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Filosofia da Religião Ms. Jonathan Menezes Setembro/ 2015 Professor autor: Ms. Jonathan Menezes Coordenadoria de Ensino a Distância: Gedeon J. Lidório Jr Projeto Gráfico e Capa: Mauro S. R. Teixeira Revisão: Éder Wilton Gustavo Felix Calado Todos os direitos em língua portuguesa reservados por: Rua: Martinho Lutero, 277 - Gleba Palhano - Londrina - PR 86055-670 Tel.: (43) 3371.0200 03 SUMÁRIO Unid. 01 - Que estuda a Filosofia da Religião?.............................05 Unid. 02 - A Religião.......................................................................13 Unid. 03 - O Sagrado.......................................................................23 Unid. 04 - Os Mitos.........................................................................33 Unid. 05 - O que é a fé?...................................................................43 Unid. 06 - Dúvida............................................................................55 Unid. 07 - Sentido............................................................................65 Unid. 08 - O Trágico........................................................................77 Unid. 09 - Modernos.......................................................................89 Unid. 10 - Crítica Moderna...........................................................101 Unid. 11 - Crítica de Nietzsche.....................................................117 Unid. 12 - Desconstrução..............................................................131 Unid. 13 - Pós_Modernos..............................................................145 Unid. 14 - Morte de Deus.............................................................157 Unid. 15 - Novo Ateísmo...............................................................171 Unid. 16 - Verdade.........................................................................185 Filosofia da Religião04 05 Filosofia da Religião Unidade -1 Que estuda a Filosofia da Religião? Introdução Nesta unidade de abertura de nosso curso, gostaria de investir esforços para falar de duas coisas basilares: a primeira é entender o que é e o que estuda a Filosofia da Religião, ou seja, qual é o seu objeto; a segunda é definir qual método ou caminho pretendo adotar neste estudo. Ao final, o objetivo é que saiamos convencidos das razões pelas quais esta disciplina pode ser útil e importante para o “fazer” teológico, e também cientes do que isso irá requerer de cada um de nós, pois gostaria que fizessemos um trabalho conjunto, em que eu me proponho a formular questões e oferecer alguns caminhos para os problemas epistemológicos que iremos enfrentar, tentando, com isso, auxiliá-lo/a na busca por soluções possíveis, que não serão dadas de “mão beijada” aqui. Isto significa que este curso não oferece respostas? Sim, oferece, mas com elas, e até mais do que respostas, ele oferecerá perguntas, favorecendo o pensamento aporético1. Eventualmente, você poderá perceber que uma posição ou perspectiva em particular está sendo apresentada ou privilegiada. E esta é mais uma razão para que você desenvolva melhor sua criticidade, tanto para poder avaliar as formas de reflexão aqui expostas, como para formular sua própria reflexão sobre os assuntos em questão. 1 Aporético vem de aporia e indica uma dificuldade ou dúvida racional diante da impossibilidade objetiva de uma resposta ou conclusão definitiva a respeito de algo (ver Unidade 13 deste curso). Filosofia da Religião06 Objetivos 1. Entender quais são os objetos de estudo da Filosofia da Religião; 2. Reconhecer o método de estudo a ser utilizado; 3. Identificar a importância desse tipo de estudo para a teologia e vida cristãs. 07 A Filosofia da Religião Ao favorecer o pensamento aporético, como expliquei acima, quero provocar a fome de pensar. Mas, você poderia perguntar, em que vamos pensar? E esta pergunta nos conduz ao coração da Filosofia da Religião. Ao estudar teologia na FTSA você perceberá, se já não percebeu, que o tema da religião é estudado por vários campos do saber: antropologia, história, sociologia, psicologia. Assim sendo, qual é o diferencial da filosofia em relação aos outros campos no estudo da religião? A filosofia se ocupa da vida, é um amor à sabedoria que desemboca em modos de conceber, interpretar e dar significado à vida. Sua tarefa é a de fazer perguntas e promover uma reflexão profunda sobre temas e problemas que atingem qualquer ser humano. Como diz Thomas Nagel (2011, p. 2), “ela [a filosofia] se faz pela simples indagação e arguição, ensaiando ideias e imaginando possíveis argumentos contra elas, perguntando-nos até que ponto nossos conceitos de fato funcionam”. De que se serve, portanto, a filosofia? De perguntas ou problemas e conceitos criados para tentar dar conta deles. Ela também subsiste pela contestação desses mesmos conceitos, na desconfiança diante do óbvio, e da provisoriedade das ideias. MAS, AFINAL, O QUE É A FILOSOFIA? Se perguntarmos a dez filósofos, “o que é a filosofia”, ouso dizer que três ficarão em silêncio, três darão respostas pela tangente, e as respostas dos outros quatro vão ser tão desencontradas que só mesmo outro filósofo para entender que o silêncio de uns e as respostas dos outros são todas abordagens possíveis à questão proposta (IGLESIAS, in REZENDE, 2008, p. 12). O que pretendo sob o título de filosofia, como fim e campo de minhas elaborações, sei-o, naturalmente. E contudo não o sei... Qual o pensador para quem, na sua vida de filósofo, a filosofia deixou de ser um enigma?... Só os pensadores secundários que, na verdade, não se podem chamar filósofos, estão contentes com suas definições (HUSSERL, 2001, p. 143). Filosofia da Religião08 Toda a esfera da vida pode ser objeto da filosofia. Há algumas razões para isso: Primeiro, todas as coisas podem ser examinadas e questionadas a nível filosófico e científico. A filosofia começa com o espanto do filósofo diante da realidade (espantado, ele lança perguntas). Remetendo ao que disse Platão: “A única coisa que precisamos para nos tornarmos bons filósofos é a capacidade de nos admirarmos com as coisas” (GAARDER, 1996, p. 10). As explicações, por sua vez, são da ordem do provisório: trata-se de um convite à reflexão, que nasce da impossibilidade (e cresce nela) de explicar o porquê de todas as coisas. Segundo, enquanto as ciências focam particularidades, a filosofia se ocupa do universo todo. Mas há coisas que as ciências não estudam e que acabam sendo objetos da filosofia, como: o valor da vida, a natureza do bem e do mal, a origem e o valor da lei moral, etc. Alguns objetos, porém, são mais caros: lógica, epistemologia, metafísica, cosmologia, ética, teodicéia, política, estética. Se método é o arrazoague ou discussão, a justificativa ou indagação lógica, é racional. Serve-se todo tempo do logos “razão”. Um exemplo está no método socrático chamado de maiêutica (que literalmente significa “parteira”), que consiste em “parir” ideias complexas a partir de perguntas simples e articuladas dentro de um contexto ou assunto. Terceiro, o fim da filosofia é o chamado “o saber pelo saber”: apreço pelo saber em si e pela “verdade” que está escondida nas coisas e que se descortina parcialmente no olhar investigativo, nos conhecimentos profundos. Portanto, se desde os primórdios, na antiguidade clássica, a filosofia incorpora e elabora questões cruciais à vida humana, Deus e a religião não poderiam ficar de fora. Sempre foram temas da filosofia ocidental. De algum modo, toda filosofia pressupõe uma filosofia de Deus ou da religião. No entanto, a filosofia da religião, como ramo relativamente recente da filosofia, tem contornos e objetos próprios. Segundo Paul Tillich (1973, p. 16), “a filosofia da religião é a teoria da função religiosa e suas categorias”; ou podemos pensar simplesmente com John Hick (1970, p. 11), que ela é a “reflexão filosófica 09 sobre a religião”. Com efeito, apesarde sua estreita aproximação com as diferentes formas de teologia “na verdade, o modo como teólogos significam a experiência de Deus é um dos objetos de sua preocupação”, ela se diferencia delas no sentido de que a teologia se funda na relação ser humano-Deus e numa leitura filosófica da revelação. A filosofia da religião (como campo do saber, e não necessariamente do modo com estudaremos aqui) não deve ser religiosa nem aceitar a revelação (TILLICH, 1973, p. 10), ou seja, enquanto uma pessoa, movida, talvez, pela moral religiosa pode se perguntar se é certo ou errado se ter relações sexuais pré-matrimoniais, o filósofo pergunta: “O quê ou quem define o certo e o errado nessa questão - parafraseando aqui a Thomas Nagel (2011, p. 3). Esta disciplina se ocupou, historicamente, em pensar filosoficamente os mais diferentes problemas relacionados com Deus e a religião, problemas como a existência de Deus, o bem e o mal, o destino humano, ou os atributos de Deus. Por vezes se aproximou da apologética e da teologia natural2, cuja preocupação principal é defender a razoabilidade da fé e de Deus no mundo, podendo assumir, em casos extremos, um teor quase proselitista. Quero não apenas evitar tal abordagem nesse curso, como adotar uma atitude crítica em relação a ela; não abordarei também temas ligados à natureza de Deus e seus atributos, simplesmente por entender que ela não contribui muito para o que consta na ementa desse curso, isto é, estudar a “diversidade do fenômeno religioso”, ao mesmo tempo em que se aproxima do que muito provavelmente você já viu ou verá em Teologia Sistemática. Sendo assim, em que me concentrarei? Basicamente na própria religião como prática humana - seus elementos básicos, e até certo ponto sua diversidade - e, mais particularmente, na fé, linguagem e experiência religiosas. Como diz Severino Croatto (2001, p. 22), “a filosofia da religião fala de Deus e do ser humano religioso. É um saber, não um compromisso. Não substitui o ato religioso, mas reflete criticamente a respeito dele”. 