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2 Sumário Capa Rosto Apresentação 1. A vida oculta 2. Sacerdote dedicado ao seu povo 3. O Milagre 4. O movimento popular 5. Padre Cícero entra na política 6. A preocupação dos últimos anos: reaver o uso das ordens 7. O Pai dos Pobres! Bibliografia Coleção Créditos 3 kindle:embed:0002?mime=image/jpg Apresentação Até poucos anos atrás, o padre Cícero ainda era considerado pelo clero como o sacerdote sem uso de ordens, excomungado, rebelde. Apesar disso, para o povo do Nordeste, era e ainda é, cada vez mais, o grande Patriarca do Nordeste, o Padrinho universal, o intercessor junto a Deus em todos os problemas da vida, o santo cuja intercessão nunca falha. Os romeiros não prestavam atenção às sentenças eclesiásticas. Então, veio o padre Murilo, vigário de Juazeiro, falecido há poucos anos. O padre Murilo acolheu os romeiros sem restrições. Recebeu ajuda de religiosas da Congregação de Nossa Senhora. Os últimos arcebispos de Fortaleza, desde dom Delgado, mostraram-se bem mais tolerantes, inclusive simpáticos, como o cardeal dom Aloisio Lorscheider. Mas a grande mudança veio com a chegada do atual bispo do Crato, dom Fernando Pânico, em 2001. Dom Fernando atribui à intercessão de padre Cícero a cura de um câncer que parecia incurável. Dom Fernando tornou-se o grande defensor de padre Cícero e introduziu em Roma o processo de reabilitação do padrinho do Nordeste. Desde então, a atitude do clero mudou. A própria CNBB declarou-se favorável a uma reabilitação de padre Cícero. A igreja paroquial de Juazeiro dedicada a Nossa Senhora das Dores foi declarada Basílica Menor pela Santa Sé. Recentemente, dom frei Luiz Cappio, bispo de Barra, conversou com o Papa na sua visita ad limina em setembro de 2010, pedindo que se acelerasse o processo de reabilitação. O Papa acolheu com muito favor esse pedido. Falou de modo muito elogioso de padre Cícero, dizendo que conhecia bem o caso e queria de fato acelerar o processo de reabilitação. Padre Cícero deixou de ser o padre reprovado, e é reconhecido como um santo sacerdote que o povo venera com muita razão e que merece que a sua reabilitação seja seguida de um processo de beatificação. 4 1. A vida oculta Cícero Romão Batista nasceu na cidade de Crato, estado do Ceará, no dia 24 de março de 1844. Seus pais, Joaquim Romão Batista e Joaquina Vicência Romana, eram de condição média: tinham casa própria de tijolo, quatro pedaços de terra para trabalhar e uma mercearia. Desde pequeno, Cícero chamava a atenção dos adultos por seu gosto pela oração: a caminho da escola, entrava na igreja matriz para rezar, atrasando-se muitas vezes para a aula. Com 4 anos de idade, já conhecia o catecismo e com 8 fez a primeira comunhão. Ainda jovem, sentiu-se atraído pela vocação sacerdotal. Uma circunstância veio favorecer essa aspiração. Em 1854, por decreto da Santa Sé, tinha sido fundada a diocese do Ceará. Em 1861, dom Luís Antonio dos Santos, natural da província do Rio de Janeiro, foi nomeado primeiro bispo do Ceará. Uma das primeiras resoluções do novo bispo foi entregar aos padres lazaristas franceses o seminário que resolvera fundar. O seminário abriu suas portas em 1864. O jovem Cícero ambicionava entrar no recém-fundado Seminário Diocesano da Prainha, em Fortaleza. No entanto, seu pai faleceu em 1862, vítima da epidemia de cólera, quando Cícero ainda estudava em Cajazeiras. Sendo o único filho homem, Cícero sentiu-se na amarga obrigação de retornar para sua casa e renunciar ao sacerdócio. Pouco tempo depois, o pai de Cícero apareceu-lhe em sonho e lhe deu a garantia de que “não abandonaria os seus livros, pois Deus daria um jeito para fazê-lo prosseguir os seus estudos”. Cícero relatou esse sonho ao seu padrinho, um rico comerciante de Crato. Este entendeu o apelo de Deus e ajudou o seu afilhado, que partiu para Fortaleza em 1865 para terminar os estudos no seminário. Também deu assistência à sua mãe viúva e às duas irmãs. Em 1870, com 26 anos de idade, Cícero chega ao final dos estudos. O padre francês Pierre Chevalier, reitor