo”
RITA — O voo milagroso
FRANCISCA ROMANA — A tela terminada
JOANA D’ARC — A primogênita da Igreja
TERESA DE ÁVILA — Uma ferida no coração
MADALENA DE CANOSSA — A gerente espiritual
FRANCISCA CABRINI — A coragem de desbravar
BAKHITA — A teóloga da humildade
TERESA DE LISIEUX — A menina que implorou ao Papa
TERESA BENEDITA DA CRUZ — A judia cristã
AUTORES
Coleção
Ficha Catalográfica
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N
PREFÁCIO
Ritanna Armeni
as páginas que se seguem, o leitor encontrará os perfis de mais de
vinte santas, publicados em “Donne Chiesa Mondo” [Mulheres Igreja
Mundo], encarte mensal de L’Osservatore Romano. Estudiosos e estudiosas,
escritoras e escritores, historiadores e historiadoras, jornalistas, fiéis e leigos,
todos nomes de inquestionável prestígio, narram a vida de uma santa com a
qual tiveram um relacionamento especial de conhecimento, de fé, de estudo.
Os perfis colocam em realce suas diferenças e particularidades, sua relação
especial com a fé.
Daí emerge um afresco extraordinário e inesperado. Esses retratos, livres
no estilo, nos tons e na escritura, rompem, de fato, muitos dos lugares-
comuns que afligiram a história das mulheres — e, portanto, também das
santas —, colocando-as novamente como protagonistas na história da Igreja e
retificando alguma injustiça praticada contra elas, a começar pelo
reconhecimento de sua vulnerabilidade.
Com efeito, os casos de santidade feminina, embora numerosos —
ultrapassam os 1.500, mais do que o calendário pode conter —, são, no
entanto, uma minoria em relação aos mais de 9.000 casos de santidade
masculina. É quase certo que, durante muito tempo, a santidade feminina
tenha sentido a força negativa do estereótipo: apareceu ligada a uma função
de serviço, ainda que sublime, a uma obediência carente de consciência, a
uma abnegação absoluta e natural. Ou somente à concretitude do
relacionamento com os corpos, ao trabalho humilde e cotidiano. Narrando as
santas, frequentemente se valorizaram qualidades e virtudes importantes,
descartando-se outras, igualmente importantes, e certamente presentes em
sua vida e em seu caráter, como a coragem, a sabedoria, a liberdade.
Os retratos aqui publicados dão uma guinada, mostram rostos inéditos,
trazem à luz aquelas virtudes que até agora não têm sido completamente
visíveis. As santas já não aparecem — como muitas vezes se quis apresentar
— quais protagonistas de um mundo antigo, representantes de virtudes
incapazes de convencer o mundo de hoje, mas como intérpretes importantes
da modernidade.
De maneira poderosa, manifesta-se sua sabedoria, sua capacidade de dar à
Igreja amor e intelecto, de estimular a renovação da doutrina, de criar novas
modalidades de expressão da fé. Nesses perfis aflora uma sabedoria diferente
que, de resto, a Igreja reconheceu, dando a quatro dentre elas o título raro e
solene de “doutoras”: Teresa de Lisieux, a quem João Paulo II reconheceu “a
ciência de um amor divino”; Hildegarda de Bingen, que — disse Bento XVI
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—, “em sua vontade de pertença total ao Senhor, sabe envolver seus dotes
humanos incomuns, sua aguda inteligência e sua capacidade de penetração
nas realidades celestes”; Teresa de Ávila, cuja doutrina — afirmou Paulo VI
— “resplandece dos carismas da verdade, da conformidade com a fé católica,
da utilidade para a erudição das almas”; Catarina de Sena, cuja “sabedoria
infusa, ou seja, a lúcida, profunda e inebriante assimilação das verdades
divinas e dos mistérios da fé contidos nos livros sagrados do Antigo e do
Novo Testamento” , o mesmo Paulo VI elogiou.
Ao lado delas, encontramos a sabedoria simples de Isabel, mulher comum
e extraordinária, a quem, em idade tardia, foi dada uma gravidez e que,
consciente da graça recebida e cheia de gratidão, afastou-se do mundo para
melhor acolhê-la.
Mulheres cultas, mulheres sábias, portanto, mas também mulheres livres.
De uma liberdade especialíssima, que não padece condicionamentos, porque
expressão direta da vontade divina, e que, por conseguinte, supera os
lugares-comuns, é capaz de grandes batalhas e é vivida frequentemente de
modo potente e grandioso.
Expressão plena dessa liberdade é Clara, que, desagregando os poderes e
as hierarquias, pretendeu ser pobre, embateu-se contra a Igreja corrupta, sem
deixar um instante sequer de pertencer-lhe, e construiu para sua fé um
caminho autônomo que até mesmo os pontífices tiveram de reconhecer.
Como muitas protagonistas deste livro, não se deixou impor obediência —
quando muito a escolheu —, voltou aos princípios do Evangelho mesmo ao
preço de confrontar-se com a hierarquia.
Clara tem coragem, mas não é uma exceção. Muitas santas mostram em
sua vida e em sua fé uma audácia insuspeitada em mulheres jovens e
humildes, em monjas muitas vezes de origem social modesta. Exemplo disso
é Joana d’Arc, a moça guerreira que soube ir além do destino reservado a
uma mulher, capaz de exercitar sua liberdade em grandes empreendimentos
e de vivê-la de modo tão extremo a ponto de entrar, filha da Igreja, na
mitologia de toda uma nação. Bakhita, a santa africana cuja coragem na
escravidão tem algo de sobrenatural, é igualmente exemplo de extraordinária
ousadia; ou Rosa, que ninguém conseguiu deter em sua pregação pelas ruas
de Viterbo contra o imperador e o desvio herético.
Por fim, é peculiar a muitas dessas figuras a autonomia, a menos
reconhecida das qualidades da santidade feminina, que, no entanto, numa
leitura da vida delas não condicionada pelo preconceito, aparece forte e
indiscutível. A fé que elas vivem não se ajusta mecanicamente aos modelos
dominantes, muito menos quando estes se identificam com o poder. As
santas permanecem estranhas a ele; sua fé é quase sempre fundada sobre um
distanciamento; a compreensão jamais é desligada da inteligência e da crítica.
Santa Catarina ajuda a Igreja, mas compreende plenamente os erros desta e
os condena. Quer tornar-se “outro Cristo através da união com ele no
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Amor”.
Com frequência, por fim, foi elogiada a humildade dessas mulheres que se
tornaram santas. Contudo, não se realçou que não temeram o escândalo que,
a miúdo, a santidade delas provocou. E não se deu o devido relevo ao fato de
que muitas foram precursoras: Martinha praticou a acolhida cristã antes de
Francisco. De igual modo, não foi valorizado completamente o extraordinário
poder espiritual que exerceram sobre quem nelas acreditou. Rita tem tal
poder a ponto de tornar-se “santa das causas impossíveis”. Ela tem poder
também onde tudo falha.
Coragem, liberdade, autonomia são virtudes modernas que as mulheres
de hoje buscam praticar em uma síntese difícil, mas não impossível, como o
amor, o cuidado, a alegria de serem elas mesmas. Não admira que, nestes
últimos anos, as biografias, os romances e até mesmo os livros infantis a
respeito das histórias das santas tenham retornado às estantes das livrarias;
que um mundo intelectual católico e leigo as tenha redescoberto e, acima de
tudo, esteja relendo a vida delas de modo diferente. Tampouco causa espanto
que muitas santas tenham se tornado modelo até mesmo para os não crentes
que nelas reencontram a capacidade de viver uma existência completa, livre
dos pesos dos hábitos e das escravidões pessoais.
A coletânea que apresentamos neste livro assume, por fim, uma
importância especial hoje, no momento em que a Igreja de Francisco
pretende valorizar o papel feminino.
A Igreja é “feminina”, disse o pontífice num de seus primeiros
pronunciamentos, e acrescentou que “uma Igreja sem as mulheres é como oColégio Apostólico sem Maria”, e que o papel da mulher na Igreja “não é
apenas a maternidade”. A mulher, com efeito, não é somente “a mãe de
família” e não é nem mesmo “a arquiteta, a presidente da Caritas”. É aquela
que ajuda a Igreja “a crescer”. Disso decorre a necessidade, muitas vezes
reiterada, de prosseguir, de uma “teologia da mulher”, de uma revisitação da
doutrina, da fé, da ciência de Deus à luz dos versículos do Gênesis: “Deus
criou o homem à sua imagem, à imagem de Deus ele o criou, homem e
mulher ele os criou” (Gn 1,27).
Se para a Igreja de Francisco Deus exprime-se também através da mulher,
do seu ser, de sua identidade e de sua diversidade, a vida das santas e sua
releitura adquirem novo sentido, nova relevância, nova luz. Podem ser, mais
do que no passado, modelos de uma fé mansa e triunfante, que sabe
ensimesmar-se com a modernidade e, ao mesmo tempo, transcendê-la e
melhorá-la.
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Elisabetta Rasy
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E
ISABEL
Epifania de um encontro
m 1995, um artista nova-iorquino de pouco mais de quarenta
anos, Bill Viola, considerado o mestre de uma nova arte que estava
conquistando os museus do mundo, a videoarte, apresentou uma série de
cinco obras intitulada Buried Secrets [Segredos enterrados], que lhe
garantiram, após o reconhecimento internacional, sucesso e prestígio
também na Itália. De modo especial, uma obra surpreendente: The Greeting
[A saudação]. Nesta, três figuras femininas em descontraídas vestimentas
hodiernas, um pouco casuais e um pouco étnicas (saias longas, blusas e xales
coloridos), davam nova vida a uma imagem da arte e da história sagrada que
atravessou os séculos: a Visitação. A fonte direta era a belíssima e célebre
pintura que dedicou a esse motivo o mais criativo dos maneiristas, Jacopo da
Pontormo, na prepositura dos santos Miguel e Francisco, em Carmignano,
mas também Giotto, da capela dos Scrovegni, não estava longe.
Nesse vídeo, Bill Viola desenvolve numa ação a epifania do encontro entre
Maria e sua prima Isabel, do qual o pintor do século XVI colhera a
intensidade do instante: num tempo dilatado por um lentear que transforma
todo movimento, gesto e olhar em ocasião de meditação, sob os olhos de
uma terceira figura feminina — a testemunha que encarna cada um de nós
—, duas mulheres, uma jovem e uma mais avançada em anos, se encontram.
A mãe de João Batista, uma figura fundamental, mas humilde e secreta, a
respeito da qual somente o Evangelho de Lucas nos conta, depois de ter
atraído o olhar dos artistas de todos os tempos, volta, portanto, na tecnologia
expressiva da mais recente modernidade com o mesmo páthos, pleno de
significado.
