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2 Sumário Capa Rosto Apresentação 1 - Delineamento do problema 1.1. Um problema perene sobre novos pressupostos 1.2. A nova situação 1.3. Os novos enfoques a partir da teologia 2 - As duas questões fundamentais 2.1. A “particularidade” como necessidade histórica 2.2. A “unicidade” da revelação plena 3 - O encontro entre as religiões 3.1. Todas as religiões são verdadeiras 3.2. Um diálogo real no qual todos aprendem 3.3. A insuficiência da linguagem 3.4. Uma pergunta fascinante: “in-religionação”? 4 - Uma parábola como final Créditos 3 kindle:embed:0002?mime=image/jpg Apresentação “Crê firmemente, confessa e prega [o concílio] que nenhum dos que existem fora da igreja católica, não somente os pagãos, mas também os judeus ou heréticos assim como os cismáticos, podem chegar a ser partícipes da vida eterna; pelo contrário, irão ao fogo eterno, ‘que está preparado para o diabo e seus anjos’, a não ser que antes do fim da vida sejam agregados a ela [à igreja].”1 “A igreja católica nada rejeita do que nestas religiões [não cristãs] há de verdadeiro e santo. Considera com sincero respeito os modos de agir e viver, os preceitos e doutrinas que, embora discordem em muitos pontos do que ela professa e ensina, não poucas vezes refletem um brilho daquela Verdade que ilumina todos os homens. (…) Por conseguinte, exorta a seus filhos que, com prudência e caridade, mediante o diálogo e a colaboração com os adeptos de outras religiões, dando testemunho da fé e da vida cristã, reconheçam, guardem e promovam aqueles bens espirituais e morais, assim como os valores socioculturais, que neles existem.” Estes dois textos, ainda que a priori possa parecer impossível, vêm da mesma autoridade religiosa. O primeiro pertence ao Concílio de Florença, e é de 1442; o segundo, ao Vaticano II, e é de 1965.2 Cronologicamente, entre eles estão pouco mais de 500 anos. Ideologicamente, poderiam parecer milênios. E é preciso reconhecer que hoje, passados cerca de 30 anos, o segundo tornou-se até estranhamente tímido e restritivo. Evidentemente, encontramo-nos diante de um problema profundo, de tecitura delicada e implicações transcendentais. A presença dos fundamentalismos, a instrumentalização dos credos religiosos para fins terrivelmente bélicos e — num plano mais íntimo — a inquietude espiritual que para muitos supõe a presença em paralelo, e às vezes também hostil, das religiões num mundo como o atual, que as põe de maneira irremediável em crescente contato direto… não permitem fechar os olhos diante do problema. É urgente pensá-lo de verdade. Aqui vamos tentá-lo com clareza e honestidade (ao menos na intenção). E isso implica o reconhecimento da posição primariamente teológica da reflexão, se bem que com um discurso que busca expor-se ao diálogo com a filosofia: não poderá certamente elaborar diante dela todos os seus pressupostos, mas ao menos pressupõe em princípio o acesso a eles e não se nega à discussão da coerência crítica de seus raciocínios. Daí, igualmente, uma inevitável preocupação de radicalidade. Por isso, ainda que gostaríamos, talvez não possamos poupar ao leitor o esforço da compreensão e seguramente, em algum ponto, também a disponibilidade para romper lugares-comuns e preconceitos. Por fim, certamente a uns a proposta lhes parecerá ousada, ao passo que outros seguramente irão considerá- la muito tímida. Em todo caso, aí permanece como mão estendida ao diálogo, convite ao debate e ânimo para uma práxis renovada. Se algo disso se conseguisse, não seria pouco. 4 1. DS 1351; cf. também a bula Unam Sanctam, 1302: DS 870. 2. Declaração “Nostra aetate”. Sobre as relações da Igreja com as religiões não cristãs, n. 2. 5 1 Delineamento do problema 1.1. Um problema perene sobre novos pressupostos Os textos citados na apresentação aludem a uma clara tensão cronológica. Durante séculos, a teologia cristã pôde passar ao lado das religiões não cristãs sem notar a monstruosidade que supunha excluir seus fiéis da revelação e salvação divinas. E não é que de algum modo não se percebesse a tensão. A convicção, praticamente interrompida ao longo da tradição eclesial, de uma vontade salvífica universal por parte de Deus e as especulações em torno do “batismo de desejo” mostram-no com clareza. Porém seu enfrentamento expresso e sistemático se fez incontestável somente em nosso tempo. John Hick, um dos autores que com mais constância, profundidade e sensibilidade se têm preocupado com este problema, assinalou acertadamente que, estritamente falando, “tem emergido unicamente entre pessoas ainda vivas”.3 E a verdade é que o tem feito com intensidade e vivacidade, sobretudo no mundo anglo-saxão. É óbvio porém que não está atingindo a todos, pois na realidade o que aí sucede não é mais que a ponta de um fenômeno de profunda transcendência e alcance universal: o encontro efetivo das religiões num mundo que se unifica aceleradamente. Não cabe aqui ignorá-lo nem desconhecer sua importância para a construção da humanidade. Na Espanha como em outros tantos países, com sua entranha histórica tão trabalhada pela excepcionalmente extensa, às vezes conflitiva, porém sempre fecunda convivência das três “religiões do livro”, a questão não pode deixar-nos indiferentes, e talvez tenhamos nossa peculiar palavra a dizer. Em qualquer caso, essa dialética entre a perenidade do problema e a novidade de seu (re)delinea-mento não é algo secundário: marca de modo decisivo a questão e pode inclusive dificultá-la seriamente. A reflexão se encontra provida dos conceitos de sempre, mas num contexto de dados inéditos. Isso deve, antes de tudo, precaver-nos contra um delineamento isolado e abstrato, que se entregue ao jogo dos problemas lógicos do diálogo sem fazê-lo nascer de seu contexto vivo. De fato, nem sempre se pode evitar essa suspeita diante de boa parte das discussões atuais, como se se tratasse às vezes de uma mera quaestio escolástica ou de um jogo de lógica combinatória. A abordagem que aqui procuramos apoia-se num enfrentamento prévio com o significado vital da religião e da compreensão global da revelação, tal como já procuramos expor em A revelação de Deus na realização humana.4 (Será conveniente que o leitor o tenha em conta, pois nem sempre será possível esclarecer suficientemente os pressupostos.) Ao mesmo tempo, exige renovar os moldes conceituais, de modo que possam fazer frente à situação atual. Uma concepção da revelação que procure manter os velhos modelos intelectualistas e pré-críticos e que não olhe de frente os novos dados da 6 situação religiosa humana, torna-se radicalmente incapacitada para uma compreensão do problema na teoria e para uma atitude digna e respeitosa na prática. De fato, o leitor seguramente acabará notando que aqui — em virtude do estudo antes citado — daremos por supostas e seguras questões que não o são tanto em outras abordagens. Duas, sobretudo: 1ª) O caráter realista e verdadeiramente humano da revelação divina. Não sobre o módulo de que a revelação — e, em consequência, a religião — seja algo que se aceita somente porque “alguém nos disse que Deus disse”, sem nenhum controle de nossa parte e, portanto, sem verdadeiro enlaçamento em nossa existência; enfim, revelar-se-iam a, b, c como poderiam haver-se-nos revelado d, e, f. Não; aqui partiremos do que tenho chamado estrutura maiêutica da revelação. A revelação é uma resposta real e concreta a perguntas humanas que são nossas perguntas; descobrimo-la porque alguém no-la anuncia, porém a aceitamos porque, despertados por esse anúncio, “vemos” por nós mesmos que essa é a resposta certa. Como Sócrates, o profeta ou fundador religioso não “introduz” em seus fiéis algo externo ou que lhes seja alheio, e sim os ajuda a dar-se conta, a “dar à luz” — maiêutica é a arte da parteira — o que já são em sua realidade mais íntima, a partir da presença de Deus na criação e na história. Como os samaritanos a seus conterrâneos, todo crente deve acabar dizendo aos anunciadores: “Já não cremos por causa do que você diz; nós mesmos ouvimos e sabemosque ele é realmente o salvador do mundo” (Jo 4,42).5 2ª) Intimamente unida à primeira está a segunda questão. Se a revelação é dar-se conta do Deus que estava já aí, é porque ele estava fazendo todo o possível para manifestar-se. E para manifestar-se a todos na máxima medida. O limite não provém da “mesquinharia” divina, que, podendo revelar mais, não quer fazê-lo. Provém da inevitável limitação humana, infinitamente desproporcional ao mistério, que em generosidade irrestrita procura dar-se-lhe e manifestar-se-lhe por todos os meios. Estas ideias talvez pareçam a princípio um tanto estranhas; a partir da tradição do Deus bíblico deveriam ser evidentes: Deus não cria por amor a si mesmo ou para que lhe “sirvam”, e sim por amor ao homem, a todo homem e a toda mulher, com o objetivo de oferecer-lhes como dom participar em sua plenitude e felicidade. A única coisa que não pode, nem quer, é romper os limites de sua finitude: tem de respeitar o crescimento da liberdade e o trabalho da história, sem os quais a existência humana não pode ser nem realizar-se.6 3. “Has only emerged during the lifetime of people now living” (J. Hick, God Has Many Names, 2ª ed., Filadélfia, 1982, p. 7). Citaremos God. 4. Paulus, São Paulo, 1995 (que traduz, com algumas melhoras, a edição galega A revelación de Deus na realización do home, Vigo, 1985). O tema está tratado no cap. VII, pp. 273-353 (ed. galega, pp. 267-346). Citaremos A revelação. Antes já me havia ocupado em Cristianismo e relixións. ¿Favoritismo divino ou necessidade do amor?: Encrucillada n. 19, 1980, 417-443. Posteriormente o retomei em El encuentro actual de las religiones: Biblia y Fe 16/48 (1990) 125-165, que seguirei no geral, com ligeiras melhoras (todo o número desta revista gira em torno destas questões). 5. Para estas ideias, que aqui não podem desenvolver-se mais amplamente, cf. A revelação, cap. IV, pp. 99- 7 138. 