do seminário, desaconselhou a ordenação sacerdotal porque achava Cícero demasiadamente místico, cabeçudo e por vezes audacioso em matéria doutrinal. No entanto, dom Luís tinha muita simpatia por Cícero e o ordenou em 30 de novembro de 1870. Aluno zeloso e fervoroso, certamente influenciado pela leitura de revistas missionárias, pensou em servir a Deus na China. João Aprígio, seu antigo tutor e amigo da família, demoveu-o imediatamente dessa ideia: como poderia abandonar a mãe viúva e as duas irmãs órfãs? Nessa época, o novo bispo do Ceará esteve muito empenhado em restabelecer com todo o seu rigor a disciplina eclesiástica, de acordo com os padrões da França e da Itália. Dom Luís expulsou o famoso missionário padre-mestre Ibiapina do Ceará e o proibiu de voltar a pisar nas terras cearenses. Ao mesmo tempo, fez todo o possível para controlar as 4 casas de caridade que Ibiapina tinha fundado no Ceará. Tudo sucedeu como se tivesse previsto o apoio que as casas de caridade iam dar ao padre Cícero mais tarde. 5 Ordenado, Cícero pensava em continuar os estudos em Roma, incentivado pelos superiores, que reconheciam sua aguda inteligência. Mas o argumento de João Aprígio, amigo da família, o fez retornar ao Crato, para junto da mãe e das irmãs. Iniciou seu ministério sacerdotal no Crato. Um dia, dois cavalheiros de Juazeiro o convidaram para atender confissões e fazer algumas pregações. O lugarejo estava sem sacerdote residente. Assim, no dia 11 de abril de 1872, chegava a Juazeiro, para passar alguns dias, o sacerdote recém-ordenado, padre Cícero Romão Batista, agora com 28 anos de idade. Não imaginava que aí ficaria mais de 60 anos. Padre Cícero queria ser professor no seminário de Fortaleza, onde estudara. Não tinha o mínimo desejo de ficar como capelão de Juazeiro. Pois Juazeiro era um lugarejo insignificante de duas ruas, 36 casas e uma capelinha dedicada a Nossa Senhora das Dores. Deus decidiu. Uma tarde, padre Cícero voltou da capela onde tinha ouvido as confissões dos homens e foi para a escolinha onde estava hospedado. Estava tão cansado que caiu no sono. Aí teve um sonho. No sonho, padre Cícero viu o Sagrado Coração de Jesus rodeado pelos 12 apóstolos entrando na sala em que ele mesmo, padre Cícero, estava dormindo. Quando Jesus ia começar a falar aos apóstolos, entrou de repente uma multidão de retirantes: era um cortejo de adultos e crianças famintos, fatigados, tocados pela seca, e que pareciam ter saído dos piores tempos de seca dos sertões. Então Jesus dirigiu a palavra aos retirantes. Falou da ruindade do mundo e das inúmeras ofensas que os pecadores fazem ao seu Sacratíssimo Coração. Prometeu fazer um último esforço para converter o mundo tão miserável, mas anunciou que se este não respondesse ao apelo, seu fim viria certamente. Nesse momento, Jesus voltou-se para padre Cícero e ordenou: “E você, padre Cícero, tome conta deles”. Então o padre Cícero acordou. Ficou espantado, mas pensou, refletiu e entendeu que esse sonho era mesmo uma ordem de Jesus. Decidiu fixar-se em Juazeiro. Poucos meses depois, trouxe de Crato sua mãe, dona Quinou, duas irmãs, Angélica e Mariquinha, e uma jovem escrava liberta, que ficou conhecida como “Teresinha do padre”. 6 2. Sacerdote dedicado ao seu povo Juazeiro era um sítio patrimônio (terra livre para os escravos) doado pelo padre Pedro Ribeiro e contava com 32 casas: algumas casas domingueiras de proprietários, de tijolo e telha, e 26 casas de taipa e palha que abrigavam os descendentes dos escravos libertos. Havia uma escola e uma capela dedicada a Nossa Senhora das Dores. Padre Cícero sabia que foi Deus que o colocara em Juazeiro, onde encontrou um povo desviado e abandonado. Durante 17 anos, exerceu aí o seu ministério totalmente escondido. Andava de sítio em sítio. Pregava constantes missões, celebrava novenas, terços e procissões, multiplicava as festas religiosas. Dedicou-se a corrigir os vícios e os abusos morais. Acabou com as bebedeiras, proibiu as danças e conseguiu queos homens parassem de bater nas mulheres e que as prostitutas confessassem seu