Não há muitas notícias a respeito dela: Elisheba, esposa do sacerdote
Zacarias, era parente de Nossa Senhora, talvez por parte materna. A cidade
de Judá, onde acontece o encontro, foi identificada pela tradição com Ain
Karim, onde, no alto de uma montanha, diante do vilarejo, surge o santuário
da Visitação. Mas o essencial dessa santa cheia de poder e de mistério é
contado por Lucas em poucas palavras.
De fato, desde a primeira página de seu Evangelho, Isabel impõe-se ao
leitor com sua história de mulher comum e ao mesmo tempo extraordinária.
Chegamos a saber que ela e seu marido eram “justos diante de Deus e, de
modo irrepreensível, seguiam todos os mandamentos e estatutos do Senhor”
(Lc 1,6). No entanto, logo ficamos sabendo também que não eram felizes,
porque “Isabel era estéril e os dois eram de idade avançada” (Lc 1,7).
Ademais, Isabel não só não tivera a alegria da maternidade, mas também
envergonhava-se de sua esterilidade. Zacarias também devia ter uma raiva
sóbria dentro de si, um tormento que lhe obscurecia o coração, pois não
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acreditou no anjo Gabriel, que lhe anunciara a futura paternidade: “Sou
velho, e minha esposa é de idade avançada” (Lc 1,18), disse-lhe desconfiado
perante o anúncio divino. Não podemos deixar de sentir a dor humana dessa
resposta: é a voz da velhice, a idade em que às vezes tudo parece perdido.
Devido à sua desconfiança, o homem fica mudo, mas no relato evangélico,
onde cada coisa é manifestação divina mas, ao mesmo tempo,
extraordinariamente humana e extremamente próxima de nós, também
Isabel, quando se dá conta de que está grávida, fecha-se num silêncio
reservado, embora sabendo reconhecer a obra do Criador: “Isto fez por mim
o Senhor, quando se dignou retirar o meu opróbio perante os homens!” (Lc
1,25). Não quer vangloriar-se daquela gravidez concedida pelo céu, mas dela
fazer uma oportunidade de recolhimento: Isabel afasta-se por cinco meses
dos olhos do mundo. Foi mais perspicaz do que o marido em reconhecer a
graça recebida, mas seu comportamento é também o de uma mulher
qualquer, de idade avançada, suficientemente sábia para não se gabar e para
saber cultivar com discrição a alegria.
Agora é que, no Evangelho de Lucas, enquanto a prima anciã está oculta,
acontece o Anúncio a Maria. A fim de dissipar seu estupor, o anjo, quase
como numa confidência afetuosa, conta-lhe a respeito da gravidez de Isabel.
Imediatamente Maria põe-se em viagem para ficar junto dela, e dá-se o
encontro entre as duas na casa para onde a mais velha se havia retirado, a
visita a que chamamos “Visitação”, e que na Igreja oriental é chamada
também de Aspasmos, saudação, como no vídeo de Bill Viola. E é aqui, no
encontro entre as duas, que a fisionomia da santidade de Isabel se delineia,
porque ela nos vem ao encontro mediante as páginas de Lucas como santa do
pensamento que se faz palavra. Enquanto o menino que ela espera lhe salta
no ventre, ela se dirige a Maria com a célebre frase: “Bendita és tu entre as
mulheres” (Lc 1,42). Por conseguinte, ela é símbolo da ajuda entre mulheres,
da solidariedade e da confiança feminina, mas é também aquela que pensa
(compreendeu que foi Deus quem lhe concedeu o dom da fertilidade), que
decide (decidiu retirar-se do mundo) e que fala, e fala para anunciar a
salvação. É a primeira santa da palavra feminina autorizada. E falando com
autoridade, cede o lugar à palavra de Maria, que lhe responde com a
belíssima oração do Magnificat. Não é apenas um encontro entre duas primas,
mas também um colóquio, um colóquio de importância fundamental.
Os artistas compreenderam-no, compreenderam o significado sagrado e
humano desse relacionamento peculiar entre mulheres. Na densa iconografia
da Visitação, desde os mais antigos mosaicos até Luca della Robbia, de
Raffaello a Mantegna, vislumbra-se a percepção do sentido profundo daquela
expansividade respeitosa e afetuosa da mais velha entre as duas como
expansão do Espírito e, concomitantemente, da inteligência feminina do
mundo. Mas naquilo que Lucas nos narra com entusiasmo e precisão e que
magnetizou a sensibilidade de tanta pintura através dos séculos, ainda existe
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algo mais: a imagem que se torna ícone sagrado, de um inédito protagonismo
feminino, na história da salvação e na história da humanidade.
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Giovanni Maria Vian
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U
PETRONILA
A filha de São Pedro
ma missa, um quadro e um misterioso afresco: eis o que resta de
Petronila. A cada ano, no dia 31 de maio, na basílica vaticana,
celebra-se a missa em honra da santa, no dia e no altar dedicados à memória
da filha do apóstolo Pedro, diante da grande reprodução, em mosaico, da tela
de Guercino que representa sua sepultura e sua glória. Mas a celebração e a
enorme pintura do século XVII são apenas o ponto de chegada de uma
história intrincada e de quase vinte séculos de duração. No início, há o aceno
à mulher de Cefas numa carta autêntica de Paulo (1Cor 9,5) e um famoso
episódio evangélico, a saber, quando Jesus cura da febre a sogra do primeiro
dos apóstolos (Mt 8,14-15). A essas magras informações históricas sobrepõe-
se, mais tarde, em meados do século IV, um dado igualmente seguro: a
imagem de uma mártir, Petronila, retratada num afresco na catacumba
romana de Domitila.
Pedro, portanto, era casado, e, apesar de nos textos do Novo Testamento
não haver alusão a sua descendência, nada impede de pensar que realmente
tenha tido uma. Ao contrário, sua filha entraabertamente em cena, embora
anônima, mais tarde, no fragmento copto (século IV ou V), pertencente a um
texto apócrifo grego, os Atos de Pedro, escritos por volta do fim do século II.
“Por que não socorreste tua filha, virgem, que cresceu bela e acreditou no
nome do Senhor? Vê, ela tem um lado completamente paralisado e jaz ali
num canto, impotente. Vemos aqueles que curaste, ao passo que não
concedeste nenhuma cura à tua filha”, diz a multidão ao apóstolo, quase a
repreendê-lo.
A partir daqui, o relato assume um andamento dramático: a fim de
demonstrar que Deus tudo pode, Pedro obtém a cura da menina, mas
somente por um instante; imediatamente depois, ordena-lhe voltar ao estado
precedente. Posteriormente, diante do pranto e das súplicas dos presentes,
explica que a filha ficara paralisada justamente em resposta às suas orações,
depois de ter sido raptada pelo riquíssimo Ptolomeu, que, por fim, restituiu-a
aos pais. “Trouxemo-la de volta, louvando o Senhor que havia poupado sua
serva da violência, do opróbrio e da corrupção. Eis por que a menina se
encontra em tal estado”, conclui o apóstolo. O pretendente rico arrepende-se
e, morrendo, deixa em testamento um terreno para a jovem: Pedro vende-o,
mas, sem reter nada para si ou para a filha, distribui a renda aos pobres.
Texto de origem gnóstica, os Atos de Pedro mostram no episódio uma
concepção negativa e, consequentemente, uma desvalorização radical do
corpo, da dimensão sexual e do matrimônio. Tendência acentuada na alusão
ao mesmo episódio em outro apócrifo gnóstico, os Atos de Filipe, escrito em
grego e que remonta ao início do século IV: “Pedro, o chefe, por essa razão
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fugia de todo lugar onde se encontrava uma mulher. Além do mais, ficou
escandalizado por causa de sua filha, que era muito bonita. Portanto, rogou
ao Senhor, e ela ficou paralisada de um lado, de modo a não ser seduzida”.
No século VI, tem-se uma correção em sentido ortodoxo da lenda
gnóstica, quando na Paixão de São Nereu e de Santo Aquiles aparece o nome de
Petronila (que, por assonância, lembra o de Pedro), curada pelo pai e, em
seguida, suposta esposa do pagão Flaco, mas que morre depois de três dias,
evitando núpcias indesejadas. Na segunda metade do século XIII, essa última
versão foi inserida e enormemente difundida pela Legenda áurea do
dominicano Iacopo da Varazze: a paralisia, porém, é enfraquecida em febre,
enquanto a menina é perfeitamente curada por Pedro, para depois escapar à
coação ao matrimônio com a morte. Daí a iconografia, até a pintura de
Guercino.
Filha que morre sem deixar descendência, na Antiguidade tardia, Petonila
sublinha com sua história a rejeição de toda pretensão dinástica na sucessão
ao apóstolo, justamente enquanto severas disposições proíbem a designação
do sucessor por parte do bispo de Roma em exercício. Entrementes, a
presença da sepultura de uma Petronila “filha dulcíssima” no cemitério de
Domitila sugere a identificação com a do apóstolo e a denominação de uma
basílica vizinha. Em contrapartida, parece permanecer ignorado o afresco que
na mesma catacumba representa uma jovem cristã mártir, Petronila, que
introduz no paraíso outra mulher, Veneranda.
O tempo passa, e em meados do século VIII, para apoiar simbolicamente a
aliança estratégica com os soberanos francos, o sarcófago de Petronila é
transferido para a basílica mandada construir por Constantino sobre o
sepulcro do apóstolo, num pequeno mausoléu teodosiano, que se torna lugar
de culto dos novos protetores da sé romana. Assim, desde então, a “filha
primogênita da Igreja” aproxima-se da filha de São Pedro. Com efeito, um
cardeal francês é que pagará a um juveníssimo escultor florentino,
Michelangelo Buonarroti, por uma admirável Pietà, que é colocada na
antiquíssima capela, em seguida demolida. Mas a nova basílica hospedará, à
direita do altar berniniano da Cátedra, o altar em honra de Santa Petronila. E
se a modernidade parece opor-se à ligação com a França, são justamente seus
embaixadores junto à sé apostólica, desde Chateaubriand até os
representantes da República, sem distinção, que a mantêm viva, até a
restauração da missa anual, em meados do século XX, em honra de uma
menina misteriosa, mas da qual permanece, com certeza, o testemunho
cristão nas pegadas de Pedro.
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Alberto Batisti
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N
CECÍLIA
A santa dos músicos
o dia 22 de novembro de 1913, nasceu em Lowestoft, Suffolk,
Benjamin Britten. Ter nascido no dia de Santa Cecília fazia dele um
predestinado, e não somente para a vocação à música, de resto, manifestada
com excepcional precocidade. O maior compositor inglês do século XX, vindo
ao mundo justamente naquele dia consagrado à santa dos músicos, coroava
uma tradição inteiramente britânica de culto ceciliano, começada no século
XVIII.