6. Algo mais sobre isto se dirá mais adiante, a propósito da “eleição”. Mas também aqui é preciso remeter para maior fundamentação a A revelação, cap. V, pp. 139-212. 8 1.2. A nova situação 1.2.1. A ampliação do mundo A primeira coisa que salta aos olhos é que hoje nos encontramos com uma ampliação incrível do mundo religioso. Ampliação temporal, em primeiro lugar. Até começos do século XIX — para a maioria, inclusive de teólogos, até boa parte do século XX — a idade estimada da humanidade era de uns seis mil anos. Era um mundo perfeitamente abarcável, dominado pela presença bíblica, apenas com umas extremidades alheias a sua irradiação: “Aqui tudo é fácil. Desde a criação do mundo até o advento de Jesus Cristo transcorreram quatro mil e quatro anos, ou quatro mil, se se quer criticar a todo custo. No ano 129 a terra começou a encher-se, e os crimes a aumentar; no ano 1656 aconteceu o Dilúvio; em 1757, os homens tentaram construir a Torre de Babel. A vocação de Abraão se deciciu em 2083. A lei escrita foi dada a Moisés quatrocentos e trinta anos depois do Dilúvio e no mesmo ano em que o povo hebreu saiu do Egito. Graças a esses pontos de referência firmemente estabelecidos, Bossuet, ao compor seu nobre Discurso sobre a História universal, vê ordenar-se uma série de épocas que se recortam por si mesmas no tempo; sob harmoniosos e majestosos pórticos se estende a via triunfal que conduz ao Messias”.7 Hoje a paleontologia fala de ao menos um milhão de anos para a vida da humanidade no planeta. Pense-se o que significa nessa escala o brevíssimo lapso da revelação bíblica, e tire-se a consequência: a imensa maioria dos seres humanos nada teve a ver com ela. Porém a ampliação temporal não é mais espetacular que a espacial. São Paulo pôde ainda abrigar a ilusão de chegar aos extremos da terra, sem dúvida com a esperança de que o evangelho alcançasse a todos os homens. Para nós, a partir da época dos descobrimentos, a ecumene clássica aparece como uma pequena mancha na imensidão dos continentes habitados. Acrescente-se a isso a explosão demográfica da humanidade. O que significa então a revelação bíblica? Qual pode ser sua relação com as demais religiões da humanidade? Se a revelação é tomada em seu sentido pleno e real, como outro rosto ou outro nome da salvação, as consequências são de uma importância transcendental. Pensemos simplesmente no famoso, e ter- rível, princípio extra ecclesiam nulla salus (“fora da igreja não há salvação”).8 É evidente que não devemos cair em um a-historicismo que nos faça ser tão injustos com a mentalidade daqueles homens que elaboravam sua teologia em um marco muito estreito e restringido. Porém não é menos evidente que hoje seria literalmente monstruoso continuar considerando-o como válido, ou simplesmente continuar fazendo equilíbrios hermenêuticos a seu propósito. Apesar de sua ampla e solene tradição, a teologia católica tem-se esforçado para abandoná-lo de mil maneiras. E, deixando já de lado “o exclusivismo querigmático”9 9 ou a “sublime bigotry”10 de Karl Barth — mais sutil, se bem que de todos os modos inaceitável —, somente atitudes bem fundamentalistas podem sustentar ainda algo parecido. Niguém pode ler já sem assombro declarações como a que — ainda em 1960! — fazia o Congresso sobre Missão Mundial em Chicago: “Nos anos a partir da guerra, mais de mil milhões de almas passaram à eternidade, e mais da metade delas foram ao tormento do fogo do inferno, sem sequer ter ouvido falar de Jesus Cristo: quem foi e por que morreu na cruz do Calvário”.11 De qualquer modo, o assombro não basta. Está bem a compreensão histórica: eram outros tempos e outros horizontes, e não devemos julgar com a soberba de um estreito “atualcentrismo”. Porém isso não deve impedir de ir além. É preciso tirar com clara e unívoca energia as consequências, remodelando o próprio conceito de revelação (nosso conceito, não a realidade, que humildemente devemos procurar compreender). E, de fato, este é o primeiro e principal motivo que tem levado a imensa maioria dos teólogos a abandonar a concepção exclusivista da revelação. 1.2.2. O contato real das religiões Um segundo motivo tem sido — e com isto descrevemos outro dos grandes fatores da mudança — o melhor conhecimento das demais religiões. Quando se examinam de perto as riquezas do budismo ou da tradição hinduísta, quando se admira a grandeza de Zaratustra e também, em tantos aspectos, a de Mahoma, já não se pode continuar crendo, sem ferir o senso comum, que fora da Bíblia tudo são trevas ou que as outras práticas religiosas têm sua origem no diabo. Deixando para mais tarde a discussão de suas implicações sistemáticas, é preciso dar globalmente a razão a John Hick quando afirma que as religiões, cada uma delas, são totalidades complexas de resposta ao divino… “com suas diferentes formas de experiência religiosa, seus próprios mitos e símbolos, seus sistemas teológicos, suas liturgias e sua arte, suas éticas e estilos de vida, suas escrituras e tradições — todos elementos que interagem e se reforçam mutuamente. E estas totalidades diferentes constituem diversas respostas humanas, no contexto das diferentes culturas ou formas de vida humana, à mesma realidade divina, infinita e transcendente”.12 Fechar os olhos diante desta semelhança fenomenológica ou negar-se a reconhecer sua eficácia real na vida das pessoas, significaria ter “um coração como o de Jonas e pouco entendimento para a história das religiões”.13 O qual deve, por sua vez, constituir um chamado a estudá-las com cuidado, procurando inclusive interpretá-la à luz de sua própria autocompreensão. Não o respeito, mas a própria justiça é que o exige, pois, como muito acertadamente observa P. Schimdt-Leukel, “também a teologia das religiões está sob o mandamento de não pronunciar nenhum falso testemunho contra o próximo”.14 7. P. Hazard, La crisis de la conciencia europea (1680-1715), Madri, 1988, p. 45. A Loisy, Choses pasées, 10 Paris, 1913, pp. 216-219, faz ver a importância disto para a história de Israel e para a compreensão da revelação no tempo. Vejam-se também as conclusões — de ironia muitofácil — que daqui tira B. Russell, Religión y Ciencia, 4ª ed., México, 1973, pp. 38-39. 8. DS 870, 1351. Cf. uma exposição resumida em H. Kung, La Iglesia, Barcelona, 1969, pp. 373-380; J. Ratzinger, Das neue Volk Gottes. Entwurfe zur Ekklesiologie, Düsseldorf, 1969, pp. 339-361; W. Kern, Ausserhalb der Kirche kein Heil?, Friburgo, 1979; P. Knitter, No Other Name? A Critical Survey of Christian Attitudes toward the World Religions, Londres, 1985, pp. 121-123. 9. U. Mann, Das Christentum als absolute Religion, Darmstadt, 1970, p. 8. Citaremos Das Christentum. 10. J. Hick, God, p. 90. 11. J. O. Percy (org.), Facing the Unfinished Task: Messages at the Congress on World Mission, Chicago, Ill.1960, p. 9 (cit. por J. Hick, God, p. 30). 12. God, pp. 53-54. Analisa concretamente e com mais amplitude tudo isto em sua última obra An Interpretation of Religion. Human Responses to the Transcendent, Londres, 1989, principalmente nas partes I (pp. 21-72) e V (pp. 299-376). Citaremos An Interpretation. 13. A. H. Gunneweg, Religion oder Offenbarung. Zum hermeneutischen Problem des Alten Testaments: Zeitschrift fur Theologie und Kirche 74 (1977) 175. 14. Der Immanenzgedanke in der Theologie der Religionen. Zum Problem dialogischer Lernfähigkeit auf der Basis einer christologischen Ansatzes: Munchener Theologischer Zeitschrift 2. 11 1.3. Os novos enfoques a partir da teologia 1.3.1. As três alternativas formais À luz destas mudanças tão profundas, compreende-se que a teologia busque hoje novos enfoques do problema e tente novas saídas para as aporias às quais leva inevitavelmente o manter hoje as posturas tradicionais. No mundo anglo-saxão, que, como dissemos, é onde a discussão está mais viva, impôs-se uma divisão tripartida das posturas: exclusivismo, inclusivismo e pluralismo.15 Ao exclusivismo já se aludiu: é a postura que só admite revelação real e verdadeira — e, por conseguinte, salvação — na própria igreja ou religião (para nossa discussão, no cristianismo). Em sua forma rígida, hoje é sustentada por quase ninguém;16 na prática, acaba se tornando “contrafigura” para fixar as demais posturas. Pode, de qualquer modo, apresentar-se em formas mais abertas que não excluem todo diálogo e tendem à segunda postura.17 O inclusivismo não exclui nem verdade nem salvação nas demais religiões, mas mantém ao mesmo tempo a centralidade — definitividade e absoluto — da própria, que “incluiria” a verdade das demais. É bem conhecida — e de grande influência — a postura de K. Rahner.18 Tampouco aqui os limites são fixos, com algumas posturas que tendem mais à primeira, e outras à terceira. A acusação de incapacitar-se tanto para o diálogo — já teria toda a verdade — como para uma autêntica compreensão das outras religiões — as interpretaria em função da própria — constitui sua grande dificuldade, que toca um ponto muito sensível no atual clima de diálogo e tolerância e que, por isso, a muitos parece insuperável. Daí nasceu a terceira postura, o pluralismo. Para ele todas as religiões são iguais, manifestações equivalentes em seu valor salvífico e em sua verdade, pois a diversidade nasce unicamente dos diferentes contextos culturais em que se tematiza e se concretiza a experiência do divino. Recolhe, como se vê, a tradição do liberalismo, mas sem reservas diante do valor “sobrenatural” do religioso. Exerce hoje uma indubitável atração, que chega quase ao fascínio, talvez devido em parte a que se trata de uma reação generosa diante do fechamento histórico do exclusivismo, muitas vezes com trágicas consequências.19 Seu grande problema funda-se na questão da verdade,20 pois muito dificilmente pode evitar o perigo de um relativismo total, que não beneficiaria a ninguém. 