2 O respeitável trabalho da L’Abri Fellowship Brasil ainda hoje é um exemplo notável dessa aproximação. Ver: http://www.labri.org.br/ Filosofia da Religião10 Caminhos metodológicos O título acima é quase um pleonasmo, só que proposital. Método literalmente significa percorrer um caminho (no grego met: ‘depois’ ou ‘que segue’/ hodós: “via” ou “caminho”), e a metodologia seria então uma espécie de reflexão sobre o caminho (a ser) adotado. Que caminhos metodológicos serão aqui adotados? Na citação feita ao final do tópico anterior, de Severino Croatto, temos algumas pistas. 1. Quais são seus objetos? Deus e o ser humano religioso, ele diz, mas eu diria: Deus como constructo ou em função do ser humano religioso, suas experiências e modos de significação do sagrado. A filosofia metalógica3 da religião estuda o fenômeno religioso dentro do qual o conceito de Deus é muito importante. Entretanto, como defende Tillich (1973, p. 67), só fala de Deus a partir do significado que este recebe em uma ação religiosa. Logo, embora a moderna filosofia da religião tenha se construído a partir de uma série de especulações filosóficas e teológicas sobre o ser de Deus e seus atributos, para os propósitos deste curso, penso que seja mais interessante pensar nos sentidos, nomes e imagens de Deus nas diferentes religiões, cujas premissas e resultados são inevitavelmente antropomórficos4, isto é, levam a uma personificação do divino. Mas será que estas personificações ainda são “Deus” ou conseguem se referir a ele? Para Wilkinson e Campbell (2014, p. 92), a linguagem e, por conseguinte, as ideias, conceitos, metáforas, ou imagens que utilizamos para descrever Deus, sempre resultará em fracasso. Mas este é, para eles, o problema com a crença: o crente sempre tentará descrever Deus de alguma forma, e normalmente se utilizará de frases, que são sempre inadequadas. O que coloca, também, o problema da linguagem: existe alguma linguagem que seja “adequada” para se falar de Deus? Em outras palavras, existe algum “falar” que possa ser fiel a quem Deus, o Eterno, é? Um dos postulados da filosofia da religião está em reconhecer esta inadequação e problematizar o 3 Definida como “estudo da metateoria da lógica”. Enquanto a lógica estuda os sistemas lógicos podem ser utilizados para a produção de argumentos verdadeiros, a metalógica “estuda as propriedades dos sistemas lógicos” (WIKIPEDIA, 2015), isto é, os sistemas e linguagem formais e suas interpretações, utilizados para a constituição de um objeto – como, por exemplo, “Deus”. 4 Referente a antropomorfismo, que significa a transformação de tudo em ser humano ou à sua imagem. 11 uso destes conceitos também usando outros conceitos5. Afinal, quem pode fugir deles? 2. Em que ela consiste? Em um saber, não um compromisso. Ou seja, embora fale de Deus e da religião, o produto é um saber racional, articulado e lógico. Isto para dizer que o filósofo da religião pode até ser um crente, mas quando filosofa, não o faz a partir do pressuposto da defesa de sua crença, mas de sua problematização. De outro modo, um filósofo que se diz descrente, por exemplo, pode falar de Deus (como um personagem), de modo apaixonado, sem que isso resulte necessariamente num compromisso com Deus ou com uma religião. Luiz Felipe Pondé, em seu livro Os dez mandamentos e mais um, admite se encaixar nesta última categoria. Ele começa o livro dizendo: “Este livro foi escrito por um homem que não recebeu o dom da fé. Caminho nos campos do Senhor, como diz a Bíblia, como um cego em um jardim. Aqui está, contudo, a chance de fazer minha teologia. A teologia de um homem sem fé” (PONDÉ, 2015, p. 9). Por minha vez, gostaria de convidá-los a fazer um pouco mais do que o filósofo profissional: a pensar que podemos refletir com paixão, não ignorando os questionamentos existenciais sobre a fé que nos atingem diretamente, ou seja, a função da filosofia da religião aqui é a de também nos ajudar a refletir sobre nossa própria experiência religiosa, não para nos afastar, pelo contrário: é para nos levar a uma profundidade maior na fé. E isso não pode acontecer se não nos lançarmos no risco de questionar nossos próprios pressupostos e noções fundantes. 3. A que ela nos leva, portanto? A uma reflexão crítico-filosófica sobre as práticas religioas, de um modo mais amplo, e mais específica e pessoalmente a investigar e problematizar o que consiste a “minha religião”, mesmo que nem todos gostem deste nome. Reconhecendo isto, o caminho metodológico pelo qual gostaria que andássemos consiste em analisar realidades em que o ato religioso se manifesta, mesmo que numa pretensa irreligiosidade, através de perguntas 5 Nesse sentido, gostaria de recomendar, aos que desejos se aprofundar neste assunto, a leitura do livro A palavra humilhada, de Jacques Ellul (1984). Ali ele apresenta, por exemplo, a ideia de que a linguagem ou a palavra é um cativeiro, do qual somos prisioneiros e não podemos nos livrar. Toda tentativa de encerrar a verdade (ou Deus) numa palavra torna-se um atentado contra a própria verdade; resulta, como Nietzsche bem apontou, na “morte de Deus”. Para mais, ver discussão na unidade 14 deste curso. Filosofia da Religião12 filosóficas tais como: qual é o sentido da fé? Para que serve Deus? O que é e para que serve a religião? Debruçaremos-nos, para começar, sobre esta primeira pergunta na próxima unidade. Referências CROATTO, José Severino. As linguagens da experiência religiosa. São Paulo: Paulinas, 2001. ELLUL, Jacques. A palavra humilhada. São Paulo: Paulinas, 1984. GAARDER, Jostein. Sophie’s world. London, UK: Phoenix House, 1996. HICK, John. Filosofia da religião. Rio de Janeiro: Zahar, 1970. HUSSERL, Edmund. Meditações cartesianas. São Paulo: Madras Editora, 2001. IGLESIAS, Maura. O que é filosofia e para que serve. In: REZENDE, Antonio (Org.). Curso de filosofia. Rio de Janeiro: Zahar, 2008. NAGEL,Thomas. Uma breve introdução à filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 2011. PONDÉ, Luiz Felipe. Os dez mandamentos e mais um. Aforismos de um homem sem fé. São Paulo: Três Estrelas, 2015. TILLICH, Paul. Filosofia de la religión. Buenos Aires: Ediciónes Megápolis, 1973. WIKIPÉDIA. Metalógica. Disponível em: wikipedia.org/wiki/Metalógica. Acesso em: 20 Ago. 2015. WILKINSON, M.; CAMPBELL, H. Filosofia da religião: uma introdução. São Paulo: Paulinas, 2014. 13 Filosofia da Religião Unidade - 2 A Religião Introdução Qualquer um que se considere “religioso” e fala demais está se enganando. Esse tipo de religião é mera conversa fiada. Religião de verdade, que agrada a Deus, o Pai, é esta: cuidem dos necessitados e desamparados que sofrem e não entrem no esquema de corrupção do mundo sem Deus (Tiago 1.26-27, A Mensagem). A palavra “religião” é antiga e remonta aos tempos bíblicos, por exemplo. No Novo Testamento, a aparição mais conhecida do conceito se encontra no trecho de Tiago, acima citado.1 Sabemos que na antiguidade cristã existiam inúmeras religiões entre os diferentes povos; até mesmo os gregos e os romanos eram bastante religiosos, praticavam o politeísmo, que é a crença em ou culto a vários deuses. Sabemos também que o cristianismo primitivo teve uma base religiosa, advinda do judaísmo, sobretudo. Jesus e os apóstolos eram judeus e seguiam os princípios da religião judaica. No caso de Tiago, a palavra aperece com apenas um sentido possível, pois, como explica Frank Whaling (in McGRATH, 1993, p. 547), “o simples uso da palavra ‘religião’ implica em uma teoria sobre a religião”. Logo, Tiago parece teorizar sobre o que ele denomina “religião verdadeira”. Sobre isso, gostaria de propor um início de unidade diferente a você: antes de prosseguir neste estudo sobre o que é a religião e seus possíveis significados filosóficos, dedique-se a este texto de Tiago, podendo utilizar dicionários ou comentários bíblicos, partindo das questões abaixo relacionadas: 1 Outras ocorrências: Cl 2.18; At 26.5. No primeiro, o termo em grego (threskeia) significa “adoração religiosa”, e no segundo, “sistema religioso”. Filosofia da Religião14 (a) Qual é o sentido da palavra “religião” em Tiago? (b) Em que consiste, para ele, a religião “pura” ou “verdadeira”, e como ele identifica a “falsa religião”? (c) Qual é o significado mais comum da palavra “religião”? Pesquise e compare. (d) O que de comum há entre este(s) significado(s) e o que é apresentado por Tiago? *O que proponho acima é apenas um exercício. Não conta como avaliação. Objetivos 1. Encontrar possíveis sentidos para “religião”; 2. Perceber o que uma teoria ou concepção de religião pode revelar sobre seu objeto – que, para Tillich (1973), é o “incondicional”. 3. Analisar as razões próprias e ambiguidades da religião. 