Corria o ano de 1683 quando um círculo de entendidos, reunidos na
Musical Society, fez nascer o primeiro festival dedicado à santa, celebrado
solenemente no dia 22 de novembro, com a encomenda de textos poéticos e
musicais que logo tiveram a ilustre contribuição de artistas como John
Dryden e Henry Purcell. Da Song for St. Cecilia’s Day [Canção para o dia de
Santa Cecília], escrita em 1687 por Dryden, o irlandês Nicholas Brady extraiu
o texto de uma ode que Purcell musicou em 1692 e que se encontra entre as
obras-primas absolutas da música inglesa do século XVII.
Estando em curso a Guerra de Sucessão Espanhola, a partir de 1703, a
tradição dos festivais cicilianos se interrompe para, em seguida, readquirir
vigor incomum graças a Georg Friedrich Haendel, que, em 1736, retomou
outro texto de Dryden dedicado à santa, a ode Alexander’s Feast or The Power of
Music [O banquete de Alexandre ou O poder da música]. Naqueles versículos,
Dryden narrava como, durante um magnífico convite de Alexandre Magno
para festejar a vitória sobre os persas, o músico Timóteo provocava, com seu
canto, as mais diversas reações no ânimo do grande líder, movendo-o ora à
exaltação bélica, ora ao pranto, graças ao poder psicológico das diversas
escalas empregadas na entonação. Repentinamente, no auge da
demonstração, o poder da música alcança o mais elevado de seus objetivos à
medida que o papel de Timóteo é realçado pessoalmente por Santa Cecília,
que se manifesta anunciada por um som de órgão que encarna o etos musical
mais sublime, o místico da música sacra.
O tema é examinado novamente por Haendel em 1739, com outra Ode for
St. Cecilia’s Day [Ode para o dia de Santa Cecília], sempre sobre versos do final
do século XVII, de Dryden, uma vez mais compostos como ilustração do
poder metafísico da música, símbolo da harmonia universal que, com a força
do som, organiza o caos dos átomos até que outro som, o da trombeta do
Juízo, novamente os dissolverá.
O mito ceciliano, na interpretação poética de Dryden, retomada por
Haendel, assumia o significado moderno de uma exaltação da poética dos
afetos, ligada à afirmação do sistema tonal, que precisamente naqueles anos
alcançou sua codificação definitiva com o Traité de l’harmonie réduite à ses
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principes naturels [Tratado da harmonia reduzida a seus princípios naturais],
de Rameau, e à demonstração prática com o cravo bem temperado de Bach.
Com efeito, a harmonia moderna, com sua sutil capacidade de restituição
psicológica, renovava o poder dos etos gregos ligados à música.
Certamente é devido a esse significado de refinada simbologia estética que,
em 1790, Mozart retomou as duas partituras cecilianas de Haendel e lhes deu
uma nova versão orquestral, adaptando-as ao gosto sinfônico de seu tempo e,
simultaneamente, elevando-as à autoridade exemplar do moderno
classicismo musical. Depois das celebrações litúrgico-musicais que jamais
faltaram ao longo dos séculos, depois das homenagens devocionais do
barroco católico (do qual as partituras oratórias de Charpentier e Scarlatti são
os vértices extraordinários), Santa Cecília voltava a exprimir o primado da
música na Viena laica e maçônica de José II.
A segunda metade do século XIX, em contrapartida, colocará sob a
imagem de Santa Cecília um movimentode redescoberta e de exaltação da
pureza polifônica palestriniana. A edição completa da obra do Prenestino,[1]
organizada por Haberl, consagrou o mito do príncipe da música católica com
um monumento editorial aere perennius [mais duradouro que o bronze]. Por
outro lado, foi justamente o maestro romano que colocou sob a proteção de
Santa Cecília aquela “Companhia dos músicos” que estava perigosamente
questionando seu primado. Quando, em 1585, nasceu a Congregação que,
como Academia, ainda hoje traz o nome da santa, Palestrina conseguiu
controlar toda tendência revolucionária a respeito de sua autoridade,
colocando-a sob a proteção pontifícia e, portanto, sob sua influência pessoal
de maestro da capela papal.
O milagre de Santa Cecília, aquela moça romana mártir imortalizada no
mármore sublime do Maderno, é ter inspirado, ao longo dos séculos,
partituras maravilhosas. No século XX, bastaria aquela joia que justamente
Britten lhe dedicou, o Hymn to St. Cecilia [Hino a Santa Cecília], sobre versos
excelsos de Auden, para testemunhar a vitalidade de uma inspiração que
jamais faltou e confirmada em tempos recentíssimos pelo trabalho de Arvo
Pärt Cecilia, vergine romana [Cecília, virgem romana], composto em 2002.
E pensar que talvez tudo tenha nascido de um equívoco. Com efeito,
parece que a referência à música na célebre antífona Cantantibus organis [com
órgãos ressoantes] do proprium missae [próprio da missa] do dia 22 de
novembro tenha nascido de um erro de um escrevente que, ao copiar o texto
antiquíssimo da Passio ceciliana [Paixão ceciliana], teria substituído o
candentibus organis [estando em brasa os instrumentos], ou seja, os
incandescentes instrumentos de tortura à que a virgem foi submetida em seu
martírio, por órgãos ressoantes, que desde então acompanham
inseparavelmente sua iconografia. Felix culpa [erro feliz].
[1] Natural de Preneste, antiga cidade do Lazio; corresponde à atual Palestrina. (N.R.)
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Dario Fertilio
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T
INÊS
A jovem e o estrangeiro
ão logo a luz se apagou, a jovem Inês se levantou da cama e se
sentou à mesa, inquieta diante da tela acesa, à espera de que ali
aparecesse o Estrangeiro. De fato, ele estava ali. No retângulo azul,
permanecia seu ícone taurino vermelho com o qual a tinha atraído. “Então
você está aí”, dirigiu-se prontamente a ela, como se tivesse adivinhando sua
presença. O tremeluzir da mensagem provocou na menina um
estremecimento de temor. De fato, ela estava às vésperas do encontro tantas
vezes projetado com o Estrangeiro; havia acariciado isso como o início de um
destino feliz.
No entanto, alguma coisa, um temor semelhante a um dedo indicador
reluzente, apontado contra seu peito, deteve, por um instante, a mão prestes
a tocar o teclado; no entanto, já havia chegado a advertência do Estrangeiro:
“Amanhã à noite!”.
Ao contemplá-lo, ficou cheia de alegria, uma vez que o temor de antes se
dissolvera. “Onde?”. “Monte Sacro, Casale Giuliani, 66, terceiro andar;
lembre-se de tocar a campainha de baixo.” “Como chego lá?”, quis saber a
menina. “Tome um táxi, dê o endereço ao motorista e depois toque. Eu pago
tudo”, garantiu-lhe lampejante aquele que falava por trás da figura do touro.
“A que horas?”, informou-se Inês. “Estarei lá às seis e meia. Não se atrase
demais.”
Mas justamente ao entregar-lhe o sim definitivo, aquele dedo invisível
voltou a fixar-se em seu coração. Ela esperou um minuto, dois e depois três,
respirando com força, incapaz de vencer um tremor que de repente tomou
conta dela, e como a menina que havia sido antes de encontrar o
Estrangeiro, por fim escreveu: “Amanhã, não; tenho que estudar”.
O “Como?” que teve como resposta esbofeteou-a, quase parecendo que o
ícone taurino, tendo aumentado, se tornara sangue vermelho. “Não banque a
Santa Inês, agora”, ordenou-lhe rapidamente o Estrangeiro.
Agora, pela primeira vez, chocou-a o fato de não saber o verdadeiro nome
dele. E foi tomada de um desejo curioso de saber pelo menos quem seria a
Santa Inês que poderia assemelhar-se a ela. Confinou a forma de touro ao
ângulo mais baixo da tela e buscou rapidamente entre os mil contatos do
éter, até que apareceu um ícone precedido das palavras: “O milagre de Santa
Inês”. E leu ali: “No décimo terceiro ano de idade, perdeu a morte e
encontrou a vida, cujo autor amou… Voltando Inês da escola, o filhinho do
prefeito da cidade de Roma enamorou-se dela”.
Inutilmente — continuou, admirando-se da coincidência com seu nome e
idade — o filho do prefeito tinha-a coberto de todo tipo de presentes sempre
mais preciosos, desde que consentisse com o matrimônio; sempre e
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invariavelmente, ela havia respondido ser amante e amada de outro, tendo
em mente o Senhor Jesus, sem mencioná-lo, como um noivo terreno. O filho
do prefeito, porém, ferido e furioso com a rejeição, voltara-se para o pai, e
este mandou buscar “quem fosse aquele esposo a quem Inês tanto amava, e
um de seus parasitas contou-lhe como Inês era cristã desde a infância e é tão
hábil na arte mágica, que diz ser Cristo seu esposo”.
Por conseguinte — continuou a ler Inês —, foi chamada pelo prefeito ao
tribunal, e ele fez-lhe promessas, depois ameaças terríveis, a fim de demovê-
la de sua fé: ela, no entanto, “zombava de tudo”... Até que ele quis adverti-la:
“Entre duas opções, escolha a que você prefere: ou você se sacrifica
juntamente com as virgens da deusa Vesta, ou verdadeiramente você irá para
a praça pública com as meretrizes”. E assim se fez, uma vez que a virgem não
cedeu, afirmando que “a divindade não consiste em pedras, mas no céu”. De
modo que “foi levada à praça pública e despida, mas de repente seus cabelos
cresceram e em tamanha quantidade que parecia estar coberta até o chão,
assentando-lhe melhor do que um vestido”. Nesse momento, Inês não pôde
evitar de tocar os próprios cabelos, presos por trancinhas à moda afro, e ficou
sabendo, mais adiante, como toda a cela da beata resplandecia, então, de
uma luz “feita e preparada por mão de anjos”, tão forte que amedrontava os
cobiçosos de seu corpo; não, porém, o filho do prefeito, que, indiferente,
aproximou-se para pegá-la, mas de repente “caiu por terra com as mãos no
rosto, e assim expirou”. Dado que a notícia se espalhou, continuou ainda
Inês, o prefeito foi assaltado por uma dúvida que era um desespero, e
ordenou-lhe — ou melhor: suplicou-lhe — fazer seu filho ressuscitar para
que demonstrasse que não dispunha de artes mágicas, mas de fé certa e
verdadeira. Então, por meio das orações dela, o filho do prefeito voltou a
viver e se foi louvando aquele Deus operador de milagres. Contudo, o
substituto daquele prefeito, lembrado de sua função pela multidão, quis
atender suas reclamações e ordenou que a bruxa, como se decidiu chamá-la,
fosse queimada. “Mas as chamas, então, dividiram-se em duas partes, de um
lado e do outro, e a beata Inês permaneceu no meio e não sentiu nenhuma
queimadura, nem calor, nem fogo, nem mal algum lhe fez o fogo. Então o
substituto, vendo que o povo não se detinha nem se refreava, ordenou que
se cortasse com uma faca a garganta da beata Inês. E imediatamente saiu seu
sangue como rosas vermelhas”.