1.3.2. Nosso enfoque A concepção que aqui tentamos expor move-se decididamente na órbita da segunda postura. Não por um afã formalista de mediação abstrata, e sim porque o inclusivismo parece responder muito bem, ou ao menos suficientemente bem, às preocupações legítimas do respeito e da abertura aos demais, sem para tanto ceder à vertigem do relativismo. Contudo, esta indicação quer ser unicamente um emolduramento formal para orientar a leitura. Transformá-lo em determinante do processo reflexivo é, a meu 12 ver, perturbador, tanto porque leva a uma abordagem formalista do problema, como porque tende a situá-lo em categorias de concorrência e predomínio que não fazem justiça à gratuidade da experiência reveladora. Por isso aqui procuraremos que o problema do diálogo surja a partir de dentro do processo vivo de uma reflexão que ao buscar-se a si mesma encontra-se em outros processos que a obrigam a voltar-se sobre sua postura, reconsiderando-a sob essa nova luz. Assim ocorre, ademais, o encontro efetivo entre as religiões na história real (e, se me é permitida a observação pessoal, direi que essa tem sido minha experiência no livro citado no início). Há ainda outro aspecto importante. Quando se considera a fundo o problema, compreende-se que ele sequer nasce exclusivamente do encontro com as outras religiões. Antes — ao menos com anterioridade estrutural — de ser um interrogativo externo, é já uma aguda pergunta interna para cada religião, sobretudo para cada uma das universais. No caso do cristianismo o é de modo bem expresso: o Deus que aqui se revela a nós não aparece jamais como possessão própria nem salvação exclusiva, e sim como aquele que mantém sua transcendência gratuita e intrinsecamente destinada a todos. Obviamente, o afã possessivo humano tende a açambarcá-lo: assim o mostram a contínua correção profética no Antigo Testamento e a dura luta do cristianismo primitivo para compreender a implicação universalista da mensagem evangélica, para não falar da áspera história da intolerância posterior. Mas a experiência cristã, que bem rápido anunciou a centralidade de Cristo, a ponto de afirmar que “não há salvação em nenhum outro” (At 4,12), não podia deixar de proclamar igualmente a universalidade da salvação, que brota da essência mais íntima de seu Deus que “é amor” (1Jo 4,8.16) e que por isso mesmo “quer que todos os homens se salvem” (1Tm 2,4). 1.3.3. Diálogo situado e sem privilégios Trata-se, como se vê, de uma tensão interna à própria fé, que a interroga em si mesma, desapropriando-a de todo egocentrismo e obrigando-a a aprofundar sua autocompreensão. O encontro com as religiões se insere nessa dinâmica interna, emoldurado em um regime de dom e gratuidade, dentro do qual a concorrência ou a tentativa de domínio acaba desmascarada como soberba e pecado. O absoluto corresponde somente a Deus; o que cabe ao homem é a tarefa inacabável de ir assimilando-o, tanto na glória e na humildade do serviço, oferecendo aos demais o que descobriu, como na dura e prazerosa aprendizagem do que os outros lhe oferecem e que ele reconhece como pertencente a seu mesmo Deus, que é o de todos. Daí que nosso diálogo com as outras religiões não vai esquivar-se das exigências da sensibilidade moderna, e sim as tomará como pedra de toque da própria autenticidade. Porém as enfrentará em um segundo momento, a partir da resolução interna das próprias tensões; ou, se quisermos formulá-lo melhor, depois de deixar-se instruir pelas implicações da própria experiência reveladora, muito maior que nossas expectativas e muito mais generosa que nosso afã de domínio. Esperemos que, deste 13 modo, a abordagem consiga fazer justiça às legítimas preocupações da postura pluralista, sem para tanto cair no relativismo. Neste sentido, bem se compreenderá que a reflexão centre-se fundamentalmente na autocompreensão cristã. Isso, longe de ser soberba egocêntrica, é, como bem havia notado Newman em outro contexto, a “verdadeira modéstia”.21 Ademais, a hermenêutica atual sabe muito bem que a própria situação é o lugar indispensável de todo verdadeiro diálogo; a única coisa que se pede é ser conscientes dos próprios pressupostos e mantê-los abertos à confrontação. 15. Cf. A. Race, Christians and Religious Pluralism, Londres, 1983; H. Coward, Pluralism: Challenge to WorldReligions, Nova Iorque, 1985; G. D’Costa, Theology and Religious Pluralism: The Challenge of Other Religions, Oxford, 1986. L. Dupuis, Gesù Cristo incontro alle religioni, Assis, 1989, pp. 139-149, dá uma boa informação também de outras classificações. 16. Talvez o mais representativo seja H. Kraemer, apoiado na teologia de K. Barth: cf. Why Christianity of All Religions, Londres, 1962, que continua as obras anteriores. 17. P. Schmidt-Leukel (Der Immanenzgedanke in der Theologie der Religionen. Zum Problem dialogischer Lernfähigkeit auf der Basis eines christologischen Ansatzes, cf. supra nota 14) cita L. Newbigin, The Open Secret, Grand Rapids, 1978; N. Anderson, Christianity and World Religions. The Challenge of Pluralism, Leicester-Downers Grove, 1984 e, o mais influente, G. Lindbeck, The Nature of Doctrine. Religion and Theology in a Postliberal Age, Filadélfia, 1984. 18. Cf. principalmente Das Christentum und die nichtchristlichen Religionen, em Schriften zur Theologie V, Zurique, 1962, pp. 136-158; Die anonymen Christen, Ibid. VI, 1965, pp. 545-554. Seu pensamento é continuado e desenvolvido por A. Röper, Die anonymen Christen, Mainz, 1963; H. R. Schlette, Die Religionen als Thema der Theologie, Friburgo, 1964; G. D’Costa, Theology and Religious Pluralism, cit. 19. Na Espanha, R. Panikkar é o principal representante, com uma postura muito matizada. Veja-se a síntese mais recente que ele mesmo faz em Autoconciencia cristiana y religiones, em Fe cristiana y sociedad moderna 26, Madri, 1989, pp. 199-267; aí mesmo (p. 264) pode ver-se uma resenha de suas obras principais; cf. em especial: The Unknown Christ of Hinduism, Maryknoll, 1981, e La Trinidad y la experiencia religiosa, Barcelona, 1989. Cf. também, com desigual radicalidade, A. Race, Christians and Religious Pluralism, cit.; P. F. Knitter, No Other Name?, cit. e, sobretudo, J. Hick, além das duas obras antes citadas, podem-se ver: God and the Universe of Faiths: Essays in the Philosophy of Religion, Londres, 1973; The Second Christianity, Londres, 1983; Problems of Religious Pluralism, Londres, 1985. São também significativas as obras em colaboração: L. Swidler (org.), Toward a Universal Theology of Religion, Nova Iorque, 1987; J. Hick / P. F. Knitter (orgs.), The Myth of Christian Uniqueness. Toward a Pluralistic Theology of Religions, Nova Iorque, 1987. 20. Tema estudado agudamente por A. Kreiner, Die Relevanz der Wahrheitsfrage fur dir Theologie der Religionen. Numa perspectiva distinta e com decidida referência à postura de John Hick, também analisa o problema P. Schmidt-Leukel no art. citado. No momento de redigir este trabalho somente disponho dos originais, destinados à “Munchener Theologischer Zeitschrift” 1990. Com ambos os autores, assim como com o Prof. H. Döring (que em seu art., Ibid., tenta uma certa síntese de ambos), pude manter um interessante e frutuoso diálogo sobre estas questões durante minha estada de dois meses em Munique para estudos sobre Filosofia da Religião. Por isso e por sua amável acolhida lhes faço aqui o agradecimento. Vejam-se também as críticas que lhe fazem J. J. Lipner, Does Kopernicus Help?, em R. W. Rousseau (org.), Inter-religious Dialogue, Scranton, 1981, pp. 154-174 e G. D’Costa, Theology and Religious Pluralism, cit. J. Dupuis, Gesù Cristo, pp. 144-149, oferece um bom resumo. 21. “… in these provinces of inquiry egotism is true modesty. In religious inquiry each of us can speak only for himself, and for himself he has a right to speak. His own experiences are enough for himself, but he cannot speak for others: he cannot lay down the law; he can only bring his own experiences to the common stock of psychological facts” (An Essay in Aid of a Grammar of Assent, Ed. Image Books, Nova Iorque, 1955, p. 300). 14 2 As duas questões fundamentais Comecemos fazendo um delineamento global que permita ver as linhas fundamentais do problema a partir da própria autocompreensão da revelação cristã. Isto é muito importante, pois traz à luz as hipóteses de fundo que estão guiando, nem sempre esclarecidas, toda a argumentação. 15 2.1. A “particularidade” como necessidade histórica 2.1.1. Radicalidade atual do problema É significativo que a situação atual ofereça uma curiosa polaridade, no sentido de que, se por um lado delineia uma nova dificuldade, por outro oferece também uma nova possibilidade de solução. Vamos vê-lo em duas faces principais. a. Não existe universalidade abstrata Como ficou dito, a sensibilidade atual é alérgica a toda particularidade que tenda a universalizar-se: nada é mais temível que a lesão da igualdade, a liberdade e a tolerância. Seria possível simbolizá-lo na suspeita espontânea de etnocentrismo ingênuo diante de toda pretensão de universalizar o que é próprio. Porém, por outro lado, o agudo sentido histórico que a caracteriza faz com que ela compreenda que tudo está irremediavelmente situado no tempo e no espaço. Não é possível uma universalidade abstrata, mas somente aquela que seja mediada lentamente pelos caminhos da história: a universalidade “racional” do Iluminismo — que quis realizar os ideais do universal humano sem a paciência dos condicionamentos concretos — foi paga com o terror da Revolução Francesa.22 Por isso a teologia atual bem compreendeu que a verdadeira universalidade somente pode realizar-se “pela mediação histórico-particular”.23 Por paradoxal que pareça num mundo sempre mais universalizado, a consciência histórica nos tem feito ver que uma religião somente poderá ser realmente universal se chegar a sê-lo a partir de dentro de uma particularidade histórica.24 O problema não reside, pois, no fato de a revelação cristã apresentar-se delimitada por uma situação histórica, dado que isso é propriamente a condição de possibilidade de sua existência real. A questão se enraíza — dada sua pretensão de universalidade — na aparente exclusão dos demais. Os delineamentos usuais — que dão por suposto que a revelação poderia ser independentemente do universal — dificilmente podem