pecado. Procurou alimentar a fé e animar a prática religiosa do povo. Para isso, escolheu três caminhos: a convivência com o povo, as visitas domiciliares pelos sítios, sempre andando a pé, e as pregações, orientando o povo, seja nas novenas e missas, seja nas diárias reuniões ao anoitecer diante de sua casa. Em pouco tempo, Juazeiro tornou-se um modelo de ordem e de virtude. Padre Cícero era no Juazeiro o equivalente do santo Cura d’Ars. Durante todo esse tempo, padre Cícero viveu na maior pobreza. Não quis receber nada pelos sacramentos que administrava. Viveu de esmolas que lhe davam às vezes os comerciantes de Crato ou alguns comerciantes de passagem. Adquiriu em poucos anos a fama de um sacerdote dedicado inteiramente ao povo, sempre disponível, sempre desinteressado, atento, despretensioso, bom conselheiro, impecável na sua vida pessoal, fiel rigorosamente ao seu voto de castidade, aceitando trabalhar na capelania mais miserável da diocese. Consta que tinha um olhar penetrante e uma palavra forte, capaz de convencer os mais duros corações. Gente de todas as classes, até o clero, de longe e de perto vinha buscar seus conselhos. Sua casa, com o correr dos anos, tornou-se a casa de todos, desde os pobres retirantes e mendigos, até ricos comerciantes, políticos, padres, estrangeiros. Havia dias em que repartia a mesa com vinte, trinta pessoas. Padre Cícero contava com o apoio e a maior admiração de dom Luís, o seu bispo. Em 1883, dom Joaquim José Vieira assumiu a diocese do Ceará e depositou nele a mesma confiança. Em 1884, dom Joaquim visitou Juazeiro para consagrar o altar da capela Nossa Senhora das Dores que acabava de ser restaurada. Fez os maiores elogios ao padre. Seguindo o exemplo do padre Ibiapina, padre Cícero reuniu um grupo de beatas dedicadas a uma vida de piedade e de oração, ao catecismo e à participação em todos os ofícios e celebrações da Igreja. 7 Já muito antes do milagre de 1889, padre Cícero tinha fama de santo, de profeta e de milagreiro. Durante a grande seca de 1888, padre Cícero fez promessa de construir uma grande igreja, em honra do Sagrado Coração, no alto da serra do Catolé. Vieram algumas chuvas e as obras começaram. Então veio o milagre. Para entender todo o alcance do milagre, é preciso levar em conta a situação do tempo. No Ceará, como em todo o interior do Brasil, a proclamação da República foi acolhida como o fim do mundo. Era o advento do anticristo e dos inimigos da Igreja. Ser republicano ou maçom era como ser filho do diabo. Muitas profecias vieram renovar a convicção de que o fim do mundo era iminente. Essa mesma fé apocalíptica ia animar Canudos alguns anos mais tarde. Por outro lado, durante as últimas décadas, o vale do Cariri tinha prosperado bastante. Era o centro mais desenvolvido do Ceará, graças, sobretudo, à multiplicação dos engenhos de açúcar. A população tinha crescido bastante. Juazeiro crescia e estava pronta para receber, de repente, a multidão que o milagre ia atrair à cidade. 8 3. O Milagre O ano de 1889 foi também um ano de seca. O povo multiplicava as súplicas e as romarias. Foi no dia 1.º de março de 1889, às 5 horas da manhã, depois de uma longa vigília noturna de oração. Para que as beatas pudessem tomar café, padre Cícero resolveu dar-lhes a comunhão antes da missa... A beata Maria de Araújo foi uma das primeiras que se aproximou. Maria de Araújo tinha 28 anos, era lavadeira, solteira, natural de Juazeiro e residia com a família de padre Cícero. Ao receber a comunhão, a beata Maria de Araújo caiu por terra sem nenhuma explicação. No mesmo momento, a hóstia caiu-lhe da boca e ficou no chão. Ora, a hóstia estava tingida de sangue. O mesmo fato repetiu-se todas as quartas e sextas- feiras da Quaresma e, depois disso, a partir do Domingo da Paixão até o dia da Ascensão voltou a ocorrer 47 vezes. Na mente do padre Cícero e de todos os assistentes, não havia dúvida: o sangue aparecido na hóstia e que manchava os panos sobre os quais se depositava a hóstia era o próprio sangue de Cristo. Em 7 de julho de 1889, dia da festa do Precioso