“Deste modo”, concluiu-se o relato, “consagrou Cristo sua esposa Inês,
virgem e mártir”. Então, sentindo-se mudada, Inês viu-se invadida por uma
dúvida: que o dedo reluzente, anteriormente apontado para ela, poderia
justamente revelar-se aquele da santa. E a esse simples pensamento, deu-se
conta de que tinha os olhos úmidos de lágrimas. Resolveu, pois, voltar ao
lugar de antes, e abriu o retângulo azul do qual a forma de touro lhe falava.
Mas o Estrangeiro já não estava ali.
19
Luisa Muraro
20
“S
CATARINA DE ALEXANDRIA
Leite, roda e livro
anta Catarina era filha de um rei.” Assim começava uma
parlenda que cantávamos quando meninas. Narrava o conflito
entre Catarina de Alexandria e seu pai pagão. Na realidade, ou seja, na lenda
oficial (não há história documentada), o conflito que a leva ao martírio é com
o imperador romano Massimino. Mas se trata sempre de homens que fazem
a lei.
As origens régiassão um atributo metafórico das mulheres que
demonstram independência simbólica, aquelas a que Annarosa Buttarelli
chama “soberanas”, em um livro que tem justamente este título. A respeito
de Guilhermina de Boêmia, diziam que era filha e irmã de rei (e talvez fosse
literalmente verdadeiro); Margarida Porete atribui simbolicamente
ascendência régia às “almas aniquiladas”, e a poetisa Emily Dickinson atribui
a si.
A iconografia confirma as origens régias de Catarina, que, entre os santos,
é reconhecível por alguns símbolos que são a coroa na cabeça, um livro em
uma das mãos, frequentemente a palma do martírio na outra, e uma roda a
seus pés.
O imperador tinha-a condenado à tortura da roda, que miraculosamente
não funcionou; ordenou, então, a decapitação: quando a cabeça se apartou
do corpo, não jorrou sangue, mas leite. Assim, ela tornou-se a patrona dos
fabricantes de rodas e das mulheres que amamentam. E o livro? O imperador
tentou reconduzi-la ao culto dos deuses e enviou-lhe, para esse fim,
cinquenta filósofos; no entanto, ela é que os convenceu da superioridade da
mensagem cristã, tornando-se, dessa forma, a patrona dos filósofos. Leite,
roda, livro — verdadeiramente uma magnífica constelação de símbolos.
Dessa grande santa da Igreja oriental, muitas coisas evocam a figura
histórica de Hipátia de Alexandria, filósofa neoplatônica, martirizada no ano
415 por um grupo de cristãos fanáticos, no tempo do bispo e padre da Igreja
Cirilo, que a considerava com uma sombra de inveja, devido ao grande
séquito de que gozava. Alguns aventaram a hipótese de que Santa Catarina
de Alexandria seria uma figura criada a fim de reparar e cobrir esse delito.
Não há provas. Por outro lado, não existem tampouco provas da existência
histórica da mártir cristã. Por isso é que seu culto foi limitado, mas,
felizmente, não suprimido.
A vantagem das figuras lendárias é que se oferecem à nossa fantasia sem
exclusões. Durante séculos, Catarina foi uma presença viva na piedade
popular e um exemplo de grandeza feminina. Quando do Oriente se
difundiram no Ocidente os relatos dos peregrinos e dos cruzados, a Europa se
povoou de mulheres com o nome de Catarina, e de capelas ou igrejas com o
21
mesmo título.
Na basílica de São Clemente, em Roma, uma capela com afrescos de
Masolino da Panicale é dedicada a Santa Catarina. Entre as igrejas, a mais
imponente talvez seja a basílica de Galatina, em Salento. O ciclo pictórico
dedicado a ela começa por mostrá-la entrando, seguida de outras mulheres,
no lugar de um culto pagão, a levantar o braço indicando o céu e pregando;
os adoradores dos ídolos — alguns vestidos de prelados! — não lhe prestam
atenção, mas o imperador sim: do trono, aponta o dedo para a contestadora,
e os dois, ambos coroados, confrontam-se em primeiro plano, à direita e à
esquerda do quadro.
Há também testemunhos escritos. Lê-se, nos atos do processo contra a
“seita” guilhermita, nos tempos do papa Bonifácio VIII, que as devotas de
Guilhermina burlavam as proibições da Inquisição, venerando sua santa sob
a semelhança de Santa Catarina, que mandavam pintar nessa ou naquela
igreja da cidade.
Chegando à Europa, Catarina não perdeu sua característica de mulher
livre, capaz de desobedecer aos homens para obedecer a Deus. O documento
mais impressionante disso é oferecido pelo processo de condenação de Joana
d’Arc. Santa Catarina, juntamente com Santa Margarida, também esta vinda
do Oriente, é uma presença constante ao lado de Joana, acusada de ser uma
bruxa e herege: “Santa Catarina disse que virá em meu socorro”, “Santa
Catarina me responde imediatamente”, “A esse respeito, Santa Catarina me
aconselhará”, e assim por diante.
Nas primeiras audiências, ela fala das vozes que lhe transmitem a vontade
divina, mas sem dar-lhes nome. O inquisidor pressiona-a, quer que diga se
era a voz de um anjo, de um santo ou de uma santa, ou “a de Deus sem
intermediários”. Fórmula insidiosa, essa última, contra a qual a jovem
mulher — contava dezenove anos — parece estar prevenida, porque, a essa
altura, dá ao juiz a informação solicitada: “Eram as vozes de Santa Catarina e
de Santa Margarida, que têm a cabeça cingida com belas coroas, ornadas e
preciosas”. Acrescenta: “Deus me permitiu revelá-lo”, explicando assim sua
hesitação anterior.
O texto do processo representa um documento surpreendente, histórico e
espiritual ao mesmo tempo. Ilustra um conflito que parece fatalmente
desigual, sendo tudo da parte do tribunal, autoridade, experiência, doutrina,
poder, e, ao contrário, tudo o que termina por desequilibrar-se, do outro
lado, de uma jovem de dezenove anos, que defende sua honra de cristã e sua
liberdade de consciência.
Para isso é que servem as santas e os santos, suponho.
22
Francesca Romana de’ Angelis
23
Q
MARTINHA
Os dias do melro
“uero um mês de janeiro com sol de abril”, cantava na Parlenda de
Ano Novo Gianni Rodari, narrador extraordinário de histórias para os
“grandes de amanhã”. E, ao contrário, neve, gelo, dias breves e noites longas,
porque em janeiro estamos em pleno inverno. Uma lenda pagã acompanha
os últimos três dias desse mês que a tradição considera os mais frios do ano.
Para fugir do gelo, um melro, com seus filhotes, encontrou abrigo em uma
chaminé, e quando dali saiu, em fevereiro, esperando que o pior tivesse
passado, suas penas brancas se haviam tornado escuras pela fuligem. Desde
então, os melros tornaram-se de uma cor preta reluzente, embora tenham
conservado o alaranjado do bico e o canto melodioso e aflautado.
Quem aquece o coração nos “dias do melro” é Santa Martinha, celebrada
no dia 30 de janeiro. A seu respeito, como, de resto, em relação a grande
parte dos mártires da cristandade das origens, sabemos pouquíssimo, porque
muitas vezes as únicas fontes que restam são as Passiones [Paixões], escritos
hagiográficos que, envolvendo essas figuras na lenda, esvanecem a verdade
histórica. Diferentemente de outros mártires mais famosos, Martinha não
teve o dom de uma devoção constante, capaz de conservar sua lembrança no
tempo. Sua história é fascinante, feita de esquecimento e de recuperação da
memória, até que o entusiasmo de um pontífice e a emoção de um grande
artista lhe restituíram voz, gestos e sentimentos.
Estamos na primeira metade do século III, quando a juveníssima
Martinha, nascida numa nobre família romana, fica órfã de pai e mãe.
Sozinha, mulher e cristã: uma condição de fragilidade extrema que Martinha
sabe transformar numa força inexaurível. O seu primeiro ato — renunciar a
todas as suas riquezas para doá-las aos necessitados, precede de séculos a
pobreza na alegria de Francisco. Martinha faz-se testemunha da acolhida,
dedicando a vida aos pobres e aos doentes, interpretando, assim, o papel
ativo que as mulheres tinham nas primeiras comunidades cristãs, um modelo
feminino que bebia diretamente da fonte da palavra evangélica, onde as
mulheres sabem acolher e compreender Jesus. Nesse período, reinava
Alexandre Severo, mas a tolerância desse imperador, vindo da distante
Fenícia, que havia incluído Cristo em seu larário, não é suficiente para
proteger Martinha da perseguição de Ulpiano, célebre jurisconsulto e
poderoso prefeito do Pretório. Aprisionada e submetida a torturas cruéis, foi
decapitada no ano de 228. A partir desse momento, cai o silêncio a respeito
de Martinha.
Depois de quatro séculos de seu martírio, Honório I dedica-lhe uma
pequena igreja aos pés do Capitólio. Nos séculos subsequentes, enquanto a
igreja é usada para usos civis, perde-se novamente a memória dessa mártir
24
das origens. Em 1256, sob o pontificado de Alexandre IV, durante os
trabalhos de restauração da igreja, vêm à luz as relíquias de Martinha e de
outros três mártires, Concórdio, Epifânio e um terceiro, que permaneceu
anônimo. Restaurada e reconsagrada, a igreja vai ao encontro de um novo
destino de abandono, e de Martinha se perde mais uma vez a lembrança. Em
1588, o Papa Sisto V entrega a igreja de Santa Martinha à Universidade das
Artes da pintura, da escultura e do desenho (a atual AcademiaNacional de
São Lucas), em substituição à igreja no Esquilino, dedicada a Lucas, o santo
evangelista protetor dos pintores, que fora demolida. Os trabalhos de
reconstrução da igreja, agora dedicada a dois santos, começaram somente em
1634, por iniciativa de Pietro de Cortona, o pintor arquiteto então
protagonista da cena artística romana. A redescoberta das relíquias de
Martinha durante as escavações preliminares suscita o entusiasmo de Urbano
VIII, que, tendo ido imediatamente prestar homenagem à mártir, decide
financiar a obra juntamente com seu sobrinho, o cardeal Francesco
Barberini, fixa a data de 30 de janeiro para a celebração de Martinha e a
eleva a copatrona de Roma.