evitar a impressão de uma arbitrariedade divina. A partir do que se disse, é possível desde já intuir que se trata unicamente de algo inevitável numa história finita; algo estruturalmente não distinto do fato de que uns nasçam brancos e outros negros, uns na Europa e outros na América… O que não deixa, contudo, de suscitar outra pergunta: o que acontece com aqueles que essa mediação histórica não alcança de fato? Se a experiência da revelação diz de si própria que é a coisa mais elevada e valiosa que pode acontecer ao homem, já que significa a comunicação salvadora do próprio Deus, não exige, a partir de sua própria essência, apesar de tudo, que sua presença seja assegurada a todos? E também aqui — com isto entramos na segunda polaridade — a sensibilidade atual torna aguda a dificuldade. b. Não existe a revelação isolada A partir do Iluminismo, tanto a exegese crítica como um melhor conhecimento das 16 demais reli-giões nos fizeram ver que a revelação bíblica não constitui esse “caso à parte” que a teologia em uso supunha: uma palavra puramente divina, “ditada” por Deus a “seu povo”. A comparação da tradição bíblica com as demais tradições religiosas, primeiro com as de seus vizinhos no Oriente Médio e logo depois com as do resto da humanidade, mostra que nem aquela é tão “divina” que não deixe ver com evidência o esforço e também as falhas e feridas da reflexão humana, nem as demais são tão “humanas” que não deixem apreciar a presença viva e salvadora do Divino. Em uma palavra, hoje é um fato evidente que a revelação bíblica não constitui uma realidade tão à parte que a distinga totalmente das demais religiões, nem que estas devam contar com ela para experimentar a presença salvífica de Deus. Onde reside então a pretensão de universalidade? Porém é curioso que também agora seja a própria dificuldade a abrir a via da solução. Se esta constatação supôs talvez a máxima crise na autocompreensão da revelação bíblica, a ponto de muitos terem pensado que a houvesse destruído,25lançou ao mesmo tempo as bases para uma nova solução. Porque agora podemos ver melhor como a universalidade bíblica não tem por que significar o exclusivismo de um deus que, para cultivar um povo, abandona todos os demais. Trata-se, isso sim, do Deus que, enquanto cultiva um, continua igualmente com os demais; e o que possa haver de cultivo “especial” não é de modo algum um favoritismo excludente, e sim mais um meio do amor incondicional a todos. É isso que procuraremos mostrar como o sentido profundo da “eleição”. c. Está em jogo o próprio sentido da revelação Esta visualização do problema é talvez muito ampla e, ademais, ao adiantar o sentido da solução que se busca, forçará sem dúvida enfadosas repetições. Porém pareceu necessária, pela decisiva importância do que está em jogo. Nestas questões trata-se nada menos que da própria coerência da reflexão. Estamos, com efeito, aludindo aos pressupostos que ordinariamente não se enfrentam de modo expresso e que por isso tendem a condicionar fatalmente todo o processo. A razão é que afetam a questão do sentido, que, como muito bem considerou a filosofia analítica, é prévia à questão da verdade. Porque, realmente, tanto do ponto de vista antropológico — dado que se trata do mais radical, a salvação do homem — como do teológico — já que estão em jogo a bondade e a sabedoria de Deus —, essas questões são decisivas. Se, como geralmente se dá por suposto, Deus “pudesse” tornar tudo mais fácil, revelando-se de modo direto e evidente a todos os homens, porém “não quisesse”, dificilmente valeria a pena continuar discutindo: diga-se o que quiser, a revelação não poderia ser crível. E o mesmo vale do outro aspecto: se a plenitude da revelação bíblica tivesse sido adquirida à custa do abandono do resto da humanidade, seu oferecimento posterior estaria já radicalmente viciado e seria inaceitável. Todas as explicações possíveis, todas as razões de “conveniência”, chegariam já muito tarde, colidiriam com a suspeita elementar de um inaceitável desinteresse de fundo. Porque onde está em jogo o último — a salvação do homem e o amor de Deus — não podem existir razões 17 penúltimas que expliquem a falta de um compromisso sem reservas. Compreende-se facilmente que isto não é uma sutileza teórica, e sim um fato de transcendência vital. Além do mais, fatos bem graves o demonstram. Já o Iluminismo, defrontando-se com este problema, havia tentado desvincular Deus de uma revelação histórica particular. E, em nossos dias, nada menos que um pensador tão afinado como Georges Morel chegou a abandonar por esta questão não só a Companhia de Jesus, mas também o próprio cristianismo: acreditou que somente assim se podia assegurar a “gratuidade da relação com Deus”, o qual “está perto de todos e não se engaja na história, porque engajar-se equivale a excluir”; o Deus particularizado numa eleição histórica, “para amar Jacó, tem de odiar Esaú” (cf. Ml 1,2-3).26 E não é difícil observar que a progressiva radicalização de um teólogo tão significativo neste ponto como John Hick está dirigida em grande parte para evitar este perigo. Se bem que neste autor atue ademais o outro (pre)suposto do pluralismo: o da possibilidade histórica de distintas plenitudes simultâneas, pois esse é, definitivamente, o reverso de postular a equivalência das diversas religiões. Também este pressuposto deverá ser examinado, para tentar resgatar sua intenção profunda sem necessidade de abrir mão dessa impossível suposição. d. Orientação geral da resposta Com o que ficam enunciados os dois grandes polos sobre os quais irá girar nossa resposta. Somente eles permitem, a nosso ver, uma compreensão coerente com a globalidade da experiência reveladora: 1º) A particularidade da revelação cristã não é uma alternativa “escolhida” por Deus, mas uma necessidade imposta pela revelação na história. Dito positivamente: Deus se revela sem reservas e a todos, com toda a força de seu amor, de sua sabedoria e de seu poder; os limites da revelação não são “queridos” por ele, e sim “impostos” pela insuperável finitude da captação humana. Trata-se de uma incomensurabilidade estrutural — entre o infinito e o finito —, que explica as limitações concretas, tanto involuntárias (como a etapa ou circunstância cultural) como voluntárias (como a cegueira ou deformação culpáveis). 2º) A culminação histórica do processo revelador, concebida como plenitude insuperável, não poderia dar-se mais que em um ponto concreto. Esse é o significado do mistério teândrico da pessoa de Cristo e sua necessária unicidade; por isso sua captação já é simultaneamente confissão de fé. Mas essa plenitude está intrinsecamente destinada a todos: por isso o Cristo não é “possessão” dos cristãos, e sim oferta a todos como possível culminação da fé que eles já têm. Tal é o sentido profundo do inclusivismo e a justa base para o encontro das religiões, visto a partir do cristianismo. 2.1.2. O silêncio de Deus: “Cur tam sero?” Paul Hazard conta uma curiosa anedota que mostra muito bem a estranheza da 18 racionalidade iluminada diante da aparente reserva e também mesquinhez de Deus em revelar-se a nós com clareza. Numa grande reunião, o geógrafo e matemático francês La Condamine propôs a um grupo de amigos um difícil enigma. Para admiração geral, todos num instante adivinharam a solução: ele mesmo a havia escrito com grandes letras no verso bem visível da folha em que lia… A moral era clara e direta: por que Deus não havia feito o mesmo conosco?27 Já se indicou que, ainda que sem tão confessado racionalismo, esse pressuposto continua atuando na mente de muitos. E, entretanto, não é difícil compreender seu absurdo. Formulemo-lo abruptamente: pensar que a revelação divina pudesse dar-se com perfeita clareza e para todos os homens desde o começo, equivale a pensar — sem notá-lo — um sem-sentido. Significa, com efeito, ser vítima de uma ilusão imaginativa que concebe acrítica e abstratamente a onipotência do agir divino, sem levar em consideração os limites que sua realização impõe na fechada limitação da criatura. No fundo, equivale a imaginar o “círculo quadrado” da captação perfeita do infinito na imperfeição da subjetividade finita. O falso encanto se desfaz quando é examinado com atenção crítica. E ainda muito mais, se se atenta à racionalidade íntima da experiência reveladora cristã. O Deus que nela se descobre é um Deus de Amor, sempre disposto à ajuda total; um Deus que em sua manifestação definitiva aparece como não diminuindo sequer a vida de seu Filho (Rm 8,32) para com isso salvar o homem. É óbvio que, no que depende dele, um Deus assim também se revelará a todos sem reservas. O limite, se aparece, é que não pode ser evitado e vem de outro lugar: da incapacidade da criatura para captar com mais clareza sua revelação. Olhando-se bem, essa é além do mais a estrutura geral de toda a experiência bíblica, que mais tarde são João da Cruz expressará tão magni- ficamente: “porque ao dar-nos como nos deu seu Filho, que é uma Palavra sua — que não tem outra —, tudo nos falou junto e de uma só vez nesta única Palavra, e não tem mais a falar”.28 Não é de se estranhar, por isso, que esta intuição apareça já na teologia cristã primitiva, e justamente em conexão com nosso tema, apesar de que, como sabemos, então se apresentava com muito menos agudez. O escândalo da particularidade se manifestava, logicamente, não tanto no espaço abarcável da ecumene quanto na profundidade do tempo (mais perceptível, apesar de breve que era, a partir de nossa perspectiva atual). A pergunta, dirigida como uma objeção aos cristãos, era: “nos séculos anteriores, onde estavam os cuidados de uma tão grande providência?”