Sangue, monsenhor Monteiro, reitor do seminário menor de Crato e grande admirador do padre Cícero, comandou grande romaria de 3.000 católicos de Crato até Juazeiro. Diante da multidão, ele proclamou que o sangue dos panos mostrados no altar era o próprio sangue de Jesus Cristo, o que provocou a maior comoção no povo. Aí começaram as grandes romarias para ver o milagre. Os panos foram colocados numa urna de vidro e o povo vinha tocar a urna, o que provocava grande diversidade de milagres. Durante dois anos, a fama do milagre espalhou-se no vale do Cariri, provocando romarias e atos de devoção. Pode-se dizer que todo o clero do Cariri e todo o povo de todas as classes sociais aderiu: ninguém pôs em dúvida a transformação da hóstia no sangue de Nosso Senhor Jesus Cristo. Na Quinta-feira Santa de 1891, em 25 de março, renovou-se o milagre na presença do Dr. Marcos Rodrigues de Madeira, médico de Crato, que publicou no jornal de Fortaleza O Cearense um documento no qual dizia que a transformação da hóstia em sangue era “um fato sobrenatural para o qual não me foi possível encontrar explicação natural”. Esse testemunho provocou reação imensa no Ceará e todos ficaram aguardando parecer do bispo, dom Joaquim, para saber o que pensar de um depoimento tão impressionante. Dom Joaquim teve conhecimento dos fatos de Juazeiro somente em novembro de 1889. Ficou irritado porque padre Cícero não lhe tinha feito nenhuma comunicação. Mas sua reação foi moderada. Nada tinha proibido, a não ser proclamar que se tratava realmente de um milagre. Houve troca de cartas e mais nada até o depoimento do Dr. Madeira. Naquela época começaram a aparecer já algumas interpretações dos fatos 9 sobrenaturais de Juazeiro. Alguns diziam que, diante da imensa ruindade do mundo (uma prova era o advento da República do Brasil), Jesus tinha resolvido derramar o seu sangue uma segunda vez para uma nova redenção. Outros diziam que o milagre de Juazeiro era o anúncio do juízo final. Então dom Joaquim assustou-se: diante dele estava o fantasma das heresias. Já em 1891, dom Joaquim tinha enviado uma comissão de inquérito formada pelos dois padres mais letrados da diocese, o padre Clycério da Costa Lobo e o padre Francisco Ferreira Antero, doutor em teologia. O inquérito durou um mês e os comissários interrogaram 10 beatas, 8 padres e 5 civis eminentes. Assistiram várias vezes ao milagre da transformação da hóstia em sangue. Concluíram que se tratava realmente de fatos sobrenaturais de origem divina. Como explicar que esses dois teólogos tenham tão facilmente garantido a origem divina dos milagres? Alguns dizem que, nesses primeiros tempos da República, a espera pelo fim do mundo era tão forte que todos estavam dispostos a escolher sinais de proximidade desse fim de mundo. Em todo caso, os dois padres deram ao bispo o contrário do relatório que este esperava. O bispo sentiu-se traído pelos teólogos. Em abril de 1892, aconteceu algo que convenceu o bispo de que havia um embusteiro. Foi roubada a urna que continha as hóstias e os panos manchados de sangue que o bispo tinha mandado transferir para Crato. O acusado foi José Joaquim Marrocos, mestre-escola em Crato. Esse Marrocos tinha sido seminarista, mas foi expulso do seminário pelos lazaristas franceses. Apaixonava-se por tudo o que era religião e desde o início tomou a liderança dos movimentos de apoio ao padre Cícero. Não havia provas, mas, de fato, 18 anos mais tarde, depois da morte de Marrocos, a urna foi descoberta entre os objetos que lhe pertenciam. Dom Joaquim ficou convencido de que havia em Juazeiro um verdadeiro cisma. Em 5 de agosto de 1892, baixou um decreto suspendendo o padre Cícero, privando-o do poder de pregar, confessar e orientar os fiéis. Somente lhe deixou o poder de celebrar missa. Em março de 1893, mandou uma carta pastoral em que desacreditava os fatos de Juazeiro, emborasem condená-los formalmente e exortava os fiéis a ignorá-los. O bispo resolveu submeter o caso à Santa Sé, isto é, ao órgão encarregado dos problemas de doutrina, o Santo Ofício. Antes dele, já os