Quanto a Pietro de Cortona, a emoção intensa que sente pela redescoberta
das relíquias modifica suas perspectivas, e o projeto arquitetônico torna-se
um testemunho de comovida devoção. Na realização da igreja, investe tudo:
talento, paixão, empenho, dinheiro, e o resultado é uma joia do barroco
romano. No coração do Fórum romano, ao lado dos mármores historiados do
Arco de Sétimo Severo e do umbilicus Urbis [umbigo da cidade], ou seja, o
centro ideal da cidade de Roma, a igreja de São Lucas e de Santa Martinha,
que se eleva entre tanto céu, é uma obra-prima de harmonia, de suavidade e
de luz, com a curvatura amena da fachada, a preciosidade da cúpula, a sagaz
sucessão de reentrâncias e de saliências, a brancura dos estuques muito
ornamentados e da estátua de Martinha aí situada. Na cripta, onde são
conservadas as relíquias da santa e de seus companheiros de martírio,
bronze, mármores multicores, alabastro e a escuridão, aliviada por um fio de
luz que filtra através de uma grade circular colocada no teto, em
correspondência com a cúpula.
Talvez, se quiséssemos conferir um rosto a Martinha, deveríamos imaginá-
la como uma das santas virgens no cortejo de Santo Apolinário Novo, em
Ravenna, estatuetas imateriais e flutuantes que, com as coroas do martírio e
o véu branco, símbolo da virgindade, avançam olhando para o infinito e para
o divino. Martinha, ao contrário, tem para sempre as formas plenas, as cores
reluzentes, a beleza límpida e suave que Pietro de Cortona, o pintor que
tinha “o fogo no pincel”, conferiu-lhe em suas telas. Diante do Matrimônio
místico de Santa Martinha, um pequeno quadro precioso a óleo sobre cobre
que o cortonense fez como ex-voto dedicado a Filipe Neri, outro santo de
quem era devoto, experimentamos a mesma sensação envolvente de
serenidade de quando entramos na igreja por ele finalizada. A dramaticidade
25
dos ganchos que a santa segura com a mão esquerda, simbolizando seu
martírio, cede diante do esplendor do lírio que ocupa o centro da tela. Porque
a imagem narra, mais do que como saiu do mundo, como Martinha esteve
no mundo.
No dia 30 de janeiro de 1948, caía ferido mortalmente Mahatma Gandhi.
Dezessete séculos separam a morte violenta da menina cristã da do moderno
apóstolo da não violência. O mundo melhorou, mas não o suficiente. E
então, no dia dedicado a Martinha, naquela nesga do mês que abre as portas
para o ano novo, talvez o melhor modo de recordá-la é repetindo as palavras
de Santo Agostinho: “A esperança tem duas filhas belíssimas: a indignação e
a coragem; a primeira, diante de como estão as coisas; a segunda, para mudá-
las”.
26
Pietrangelo Buttafuoco
27
T
ÁGATA
O milagre do véu
irados do leito, todos correm pela rua. Ainda é plena noite. Vestem
apenas a camisa e o solidéu. Homens e mulheres, crianças e velhinhos
estão com a vela na mão e pululam por toda parte. O bispo também está com
eles. Em seguida, o prefeito.
Eis Ágata. Sagrada ainda antes de ser santa. Catânia venera-a, e o
presságio de suas virtudes começa já desde 235, ano de seu nascimento,
quando reinava Décio, no tempo de Quinciano. Procônsul de Roma,
Quinciano foi o homem que lhe dedicou — jamais correspondido — o amor
e o desejo carnal a ponto de confiá-la à lascívia de duas grandes damas e de
Afrodísia, uma cortesã, a fim de que lhe corrompessem as virtudes, mas em
vão. Esse amor jamais correspondido foi narrado em uma tragédia por
Antônio Aniante. Quinciano, precisamente. Uma obra dos anos trinta, um
enxerto de vanguarda no tronco sólido da hagiografia confiada a Turi
Giordano, um ator.
Eis Ágata. Menina de grande educação, instruída segundo os costumes da
aristocracia que a acompanhou até os braços da tortura para sustentar-lhe a
respiração e fazê-la proclamar, ao modo de uma aristocrata: “Não apenas sou
livre de nascimento, mas provenho de alta linhagem”.
Vestida de sólida riqueza, falou diante das autoridades do palácio pretório.
E, com a consciência do próprio status, acrescentou: “Assim como é sabido de
todos vós, estando aqui presente toda a minha nobre parentela”.
Ágata, cujo nome encontra-se entre os mais antigos no martirológio da
Igreja ortodoxa e da santa Igreja romana, teve de padecer o tormento
enquanto uma mão, piedosa, lhe protegesse o pudor, cobrindo-a com um
véu que ainda hoje consegue acalmar a fornalha do Etna, sempre pronto a
engolir a cidade. Em 252, um ano depois da morte (que aconteceu no dia 5
de fevereiro, a data em que a celebramos), da cratera do vulcão transbordou
a lava até espalhar-se pelas casas. Foi aquele véu que deteve a corrida. O
mesmo milagre repetiu-se em 1886. Abriu-se no cone uma nova boca, e a
lava precipitou-se, buscando fácil via na descida.
Era o dia 24 de maio, e o cardeal Dusmet subia de Catânia em procissão,
ao longo da mesma trajetória. Trazia consigo o véu, e toda aquela morte
ardente deteve-se contra toda a lei da gravidade e ali se extinguiu. Um altar,
ainda hoje, recorda-o. Conduzido em procissão, o véu protegeu o povo do
tremendo terremoto de 1169. E assim, da peste, da fúria sarracena que
somente na costa catanense — receando ofender Ágata — deteve os
massacres e os saques; Frederico II da Suábia, pronto para submeter Catânia
a ferro e fogo, consentiu que fosse celebrada uma última missa em honra de
Ágata, presenciou ele mesmo, mas — segundo a lenda —, em seu breviário
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chegou a ler uma admoestação e poupou-a. Noli offendere patriam Agathae quia
ultrix iniuriarum est [Não ofenda a terra de Ágata, pois é vingadora de toda
injustiça].
Jamais houve um instante em que Catânia tenha ficado sem Ágata, e
quando os americanos, de suas forças aéreas, em julho de 1943,
bombardearam minuciosamente cada ângulo, até mesmo os hospitais, viram-
se diante de um único escudo, colocado para servir de proteção antiaérea:
aquele véu. E foi aquele véu que conseguiu, em seguida, conservá-los longe;
e foi assim que as sagradas, mais do que santas, relíquias não se tornaram,
então, pedregulho entre os escombros.
Ágata, cujo símbolo é uma autoridade régia, chama a si os anjos e o azul
dos céus para testemunhar a unicidade de Deus. Santa protetora de Palermo,
que a venera nos Quatro Cantos, o ponto culminante dos quatro bairros da
felicíssima caput regni et sedes regis [chefe do reino e sede do rei], portanto, ao
lado dos quatro reis e das outras santas — Cristina, Ninfa e Olívia —, Ágata é
patrona de Catânia, que se torna magma aos seus pés.
Todos são tirados do leito, e todo aquele liquefazer de fogo — cada um
com a vela — transforma as ruas, de negras que são, escurecidas de pedra
lávica, em uma mistura de bruxuleio e devoção. Mais sagrada do que santa,
Ágata de Catânia faz seus os atributos de Íside, a divindade remota do
Mediterrâneo sagrado. A religião é propriamente re-ligere, o unir o tempo e os
lugares, as almas e o eterno.
Eis Ágata. É virgem e mártir. Bela de toda beleza — no culto que ainda lhe
é dedicado como patrona etnea, de Galatea, de Malta e da livre República de
San Marino —, Ágata confirma tudo o que a deusa dedicada à fé em Hórus, o
Renascido, já difunde nos milênios: tornar igual o poder das mulheres e dos
homens. E fazer da lua um sol vivo, fazer da sofreguidão uma consolação, e
assim transformar a tumba em um infinito sublime, onde o ex-voto de um
menino que escapou de um câncer fulminante convive com a necessidade —
para um pai de família— de ver estabilizado o próprio contrato de trabalho
precário junto à administração estatal siciliana.
Um completo intercâmbio de oração e misericórdia, tangível já nos
recantos, diante do mar, onde todos — vestidos com o saco da noite, com o
barrete preto na cabeça —, na edificação dos nichos votivos e, em seguida, no
sair pela rua, invocando-lhe a presença, repetem a chamada do dia 17 de
agosto de 1126, quando Gilberto e Goselmo, dois soldados, conseguiram
reconduzir as carnes de Ágata, roubadas de Constantinopla em 1040.
Tudo se repete e toda a municipalidade está de pijama, enfim: todos os
cidadãos acorrem à notícia. Até mesmo os mafiosos. Mas estes a esperam
para dela se vangloriarem, obrigam o andor a uma parada embaixo da
varanda de suas casas. Aconteceu que, na noite do dia 4 de fevereiro de
1993, nas proximidades da rua Plebiscito, um malfeitor quis deter, por
orgulho pessoal, uma das doze candelárias e, assim, engrandecer o instante
29
de presença de Ágata. No entanto, padre Alfio Spampinato, capelão militar
da Folgore [Brigada de Paraquedistas Italiana], ao dar a bênção com muitos
sinais da cruz, deu uma bofetada no rosto do prepotente a fim de fazê-lo
ajoelhar-se e permitir que os devotos caminhassem, finalmente livres de
pagar penhor à prepotência, e dar continuidade, entre velas e coros, à festa
agatina.
Um intercâmbio completo de mundos e de épocas, ainda hoje. No triunfo
de sua imagem, cheia de vida, no orgulho dos seios, Íside levava conforto às
pessoas. Das areias do Egito até o templo erguido em sua honra pelas virgens
de Benevento, sob Diocleciano, Íside — conduzida em triunfo — fazia
papinha de seu próprio corpo místico no sinal da doçura de um seio
multiplicado, na felicidade de dar vida. Como dá vida aquela ideia de
gastronomia que se tornou, depois, com Giuseppina Torregrossa, Il Cunto delle
Minne [Mamas sicilianas, trad. Editora Objetiva]: os bolinhos de Catânia, feitos
em forma de seios, com os mamilos de maçapão. Aqueles que são dados pelas
avós às meninas. E sempre aos pares. Íside habitou o culto de Deméter, em
seguida foi transfigurada na Virgem — trazendo entre os braços a criança —,
e Ágata também, como o arquétipo, tornou-se soberana por meio de São
Pedro, que a visitou na prisão a fim de levar-lhe conforto antes que lhe
fossem arrancados os seios.