.29 Trata-se da famosa questão do cur tam sero? (“por que tão tarde?”). O curioso é que a reflexão teológica conseguiu já então assinalar a causa profunda e verdadeira: não era possível de outro modo, dada a imperfeição e finitude da criatura. Santo Ireneu o disse com palavras insuperáveis: “Se algum de vocês afirma: Deus não poderia desde o princípio fazer o homemperfeito?, que saiba que Deus certamente é todo-poderoso, mas que é impossível que a criatura, pelo fato de ser criatura, não seja tão imperfeita. Deus a conduzirá por graus à perfeição, como uma mãe que deve primeiro amamentar 19 seu filho recém-nascido, e vá dando-lhe, à medida que cresce, o alimento de que necessita… Só quem não não foi criado é também perfeito, e esse é Deus. Foi necessário que o homem fosse criado, depois crescesse, se fizesse adulto, se multiplicasse, adquirisse forças, e depois chegasse à glória e viesse a seu Mestre… Mais insensatos que os animais, reprovam a Deus por não tê-los feito deuses desde o princípio”.30 Por sua parte, Ireneu não era absolutamente original: apoiava-se na ideia paulina da “economia da graça de Deus” (Ef 3,1). E não ficou sozinho: há toda uma linha que atravessa a patrística e que será abundantemente recolhida pelos grandes teólogos da Idade Média. De Lubac, que a descobre, descreve-a assim: “tudo é possível para Deus, mas a congênita debilidade da criatura impõe um limite à recepção de seus dons”.31 Contudo, é lastimável que esta intuição não tenha embebido com mais eficácia o discurso teológico. Aparece, todavia, e de modo crescente, sobretudo sob o prisma da impossibilidade da criação de um homem ou ser finito já perfeito. É significativo que tenha reaparecido no período modernista, com expressa referência à tradição patrística, sobretudo na correspondência entre M. Blondel e L. Laberthonnière: “A criação de um ser divinizável implica certas condições metafísicas que não são quaisquer. O homem não pode, imediatamente, ser criado perfeito, acabado. Deve poder não somente ratificar sua própria criação, mas também consentir em sua própria gênesis e no destino que lhe é proposto”.32 Pode-se afirmar que na teologia atual — apoiada sem dúvida em uma mais aguda consciência filosófica da historicidade da existência humana33 — a ideia está penetrando sempre com mais intensidade. H. U. von Balthasar a sublinha, apoiando- se em De Lubac.34 Referindo-se concretamente à revelação, também têm insistido nela J. Monserrat35 e M. Gelabert Ballester.336E, já em referência imediata ao problema do encontro entre as religiões, J. Hick37 aduz a ela explicitamente. É preciso observar, no entanto, que estes últimos conservam ainda um corte voluntarista: Deus “poderia” revelar-se plenamente ao homem histórico, mas “não quer”, porque isso anularia a liberdade humana. O que se quer dizer talvez seja justo.38 Porém oferece todas as ocasiões para continuar alimentando o fantasma imaginativo de que, enfim, as coisas são assim difíceis porque Deus o quer. É preferível acentuar a consequência: trata-se de uma impossibilidade estrita. Tanto olhando a Deus, que ficaria negado na infinitude de seu mistério, que seria captável com plenitude evidente por um ser histórico finito (“se o compreendes, não és Deus”, dizia santo Agostinho), como olhando ao homem, que ficaria negado em sua essência de liberdade finita, a qual, por sê-lo, necessita realizar-se no trabalho e no amadurecimento do tempo. Em todo caso, o significativo para nosso propósito é o consenso de fundo: a 20 particularidade da revelação cristã como uma necessidade histórica. Agora já convém dar um segundo passo: ver seu significado em relação com a revelação em outras religiões. 2.1.3. A “eleição” de Deus: “Cur tam cito?” a. A eleição não é “favoritismo” Também aqui a imaginação pode enganar: em muitos casos, também quando em teoria se aceitou que Deus está real e salvificamente presente a todos os homens, continua agindo, subterrâneo mas eficaz, o preconceito de que somente se revelou na tradição bíblica. A “eleição” de uns seria abandono dos demais; no melhor dos casos, à espera de que os eleitos vão mais tarde aos outros. A mesma formulação explícita do preconceito basta para ver sua grandeza. Do anterior e de toda a experiência bíblica segue-se a evidência contrária: é claro que o Deus que “quer que todos os homens se salvem”, urgido por seu amor livre e generoso, busca por todos os meios fazer-se sentir o mais rápido e intensamente possível por todos os homens. Não descuida de ninguém e não faz “acepção de pes- soas” (cf. Rm 2,11; Ef 6,9; Cl 3,25; 1Pd 1,17). O que acontece é que cada tradição o recebe a sua maneira e segundo a limitação de suas capacidades; porém não descuida de nenhuma, está presente em todas e de todas se serve para ajudar às demais. Sintetizando imaginativamente: é como se Deus, no fundo luminoso do ser, estivesse pressionando continuamente a consciência da humanidade para emergir nela fazendo sentir sua presença (sua revelação).39 Onde se oferece um resquício, onde uma consciência cede livremente a sua pressão amorosa, ali ele concentra seu afã, aviva com cuidado o fogo que começa a nascer, continua apoiando-o com todos os meios de sua graça. E a partir deste ponto procura estender aos demais a nova descoberta, conciliando neles a pressão interna de sempre e o oferecimento externo que lhes chega a partir da história. Compreende-se que a “eleição” — e pense-se que todas as religiões se consideram de algum modo “eleitas” — não pode ser interpretada fora deste contexto. Significa o modo concreto em que Deus se relaciona com uma tradição determinada. Este modo não vem dado por uma eleição arbitrária, e sim pelas condições reais que o tornam possível. E o que nele se consegue de novo e peculiar está destinado a todos. É, pois, uma vivência real e plenificante, pois Deus não age “como se”; mas não é “favoritismo”, pois sua destinação é intrinsecamente universal. Não resta dúvida de que seriam necessárias muitas precisões num tema tão fundamental. Para não nos estender, tentemos esclarecê-lo com um exemplo. Imagine-se um professor que está tentando fazer sua classe compreender uma teoria difícil. Ele se dirige a todos e por todos quer ser compreendido. Mas quando, em seu empenho, vê aparecer nos olhos de algum aluno o brilho da compreensão, é certo que — sem abandonar o ensino aos demais — procurará apoiá-lo e impulsioná-lo até o fundo do problema. Há liberdade por parte do professor, pois de nada se inteiraria o aluno se o professor não se decidisse a explicar. E há eleição, pois a compreensão do 21 aluno e, consequentemente, a relação com o professor se intensificam e se aprofundam. Porém, se ele for um bom pedagogo, procurará que por meio desse aluno a classe inteira chegue o mais rapidamente possível a idêntica compreensão. Longe de perder, a classe sairá ganhando. Excetuemos o que em um professor humano possa haver de parcialidade; notemos, sobretudo, que a sensibilidade para o divino não coincide necessariamente com os dotes dos “sábios e prudentes” do mundo (Mt 11,25); acrescentemos que o ser do aluno e a própria capacidade de compreender são neste caso dom do revelador divino, e teremos um “modelo” sugestivo do mistério da eleição divina. b. A eleição particular como “estratégia” do amor universal Apliquemo-lo à tradição bíblica. A “eleição” de Israel responde perfeitamente a este esquema. Não é que Deus “comece” sua manifestação ao homem com a história bíblica. O que acontece é que, no seio de sua manifestação à humanidade — e, mais concretamente, à específica humanidade que a partir da revolução neolítica vivencia esta manifestação nas religiões do Oriente Médio —, um grupo determinado inicia um tipo peculiar de experiência. Por diversas circunstâncias — entre as quais a experiência da saída do Egito, seu ser lugar de cruzamento de religiões e culturas, assim como o estilo ético, pessoal e histórico em que se foi configurando sua relação com Deus,40 exercem papel determinante —, nesse grupo se desenvolveu uma pecu- liar sensibilidade para captar a “pressão” religiosa de Deus sobre a consciência da humanidade.41 Não que tudo seja aqui mais pleno e melhor. De fato, para determinados aspectos — como a tolerância para com os demais e a transparência cósmica do Absoluto, nas religiões da Índia; ou a sabedoria da vida, na religião chinesa42 — a tradição bíblica nãose mostra especialmente receptiva. Mas a autointerpretação cristã crê que, no conjunto, por meio desse grupo se abriu um tipo de experiência na qual — digamo-lo a nossa maneira — Deus encontrou a possibilidade de ir potencializando um caminho rumo à manifestação alcançada em Cristo. Porém agora já compreendemos que esse fato não roubou nada dos demais, os quais Deus sempre foi apoiando igualmente em tudo quanto lhe permitiam as respectivas tradições. Ao contrário, vê-se muito bem que agora pode oferecer-lhes ademais o revelado em Cristo. Um mínimo realismo histórico mostra que a “isso” — ainda que prescindindo agora de sua maior ou menor excelência — nunca haveriam chegado por evolução interna: agora pode regalar-se-lhes pelo atalho externo da missão. De fato, é chamativo que o alcançado na tradição judaica, até então muito fechada em seu particularismo nacionalista, é entregue agora a toda a humanidade. A primitiva igreja custou a compreendê-lo, mas a dinâmica interna era irrefreável. Vista assim, não é certo que a particularidade, à primeira vista tão escandalosa, longe de ser um favoritismo arbitrário, mostra-se como uma autêntica “estratégia do amor” para chegar o quanto antes e do melhor modo ao maior número possível de homens e mulheres? 