15 O que é religião? Religião é um sopro humano na busca pelo incondicional. Essa é a definição que usarei como ponto de partida. De onde a retiro? Primeiramente, da ideia de que a religião nasce do desejo ou busca pela transcendência (ou pelo infinito) que há em todo ser humano. Eclesiastes chama isso de um senso de “infinito” que há no coração humano: “Deus pôs a eternidade no coração do homem sem que este saiba as obras que Deus fez do princípio até fim” (Ec 3.11). De acordo com Harold Kushner (1999, p. 25), “Deus plantou em nós uma fome que não pode ser saciada, uma fome de sentido e significado”. Essa “eternidade no coração”, expressa bem essa fome pelo inexplicável, indizível, pelo que está além de nós; é o senso de vazio e escuridão diante de uma infinitude que não cabe dentro de nós, mas que desejamos desesperadamente: viver, e viver eternamente! Como diz Luiz Felipe Pondé (2015, p. 23), “somos seres feitos de abismos”. A busca pela transcendência na contemporaneidade assume outras facetas, mas expressa o mesmo anseio. Segundo John Stott (1998, p. 246), consiste no anseio “pela realidade suprema, que se encontra além do universo material. É um protesto contra a secularização, isto é, contra a tentativa de eliminar Deus de seu próprio mundo”. Trata-se de uma reabertura que vemos crescer no mundo atual de um espaço, que vinha sendo ocupado pelo racionalismo, o progresso e a ciência, por exemplo, como conquistas modernas, para a experiência do transcendente. Daí advém o renascer da espiritualidade, ou melhor, das espiritualidades, em um renovado senso do divino, do mistério e do temor. Neste tempo, vemos o florescer da religiosidade, como expressão espontânea e busca de relacionamento das pessoas com Deus através de ritos, performances e adorações, e menos da religião institucional e seus mecanismos de controle ou domesticação. O senso de infinito no coração humano nos conduz ao transcendente. Minha definição aqui pretende convergir tanto com a visão clássica romântica de Friedrich Schleiermacher (2000, p. 35), para quem a religião, em sua essência humana, “é sentido e gosto pelo infinito”, como a de Paul Tillich (1973, p. 61), que a define como “a orientação do espírito ao significado incondicional”. Em outro lugar, o Filosofia da Religião16 autor define religião como “preocupação suprema (ultimate concern), manifesta em todas as funções criativas do espírito bem como na esfera moral na qualidade de seriedade incondicional que essa esfera exige” (TILLICH, 2009, p. 45). Gosto pelo infinito, orientação para o incondicional, preocupação suprema: todas indicando tanto uma origem ontológica, como um telos (fim último) para a religião. Mas isso, é claro, não é tudo. O texto de Eclesiastes também diz que isto se dá sem que o ser humano conheça as obras ou o percurso de Deus do princípio até o fim, exceto, acrescento, por aquilo que Deus mesmo deixou, seus rastros, primeiramente no universo criado, ou seja, o ser humano tateia pelo infinito, mas só consegue encontra- lo através de expressões finitas. Em Romanos, o apóstolo Paulo diz que “os atributos invisíveis de Deus, seu eterno poder e sua natureza divina, têm sido vistos claramente, sendo compreendidos por meio das coisas criadas...” (Rm 1.20). Quer dizer, parte do que de Deus se pode conhecer está, desse modo, manifesto na vida que pulsa em nós e além de nós, na natureza. Pode-se inferir então que a religião nasce, em segundo lugar, do seguimento humano pelo caminho em que se encontram os vestígios, os rastros, ou as pegadas do divino ou do incondicional. Religião, revelação e o condicional Como seres humanos, somos, contudo, condicionais. Pertencemos à humana condição: mortal, limitada e, biblicamente falando, pecaminosa ou concupiscente. O pecado é o que, originalmente, segundo Gênesis (3.1-7), nasceu de uma tentativa do homem e da mulher originais de se igualar a Deus na ciência do bem e do mal e, por conseguinte, foi o que os afastou da presença desse mesmo Deus, deixando sua companhia no jardim para viver à sua própria sorte. A fim de reencontrar Deus, o ser humano precisa, deste evento em diante, buscá-lo desesperadamente, desejando se “religar” a Deus. Para tanto, ele necessita de guias, de referenciais, de mediadores humanos. Dessa maneira, a religião, em terceiro lugar, nasce da necessidade da religação e, por conseguinte, de mediação entre o divino e o humano. Religião é, na expressão latina, religare, prática normalmente 17 sustentada pela ação ritual, como o sacrifício, por exemplo. Para atravessar o fosso que separa Deus e suas criaturas é necessário construir pontes; daí a ideia de pontificante ou sumo pontífice, que é o construtor de pontes, identificado com “os especialistas do sagrado [sacerdotes, xamãs, padres, pastores], que dentro da comunidade estão preparados para realizar as ações rituais e têm capacidade tradicional para executar as cerimônias que asseguram aos restantes membros a proteção dos poderes divinos ou demoníacos, mais que naturais” (BAZÁN, 2001, p. 46). Havendo a necessidade de mediação e ordem, a religião migrado campo subjetivo da busca pelo incondicional para o campo objetivo (condicional) das práticas, dos sistemas de crenças e valores, da tradição e da institucionalização. Daí a necessidade que muitos estudiosos viram na separação entre religião institucional (o sagrado domesticado) e religiosidade (a religião “primitiva”, o sagrado selvagem, usando aqui o termo de Roger Bastide). Nesse sentido cabe a distinção - que já apresentei em outro curso (MENEZES, 2014, p. 164-165), e retomo aqui - entre “religião” e “revelação”. Religião também pode ser entendida, nos termos gerais aqui expostos, como o esforço ou conjunto de esforços humanos plasmados no sentido de alcançar a Deus. Religião é negócio humano. Já revelação é a automanifestação de Deus, pelos meios que lhe aprouver, ao ser humano e por amor a ele. Revelação é negócio divino. É, na definição de Tillich (1987, p. 98), “a manifestação daquilo que nos diz respeito de forma última. O mistério revelado é de preocupação última para nós porque é o fundamento de nosso ser”. Como ele explica em outro lugar: “Revelação” se refere a uma ação divina, “religião” a uma ação humana. “Revelação” é um acontecimento (happening) absoluto, singular, exclusivo e autossuficiente; “religião” tem a ver com feitos meramente relativos, sempre recorrentes e nunca exclusivos. “Revelação” significa a entrada de uma nova realidade na vida e no espírito; “religião” nos remete a uma dada realidade de vida e a uma função necessária do espírito. “Religião” tem a ver com cultura; “revelação” com aquilo que se encontra além da cultura (TILLICH, 1973, p. 9, tradução minha). Ora, se religião não é revelação, e se revelação é um ato que Filosofia da Religião18 provém de Deus e, num primeiro momento, não tem aparentemente nada a ver com capacidades e esforços humanos, qual é então o ponto de contato que efetiva a revelação como algo inteligível ao ser humano, já que um dos propósitos é o de “mostrar” algo a ele? Eis que então entra a função da razão e cultura humanas nesse processo. Como expressa Tillich (1973, p. 10, tradução minha), “se a revelação é a irrupção do Incondicional no mundo do condicional, não é possível impedir que ela se condicione, convertendo-se em uma esfera junto a outras esferas, a religião lado a lado com a cultura”. Em outras palavras, para que a revelação fosse inteligível ao ser humano, Deus escolheu formas ordinárias para manifestar o extraordinário. Há, portanto, uma correlação entre eles. Disso, depreende-se, como observa Tillich (1987, p. 99), que a revelação mantém os eventos subjetivo e objetivo, natural e sobrenatural, ordinário e extraordinário em interdependência ou tensão dinâmica. Em suas palavras, “revelação não é real sem o lado receptivo, e não é real sem o lado doador”, sendo Deus o doador e o ser humano e sua cultura específica os receptores. Razões próprias e ambiguidades da religião A religião pode ter muito de Deus ou dos deuses – seu caráter, valores, exigências e verdade –, mas também tem muito do humano. Torna-se problemática precisamente quando o humano pretende reduzir o incondicional ao condicional, ou melhor, igualá-los. É óbvio que se há algo de Deus que pode ser dito, é porque ele se revelou. E, também, se algo dessa revelação pode ser apreendido, é porque o verbo se encarnou. Entretanto, a confusão se arma quando queremos controlar ou monopolizar o conteúdo e a ação do verbo. Logo, o verbo, que na linguagem joanina, é amor e vida, pode se degenerar, na forma religiosa, em ódio, violência e morte. Mas por que isso acontece? Aqui entra o que chamo de razões próprias e ambiguidades da religião. Parodiando o conhecido dito de Blaise Pascal, a religião tem razões que a própria razão desconhece. Ela envolve o intelecto, é claro, mas menos o intelecto que o coração, e menos o coração que as entranhas. Um religioso vive por certos princípios, e na defesa apaixonada desses princípios os perde muitas vezes de vista, sendo capaz de afirmá-los 19 como confissão, mas negá-los, consciente ou inconscientemente, como prática. As práticas religiosas, desse modo, nem sempre coadunam com as teorias provenientes de uma determinada religião. Nesse sentido, vale apelar para a, quem sabe polêmica, mas contundente, afirmação de John Caputo de que “a religião é para os amantes, apaixonados pelo impossível, que fazem com que o restante de nós pareça vago”, ao que ele completa dizendo que: Na religião, o amor de Deus está exposto habitualmente ao perigo de confundir-se com a profissão de alguém ou o ego de alguém, ou o gênero de alguém, ou a política de alguém, ou a ética de alguém, ou o esquema metafísico favorito de alguém, ao qual este se sacrifica de maneira sistemática. Então, ao invés de fazer sacrifícios pelo amor de Deus, a religião se inclina a fazer um sacrifício do amor de Deus (CAPUTO, 2005, p. 121, tradução minha). Pode-se depreender desta fala de Caputo que toda forma de religião é um tipo de antroporfismo; fala-se do “amor de Deus”, da “vontade dos deuses”, do sacrifício “para Deus”, mas, no fim, o que isto significa? Como não atrelar as experiências e significações do sagrado com as paixões e idiossincrasias do humano, do profano, do mundano? Ademais, outra razão própria da religião é que, ao que parece, ela mexe não apenas com os gostos, preferências ou meras opiniões das pessoas, mas, em grande parte, com o “tudo ou nada” de sua existência. É isso que Caputo expressa no livro Truth (2013), onde ele reflete sobre a verdade e sua relação com a religião. Em suas próprias palavras: Religião envolve nossas mais profundas convicções e mais apaixonadas crenças sobre nascimento e morte, doença e saúde, infância e velhice, amor e inimizade, guerra e paz, misericórdia e compaixão. Por essa razão é que pessoas religiosas são capazes de investir a vida toda trabalhando em favor