Coroada, Ágata está sentada na glória da fé em Cristo, o Ressuscitado, e,
portanto, intermediária das abundantes bênçãos e intercessões para os
devotos junto a Deus, o fim definitivo de um domínio onde aquelas mesmas
marés, as agitações da crosta terrestre e, não por último, os pesadelos são
desfeitos em sonhos; em encostas superabundantes de giestas — aquela terra,
como quando as plantas perfuram a pedra — e, mais ainda, em fragrante
espuma cujo marulhar, nas ondas, repete a oração de Ágata.
30
Ulla Birgitta Gudmundson
31
T
LUZIA
Vestes brancas e velas
alvez o leitor pensasse que, se há uma santa bem conhecida na
Suécia (pós-)protestante, esta é Santa Brígida, única mulher sueca a
ter sido oficialmente canonizada pela Igreja católica. Mas não é assim. Há
outra santa, que tem um papel muito mais importante na sociedade sueca
atual: Santa Luzia, a virgem siciliana que, no século IV, teve os olhos
arrancados e foi martirizada por sua fé. Praticamente em todas as escolas,
colégios e creches, como também em muitos hotéis, restaurantes, lojas e
estabelecimentos de trabalho de qualquer gênero, se organiza a procissão de
Santa Luzia todo dia 13 de dezembro.
Muitos vencedores do prêmio Nobel, hospedados no Grand Hotel de
Estocolmo para a cerimônia, ficaram surpresos ao encontrar cedo de manhã,
à sua porta, uma menina vestida de branco, com uma coroa flamejante,
tendo à mão uma bandeja com vinho quente aromático, fogaças de açafrão e
biscoito ao gengibre.
Também me lembro de que, quando menina, meus pais me arrastavam do
leito, relutante, em plena noite, e me levavam a representar Santa Luzia para
meus avós. No que diz respeito ao aspecto, eu era adequadíssima para o
papel: cabelos longos até a cintura, perfeitos para a coroa feita de folhas de
mirtilo e velas verdadeiras.
A faixa de seda vermelha que é usada tradicionalmente com a veste
branca de Luzia quer simbolizar o martírio da santa. Não penso, porém, que
todos os suecos conheçam o nexo com a mártir. De fato, seria justo falar de
duas tradições, uma siciliana e outra escandinava.
Como o Natal, a tradição de Santa Luzia na Suécia é um misto de
elementos cristãos e pré-cristãos. O nome Luzia está ligado à palavra latina
lux, luz. Na Escandinávia, os invernos são longos e escuros, e a tradição de
celebrar uma festa de esperança para o retorno da luz provavelmente é muito
antiga.
No século XIV, Suécia e Finlândia seguiam o calendário Juliano, no qual a
festa de Santa Luzia coincidia com o solstício de inverno, a noite mais escura
e mais longa do ano. De acordo com o folclore, nessa noite os trolls e outros
seres sobrenaturais vagam pelas florestas e vilarejos, e os animais podem
falar.
Na Suécia rural, todos os preparativos para o Natal deviam ser concluídos
nesse período: o porco devia ter sido matado, as salsichas preparadas, o pão e
as fogaças doces cozidos, a cerveja fermentada e a aguardente destilada.
Santa Luzia era um primeiro ensaio das festas natalinas.
Também o excesso de bebida é, infelizmente, uma característica dos jovens
que celebram Santa Luzia. Com efeito, também isso tem origens muito
32
antigas, visto que os jovens, na festa da Santa Luzia, iam pelas casas
cantando, esperando em troca não apenas comida ou, talvez, uma moedinha,
mas também um ou vários tragos.
Não é exagero dizer que os suecos — muitas vezes considerados um povo
moderno, se não até mesmo futurista — são apegados de modo fanático à
tradição de Santa Luzia. E o coração da tradição é, em minha opinião, o
canto.
A canção de Santa Luzia, certamente, é importada da Itália. Todavia,
tradicionalmente, Santa Luzia e suas donzelas cantam também hinos e cantos
suecos antigos, alguns dos quais radicados na Idade Média e entoados
também nas igrejas católicas, como Det är en ros utsprungen (em alemão: Es ist
ein Ros entsprungen [Brotou uma rosa]).
Os costumes culturais têm uma origem, mas podem também transcender
os confins. Nos últimos quatro anos, Mtarfa, pequena paróquia católica na
ilha de Malta, cuja igreja paroquial é consagrada a Santa Luzia, celebrou uma
versão maltesa da festa sueca.
Recentemente, uma procissão de Santa Luzia percorreu a nave central de
São Pedro, cantando um hino de Advento sueco, Bereden väg för Herran
[Preparai os caminhos ao Senhor], com uma melodia antiga, inspirada no
canto gregoriano.
Mas a beleza da celebração tradicional de Santa Luzia talvez tenha sido
mais bem expressa por uma ex-aluna de meu pai. Tendo desmaiado durante
a procissão, quando voltou a si, disse: “Foi belíssimo. Verdadeiramente
belíssimo. As vestes brancas. As velas. A música e o canto. Pensei estar no
céu. Mas depois vi a diretora”.
33
Sandra Isetta
34
N
CLOTILDE
Converter os maridos
a alta Idade Média, a construção das civilizações europeias apoia-
se também sobre fundamentos ocultos: a força e a inteligência de
grandes mulheres cristãs. É o caso das origens do reino francês, ligado à
vigorosa personalidade de Clotilde, filha, esposa e mãe de reis, pecadora e
depois santa.
Clotilde insere-se numa longa tradição, inaugurada por Helena, mãe de
Constantino, que conjuga a vocação religiosa com um destino político, a
Igreja e a estirpe. Não é única entre as mulheres medievais — desposadas por
reis conquistadores para ampliar seu domínio com laços de parentesco —
cuja vida é marcada por uma série de tragédias e de assassinatos régios, mas
cuja missão é a conversão dos reis consortes e, portanto, de povos inteiros: na
Inglaterra, Berta, esposa de Etelberto de Kent; na Espanha, Teodósia, mulher
do duque de Toledo. Na Rússia, a princesa de Kiev, Olga, é a primeira
soberana batizada, e Edviges, da Polônia, começa a conversão dos países
bálticos.
As notícias a respeitode Clotilde estão na Historia Francorum [História dos
francos], de Gregório de Tours, e no anônimo Liber historiae Francorum [Livro
da história dos francos]. Nasceu em Lião, em 475, enquanto o Império
Romano, no Ocidente, desmoronava (476) e a Gália romana se desagregava
em diversos reinos bárbaros. Era filha de Chilpérico II, rei dos burgúndios,
grupo germânico estabelecido ao longo do Reno e do Ródano, de religião
ariana. Sua infância foi de violências, transcorrida em luta fratricida entre os
tios e o pai, de quem, no ano 486, o irmão Gundebaldo decepou a cabeça. A
mãe foi lançada na água com uma pedra amarrada ao pescoço. Clotilde
jamais se esqueceu dessas violências brutais, e sua missão será justamente a
pretensão de substituir a justiça divina com a vingança pessoal.
Órfã, com a irmã mais velha, Crona, foi exilada para Genebra, para junto
do outro tio, Godegisil. Aqui, as duas irmãs converteram-se ao catolicismo e
dedicaram-se à oração e à assistência. A fama de seus dotes morais e de sua
beleza chegou às cortes reais. Assim, foi pedida em casamento por Clóvis, o
jovem rei dos francos, que subiu ao trono aos quinze anos; descendente do
mítico Meroveu, tornar-se-á o antepassado dos merovíngios, povo germânico
estabelecido ao norte do Sena.
Com o matrimônio, o cenário religioso da família não melhora. Se o pai
era ariano, o marido era um pagão que, embora bastante rude, tratava os
cristãos com humanidade: era seduzido pela suavidade com que Clotilde
falava de sua religião. Consentiu com o batismo do primeiro filho, que
morreu quase de repente, ainda com a veste branca. As reivindicações contra
o “Deus de Clotilde” cederam, porém, à admiração pela fé com que a rainha
35
enfrentou a provação, que se repetiu com o nascimento do segundo filho,
Clodomiro, salvo pelas orações. Clóvis converteu-se em 496, em Tolbíaco,
junto a Colônia, no decurso da batalha contra os alamanos. Instruído pela
rainha, como Constantino na ponte Mílvia, implorou a ajuda de Cristo,
mudando a temida derrota em vitória: “Acreditarei em vós e me farei batizar
em vosso nome”, promessa que cumpriu, juntamente com três mil francos,
na noite de Natal do mesmo ano, na catedral de Reims, recebendo de São
Remígio também o “toque real”, o poder taumatúrgico contra as escrófulas.
Em 511, Clóvis morreu, saudado como soberano dado por Deus à Gália
católica, futura França, “primogênita da Igreja”.
As provas mais duras deviam ainda chegar: Clotilde pediu a seus filhos
que vingassem o assassínio dos avós, e Deus, para purificá-la, puniu-a com
dores. A filha morreu devido aos maus-tratos do marido; Clodomiro, o filho,
foi morto. Ela tomou os filhos deles a seus cuidados, incorrendo em uma
culpa mais grave: do momento em que os tios queriam eliminar os herdeiros
do irmão, colocaram Clotilde diante da escolha de matá-los ou de cortar-lhes
os cabelos (os longos cachos eram privilégio e, portanto, sinal da condição
régia; cortando-os, tê-la-iam perdido).
Clotilde preferiu “vê-los mortos a privados do reino”: a pátria terrena
tinha obscurecido a celeste no espírito da rainha. Para expirar essa culpa,
retirou-se do mundo, em Tours, e viveu em humildade tal a ponto de
esquecer-se de ter sido rainha. Como muitos santos, anunciou sua morte,
que aconteceu no dia 3 de junho de 545. Foi proclamada santa por
aclamação e, em seguida, canonizada pelo Papa Pelágio.
Seu culto difundiu-se na Normandia, em Andelys-sur-Seine, onde a água
de uma fonte, misturada a vinho, é dada a beber aos doentes, em recordação
de um milagre de Clotilde, que teria revigorado os trabalhadores que
construíam o mosteiro com aquela água que assumira sabor de vinho. As
mulheres dirigem-se a ela para a conversão dos maridos, e é invocada contra
a morte súbita, as febres e os males das perdas (por causa da analogia entre a
raiz de seu nome e o verbo claudiquer [claudicar, manquejar]). A ela se deve
também a substituição dos três sapos por três lírios no escudo da monarquia
francesa, que um misterioso eremita lhe deu na floresta de Saint-Germain-
en-Laye. Na Argentina, é protetora dos órfãos e patrona do povoado de
Beruti, na província de Buenos Aires.