22 c. A pressa do amor A ideia aludida no título deste subitem pode ilustrá-lo e confirmá-lo. Os antigos puderam perguntar-se: “por que tão tarde?” Mas a autocompreensão cristã pode também fazer-se, e já se fez, a pergunta contrária: cur tam cito? (“por que tão cedo?”). Com efeito, olhando o lento processo da história humana e a imensidão do horizonte que se abria diante dela, como foi possível essa inaudita “aceleração do tempo” — observe-se: um motivo bíblico —, que fez do ponto zero de nossa era o salto definitivo da revelação em Cristo? Ainda hoje a humanidade está em fase de unificação cultural e humanização verdadeira: como foi possível que Deus considerasse “maduros” — outro motivo bíblico — os tempos faz já vinte séculos? H. U. von Balthasar detecta, com aprovação, este motivo em W. Solowjew, e o expressa assim: “Se os Padres da Igreja tiveram de responder à pergunta sobre por que Cristo chegou tão tarde ao final dos tempos, Solowjew tem de fazê-lo à pergunta contrária sobre por que chegou tão cedo”.43 Certamente, este tipo de considerações corre sempre o risco de escapar ao sentido controlável. Porém, olhando ao fundo da experiência, é muito artificial para a autocompreensão cristã pensar que a revelação definitiva em Cristo se produziu justo no momento em que se dava o mínimo de condições de possibilidade para sua inserção definitiva na história universal.44 22. Vejam-se as agudas observações de R. Schäffler, Religion und kritisches Bewusstsein, Friburgo / Munique, 1973, pp. 56-83, principalmente pp. 56-73. 23. E. Schillebeeckx, Jesús. La historia de un viviente, 2ª ed., Madri, 1984, pp. 556-560. Uma tentativa densamente especulativa é a de W. Löser, “Universale concretum” als Grundgestez der oeconomia revelationis, em W. Kern / H. J. Pottmeyer / M. Seckler (orgs.), Handbusch der Fundamentaltheologie. II Traktat Offenbarung, Friburgo, 1985, pp. 108-121. 24. Obviamente, com isto não se diz que toda tradição particular já seja, sem mais, potencialmente universal: isso terá de mostrá-lo em sua capacidade real para chegar a todos e para ser aceita, não pela imposição da força, mas pela validez humana da oferta. Daí a importância do tema da verificação, que aqui somente poderá ser aludido. Como se sabe, esta é uma preocupação capital na reflexão de W. Pannenberg sobre a revelação, já desde o escrito programático, dirigido por ele, Offenbarung als Geschichte, 4ª ed., Göttingen, 1970. Em diálogo com seu pensamento, temos prestado também uma sustentada atenção ao problema: cf. A revelação, principalmente pp. 304-340. 25. Pense-se nos grandes representantes da Escola Histórica das Religiões, para muitos dos quais a Bíblia passou a ser um a mais entre os livros sagrados das culturas mesopotâmicas (cf. J. Hempel, Religionsgeschichtliche Schule: RGG 3 [1961] 991-994 e H. Schlier, Religionsgeschichtliche Schule: LfThK 8 [1963] 1184-1185). Mais significativo ainda é talvez o fato contado por Semler no prólogo a sua refutação de Reimarus: o escândalo da publicação por Lessing dos fragmentos de Acerca del propósito de Jesús y de sus discípulos, 1778, tornou-se tão grande que muitos estudantes de teologia sentiram-se perdidos e buscaram outra profissão (cf. A. Schweitzer, Geschichte der Leben-Jesu-Forschung, Ed. Siebenstern, Munique / Hamburgo, 1976, p. 67). Sobre tudo isto, cf. A. Torres Queiruga, A revelação, caps. II-III, pp. 45-98. 26. Cf. Ch. Duquoc, Monoteísmo e ideología unitaria: Concilium n. 197 (1985) 79-83; remete a G. Morel, Questions d’homme, 3 vols., Paris, 1977. Pessoalmente, em A revelação, p. 280, n. 6, explico minha relação 23 com a obra de Morel e como me parece que, a partir da concepção que procuro expor, seus próprios pressupostos, longe de afastar do cristianismo, permitem compreendê-lo muito melhor. Creio que o mesmo se poderia afirmar da postura de J. Hick. Neste sentido, se bem que eu esteja de acordo com J. Gómez Caffarena em que seu An Interpretation é “uma digníssima culminância de uma vida dedicada à filosofia da religião” (Filosofia de la Religión. Invitación a una tarea actual: Isegoría 1 [1990] 130, n. 3), não creio que em ponto tão crucial tenha sido a única possível a partir de seus próprios pressupostos. 27. La pensée européenne au XVIIIe siècle; uso a trad. portuguesa: O pensamento europeu no século XVIII, Lisboa, 1983, pp. 55-56. (Todo o capítulo se intitula significativamente “O Deus dos cristãos submetido a juízo”). 28. La subida al Monte Carmelo, 1. 2, cap. 22, n. 3 (Vida y obras de San Juan de la Cruz, 4ª ed., Madri, 1960, p. 522). 29. Assim raciocinavam Celso, Porfírio, Símaco e Juliano, o Apóstata: ver as referências em H. de Lubac, Predestinación de la Iglesia, em Catolicismo. Los aspectos sociales del dogma, Barcelona, 1963, pp. 177-178. Este trabalho (pp. 177-203) é uma excelente síntese. 30. Adv. Haer. 4, 38 (PG 7, 1105-1109). 31. L. c., pp. 178-195. 32. Assim resume C. Tresmontant o sentido da discussão: M. Blondel / L. Laberthonnière, Correspondance philosophique, Paris, 1961, p. 346; cf. pp. 346-347.372.375-376. Cf. também C. Tresmontant, La métaphysique du christianisme et la naissance de la philosophie, Paris, 1961, pp. 650ss. 33. Hegel já aludia a um “argumento de dois mil anos”; cf. esclarecimentos e referências em W. Jaeschke, Die Vernunft in der Religion. Studien zur Grundlegung der Religionsphilosophie Hegels, Stuttgart / Bad Cannstatt, 1986, pp. 207 e 291. J. P. Sartre sublinha muito bem a necessidade do crescimento a partir da radical e constitutiva historicidade da liberdade; cf. L’être et le néant, Paris, 1943, principalmente parte IV, cap. I, pp. 508-642. 34. Cf. Theodramatik II/1, Einsiedeln, 1976, pp. 195-201. 35. Existencia, mundanidad, cristianismo, Madri, 1974, pp. 452-454. 36. Experiencia humana y comunicación de la fe, Madri, 1983, pp. 113-118. 37. God, p. 50. 38. A dificuldade remonta a Kant e foi retomada por K. Jaspers: “Eu mesmo não posso pensar diferentemente de Kant: se a revelação fosse ‘real’ [comprovável empiricamente: A.T.Q.], isso seria o infortúnio para a liberdade concedida aos homens” (La fe filosófica ante la revelación, Madri, 1968, pp. 23-24). Veja-se como a expressa hoje J. Hick: “We can imagine [observe-se o verbo] finite personal beings created in the inmediate presence of God, so that in being conscious of that which is other than themselves they are authomatically and inavoidably conscious of God. (…) But how, in that situation, could they have genuine freedom in relation to their creator?” (Ibid.). Cf. em A revelação, pp. 284-286, as referências que fazemos a outros autores e um raciocínio um pouco mais pormenorizado. Prescindimos aqui de analisar o caso distinto da plenitude na glória, dado que esta supõe necessariamente a história prévia:cf. as considerações que fazemos a esse respeito em Creio em Deus Pai, Paulus, São Paulo, 1993, pp. 154-159. 39. É significativo que J. Hick recorra também a esta mesma imagem: “Let us then think of the Eternal One as pressing in upon the human spirit, seeking to be known and responded to by man’s free responses to create the human animal into (in our Judeo-Christian language) a child of God, or towards a perfect humanity” (God, p. 48). Dado que a 1ª ed. desta obra é de 1980, a primazia da metáfora lhe corresponde; mas o que importa é a coincidência das preocupações, apesar da possível diferença nas teorias. 40. Tema, obviamente, difícil: vejam-se as referências que oferecemos em A revelação, pp. 290-291. 24 41. Leia-se a sugestiva apresentação do processo bíblico que neste sentido faz A. Kolping, Fundamentaltheologie. Il Die konkretgeschichtliche Offenbarung Gottes, Munster, 1974, pp. 16-210. 42. Veja-se a sugestiva classificação que H. Kung (Christentum und Chinesische Religion, Munique / Zurique, 1988, pp. 11-19) faz das três grandes correntes religiosas na humanidade atual: abraâmica, indiana e chinesa. 43. Herrlichkeit. II/2 Laikale Style, 2ª ed., Einsiedeln, 1969, p. 692; cf. pp. 681-693. 44. Vejam-se, por ex., as observações de P. Teilhard de Chardin, El fenómeno humano, Madri, 1963, pp. 349- 357 e H. U. von Balthasar, Implicaciones de la palabra, em Verbum Caro, Madri, 1984, pp. 88-93. Hegel havia dito coisas fundamentais ao falar da passagem à “religião consumada” em suas Lecciones sobre Filosofía de la Religión, nova ed. de W. Jaeschke, trad. cast. de R. Ferrara, vols. II-III, Madri, 1987, principalmente pp. 44-67. U. Mann, Das Christentum als absolute Religion (cit., principalmente pp. 9-46. 169-188), recorrendo bastante à noção de “tempo eixo” (bem ampliada no tempo em relação à de Jaspers), faz também sugestivas considerações. 25 2.2. A “unicidade” da revelação plena O que se disse até agora deu por suposto o caráter pleno e definitivo — e, nesse sentido, único — da revelação cristã. Porém não o estudamos expressamente. Na realidade, a estrutura do raciocínio poderia valer para qualquer tradição (por isso insistimos em que se tratava da “autocompreensão cristã”). A razão está em que até aqui interessava esclarecer a primeira grande questão proposta no princípio: a particularidade como uma necessidade histórica, nem arbitrária nem oposta em princípio à universalidade de destino.45 Mas agora é preciso enfrentar a segunda, a saber: se historicamente a plenitude pode dar-se de modo simultâneo nas distintas religiões (pluralismo) ou se somente pode dar-se em uma, ainda que em relação com as demais (“inclusivismo”). O que foi analisado é fundamental para a compreensão deste problema, mas não o prejulga totalmente. Vamos tentar uma abordagem expressa em dois passos: 1) o modo da inclusão; e 2) as consequências para o encontro entre as religiões (que constituirá o item 3). 