dos pobres e dos doentes, dedicando-se às vítimas da AIDS na África, por exemplo, e também porque, em contrapartida, são igualmente capazes de incendiar um lugar colocando-o abaixo em um acesso de intolerância. A religião é irredutível tanto a um quanto ao outro e remover a raiva é remover a paixão; mas se você remover a paixão, remove também a religião. Conquanto haja religião, bem Filosofia da Religião20 como paixão, a chance para a justiça sempre virá acompanhada do risco da injustiça (CAPUTO, 2013, p. 61, tradução minha). É essa ambiguidade da religião que pode tornar artificial e até inútil, em certos casos, o discurso sobre “paz” ou “tolerância” entre as religiões ou convicções semelhantes, caso não se reconheça que a violência, a guerra, a disputa, a intolerância, ódio e injustiça sempre fizeram parte da história das religiões em todo o mundo tanto quanto, ou mesmo em decorrência das diferentes práticas e preceitos sobre o amor, a tolerância, o respeito, a justiça, equidade, paz, e assim por diante. Não são os deuses que estão em guerra, mas os seus seguidores. Eliminar esta ambiguidade - parece-me que este é o ponto de Caputo - é o mesmo que remover a religião. A percepção é que, considerando as “razões próprias” e as ambiguidades da religião, conforme analisadas há pouco, as pessoas, em suas crenças, estão dispostas a tolerar umas as outras, mas “até certo ponto”, ou seja, até o ponto em que, por exemplo, a tolerância não significa ter de negociar, ou mesmo minimizar em nome da convivência ou do bem comum, convicções “fortes” de fé. Daí a recorrência a ideia de John Caputo sobre a religião como sendo não um processo racional, mas um negócio feito “para os amantes”, que se entregam passionalmente à causa, custe o que custar. Por essa razão, parte fundamental do discurso dos ateístas2 converge na direção de que se abolirmos a religião do mundo, haveria menos guerras, menos violência, menos intolerância. A história contemporânea das religiões no Brasil, porém, parece seguir em outras direções, que reverberam tanto no desejo de maisreligião, por um lado, quanto no anseio por menos religião, sem perder, porém, o elemento da transcendência3. Embora se encontrem em categorias diferentes, ambos, porém, parecem partilhar do mesmo processo de “reencantamento do mundo”. Isto significa que, apesar de tudo, ao que parece, o ser humano não consegue se desvencilhar ao todo, por mais 2 Como é o caso de Sam Harris em seu livro Carta a uma nação cristã (2007), e Richard Dawkins em seu Deus, um delírio (2007). O segundo, já no prefácio de seu livro, convida os leitores, no espírito da música “Imagine”, de John Lennon, a imaginar um mundo sem religião e, consequentemente, sem guerras, ataques suicidas, cruzadas, massacres, perseguições, evangélicos televisivos extorquindo dinheiro de seus fiéis, e assim por diante (DAWKINS, 2007, p. 14). A descrença em Deus e desejo de extirpação da religião da face da terra é o que diferencia estes “neoateus” dos chamados “sem religião”, por exemplo. Não se pode, dessa forma, colocar no mesmo bojo de análise os ateístas, agnósticos e sem religião. 3 Explorarei mais esta questão na quarta e última parte de nosso curso, ao falar da religião para os pós-modernos. 21 que queira, da religião. O que ela tem de tão especial? É o que continuarei analisando nas próximas unidades. Conclusão Nesta segunda unidade vimos um pouco sobre como o conceito de religião pode nos levar a diferentes caminhos e sentidos. Começando com a teoria de Tiago sobre religião, instiguei você a que pensasse nos significados que ela assumiu naquele texto e contexto específicos e por que. Então partimos para definições mais ou menos aceitas de religião. Baseado em Tillich principalmente, defendi a ideia inicial de que a religião é “um sopro humano na busca pelo incondicional”. Isto significa que há algo no ser humano que o move em direção ao infinito, ao Eterno, ao desconhecido, mesmo que não seja possível explicar as razões para isso. Ora, mas isso não garante o contato ou o alcance. Afinal, como pode o condicional e o que há de mais incerto atingir ou incondicional, ou o que há de mais certo e necessário no universo? A resposta é: não é possível. Na visão de Eclesiastes, isso se deu de propósito: temos essa eternidade no coração, mas não sabemos nada sobre os caminhos do Espírito, que sopra onde quer. Mas o Eterno é gracioso, e resolve se revelar. O incondicional toca parcialmente o condicional através da revelação. A religião, embora diferente da revelação, é também e paradoxalmente resultante dela. Daí sua relação com a cultura; não se encontra Deus em um vazio-sócio cultural, e sim nos termos de uma cultura e tempo específicos. Por fim, vimos com Caputo que, como envolve o incondicional, a religião é coisa para os amantes, e pode virar um negócio de vida ou morte, sem grandes garantias do que vem primeiro ou tem a primazia. O Deus bíblico é o Deus da vida; as construções e práticas religiosas ao longo do tempo, porém, pintaram-no também como Deus da guerra, da intolerância e da morte. Muitas pessoas se afastaram de Deus por causa disso. E, ainda assim, a religião não foi extinta; pelo contrário, cresce cada vez mais a necessidade dela. Pode ser exatamente porque a sede pelo incondicional nunca cessa, apesar dos descaminhos do religioso condicional. Isso é uma pista pelo menos. Estamos apenas começando... Filosofia da Religião22 Referências BAZÁN, Francisco G. Aspectos incomuns do sagrado. São Paulo: Paulus, 2002. CAPUTO, John D. Truth: philosophy in transit (eBook). London: Penguin, 2013. _______. Sobre la religión. Madri: Tecnos, 2005. DAWKINS, Richard. Deus, um delírio. São Paulo: Cia das Letras, 2007. HARRIS, Sam. Carta a uma nação cristã. São Paulo: Cia das Letras, 2007. PETERSON, Eugene. A Mensagem. Bíblia em linguagem contemporânea. São Paulo: Vida, 2011. PONDÉ, Luiz F. Os dez mandamentos e mais um. Aforismos teológicos de um homem sem fé. São Paulo: Três Estrelas, 2015. SCHLEIERMACHER, Friedrich. Sobre a religião. São Paulo: Novo Século, 2000. TILLICH, Paul. Teologia da cultura. São Paulo: Fonte Editorial, 2009. ________. Teologia sistemática. São Paulo: Paulinas; São Leopoldo: Sinodal, 1987. _______. Filosofia de la religión. Buenos Aires: Ediciónes Megápolis, 1973. WHALING, Frank. Religion. In: McGRATH, Alister (Ed.). The Blackwell Encyclopedia of Modern Christian Thought. Oxford, UK: Blackwell, 1993, pp. 547-553. 23 Filosofia da Religião Unidade - 3 O Sagrado Introdução A unidade passada consistiu num esforço no sentido de buscar orientações e definições sobre o conceito de religião. Meu ponto de partida foi o texto de Tiago 1.27-28, uma das poucas passagens do NT em que o termo literal em grego (thrëskos) aparece indicando uma tese sobre religião. E a tese de Tiago é bem específica: o que ele chama de “religião verdadeira” pode ser vista como uma religião operante; define-se menos pelo que professa e mais pelo que pratica; menos por seu corpo de crenças e mais por sua piedade.1 Logo, se existe uma religião verdadeira, é porque há uma falsa. E a “falsa religião”, para ele, tem a ver com ser ouvinte e confessante de uma religião (ou da Palavra), e não praticante, e nesse sentido sua definição está muito próxima da de Jesus em Mateus 7.24-27. A religião vã é aquela que é muito operante no falar – de quem não consegue refrear a própria língua ou controlar o que diz –, mas inoperante na vida; rápida e ferina na emissão de juízos, e por isso carente de misericórdia. E, como Tiago diz, “a misericórdia triunfa sobre o juízo” (Tg 2.13). A noção de Tiago é importante para que os cristãos diferenciem melhor o que é trivial e vão, em sua própria religião, do que é, biblicamente, seu foco e essência. Para a filosofia da religião, porém, trata-se apenas de uma tese possível. Mas uma tese interessante quando pensamos, por exemplo, na definição de John Caputo da religião como 1 Lembrando que “piedade”, em Tiago, tem a ver com estender a mão ao próximo, oprimido e marginalizado – diferente do sentido com o qual estamos habituados na espiritualidade cristã, de “piedade” como vida de devoção a Deus, indicando mais uma prática individual intimista. Filosofia da Religião24 sendo para os amantes e os apaixonados, para aqueles que fazem o tudo ou nada da vida “em nome de Deus” ou “pelo amor de Deus”, e cujas ações podem resultar tanto em paz quanto em guerra, tanto em caridade quanto em violência. Desse modo, como vimos, Deus tanto pode “usar” o fiel para o bem, quanto “ser usado” pelo fiel (fanático) como arma, para a destruição e o mal. A complexidade dessa relação se dá precisamente porque não se tratam de anjos ou demônios, mas de seres humanos. Assim, a pergunta dessa aula é: porque a religião é assim tão apaixonante? Para começar a responder, pretendo retornar, primeiro, à definição de Paul Tillich (1973, p. 61): “A religião é a orientação do espírito para o incondicional”. Na unidade 2, falamos por alto que o “incondicional” é o que não pode ser condicionado; toca a pessoa incondicionalmente, mas não pode ser controlado (ROCHA, 2010, p. 22). Mas a religião, na prática, não funciona, muitas vezes, de modo contrário: tentando condicionar o incondicional ou domesticar Deus, o Espírito, o sagrado? Isto me conduz a uma segunda e principal questão, que se divide em três perguntas: o que é o sagrado? Que elementos o formam ou distinguem? Pode o ser humano domesticá-lo? Objetivos 1. Definir o que é o sagrado; 2. Identificar as formas elementares que o distinguem; 3. Problematizar a questão da linguagem e seus limites na relação com o sagrado. 