36
Liliana Cavani
37
C
CLARA DE ASSIS
Carta a Francisco
“aríssimo irmão em Cristo, que o Pai te dê paz e saúde. Gostaria de
haver te escrito somente para dar-te notícias de alegria, mas não é
este o momento. Todas juntas, nós, tuas irmãzinhas, refletimos e, sobretudo,
rezamos muito para tocar-te em Espírito, a fim de que as palavras que leres
não te firam demasiado, mas alcancem o propósito que é o de iluminar-te a
respeito da urgente necessidade de deixar a Terra dos Mouros e voltar.
A fraternitas é como uma pobre barca em meio a uma grande tempestade e
corre o risco de ser submersa. Eis a causa. Quem a guia em tua ausência dá
ordens aos Irmãos e às Irmãs opostas e contrárias àquelas que tinhas em
mente. Isso provoca discussões e contínuas disputas que conheces, mas que
sabias gerir com paciência e sabedoria. Três meses depois de tua partida para
a Terra Santa, houve assembleias de Irmãos sempre mais frequentes, das
quais nós, Irmãs, jamais éramos chamadas a participar. Leão, Egídio e alguns
outros, com muita tristeza, vinham contar-nos o que acontecia.
Repropunham para a Fraternidade uma Regra de vida oposta àquela que
havias indicado com tanta clareza e paciência. Quem se opunha era
silenciado e expulso. Por essa razão, tantos Irmãos estão confusos, outros
muito tristes e dispersos. Muitos, ao contrário, estão contentes com seguir as
novas diretrizes.
A primeira consequência é que nossa amadíssima Senhora Pobreza, fiel
companheira de nossas vidas, é expulsa com enfado e até mesmo com
desprezo. Os Irmãos que continuam a amá-la são acusados de heresia e
expulsos, mas o verdadeiro motivo é que são considerados demasiado fiéis às
tuas orientações. O coração de toda a questão, tu o conheces bem. Dizem que
tu lhes negavas o direito de estudar e de aprofundar com o estudo a palavra
de Jesus Cristo. Sabem muito bem que dizias coisa bem diferente. Dizias que
o estudo é importante quando ajuda as pessoas a serem livres, e dizias
também que o estudo é até mesmo santo se está a serviço da Verdade e da
Vida. E, para ti, justamente Cristo é Verdade e Vida. Para muitos deles, ao
contrário, o estudo é um meio para subjugar quem não estudou e não
conhece as palavras para pedir justiça. E é precisamente a palavra fraternitas
que parece irritar esses doutos, como se não compreendessem seu significado
arrebatador, que te impeliu e, por meio de ti, tantos homens e mulheres,
inclusive a mim. Isso nos traz grande tristeza, e podemos apenas rezar por
esses irmãos doutos, a fim de que Jesus Cristo os ilumine, mas, por enquanto
— é amargo dizê-lo — são vencedores e levados em consideração por Roma.
E é por causa de tudo isso que a tempestade se abateu também sobre nós,
tuas irmãzinhas. Faz dois meses que chegou de Roma a ordem de fazer de
São Damião, que para nós sempre foi simplesmente a Casa, um verdadeiro
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convento, como todos os outros conventos. Se tu bem te lembras, havia uma
ameaça no ar antes mesmo de tua partida, mas, graças à tua presença, a
autoridade ficava parada, como uma fera mantida em correntes. A ordem de
Roma impôs imediatamente a nós, irmãs, não sair jamais e não mais
encontrar os irmãos, nenhum deles. No entanto, jamais houve escândalo de
nenhuma espécie, mas intercâmbio de auxílio e de conselhos, e nos
ajudávamos com os enfermos no asilo para casos difíceis, como os paralíticos
que deviam ser removidos. Éramos, de fato, uma fraternitas. Além dos portões
e das cancelas, também as barras das janelas nos separam de todos. Já não
temos podido sair para trabalhar, seja a serviço em uma casa de abastados,
seja na fábrica, a fim de obter o sustento para nós e para nossos irmãos
pobres ou enfermos.
Tu te perguntarás do que vivemos. Eis a maior surpresa. A alimentação
vem-nos das entregas dos ‘nossos camponeses’, que nos trazem todos os bens
de Deus. De fato, tornamo-nos suas ‘patroas’. Enfim, a Igreja concedeu-nosrendas, e assim vivemos de renda. Parece quase uma brincadeira, se pensares
que eu e outras irmãs deixamos cômodos palácios e fartas mesas para abraçar
a Senhora Pobreza, por vergonha para com os irmãos em desvantagem.
Somos, de novo, privilegiadas e protegidas, e nos sentimos como aquelas
bonecas com as quais brincamos quando meninas, e que são jogadas de um
lado a outro. O Oficial Pontifício que nos trouxe o documento a respeito do
usufruto das terras que nos conferiram riu quando lhe disse que não
queríamos aquele privilégio de renda, mas, ao contrário, o privilégio de ser
pobres. Ele nos fez ver que muitíssimos irmãos estavam bem felizes com
terem obtido lugares confortáveis para o estudo e a oração. Não houve jeito
de fazê-lo compreender que estávamos felizes em ganhar o sustento, como o
faz a maior parte dos ‘irmãos’. Não conseguia compreender que não me
referia a irmãos de sangue, mas aos irmãos em Deus, o que é bem mais
importante. Foi um diálogo impossível.
Nos primeiros tempos, quase não conseguíamos comer, tão embaraçadas
estávamos. Nós nos envergonhávamos e doávamos tudo. Depois, juntamente
com Leão e Pedro, fui ter com o bispo para falar-lhe; assim, tendo feito um
acordo com ele, somente com ele, mal escurece, eu e algumas irmãs saímos
para levar alimento e assistência aos nossos irmãos em dificuldade. Mas o
principal impulso para nossa resistência é a certeza de que, quando voltares,
esse equívoco será esclarecido. Uma interpretação tão errada das palavras do
Evangelho só pode ser um equívoco. E justamente por causa desse equívoco
tantos irmãos aceitaram casas e até mesmo palácios para viver no conforto.
Dizem que estudam e, por isso, precisam repousar tranquilamente,
alimentar-se com iguarias finas e vestir-se com tecidos macios. Não pensam
assim os primeiros que chegaram à fraternitas, Leão, Rufino, Pedro, Egídio e
outros. Permaneceram fiéis ao Evangelho ao pé da letra e, portanto,
continuam a viver como antes, mas esperam e rezam para que logo tudo se
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esclareça. Tu não podes imaginar quanto é necessário que existas.
Chegou até nós a notícia, graças a um comerciante que a difundiu, de que
encontraste o sultão e que vocês falaram sobre uma possível paz. O bispo
veio contar-nos pessoalmente a respeito. Exultava de alegria, mas parece que
em Roma eles têm outras ideias. É evidente que na Terra Santa precisam de
ti e eu e as irmãs corremos o risco de ser inoportunas. Mas é justo que saibas
de tudo para poder decidires, e para isso rezamos muito e…”
A carta interrompe-se aqui. Certamente trouxe muito desgosto a
Francisco. Sabia que Clara jamais a teria escrito se os fatos não tivessem sido
ainda piores. Elias de Cortona, que estava com ele na Terra Santa, recorda
que o amigo, ao lê-la, tinha lágrimas nos olhos, mas não revelou o conteúdo
a ninguém. No entanto, decidiu voltar para a Itália com a primeira nau
possível.
Essa carta jamais foi lida por algum biógrafo. Nas Fontes Franciscanas,
porém, se lê a respeito de uma carta enviada por Clara a Francisco, na qual
lhe pedia que voltasse. Com efeito, era o período no qual, dentro da
fraternitas, havia grandes dissensões. Escrevi-a usando a imaginação. Agora
me parece tão verdadeira que não posso destruí-la.
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Rosa Matteucci
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E
ROSA
A pregadora perdida
m 1233, em Viterbo, fortaleza cátara, na rota de Roma, nasceu
Rosa, menina empreendedora, mas sempre frágil de saúde, como se o
temperamento, levado a coisas mais elevadas que sua natureza, encontrasse
contraste na caducidade do corpo.
Afligida por uma doença que lhe privara do esterno desde o nascimento,
trazia consigo uma esperança mínima de vida, não além dos três anos e,
portanto, antes da primeira infância. Pequenas como eram as mulheres
naquele tempo, na compleição já modesta e enfraquecida pela incapacitação,
pobremente vestida, Rosa encontrou na oração sua razão de vida, seu modo
de ser e de dar graças por aquilo que havia sido querido. Precocemente
raptada pelo ascetismo, diáfana e minúscula, Rosa queria absolutamente falar
com o imperador, Frederico II, venenosamente propenso a subjugar o Papa,
contestando, em nome da fé, suas pretensões de submissão do trono de
Pedro. Rosa, no entanto, com os poucos meios à sua disposição, defendia a fé
e o santo padre do desvio cátaro, que semeava o niilismo, rejeitando os dons
de Deus tais quais os do demônio, fortalecido pelas teses dos peritos
bizantinos, que falavam da oposição nítida e feroz entre pureza do espírito e
caducidade da carne.
Pouco mais que adolescente, Rosa teria desejado ser recebida no convento
das clarissas, que considerava o domicílio mais idôneo para seu desejo de
absoluto, para seu anseio que a chamava à perfeição divina, único remédio
possível para as fraquezas humanas. Ofereceu-se a elas com espontaneidade
e coração límpido, sem imaginar que sua fragilidade física, unida à carência
de um senso adequado, jamais lhe haveria aberto as portas do convento de
São Damião.
Em tempos difíceis como aqueles, os pobres desse tipo ficavam, sem
esperança de libertação, marginalizados e ignorados, obrigados a optar mais
por sobreviver do que por viver uma vida digna desse nome. Portanto,
embora a jovem fosse sincera, as clarissas mantiveram-na a distância, artífices
inconscientes de uma dificuldade que teria refinado a pureza de espírito e a
determinação da pessoa que decidiam não acolher.
Rosa, porém, não se deu por vencida, pediu e obteve permissão para
pregar como terciária fora dos muros do convento que tão dolorosamente a
havia rejeitado, de modo que inaugurou sua espontânea pregação pelas ruas
de Viterbo, povoada de cátaros apoiados pelo potentíssimo imperador que
mais do que nunca pretendia a radical redefinição das relações hierárquicas a
respeito do vigário de Cristo, no sinal de uma submissão do altar à profissão
das armas.