2.2.1. Impossibilidade de um “pluralismo” consequente a. Entre o imperialismo e o nivelamento Convém, antes de algo, começar incumbindo-se da preocupação pluralista: qualquer tentativa de universalizar uma particularidade deverá precaver-se por todos os meios de fazê-lo em detrimento dos demais. Não pode tratar-se de uma “universalidade de conquista”. Fica claro que não podemos já pensar que a revelação se concentraria unicamente na tradição cristã ante um mundo totalmente carente de presença reveladora de Deus. Os tempos para agir com a estúpida e horrível tentação de um “imperialismo” cristão devem estar bem sepultados. A questão consiste em saber se a única alternativa a essa postura reside num nivelamento de todas as experiências reveladoras. Esta alternativa, já se reconheceu, tem a seu favor a espontânea generosidade do coração. Mas, por isso mesmo, creio que obedece melhor à onipotência imaginativa do desejo que ao realismo da história. Esta não é nunca homogênea e avança sempre “em ponta”, no sentido de que qualquer conquista ou ganho de algo verdadeiramente novo o é sempre numa circunstância determinada. O que não quer dizer que o seja em total descontinuidade ou sem o influxo do desdobramento, nem que este deva estar totalmente privado daquilo que exemplarmente se consegue no ponto de avanço. Pense-se, por exemplo, na filosofia: é muito difícil negar-lhe o caráter de ser uma aquisição grega (ao menos tal como a entendemos no Ocidente; mas isso basta para nosso raciocínio).46 E para reconhecê- lo não é preciso pensar que o tenha feito sem o influxo de outros povos nem, muito menos, que estes careçam totalmente de “filosofia”.47 Poderíamos aludir igualmente à técnica como “descoberta” ocidental e moderna:48 sem algum tipo de técnica, nenhuma cultura pode sequer sobreviver; e, no entanto, se a querem usar em sua 26 plena eficácia, de fato terá de chegar-lhes do Ocidente. Observe-se que raciocinamos ainda abstratamente. Os exemplos valem em princípio para qualquer grande avanço humano e, supostamente, para qualquer religião. Indicam ademais que não se trata de avanços totais: uma tradição pode avançar muito num ponto e permanecer atrasada em outro; e ainda cada avanço real num ponto tem ordinariamente seus custos: para compreendê-lo, basta pensar nas ambiguidades da técnica. Neste sentido, é certo que não há religião que não tenha conseguido algo específico e peculiar, que seja “ganho” seu em alguma dimensão do Divino que Deus quereria manifestar a todos: não é um fato que estamos sempre aprendendo algo em contato com as demais religiões? b. A necessidade de um critério objetivo Não resta dúvida de que a distinção entre Deus — ou o Real, ou o Absoluto, ou o “Eternal One” — em si mesmo e sua manifestação religiosa na especificidade de cada cultura constitua uma evidência fundamental. John Hick tem razão em insistir nela.49 Mas parece não poder ter a mesma razão ao reduzir cada manifestação a ser simplesmente um modo equivalente a outro qualquer. Isso negaria todo caráter de descoberta à verdade, na qual o “fenômeno” realmente nada diria do “noúmeno” — é comparação dele50 —, o que dificilmente evitaria, por um lado, o risco do agnosticismo (as diferenças seriam somente subjetivas, dado que, ao não informar sobre o real, tampouco são mensuradas por ele);51 e, por outro, tenderia de algum modo a paralisar a história: nem a contribuição da tradição nem sua purificação crítica nem seu diálogo ou contato com outras tradições teriam alcance real: o resultado final seria sempre equivalente (ou seja, igualmente não informativo) ao ponto de partida, sem possibilidade de qualquer avanço real rumo a uma verdade menos inadequada. Na realidade, essa postura é impossível de se manter em sua coerência. O próprio John Hick — que continuamos tomando como autor especialmente representativo — precisa centrar suas reflexões nas “grandes religiões mundiais (the great world faiths) que têm suas raízes na idade axial”.52 O que implica — se bem que ele evite tirar expressamente tal consequência — dois claros juízos de valor incompatíveis para com uma opção estritamente pluralista e que são, além do mais, dificilmente negáveis: 1) o avanço qualitativo das religiões axiais sobre as pré-axiais;53 e 2) dentro destas, ele mesmo fala de “grandes religiões”, com a subentendida evidência de que nem todas as existentes podem ser tomadas em consideração neste nível.54 Mas há ainda uma consideração que, por estar livre de toda possível concorrência, torna isso mais evidente. O problema se apresenta dentro mesmo de cada religião: qualquer modo de vivê-la tem em princípio seu direito; porém todos procuramos discernir modos mais e menos autênticos de vivê-la; ou seja, buscamos modos que acreditamos serem objetivamente melhores. Por que, senão por isso, têm tanta importância as grandes reformas proféticas? 27 2.2.2. A unicidade de Cristo a. O sentido da unicidade É claro que isto não determina a priori onde está o avanço. De fato, cada religião “tem a impressão de estar no centro do mundo do sentido, com todas as outrasfés distribuídas em sua periferia”.55 Esse é, além disso, o sentido evidente de professar uma determinada religião. Por isso, em princípio, só tem cabimento o diálogo paritário onde todas se apresentam em pé de igualdade.56 Trata-se de mostrar as razões da própria crença e o modo como se concebem as relações com as demais. Aqui procuramos, antes de tudo, mostrar a autocompreensão da universalidade cristã. Esta se apoia na convicção de que em Cristo se alcançou uma plenitude única e definitiva. O que significa que o encontro revelador entre Deus e o homem — presente em todas as religiões — aconteceu nele de modo insuperável e total: a livre decisão divina de comunicar-se totalmente e sem reservas à humanidade encontrou em Cristo a máxima recepção possível na história. Cristo foi o homem capaz de experimentar em toda sua radicalidade a presença ativa de Deus e de acolhê-la na entrega absoluta de sua liberdade. Constitui, pois, o ponto culminante e insuperável desse processo pelo qual o homem, como ser emergente que se realiza na história, alcança sua realização última no encontro com Deus. É claro que com estas palavras a respeito da revelação em Cristo se está refletindo nossa fé em sua “divindade”. Mas recorrer à “fé” pode significar uma espécie de escapismo à afirmação arbitrária, alheia à responsabilidade intelectual. Tem de ser ao mesmo tempo um modo de tentar “compreendê-la”. Isto é muito mais importante do que parece. Não se pode dar por suposta essa compreensão: muitos modos de fazê-la tornam impossível um diálogo que deveria, isso sim, contribuir para elaborá-la.57 Ao atrever-se a falar de culminação em Cristo, a afirmação crente tem de deixar-se confrontar com os dados da história, pois neles se apoia sua “racionabilidade”. O que obriga a remeter-se à proposta efetiva que Jesus faz. Essa proposta é a que em si mesma sugere sua insuperabilidade. Pode ser concretizada nas seguintes perguntas: tem cabimento pensar na história humana em outra proposta que supere a que, na consequência radical da palavra e da conduta, fala de um Deus pessoal que “é amor” e perdoa sem condições, que “faz nascer o sol sobre os bons e os maus” (Mt 5,45) e “quer que todos os homens se salvem” (1Tm 2,4); que como “Pai” suscita uma atitude religiosa de confiança filial nele e promove uma ética de serviço, sobretudo aos mais necessitados, e de amor a todos, inclusive ao inimigo? Aceitar o insuperável que estas perguntas sugerem não tem por que realizar-se de maneira excludente, como se somente aqui se desse isso e “fora” não existisse nada. O contrário é que se está sugerindo: exatamente porque é culminação, supõe que, em modos, em graus e por caminhos distintos, faz-se presente também em outras religiões. O que aqui se reconhece — e por isso se é cristão — é tão-somente o coerente, integral e definitivo da proposta que aí se realiza e se oferece. 28 A aceitação tampouco significa, portanto, que essa proposta nasça do nada, na verticalidade de uma revelação caída do céu. Tem sua base realíssima e indispensável na tradição do próprio povo e, por meio dela, na enorme contribuição dos demais: dos anteriores, por meio da própria Bíblia (inexplicável sem eles); e dos contemporâneos, por meio sobretudo da profunda impregnação religioso-cultural do helenismo. E tudo isso significa menos ainda que essa culminação esteja “em poder” dos cristãos, ou que eles a realizem em perfeição. Precisamente por ser culminação humana, a proposta desdobra toda forma particular, constituindo-se em convite e desafio para todos. Também para os cristãos. b. As implicações da unicidade Em todo caso, o que agora interessa primeiramente não é “demonstrá-la”, e sim procurar ver duas implicações fundamentais: 1) que a unicidade irrepetível é uma necessidade histórica; e 2) que não impede um encontro aberto com os demais (isto fica para o próximo item). A unicidade é o escândalo: o “cristocentrismo” parece o obstáculo insuperável. E o é, se for mal-entendido. Não tem por que sê-lo se for visto, ao menos pressentido, em seu verdadeiro sentido. Na realidade, trata-se de uma necessidade, no sentido — que vimos insinuando — de que uma plenitude histórica não pode realizar-se de outra maneira. Repitamo-lo: a revelação de Cristo não se situa separada das demais. Origina-se, por emergência e intensificação, do fundo comum que é a presença reveladora de Deus a todos os homens. Parte da experiência de todos e nunca caminha para fora dela: o que faz é captá-la de um modo específico e levá-la a sua culminação. Por isso Jesus enlaça — e somente assim ele mesmo é historicamente possível — com a tradição de Israel e, por meio dela, com a da humanidade. E por isso mesmo a missão cristã — apesar dos muitos pecados de sua história — sabe que chega sempre a uma casa já habitada pelo Senhor e aquilo que faz é oferecer seu novo e pleno modo de compreendê-lo como único e comum a todos. O que ocorre — repitamo-lo também — é que isso só pode acontecer, por essência, numa única pessoa. A revelação refere-se a toda a humanidade, à realização última do homem que se faz na descoberta de sua relação viva com Deus. Por definição, descobrir aqui o último é realizá-lo na abertura da própria existência.58 Nem sequer tem cabimento a categoria de “representação”, usada com eficácia e inspiração por Sch. Ogden59 e, sobretudo, por D. Tracy.60 A representação não é uma mera possibilidade abstrata — como as “verdades atemporais” ou os “meros símbolos” do liberalismo61 —, mas tampouco necessita ser a “atualização pessoal de possibilidades”; no sentido de que não seria preciso que Jesus vivesse o que ele “representa” para nós: bastaria que fosse “símbolo”, como M. L. King o é de um “modo de ser neste mundo” sem necessidade de que ele tivesse vivido essa possibilidade.62 Tratando-se da ultimidade humana, não tem cabimento o símbolo 29 sem realização, porque no processo de chegar ao extremo de si mesmo a partir da relação com Deus, o homem só pode ver o que vive. Aqui a realização é a única que abre a possibilidade: avançar realmente na descoberta e na comunhão é o único modo de ser representação.63 Já se compreende que não se trata aqui de polemizar com D. Tracy, cuja postura é, por outro lado, muito mais rica e matizada.64 O que interessa é sublinhar o realismo da aposta e sua necessidade histórica, no mesmo sentido que fizemos a propósito da “eleição” (na realidade, não são questões separadas). Não estamos diante da “lógica do privilégio”, e sim diante da “estratégia do amor”. Se Deus quer entregar-se totalmente à humanidade, “tem de” fazê-lo num ponto concreto da história, se esta é real e não uma mera aparência. Porém por isso mesmo se interpreta mal essa entrega se ela não é vista como dom para todos e que a todos se oferece como sua possível realização. 