25 O que é o sagrado? Breve aporte bíblico Começo com uma história mais ou menos conhecida. O livro de Êxodo, no capítulo 3, relata que Moisés levava uma vida pacata em Midiã pastoreando o rebanho de seu sogro, Jetro. Certo dia, Moisés conduzia o rebanho por um monte chamado Horeb, quando o anjo apareceu em uma chama no meio de uma sarça, que ardia, mas não era consumida.Curioso do fato, Moisés tentou aproximar-se para ver o que era aquele fenômeno – uma sarça que ardia, mas não queimava – e de repente ouviu seu nome sendo chamado, era uma voz que dizia: “Não chegue mais perto. Tire as sandálias de seus pés. Você está sob um lugar santo”, ou sagrado (Êx 3.5). Em seguida, a voz se identificou como sendo do Deus de Abraão, Isaque e Jacó. Então o texto diz que Moisés escondeu a face, temendo olhar para aquela manifestação de Deus. A palavra hebraica para “santo” aqui é qo.desh, que significa separado para um propósito específico, diferente, singular, e depois foi aplicada a lugares (como Kadesh-Barnea, cidade do extremo sul de Judá), a coisas e à própria condição da pessoa-em-Deus – expressa na conhecida frase “sede santos, pois eu sou santo” (cf. Lv 11.44, 1Pe 1.16), que também nos dá a conhecer que o “santo” ou separado é distinto do resto. O ato de ter que tirar as sandálias do pé parece indicar que não se deve pôr em contato o “impuro” com o santo, ou do profano com o sagrado – e é apenas sintomático que muitas religiões, até hoje, adotem esta prática. Isso nos conduz à questão: o que torna um lugar, evento ou coisa santo/sagrado? No caso acima narrado, “o que torna santo o lugar é o fato de Deus estar ali, falando com Moisés, afirmando ser o Deus de Abraão, Isaque e Jacó. Assim, como Deus ‘esteve com’ essas pessoas, agora Deus ‘está com’ Moisés, tornando a presença divina conhecida e sentida por meios visuais e auditivos” (HOUSE, 2005, p. 115). Nesse sentido estrito, o sagrado é marcado pela e depende da epifania2, uma vez que Deus é “O Santo”. Desse modo, sagrado (falando de lugares ou objetos) é tudo aquilo que é tocado pela natureza e presença divinas e prova do 2 Aparição ou manifestação divina. Lembrando que evento semelhante também aconteceu com Jacó (em Gn 28.11-22), quando, através de um sonho, ele se viu na presença de Deus e chamou aquele lugar de “terrível”, batizando-o depois de Betel ou “casa de Deus”. Filosofia da Religião26 assombro próprio desse encontro. Este assombro, na terminologia de Rudolf Otto (2007, p. 44), recebe o nome de mysterium tremendum, ou o sentimento do “mistério arrepiante”, que se traduz, como vimos, no emudecimento e humilhação de Moisés diante do Santo ou do Sagrado. No pensamento de Otto, o santo ou o sagrado aparece na figura do numinoso ou inefável, que literalmente significa aquilo que não pode ser dito, nem conhecido, pois foge ao acesso e compreensão racionais. É o que Tillich chama de “incondicional”. Aqui a experiência com o sagrado é irracional, pois irredutível tanto ao entendimento quanto à linguagem. O problema que o texto bíblico traz pra gente, contudo, é: sendo inefável, por que Deus escolhe uma expressão audível e visível (voz e sarça) para se manifestar? Isso nos conduz à relação entre sagrado e profano. Sagrado e profano: a visão de Mircea Eliade Ainda seguindo a narrativa sobre Moisés e a sarça ardente, pode- se dizer que a manifestação divina, mais que uma epifania, foi uma hierofania. Mas quem disse isso e o que significa? Quem disse isso – ou melhor, um dos estudiosos que trabalhou com esse conceito – foi o historiador das religiões Mircea Eliade em O sagrado e o profano (1996), livro que se tornou um referente indispensável para os estudos da religião. A tese de Eliade neste livro é de que, (1) primeiro, o sagrado precisa ser concebido em sua integralidade, isto é, não apenas como o “totalmente outro” (metafísico, sobrenatural) de Otto, que se manifesta também no natural e racional. (2) Segundo, que uma definição preliminar do sagrado é que ele é “oposto ao profano”, sendo sua intenção no livro explorar e ilustrar as variantes desta oposição. (3) Terceiro, que o “profano”, como modus operandi de um mundo dessacralizado ou secular, é uma descoberta relativamente recente, e remete ao homem não religioso das sociedades modernas. “Secular” ou “profano”, nesse sentido, significa em tese ser livre ou autônomo em relação ao sagrado e à religião, diferenciando-se, assim, dos homens das sociedades arcaicas, que eram existencialmente religiosos. Entretanto, para Eliade, seria um ledo engano dizer que, porque 27 não aceita mais as ingerências da religião ao modo arcaico, o homem e a mulher “secularizados” tenham uma existência inteiramente profana ou dessacralizada. E isto nos conduz, (4) em quarto lugar, à ideia central de seu livro de que “o sagrado e o profano constituem duas modalidades de ser no Mundo, duas situações existências assumidas pelo homem ao longo da sua história” (ELIADE, 1996, p. 20). Há uma ligação entre ambos na vida, ainda que um se defina por ser uma negação ou antítese do outro. Não se pode achar, como defende Eliade (1996, p. 27), nem uma existência profana em “estado puro”, nem o sagrado em “estado puro”. No primeiro caso, é porque “seja qual for o grau de dessacralização do mundo a que tenha chegado, o homem que optou por uma vida profana não consegue abolir completamente o comportamento religioso” (Ibid.). No segundo caso, como o autor defende em outro lugar, “um dado religioso ‘puro’, fora da história, é coisa que não existe, pois não existe um dado humano que não seja, ao mesmo tempo, um dado histórico” (ELIADE, 1989, p. 22). Por isso, talvez seja possível dizer que, para Eliade, em toda epifania há uma hierofania – que etimologicamente significa que “algo sagrado se nos revela”. Isto não significa que Deus ou O Sagrado seja ou esteja em tais objetos. Como explica: A pedra sagrada, a árvore sagrada não são adoradas como pedra ou como árvore, mas justamente porque são hierofanias, porque ‘revelam’ algo que já não é nem pedra, nem árvore, mas o sagrado, o ganz andere. Nunca será demais insistir no paradoxo que constitui toda hierofania, até a mais elementar. Manifestando o sagrado, um objeto qualquer torna-se outra coisa e, contudo, continua a ser ele mesmo, porque continua a participar do meio cósmico envolvente (ELIADE, 1996, p. 18). Seguindo o que diz Eliade, o sagrado não é exclusivo das religiões e dos religiosos; na verdade, não é necessário ser religioso para que se tenha uma existência marcada pelo sagrado. Isto se dá, também, com algumas categorias religiosas, tal como o “mito”, sobre o qual veremos na próxima unidade. O problema da hierofania nos conduz, porém, à última pergunta: pode o sagrado ser domesticado? Filosofia da Religião28 Os símbolos e simulações do sagrado Sabemos, através de Tillich (2009), que sagrado-em-si é o incondicional, que não se reduz a nada nem a ninguém; não pode ser domesticado ou manipulado. A relação com esse sagrado, porém, coloca diante de nós o problema da manifestação, isto é: para se fazer conhecido, esse sagrado precisa se revelar em formas ou conteúdos que são inteligíveis à razão e experiência humanas. Contudo, na medida em que se manifesta de forma ordinária, o sagrado já não se encontra mais em “estado puro”, deixou de ser o sagrado-em-si transformando-se no sagrado-para-nós. Este último é o sagrado transmutado em linguagem ou forma humana. Tillich defende que, por ser fenômeno humano, a linguagem é contaminada com o condicional, de modo que: Não existe linguagem sagrada caída de um céu sobrenatural para ser encerrada nas páginas de um livro. O que existe é a linguagem humana, baseada em nosso encontro com a realidade, em evolução ao longo do tempo, usada para as necessidades cotidianas, para expressão e comunicação, literatura e poesia, bem como para mostrar a preocupação suprema (TILLICH, 2009, p. 89). Assim, a linguagem não é o espelho da realidade do sagrado; fala mais do ser humano do que do ser divino, nesses termos. Minha linguagem é prostituída; volta e meia incorpora novos amantes e novos parceiros/as, sem mesmo se dar conta. E não há nada que passe por seu filtro sem ser afetado e que, portanto, possa ser expresso em estado puro: nem as coisas do mundo, muito menos as coisas do céu. As ideias,os conceitos, os símbolos são, assim, formas de depuração da realidade e não o seu reflexo. Quanto mais ciente disso me faço, menos pretensiosos serão meus atos de fala ou mesmo minha teologia. A teologia, mais que qualquer outra modalidade de saber, deveria estar ciente do estado de depuração a partir do qual ela surge; pretende falar de Deus, mas todo significado que dá para esta palavra não passa de uma mirada através de uma brecha ou um pequeno buraco na parede que dá uma visão (apequenada) para fora. Admitir isso não é uma forma de relativizar a verdade, mas de preservá-la. 29 Nossa linguagem participa da verdade, mas não pode ser “a verdade”. Assim também se dá com a linguagem simbólica ou com os símbolos religiosos, que, como assevera Tillich (2009, p. 102, 103), “abrem determinado nível da realidade, oculto, que não pode ser aberto de outra maneira” e, assim, “produzem a experiência da dimensão humana da profundidade. E deixam de existir quando perdem essa função”. Ele ainda afirma que essa realidade suprema é a realidade do sagrado, de modo que os símbolos são símbolos do sagrado: “participam na santidade do sagrado”, mas esta participação não os iguala ou identifica ao sagrado. “O transcendente absoluto está além de todos os símbolos que o representam” (Ibid., p. 102). Ou seja, Tillich admite que estes símbolos religiosos participam de algo fora deles. Pense, por exemplo, na pomba, que simboliza o Espírito Santo descendo sobre nós; ou, para voltar ao exemplo original, pense naquela sarça ardente, como expressão do “Eu Sou” falando com Moisés. Tanto a pomba quanto a sarça são linguagens simbólicas: participam da realidade (de Deus e do Espírito), na medida em que nos remetem à qualidade de sua manifestação, mas não são Deus ou o Espírito em si. Os símbolos cumprem bem sua função enquanto não se dá um status maior para