Sua ardente pregação cotidiana, sua declarada intolerância para com os
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cátaros fizeram-na ganhar um golpe de espada, durante o assédio que o
imperador empreendeu contra Viterbo. Em consequência desses fatos, a
autoridade emitiu um decreto de banimento com o qual expulsava da cidade
a jovem pregadora e sua família, o pai e a mãe. Desse modo, a pequena Rosa
dos magnéticos olhos azuis, pobremente vestida, abrigou-se — estava-se em
pleno inverno — com sua família em Soriano del Cimino, portanto, em
Vitorchiano.
Continuou a lutar contra o superpoder imperial em condições sempre
mais míseras, assediada pelo frio e pela carestia, forte apenas de uma arma
aparentemente inútil, mas, ao contrário, poderosíssima. Seu único
instrumento era, de fato, a oração oferecida em dom à Igreja católica,
atividade que tampouco lhe valerá o prêmio da entrada no Carmelo. A jovem
fica sozinha, a levar adiante sua guerra contra o desvio herético ao longo dos
calçamentos e dos muros varridos pelos ventos. Com a morte do imperador,
por ela profetizada, reabrem-se-lhe as portas da cidade. Pareceria uma
vitória, mas seu caráter estranho às coisas do mundo levava-a a raciocinar e a
argumentar em termos diversos daqueles das vitórias e das derrotas:
categorias terrenas e, portanto, viciadas pela caducidade. Sua batalha era, ao
contrário, por algo que não podia ser medido com a norma das coisas
mundanas.
Na cidade, que fora e não fora a sua, morre em 1251. Seu corpo foi
sepultado fora da igreja de Santa Maria, em Poggio.
Imediatamente, seguiram-se os prodígios, como se a verdadeira vida de
Rosa tivesse começado depois daquela que nos obstinamos em chamar de
vida. Curas de cegueira e de qualquer outro mal, fenômenos reclamam e
aumentam a devoção popular de quem começa a invocar como santa a
pequena e perdida pregadora, portadora de uma mensagem que não é
apenas sua.
Inesperadamente, Inocêncio IV, empenhado na furiosa luta contra os
gibelinos, indistinguíveis dos cátaros, com o respeito que se deve a uma alma
piedosa e aos seus restos mortais, ordena que o corpo de Rosa seja trasladado
do campo ao convento de São Damião, de modo que o lugar a que não
pudera ter acesso em vida tornou-se sua morada eterna:o convento das
clarissas. Aqui o corpo de Rosa, miraculosamente intacto, guardado em uma
urna, teve a honra de ser deixado à veneração dos fiéis. A permanência de
suas aparências terrenas é considerada sinal do poder inerente à sua palavra:
uma pregação capaz de impor-se seja sobre a fraqueza do corpo, seja sobre a
transitoriedade de tudo.
A flor que Rosa trouxe no nome é algo mais do que um símbolo, como tal,
capaz de sair incólume também das chamas, herança do incêndio que em
1357 tudo devora, exceto o corpo incorrupto da santa. Em sua passagem,
havia algo que teria iluminado o mundo.
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Oddone Camerana
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U
ISABEL
Uma rainha de paz
“ma santa mulher”, “um santo” — assim são definidas e lembradas
as pessoas que carregam ou carregaram a cruz no silêncio, que
padeceram fadigas, abuso de força, opressões, injustiças, tormentos, sem
lamentar-se e com espírito de sacrifício.
Uma figura do passado, mas também do presente, reconhecível hoje em
quem tolera a adversidade ou assume o peso da dos outros. Exceto que, em
relação a Isabel de Aragão (1271-1336), é evidente que a santidade é outra
coisa, e não passaria pela cabeça de ninguém definir Isabel como uma “santa
mulher”.
Filha de Pedro III de Aragão e de Constança, descendente do imperador
Frederico II, rei da Sicília, Isabel era uma aristocrata que praticava a
santidade com a oração, com a religiosidade, mas também com a
generosidade devida à sua posição. Tendo se tornado rainha ao casar-se com
Dinis, rei de Portugal, na corte real não abandonou os bons hábitos de uma
santidade ativa. Não negligenciando os deveres de esposa, continuou a
levantar-se cedo para ir à capela ouvir a missa de joelhos, receber a
comunhão e rezar o Ofício da Virgem e dos mortos. De espírito
contemplativo, no entanto, prestava atenção às obras de necessidade pública
e, de fato, não houve igrejas, hospitais e mosteiros para cuja construção não
tivesse contribuído com régia generosidade.
A santidade de Isabel encontrou jeito de exprimir-se não só em sua
condição de rainha e de religiosa franciscana, mas também como mãe. Dando
ao marido dois filhos, Constança e, a seguir, Afonso, herdeiro do trono, Isabel
manifestou, com efeito, seu caráter e sua dureza de mulher enérgica e ativa,
não apenas aguentando heroicamente os amores ilícitos do marido, mas
cuidando, em seguida, da educação dos filhos naturais dele como se fossem
dela.
Mas foi no papel de pacificadora e de reconciliadora que as virtudes de
Isabel assumiram um colorido heroico e shakespeariano, lá onde a rainha se
sentiu no dever de intervir na luta que irrompeu entre o filho e o pai,
tomando o partido deste, recebendo em retribuição por seu gesto o
encarceramento numa fortaleza. Contudo, essa não foi a única obra de paz
em que Isabel se empenhou. Outros conflitos, como aquele entre o marido e
o cunhado, ou entre influentes e ambiciosos serviçais da corte, viram o
esforço da santa rainha, devotado a enfrentar, sob a inspiração do senso do
bem e da paz, os exércitos opostos enfileirados, e a dissolver obscuras intrigas
de corte e a inveja.
Disposta a curvar-se à mudança das situações e dos contextos em que se
encontrava, Isabel descobriu o caminho da santidade também depois da
45
morte do marido. A essa altura, Isabel renunciou ao mundo, cortou os
cabelos, vestiu o hábito da Ordem Terceira Franciscana e foi em peregrinação
a Santiago de Compostela, aonde voltou no último ano de vida depois de,
nesse intervalo de tempo, ter se retirado num mosteiro para rezar, conversar
com as religiosas e dar audiência aos pobres, aos doentes e aos pecadores que
a ela recorriam. Jamais deixou de oferecer sua capacidade de mediadora
entre familiares em litígio, como teria procurado fazer com o filho e o neto
em guerra entre si, se não tivesse sido impedida por uma febre que a levou à
morte.
Alinhada ao espírito do tempo e do contexto em que se encontrou, Isabel
foi protagonista de milagres caracterizados pela cortesia e pela gentileza,
como o da transformação em vinho de um jarro de água em compensação
pelas penitências e jejuns dos quais fazia participar o pessoal da corte que lhe
era vizinho; ou as curas obtidas ao tocar os enfermos com suas mãos. Fala-se
também de uma aparição de Maria, para quem Isabel pediu que fosse
oferecida uma cadeira a fim de que se sentasse junto a seu leito de morte.
Contudo, mais espetacular e, ao mesmo tempo, mais relacionado com sua
ação de paz foi o milagre que assumiu forma no decurso da guerra entre os
filhos ilegítimos de seu marido Dinis e o herdeiro do trono, o futuro Afonso
IV, quando Isabel se interpôs entre os dois exércitos alinhados,
milagrosamente divididos por uma barreira luminosa que se elevou à sua
passagem.
De Isabel permanecem dois retratos relacionados à sua dupla natureza de
rainha e de religiosa. No primeiro caso, ela aparece ao lado do marido com a
coroa oferecida, em seguida, juntamente com outros dons, ao santuário no
qual se retirou. No segundo, vemo-la em hábito religioso, com o crucifixo na
mão direita, enquanto com a esquerda segura o véu no qual encontram lugar
os acessórios que ela confeccionava para as igrejas pobres.
Mas como seria Isabel hoje? Como se moveria num contexto tão diferente
daquele no qual teve de agir? Como poderia Isabel manifestar sua
generosidade e exercitar sua santidade? Confesso encontrar-me num tipo de
embaraço. Sinto o prevalecer dos sentimentos de distanciamento, sinal do
empobrecimento na concepção hodierna do bem e do altruísmo. Os gestos, o
comportamento, as escolhas de Isabel dificilmente ajudam a mostrar o
caminho da virtude.
Já é muito se evitarmos o risco de confundir a santidade com a tentação
de submeter-se e com a inclinação à obediência. Isabel não nos manda imitá-
la, mas consultar o “tribunalzinho” interior de nossa consciência. É preciso
escavar ali. Esperamos ser bem-sucedidos.
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Ulla Birgitta Gudmundson
47
S
BRÍGIDA
As palavras coloridas
obre minha estante, tenho um molde para queijos herdado dos
meus avós. É quadrado, de madeira, assinalado com a data de 6 de
maio de 1794 e as iniciais de quem o confeccionou. Sobre o fundo, na parte
interna, há um desenho intricado, que servia para decorar o queijo,
decoração que poderia ser vista tirando-se o queijo do prato e virando-o.
Pequenos furos permitiam que o soro escorresse durante o processo de
maturação.
Na Suécia rural, o modo de fazer queijo não mudou muito entre os
séculos XIV e XVIII. Portanto, a imagem que Brígida (1303-1373), única
santa sueca canonizada pela Igreja católica, tinha em mente quanto fez Cristo
comparar a alma a um queijo, e o corpo a uma forma para queijos, não pode
ter sido muito diferente daquela que vejo agora enquanto escrevo.
Santa Brígida foi ridicularizada por causa de tal comparação tão rasteira.
Contudo, é uma imagem de grande força explicativa. Como o queijo em seu
molde, a alma humana deve esperar certo tempo para amadurecer no corpo,
libertando-se gradualmente das impurezas, como o queijo se livra do soro. O
fim último, porém, é que o queijo saia do molde, maduro e perfeito.
Brígida é a primeira grande escritora em língua sueca. Sua criação — o
convento de Vadstena — foi, durante duzentos anos, o centro cultural da
Europa do Norte. Ebba Witt-Brattström, feminista e professora de literatura,
afirma que o sueco escrito, de fato, nasceu das atividades de tradução da
ordem brigidina. A imagem do queijo, utilizada pela santa, é apenas uma
entre tantas outras, todas muito coloridas. Compara os papas às borboletas e
aos passarinhos recém-nascidos; um bispo a uma mutuca; uma abadessa a
uma vaca gorda; reis e rainhas a macacos, serpentes e caroços de maçã. No
entanto, consegue também evocar a elegância da corte. A Virgem, patrona e
principal interlocutora de Brígida em suas Revelações, é majestosa,
suntuosamente vestida com uma túnica de ouro, com um manto azul-celeste
e uma coroa com “sete lírios e sete pedras”.
Erich Auerbach, autor do clássico literário Mimesis, sublinha que esse
movimento entre alto e baixo estilo, entre

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