2.2.3. Uma plenitude relativa e aberta Uma vez assegurado esse realismo, certamente convém ver a enorme flexibilidade de sua realização histórica. Também aqui a autocompreensão cristã viu claro desde o princípio. A plenitude da qual aqui se trata não é uma plenitude disponível, nem sequer para o próprio Jesus. Porque ao destino pleno de Jesus e sua revelação pertencem também sua morte e sua ressurreição. Como humano, Jesus era limitado, e a revelação teve de ir fazendo nele seu caminho. Também ele foi “receptor da revelação”.65 Dentro da história não podia viver na plena transparência: de fato, os próprios evangelhos já nos apresentam Jesus envolvido na busca e na pergunta até o último momento de sua vida (“Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste?”: Mc 15,34 = Mt 27,46).66 Somente através da ruptura dos limites históricos pela morte pôde entrar na luz plena da ressurreição. Por isso, como bem compreendeu a teologia atual e tão energicamente sublinhou W. Pannenberg,67 tem um significado constitutivo para o ser de Jesus e para o significado de sua revelação. Por isso tem um alcance extraordinário. Porque a ressurreição forma já parte do mistério absoluto de Deus, e isso significa que a revelação de Jesus, talcomo é entregue definitivamente à humanidade, realiza-se numa difícil dialética de pertença e não pertença à história. Não pertença, porque o Ressuscitado “vai ao Pai”, escapando radicalmente de nossa compreensão adequada. Pertença, porque, apesar de tudo, “permanece”, dando-se-nos a conhecer em nossa história e mantendo-nos abertos à plenitude em que agora ele vive. E significa também, como já se indicou, pertença e não pertença à igreja. Pertença, porque ela é a comunidade encarregada — não existia outra possibilidade histórica — de manter viva sua lembrança e efetiva sua oferta. Mas também não pertença, porque o aberto no Ressuscitado desdobra a ela própria, que não o abarca nem o possui, e que tem de reconhecê-lo como destinado com igual direito a todos os demais. 30 Compreender isto não foi fácil para a igreja, porque o particularismo apropriador e excludente é sua tentação perene, e já nos começos a tentativa de superá-lo — recorde-se todo o conflito que subjaz ao Concílio de Jerusalém — esteve a ponto de romper a comunidade primitiva. Ainda hoje, apesar de que já se tornou bem comum teológico a convicção de que “a igreja não é o Reino”, continua constatável a tentação particularista de uma excessiva “eclesialização” do cristianismo, muito fechado em si mesmo, com uma instituição pouco maleável às exigências da missão e com uma teologia pouco aberta à novidade da história. Daí a tarefa inacabável da experiência crente, apoiada na recordação de Jesus e estirada até sua plenitude. Todo o Novo Testamento é já reflexo desta dialética, que supõe uma entrega ao influxo da história, em que a consciência da revelação tem de reconfigurar-se continuamente. O obtido nessa primeira e fundante reconfiguração descobriu o fundamental: a partir da experiência aberta por Jesus, a igreja neotestamentária tomou consciência de todas as chaves decisivas da relação Deus- homem e suas consequências para a vida.68 Porém notemos algo capital para nosso propósito. Nesse tomar consciência colaboraram, por necessidade intrínseca, todos os elementos ambientais. Não somente — que já é muito — a tradição religiosa de Israel, mas também a filosofia grega (que então era ela própria profundamente religiosa) e as tradições religiosas que impregnavam a ecumene (pense-se tão-somente nos “mistérios”, sem entrar em discussões de pormenor).69 Hoje, superada a concepção da “revelação como ditado”, estamos bem conscientes do caráter necessariamente interpretado de toda a revelação bíblica; mais ainda, da pluralidade de “teologias” que a habitam. “Teologias” que, obviamente, puderam ter sido tão distintas para que o evangelho se estendesse por outros âmbitos. Pense-se tão-somente em como seriam a teologia, a liturgia e também a dogmática cristãs se, em vez de o cristianismo estender-se inicialmente pelo império romano, o tivesse feito pela Índia ou pela China. Sendo as “mesmas” — ou seja, tradução da mesma experiência fundamental —, seria, com toda segurança, muito difícil ver sua semelhança com as atuais. Isto pode parecer história-ficção, e o é como possibilidade passada. Mas é história realíssima nas circunstâncias atuais, quando o anúncio do evangelho está chegando de fato a esses continentes e culturas. O ensaio mental se converte assim em consciência da enorme amplitude que se oferece ao encontro das religiões, e deveria ser convite para uma profunda mudança de mentalidade. 45. Em A revelação, pp. 295-296, tratamos ainda de outro sugestivo tópico: “a humildade de Deus: cur tam infra?” Ali se sublinha que a universalidade se realiza “a partir de baixo”, a partir da humildade e da despossessão, porque só assim pode chegar realmente a todos os homens nas condições da história. 46. “… significa riconoscere, nè più nè meno, che, in questo campo, i Greci furono dei creatori, ossia che diedero alla civiltà qualcosa che essa non aveva, e che, come vedremo, si rivelerà di tale portata rivoluzionaria da mutare il volto alla civiltà medesima” (G. Reale, Storia della Filosofia Antica. I: Dalle origini a Socrate, Milão, 1984, p. 12; ed. bras.: Paulus). 47. Cf. a discussão clássica deste ponto em E. Zeller, Die Philosophie der Griechen in ihrer geschichtlichen Entwicklung, I/1, 6ª ed., Lípsia, 1919, pp. 21ss; atualizada em E. Zeller / R. Mondolfo, La filosofia dei Greci 31 nel suo sviluppo storico, I/1, 2ª ed., Florença, 1943, pp. 35-63. G. Reale, Ibid., pp. 11-30, oferece uma clara panorâmica, que talvez minimiza em excesso a contribuição oriental; cf., contudo, o que diz a propósito dos mistérios (pp. 26-29; e também F. M. Cornford, Principium sapientiae. The Origins of the Greek Philosophical Thought, Cambridge, 1952). 48. A postura tão reservada de Heidegger contra a técnica como configuração “moderna” do destino do Ser, mostra justamente o reconhecimento desta especificidade: cf. a arquicitada conferência Die Frage nach der Technik, em Vorträge und Aufsätze, Pfullingen, 1954, pp. 13-44, e a menos citada, porém muito interessante, Wissenschaft und Besinnung, Ibid., pp. 45-70. Ortega se ocupa desta dialética — universalidade humana / peculiaridade moderna ocidental —, com mais clara e imediata preocupação histórica, em sua famosa Meditación sobre la técnica (1933), em O. c. V, 6ª ed., Madri, 1964, pp. 317-375, principalmente pp. 357- 358.371-375. 49. Cf. principalmente An Interpretation, pp. 236-251, onde reassume e aprofunda suas reflexões anteriores a esse respeito. 50. Cf. Ibid., pp. 241-246. 51. Não cabe entrar aqui em uma análise pormenorizada dos problemas epistemológicos implicados nesta observação: remeto de novo aos excelentes trabalhos de A. Kreiner e P. Schmidt-Leukel, que trazem além disso a principal bibliografia da discussão anglo-saxônica a esse respeito. 52. An Interpretation, p. 12. 53. Cf. sua própria análise, Ibid., pp. 21-35. Não interessa entrar na maior ou menor justeza da distinção. 54. O que é, além disso, simples realismo ou senso comum. Na tarde em que começava a redação deste trabalho, estive falando com uma missionária do Zaire: o carinho por aquela gente, a quem havia entregue sua vida, e o respeito por sua religião não lhe impediam de ver o quanto grande parte de suas crenças tribais eram pavorosamente opressoras. Talvez, naquelas circunstâncias concretas, sejam o modo mais natural de integrar o sentido de sua existência. Mas qualquer um compreende que a tentativa — respeitosa e dialogante — de ajudá-los a melhorar o conjunto supõe uma avanço objetivo. Afirmar que tudo deve continuar igual, porque sua religião é igualmente válida, pode, teoricamente, parecer uma atitude muito aberta e generosa; na realidade, poderia ser um autêntico menosprezo. 55. J. Hick, God, p. 119; cf. pp. 54. 118-119. O que, note-se, desvela a pretensão de validade objetiva, presente em toda crença. 56. Esse é o mérito evidente da proposta de W. Pannenberg, Wissenschaftstheorie und Theologie, Frankfurt a. M., 1973; mais concretamente: Erwägungen zu einer Theologie der Religionsgeschichte, em Grundfragen systematischer Theologie, 2ª ed., Göttingen, 1971, pp. 252-295. 57. Tarefa bastante “nova” e muito difícil, que está muito longe de estar medianamente elaborada. Algumas indicações podem ver-se em A revelação, pp. 239-245. 58. Vejam-se, com orientação distinta, as profundas considerações de Hegel, Lecciones sobre Filosofía de la Religión, t. III, ed. cit., pp. 44-67; a esse respeito cf. W. Jaeschke, Die Religionsphilosophie Hegels, Darmstadt, 1983, pp. 97-100, que revisa as principais interpretações. 59. Cf. Christ without Myth, Nova Iorque, 1961, p. 161; e The Reality of God and Other Essays, Londres, 1967, p. 203. 60. Blessed Rage for Order, Nova Iorque, 1965. 61. Blessed Rage, p. 235, n. 99. 62. Ibid., pp. 216-218. 63. Por isso a Dei Verbum, n. 4, insiste que Jesus revelou “com toda sua presença e manifestação, com suas palavras e obras…”. 64. Cf. suas reflexões em The Analogical Imagination, Nova Iorque, 1981, pp. 305-338: “The Search for a 32 Contemporary Christology”, principalmente pp. 312-317.329-332;
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