eles do que este, a saber, o de participação na realidade a qual se referem. Entretanto, como observa Tillich (2009, p. 103), a religião tem uma natureza ambígua: é “construtiva e destrutiva ao mesmo tempo. A religião é santa e pecadora”; afinal, como vimos na unidade 2, religião é negócio humano. Como não carregaria as ambiguidades próprias de seu artífice? Por essa razão, é que mesmo o exercício da religião, que supostamente produz a experiência da dimensão humana da profundidade, é carregado pelo pecado original: aceitando a oferta da serpente, tentamos usurpar o lugar do absoluto. E isto se dá, por exemplo, quando absolutizamos os símbolos do sagrado e, assim fazendo, eles se transformam em ídolos. Tudo o que tenta ocupar o lugar de Deus no coração humano é um ídolo; até mesmo pessoas podem ser, que dirá símbolos. Por isso, Tillich (2009, p. 104) encerra sua linha de argumento alertando que “sobre todas as atividades sacramentais da religião, com Filosofia da Religião30 seus objetos sagrados, livros doutrinas e ritos santos, paira o perigo da ‘demonização’. Tornam-se demoníacos quando são elevados ao status do sagrado imaginando-se incondicionais e absolutos”. A natureza do símbolo, bem como sua função numa dada religião, é maculada toda vez que este ocupa o lugar do absoluto. Logo, ele já não é mais símbolo do sagrado, mas um ídolo. Não se trata mais do original, e sim de sua simulação. Simular, na acepção de Jean Baudrillard (1991, p. 9), “é fingir ter o que não se tem”. O símbolo passa a ser simulação toda vez que pretende ou promete ter o que não tem; parte do princípio da equivalência ou de igualação do não igual, como dizia Nietzsche. O problema é que esse princípio de igualação que rege a simulação é, por consequência, um princípio de aniquilação. Dizer que uma imagem é igual à realidade seria o mesmo que aniquilar a realidade. Em termos teológicos, dizer que um símbolo, que nos remete (por participação) ao sagrado ou a Deus, equivale a seu referente (Deus), significa a abolição ou morte de Deus3. Tentar domesticar o sagrado, por assim dizer, é o mesmo que transformá-lo naquilo que ele já não é mais: num demônio ou num ídolo. Em contrapartida, pelas razões acima expostas e caso se queira evitar a idolatria, Severino Croatto defende que é preciso aceitar que: A linguagem da religião, ou mesmo da Bíblia, é simbólica. É um preconceito inexplicável entender o simbólico como irreal. Tem lugar quando se confunde o objeto convertido em símbolo com aquilo a que esse mesmo objeto remete e que pertence a um âmbito transfenomenal, inalcançável se não se revela de alguma maneira no ser humano. Se bem observada, esta condição simbólica da linguagem religiosa rompe com a univocidade ou uniformidade das linguagens impostas dogmaticamente. As novas experiências de Deus correspondem a novos símbolos e a um novo discurso da fé e da teologia, do querigma ou proclamação. Se um novo discurso e novos símbolos não são gerados, é sinal de que Deus está oculto porque não há uma fé vivente que o descubra e expresse com novas linguagens (CROATTO, 2002, p. 17, tradução minha). 3 Veja discussão sobre a morte de Deus na unidade 14 deste curso. 31 Conclusão Nesta unidade vimos, em primeiro lugar, que, quando falamos de sagrado, falamos do inefável e do incondicional, que não pode ser acessado nem condicionado pelo ser humano, pois é totalmente distinto. Em segundo lugar, avançamos para o campo da manifestação do sagrado, e assim aprendemos que sagrado e profano são “duas modalidades de ser” que formam a essência da religião, no entendimento de Mircea Eliade. Num primeiro plano, o sagrado se defi ne em oposição ao profano e vice-versa. Num segundo plano, concebeu-se que não há uma existência sagrada ou profana em estado puro, de modo que o sagrado se revela no profano e o profano não perde inteiramente, por mais que pretenda, sua dimensão sacral. Sabemos, assim, que o sagrado pode se manifestar em objetos, lugares ou pessoas, nas chamadas hierofanias. O que diretamente colocou diante de nós o problema de saber se esse sagrado pode ser ou não contido ou domesticado. A fi losofi a da religião de Paul Tillich ajudou no sentido de mostrar que, na linguagem religiosa, criadora de símbolos do sagrado, o que temos não é o sagrado-em-si, mas o sagrado-para-nós, transmutado em experiência e linguagem humanas. E que toda vez que tomamos símbolos como a coisa-em-si, mudamos seu status, transformando-o em um ídolo ou demônio, nos dizeres de Tillich. As palavras fi nais do último tópico (uma citação de Severino Croatto) oferecem para gente o que pode ser considerada a linha mestra deste curso: tudo o que realmente temos é linguagem. Logo, a fi losofi a da religião não tem Deus como objeto, mas a linguagem, a experiência e os símbolos do sagrado. Mircea Eliade Paul Tillich Mircea Eliade Filosofia da Religião32 Referências BASTIDE, Roger. O sagrado selvagem: e outros ensaios. São Paulo: Cia das Letras, 2006. BAUDRILLARD, Jean. Simulacros e simulação. Lisboa: Relógio d’Água, 1991. CROATTO, Severino. Hermenéutica práctica. Los princípios de la hermenêutica bíblica em ejemplos. Quito: Centro Bíblico Verbo Divino, 2002. ELIADE, Mircea. Sagrado e profano. A essência das religiões. São Paulo: Martins Fontes, 1996. _______. Origens. História e sentido na religião. Lisboa: Edições 70, 1989. HOUSE, Paul R. Teologia do Antigo Testamento. São Paulo: Vida Acadêmica, 2005. OTTO, Rudolf. O sagrado. São Leopoldo, RS: Sinodal; Petrópolis, RJ: Vozes, 2007. ROCHA, Alessandro. Uma introdução à filosofia da religião. São Paulo: Vida, 2010. TILLICH, Paul. Teologia da cultura. São Paulo: Fonte Editorial, 2009. _______. Filosofia de la religión. Buenos Aires: Ediciónes Megápolis, 1973. 33 Filosofia da Religião Unidade - 4 Os mitos Introdução Como vimos na unidade passada, o sagrado tem tanto uma dimensão transcendente quanto imanente, e não pode ser entendido fora dessa intersecção. Pode ser inapreensível e não domesticável em sua natureza inteira (infinita, inefável), massomente se constitui como tal na medida em que é reconhecido, nas hierofanias. Desse modo, há o sagrado-em-si e o sagrado-para-nós, conforme ressaltei ao final daquela unidade. Esta unidade está em íntima conexão com a anterior na medida em que aqui pretendo desenvolver uma das dimensões do que se chama de linguagem religiosa. Meu interesse particular está nos mitos: o que são? Que tipo de práticas eles engendram ou regras de funcionamento social que ajudam a gerir? Que crenças comuns gravitam em torno do mito? Como se dá sua aceitação ou rechaço no mundo moderno? Essas são algumas perguntas que devem nos guiar na reflexão adiante. Objetivos 1. Definir mito; 2. Reconhecer o que torna um mito verdadeiro para um grupo ou povo; 3. Compreender os contornos que os mitos ganham na modernidade. Filosofia da Religião34 Gênesis e o mito cosmogônico Gênesis1 aponta para um ser humano que foi criado a fim de gozar das benesses de um universo, fundado ex nihilo (do nada) para ser a sua morada. Deus disse: “façamos o homem à nossa imagem, segundo a nossa semelhança”. E assim se fez. “Deus criou o homem à sua imagem, à imagem de Deus ele o criou; criou-os macho e fêmea”. Os termos “imagem e semelhança” definem o ser humano, em seu estado original, com relação a Deus. Eles foram feitos do material divino e dele possuem a centelha que aquece seus corpos e os movem para a vida. No tempo mítico, Deus não estava longe de suas criaturas, em especial, da humanidade que espelhava seus traços. Como diria Paulo, o apóstolo, na Divindade (Javé) eles tinham a vida, o movimento e o ser, e eis que afirmaram alguns dos poetas gregos a quem Paulo cita para os atenienses: “Pois nós somos de sua raça” (Atos 17.28). E Deus gerara seres de sua raça e da própria criação; do solo, pó da terra, ele molda o homem; com seu Espírito (rúah) ele confere o sopro de vida (nefesh), que anima a vida carnal do homem, de modo que ele se torna um ser vivo, vivo para governar a própria vida que pulsa, rasteja, cresce e gravita a seu redor. A imagem e semelhança divinas refletem-se na capacidade do homem de criar e dominar: “Sede fecundos e prolíficos, enchei a terra e dominai-a. Submetei os peixes do mar, os pássaros dos céus e todo animal que rasteja sobre a terra!”. Eis o homem em sua condição mítica e primitiva: com mais privilégios que os próprios anjos, ele é colocado sobre um jardim, o jardim do Éden (do “prazer”), para ali ser mordomo-beneficiário de tudo o que Deus fez, e que viu “que era muito bom”. Mas o homem não podia estar só, isso não era bom aos olhos do Criador. Do próprio homem, fez-se a mulher, sua companheira e ajudadora; ligados “umbilicalmente” e espiritualmente, ambos tornam-se também “uma só carne”, vivenciando os prazeres da existência e em harmonia entre si, com o restante da criação e, o mais fundamental, em perfeita sintonia com seu Deus. Este mito remete, pois, à criação do humano na terra, conforme relatos cosmogônicos do livro de Gênesis. É rico em detalhes, figuras e 1 Cf. Tradução Ecumênica da Bíblia (TEB), relatos de Gênesis 1 e 2. 35 representações que, per si, geram um modelo, um paradigma correlativo à origem do universo. Nele está implícita a ideia de relacionamento sem rupturas entre o ser humano e a divindade, o imanente e o transcendente. Sua produção se dá a partir de diferentes testemunhos de algumas tradições literárias (em especial, a sacerdotal) do povo hebreu, dando sustentação e fundamentação a toda a cultura religiosa e política posteriormente formada. Eis a função do mito, na visão de Mircea Eliade, em seu livro O Sagrado e o Profano: revelar como uma realidade veio à existência, contando-se uma história sagrada. Nesse sentido, a recorrência perene do homem religioso a um “tempo sagrado” significa uma tentativa de restauração de um estado temporal e cósmico em sua origem ou princípio (arché), precedente ao estado existencial profano. Conforme elucida Eliade (1996, p. 72), “é o eterno presente do acontecimento mítico que torna possível a duração profana dos eventos históricos”. Em outra obra, Origens, Eliade informa que nas línguas europeias a palavra “mito” indica, maiormente, “ficção” “imaginação, história fantasiosa. O autor, porém, se propõe, no capítulo da obra em que analisa o misto cosmogônico e a “história sagrada”, a estudar culturas em que o mito significa verdade a respeito de algo, revela a realidade de algo. O mito tem a característica primordial de contar como qualquer coisa se originou - o homem, o mundo, uma instituição, e assim por diante. Segundo Eliade (1989, p. 97), o “mito cosmogônico” tem precedência sobre os demais, posto que nele se baseiam todos os demais mitos de origem. É, nesse sentido, exemplar ou paradigmático. Conforme analisa, “esta história sagrada primordial, reunida pela totalidade de mitos significativos, é fundamental porque explica, e por isso mesmo justifica, a existência do mundo, do homem e da sociedade” (Ibid., p. 97). Esta é a razão, prossegue o autor, porque a mitologia é considerada, ao mesmo tempo, uma verdadeira história: “ela relata como surgiram as coisas, fornecendo o modelo exemplar e também as justificações para as atividades do homem” (Ibid., p. 97). Eliade ainda focaliza o exemplo dos povos Dayak, de Bornéu (ilha asiática). Como para outros povos primitivos, o mito cosmogônico influencia os princípios que governam a existência cotidiana desses Filosofia da Religião36 povos, de modo que a história sagrada é “re-vista” na vida da comunidade e na existência individual de cada membro. “O que aconteceu no princípio descreve simultaneamente a perfeição original e o destino de cada indivíduo” Ibid., p. 99). Ainda baseado nesse exemplo, pode-se aferir, por fim, que os mitos de criação do mundo (cosmogonias) são muito similares entre muitos povos primitivos. Nota-se, na seguinte descrição de Eliade, uma patente similaridade (em alguns aspectos) entre o mito Dayak e o mito cosmogônico do Gênesis: No princípio, diz o mito, a totalidade cósmica encontrava-se ainda indivisa na boca da cobra d’água enrolada. Surgem então duas montanhas e das suas colisões repetidas nasce a realidade cósmica: as nuvens, os montes, o Sol e a Lua, etc. as montanhas são as sedes das duas divindades supremas e são também essas mesmas divindades. Elas, contudo, só revelam as suas formas no final da primeira parte da criação. Na sua forma antropomórfica, as duas divindades supremas, Mahatala e sua mulher, Putir, procedem à obra cosmogônica e criam o mundo superior e o mundo inferior. Mas falta ainda um mundo intermédio, e a humanidade para o habitar. A terceira fase da criação é levada a cabo por dois calaus, macho e fêmea, que são na realidade idênticos às suas divindades supremas (Ibid., p. 99 - grifo meu). Percebe-se que um dos aspectos que indicam similaridade entre os referidos mitos é a indicação de uma “terceira fase” da criação, em que as divindades criam macho e fêmea, para levar a cabo essa fase, e criam- nas “idênticas” às divindades, à sua “imagem e semelhança”. Ambos os mitos, portanto, relembram aquilo que Mircea Eliade, Rudolf Otto e outros estudiosos da religião já observaram: a religiosidade, o anseio pelo eterno e transcendente, é uma expressão inata ao ser humano. Há uma referência a isso no Antigo Testamento, em Eclesiastes 3.11, quando se diz: “Tudo fez Deus formoso no seu devido tempo; também pôs a eternidade no coração do homem, sem que este possa descobrir as obras que Deus fez desde o princípio até o fim”. Ou seja, além da beleza do universo, Deus permite ao homem ter um senso limitado e parcial acerca do devir histórico, permanecendo veladas, porém, a intencionalidade e ação divinas no que tange ao 37 futuro de sua criação. O homem tem um relance, uma chama acesa em seu coração, mas não a plenitude da revelação dos tempos. Assim, coloca-se em suspenso, pasmado e tateante diante do mistério da eternidadee de sua própria existência, mantendo apenas aquela chama animada, lá no fundo, que o mantém unido ao sagrado. A alma humana contém a atração pelo numinoso, na linguagem de Otto; segundo os autores Paim, Prota e Rodriguez (1997, p. 20), “a alma humana possui o instinto religioso. Ele se revela nesse impulso interior, nessa busca tateante, nessa ‘saudade do absoluto’ que a tantos homens persegue”. E é precisamente essa “saudade do absoluto”, que faz com que os homens criem e recriem o tempo todo seus mitos, fazendo-os ressurgir com novas facetas, porém, em torno desse pathos ancestral. “O homem”, expõe Eliade (1996, p. 89), “só se torna verdadeiro homem conformando-se ao ensinamento dos mitos, imitando os deuses”. Mitologia moderna: religião sem Deus Nesse tópico pretendo fazer convergirem dois pontos de vista: o de Mircea Eliade com o de Roger Bastide. Embora em instâncias de pesquisa diferentes, ambos se ocupam de um só objeto mais amplo: de religiões e de homens. E aqui quero focar especificamente a mitologia moderna. A expressão parece estranha, à medida que todos sabem que um dos intentos da modernidade foi o de romper com os mitos erigidos até então, apresentando, em contrapartida, uma nova plataforma que tornaria obsoletas quaisquer buscas por referenciais de vida na religião tradicional (de matriz cristã) ou, caso se prefira, no universo transcendente (ou das religiosidades). Bastide (2006, p. 97) afirma: “se há uma época que entrou em guerra contra os mitos, essa época é a nossa”. Tentava-se criar, portanto, o homem a-religioso ou secularizado, isto é, que não cria nem tinha a necessidade sequer de recorrer à hipótese da existência desse Deus (o Absoluto), que supostamente inventou o cosmos. Assim, num mundo até então orientado por crenças, dogmas e teologias, busca-se implantar um novo governo: o do homem, por meio da razão e da ciência; de uma humanidade Filosofia da Religião38 que, pela técnica, caminhava irremediavelmente ao progresso. Estava em curso, como diz Eliade (1996, p. 165), a dessacralização da morada humana, parte integrante da transformação do mundo nas sociedades industriais do Ocidente moderno. O sagrado era visto como um obstáculo à emancipação do ser humano, à conquista de sua liberdade. O homem só seria verdadeiramente livre quando matassem o último deus. Contudo, com a ávida intenção de fazer implodir os deuses e os mitos, o homem moderno cria outros mitos. Um deles é apontado por Eliade: de uma existência totalmente dessacralizada. Mesmo o homem a-religioso conserva traços de uma vida religiosa, ainda que sejam traços imemoriais ou inconscientes. Não existe vida profana em “estado puro”, como nos apontou Eliade (1996, p. 27) na discussão da unidade passada. Em outras palavras, um homem “profano”, queira ou não, conserva traços comportamentais religiosos de seus antepassados, embora não lhes atribua uma significância propriamente religiosa. Isso quer dizer que muitos dos que se autodeclararam “sem-religião”, ainda continuaram se comportando religiosamente através de “mitologias camufladas” (pelo secularismo) e “ritualismos degradados” (Ibid., p. 166). Dessa forma, Roger Bastide (2006, p. 97) inicia seu ensaio sobre a mitologia moderna, fazendo alusão à observação de Karl Marx de que “nossa civilização, longe de destruir os mitos, multiplicou-os”; e, também, cita Bérgson: “o homem é uma máquina de inventar deuses”. De fato, ao tentar abolir todos os deuses e mitos criados pelas religiões, a modernidade acabou inventando muitos outros, erigindo para si uma religião própria, porém, uma religião “sem Deus”. Mata-se o Deus cristão, o Senhor criador do Universo, para edificar altares “religiosos” (sem ser) a novos deuses, como a razão e a ciência. Como ressalta Bastide, o objetivo era de desmitificar tudo. E na verdade só criaram mais um mito, o da desmitificação, infinitamente mais mistificador que os outros todos que se queria abolir. Pois o homem não pode viver sem mitos; o mito está, de certa forma, na raiz ontológica de seu ser, e todo indivíduo que se respeite irá sempre negar-se a se deixar castrar para ser bem mais domesticado. (...) A ciência não destruiu esses mitos, destruiu apenas a sua ordenação; logrou apenas, em seu esforço obstinado de negação, cumprir o papel das Bacantes, dispersando mundo 39 afora os membros arrancados de Dioniso, Orfeu e Osíris... Só logrou matar a mitologia “culta”, deixando-a perpetuar-se em estado “selvagem” e, por conseguinte, ainda mais passível de irromper dentro de nós com toda a sua fúria por estar agora “incontrolada” (Ibid., p. 97-98). “E como não haver uma criação incessante de mitos, se é verdade que a mitologia é uma necessidade ontológica do homem?”, indaga o autor (Ibid., p. 99-100). Ele continua: “Ao homem, que já não pode apoiar-se em mais nada, pois nada mais tem sentido, só resta apoiar-se em si mesmo e fazer jorrar de sua revolta novas flores míticas” (Ibid., p. 103). O mito do progresso, sem dúvida, é um dos motores que movem o homem moderno. Ele cria a ilusão de que humanidade progride não mais guiada pela providência divina, mas por seu próprio esforço e inteligência. Arranca os homens de seu desespero, gerando sentido ao presente ao futuro. Ele não é mais “ordenado” no universo, mas agora “ordena”. Descobre-se, portanto, nos termos de Bastide, uma nova arquitetura mítica. Esse autor retraça o caminho da mitologia moderna em três etapas, que resumirei abaixo: • (a) Um primeiro esforço se dá a partir da ciência. Inicia-se aqui o processo de cultivo do prazer com o natural sem a necessidade de ou referência ao sobrenatural (materialismo cientificista). A matéria e as leis físicas passam a ser suficientes para explicar a realidade. Os progressos espetaculares alcançados pela ciência, a partir do século XIX, introduzem o homem num universo mítico e “fabuloso”; é a criação de uma nova religião, em que o homem se religa ao mito, no entanto, sem a interferência dos deuses. “Parece que, subitamente, a ciência supera o homem que a construiu e torna-se pura divagação do espírito, aproxima-se da magia”. Bastide afirma que o mecanismo de fabricação de mitos consiste, nesse particular, “em dissociar um elemento do discurso conceitual do conjunto que lhe dá o seu verdadeiro sentido, retendo apenas a “fulguração” e transformando-o em “imagens violentas” - a violência aqui provindo da ruptura voluntária introduzida na coerência da linguagem científica” (Ibid., p. 104). Filosofia da Religião40 • (b) Um segundo esforço se dá a partir da técnica. Nesse caso, a máquina é, literalmente, o fabricante de novos mitos. Já não há como impedir o progresso. A via é de transformação tecnológica do mundo, o crescimento econômico, a expansão de fronteiras da natureza para o “bem da humanidade”. Tudo passa a ser objeto de manipulação em nome da civilização moderna, do “desenvolvimento” (que também é mito). Como explica Bastide, “a princípio, o homem tentou manter a sua antiga mitologia dentro desse novo clima. Tentou dar às cidades artificiais e às maquinas invasoras os mesmos significados simbólicos a que estava habituado” (Ibid., p. 105). Entretanto, alguns resultados dessa mitificação da técnica, dessa criação de novos símbolos, da substituição ou aniquilação do arcaico, têm sido catastróficos: o século XX representa o cemitério das mitologias e das utopias modernas. O preço da exploração e tecnologização da vida tem sido o colapso geral do ambiente e da natureza. Os mitos da técnica não conseguiram, assim, exorcizar por completo o pavor do ser humano moderno, nem tampouco conferir as “respostas” que se buscava. • (c) Por fim, um terceiro esforço, segundo Bastide, é de ordem sociológica. Trata-se da “fabricação das utopias”. O movimento das utopias é paralelo ao do desenvolvimentismo; caminha na contramão dos valores erigidos em torno do mito do progresso, rejeitando e contrapondo, ideologicamente, omodelo de sociedade, até então, proposto. Bastide defende que as utopias “não passam, na verdade, de mitos da sociologia, da marca da recusa do homem em aceitar a época em que vive tal qual moldada pela história” (Ibid., p. 107). Tem, no entanto, a mesma finalidade da mitologia natural: “transcender a sua finitude acrescentando um suplemento de significação às coisas”. Enquanto a mitologia natural transpõe esse suplemento ao além místico, a utopia situa seu suplemento no além histórico: o futuro (Ibid., p. 108). A revolta inerente ao mito das utopias, porém, não lhe garantiram um futuro muito promissor, na análise de Bastide. 41 A constatação desse sociólogo nesse artigo é a de que os significados míticos não foram instintos da história, mesmo numa existência cada vez mais dessacralizada. Num mundo cada vez mais fragmentado, restam, por sobre as demais, de acordo com Bastide, as “mitologias pessoais”, através das quais os mitos permanecem vivos: Sobrepondo-se, fusionando-se também nos momentos de crise ou abalos em nossas estruturas sociais. Aquilo que Nietzsche, com efeito, invocara com todo desejo, “a morte de Deus”, só podia terminar com a multiplicação dos antigos deuses voltando à tona, ou com a criação de novos deuses - a “ciência”, a “técnica” - de ora em diante reivindicando para si o privilégio de holocaustos sangrentos... O homem continuará sendo, sim, uma fábrica de mitos, o que não é grave enquanto o mito continuar sendo a expressão de nossa luta contra a incompletude, e de nossa necessidade de “ser” plenamente (Ibid., p. 109-110). Conclusão Esta unidade objetivou sugerir que os mitos retornam e sobrevivem graças ao homem, cujo referencial de existencialidade depende da recriação de mitologias. Geração vai, geração vem, e os mitos parecem adaptar-se (e não ser abolidos por) às transformações dos tempos. Mas, embora transcendam as temporalidades – enquanto remetem a uma história sagrada, paradigmática, meta-temporal – são re-significados nas épocas e vivências concretas dos homens, isto é, indicam uma experiência histórica e remetem a um clima social e às regras de funcionamento uma determinada cotidianidade, à medida que alteram a cosmovisão e o “sentido da história” para os seres humanos. Nesse sentido, é necessário ao filósofo da religião, que, antes, estude e compreenda a história (e os mitos) que envolvem dado fenômeno religioso, a fim de que, como consequência, apreenda sua contribuição para a cultura em seu todo. Ao estudar um fenômeno religioso, o pesquisador se depara com uma série de elementos pouco apreensíveis por categorias racionais e históricas. Todavia, nem mesmo Filosofia da Religião42 isso deve impossibilitar uma filosofia da religião, pois, como elucida Mircea Eliade (1989, p. 22): Um dado religioso “puro”, fora da história, é coisa que não existe, pois não existe um dado que não seja, ao mesmo tempo, um dado histórico. Toda experiência religiosa é expressa e transmitida num contexto histórico particular. Mas admitir a historicidade das experiências religiosas não implica que elas sejam redutíveis a formas não-religiosas de comportamento. Afirmar que um dado religioso é sempre um dado histórico não significa que ele seja redutível a uma história não-religiosa – por exemplo, a uma história econômica, social ou política. Referências BASTIDE, Roger. O sagrado selvagem e outros ensaios. São Paulo: Cia das Letras, 2006. ELIADE, Mircea. O Sagrado e o Profano. A essência das religiões. São Paulo: Martins Fontes, 1996. ________. Origens. História e sentido na religião. Lisboa: Edições 70, 1989. PAIM, A., PROTA, L., e VELEZ RODRIGUEZ. Religião. Londrina, EDUEL, 1997. 43 Filosofia da Religião Unidade - 5 O que é a fé? Introdução Quando o meu coração estava amargurado e no íntimo eu sentia inveja, agi como insensato e ignorante; minha atitude para contigo era a de um animal irracional. Contudo, sempre estou contigo; tomas a minha mão direita e me susténs. Tu me diriges com o teu conselho, e depois me receberás com honras. A quem tenho nos céus senão a ti? E na terra, nada mais desejo além de estar junto a ti. O meu corpo e o meu coração poderão fraquejar, mas Deus é a força do meu coração e a minha herança para sempre (Sl 73.21-26, NVI). À luz do texto bíblico acima, gostaria de te convidar para um início de unidade diferente: uma breve reflexão sobre a fé hoje. Em seguida, prosseguiremos com definições filosóficas sobre fé, em diálogo com Paul Tillich e Sören Kierkegaard. Pois bem, uma das coisas que mais me preocupa hoje quando o assunto é “fé” é o pouco espaço que nossas definições e percepções mais ou menos comuns deixam para o lado incerto e fraco da fé. Sobretudo porque, ainda que o conceito de fé tenha um aspecto doutrinário ou quase definitivo - e se não respeitar aquilo, não será considerado fé - o fato fundamental é que a fé não existe fora da pessoa. E, como pessoas, adotamos, criamos, defendemos e obedecemos a convicções, mas também somos abalados em relação a elas, o que denota uma dupla condição de fragilidade: (a) primeiro a condição da vida humana; (b) a condição de nossas certezas, que muitas vezes se abalam na medida em que invariavelmente nosso mundo se abala. A questão no caso é se saberemos ou não a lidar com a ambiguidade óbvia que nos contitui como humanos e, Filosofia da Religião44 como tal, também atinge nossa própria fé? Os salmos são cheios dessas ambiguidades, como este que lemos acima, cuja autoria é atribuída a Asafe. Ao que tudo indica, este homem andava com Deus, buscando e apreciando seus conselhos; mas no meio dessa trajetória cometeu alguns deslizes próprios de quem, mesmo sendo de fé, é gente, é humano; e o que possivelmente o tornava um homem de Deus não era apenas o fato de que ele foi um “escolhido” de Deus, mas de que também, a despeito de suas dúvidas, inquietações, medos e outros sentimentos demasiadamente humanos, ele prosseguia escolhendo Deus. E escolher Deus implica em admitir sua dependência, é ser honesto com Ele, é saber que Ele “é” e continua “sendo”, a despeito de nós não sermos, e que ele permanece, apesar de nossos desvios e fraquezas. É disso que ele está tratando nesse texto. Nele ele admite ter sido tomado pela inveja e amargura em seu coração em relação aos arrogantes e ímpios, mas prósperos; que pisam nos outros e só pensam em si mesmos, mas, a despeito disso, parecem se dar bem em tudo: não adoecem, estão sempre fortes, oprimem os outros, agem como quem pode se apossar da terra, como se esta fosse só deles; além disso, ainda zombam de Deus, não se preocupam com nada e só vão aumentando sua riqueza. O salmista então é tomado pela insensatez e conclui que toda a sua busca por se manter reto e puro, em agir corretamente e temer a Deus, foi inútil, pois o fez penar ainda mais enquanto esses pérfidos aí gozam de todas as benesses que ele, pelo bem realizado, deveria estar gozando. Quer dizer, quem não se sentiria injustiçado? Quem não se veria tentado e duvidar do caminho da retidão, isto é, dos caminhos de Deus? Quem não passaria pelo vale da insensatez e da amargura como passou o salmista por um momento, que não sabemos quanto tempo durou? É isto que chamo de “mundo abalado”; perdemos nosso chão, e vemos como nossas convicções podem ser solapadas e se perder nestas horas. Mas o salmista não era insensato ao todo; simplesmente 45 porque, diante de Deus, ele admitiu fraquejar, reconheceu seus minutos de bobeira e insensatez; mas mesmo neles, percebeu que não saiu do lado de Deus. Para onde poderia correr? Qual seria, afinal, o sentido de tudo isso? Ele decidiu que melhor é continuar andando com Deus. O sentido de sua fé era maior que a própria fé, pelos modos pelos quais ela se constrói, pelos invólucros frágeis nos quais ela,
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