partidários de padre Cícero tinham multiplicado os apelos à Santa Sé contra as decisões do bispo. Com efeito, em todo o vale do Cariri, a hostilidade ia crescendo contra a pessoa do bispo, acusado de todos os pecados, e uma revolta popular estava se preparando. Em dezembro de 1893, o bispo colocou o povoado de Juazeiro sob interdição parcial: doravante nenhum ato religioso poderia realizar-se na capela. Era como se toda a população de Juazeiro estivesse colocada fora da igreja. Essa medida provocou mais unidade na revolta do povo da região contra o bispo. Finalmente, no dia 31 de julho, foi tornado público o veredicto do Santo Ofício de Roma. A Santa Sé reprovava todos os fatos de Juazeiro como “gravíssima e detestável irreverência e ímpio abuso à Santíssima Eucaristia”. 10 Estimulado pela resposta da Santa Sé, o bispo tomou uma série de medidas para organizar a repressão. Todas as romarias deviam cessar. Todos os documentos escritos que falavam dos fatos de Juazeiro, as fotos ou as medalhas deviam ser recolhidos e queimados. Os padres que falassem a favor dos fatos de Juazeiro seriam suspensos de ordens: quase todos se submeteram. Os leigos que defendessem os fatos seriam privados dos sacramentos. A urna roubada devia ser restituída; caso contrário, depois de 30 dias, o autor seria excomungado. Por fim, padre Cícero devia restituir todas as esmolas recebidas em razão dos milagres de Juazeiro. Maria de Araújo foi removida para Barbalha. A demora na comunicação, a reação do povo que acorria numeroso, as interpretações dadas ao milagre, o medo da heresia, a popularidade crescente do padre Cícero, o fanatismo do povo que não se importava com os apelos e determinações do bispo, enfim, não se sabe ao certo o que mais pesou na separação entre a hierarquia da Igreja e o padre Cícero. O fato é que ele foi sendo proibido de exercer o seu ministério: primeiro, proibido de confessar e pregar; depois, de realizar atos religiosos na capela; mais tarde, de celebrar missa (1896). Até se pediu que saísse de Juazeiro. E finalmente veio a excomunhão (1916), que, no entanto, não foi aplicada. 11 4. O movimento popular Diante dessa situação de quase ruptura com o bispo do Ceará, a população de Juazeiro organizou a resistência. Formou-se um verdadeiro movimento popular. O principal organizador foi um fazendeiro de Lavras de Mangabeira, bem no sertão, tenente-coronel da Guarda Nacional José Lobo. A base do movimento popular foi formada por seis associações: o Apostolado do Sagrado Coração de Jesus, a Confraria de São Vicente de Paulo, a Confraria de Nossa Senhora das Dores, a Confraria do Santíssimo Sacramento, a Confraria do Precioso Sangue e, por fim, a partir de 1895, a Legião da Cruz. Cada uma dessas associações foi transformada em tropa de choque na campanha de reabilitação de padre Cícero. Todas tinham milhares de membros. A legião da Cruz contava 5.000 membros somente em Juazeiro e mais de 10.000 fora do povoado. Isso quer dizer que o povoado inteiro estava mobilizado e, com ele, uma boa parte da população do município inteiro e dos municípios vizinhos. Conseguiram arrecadar muito dinheiro. A finalidade era convencer a Santa Sé de que havia sido mal informada e conseguir um apelo direto ao papa. Duas vezes, o padre Cícero tentou recorrer por carta. Em ambas, a resposta foi negativa. A viagem de Lobo a Petrópolis para convencer o núncio apostólico foi um desastre. Mas as romarias aumentavam, apesar da proibição do bispo. Este tomou mais uma decisão. Em abril de 1896, dom Joaquim despojou o padre Cícero do último poder que ainda lhe restava: o poder de celebrar missa. Pelo final de 1896, um incidente agravou a situação. Padre Cícero estava fazendo a sua pregação habitual, quando cinco homens desconhecidos se aproximaram dele e, de repente, sacaram as suas facas. O povo conseguiu impedir que atingissem padre Cícero, mas a emoção foi grande. O povoado inteiro revoltou-se e ficou convencido de que se tratava de uma ameaça da Igreja oficial de Crato. Em Crato, houve pânico: pensaram que Juazeiro fosse mandar 5.000 capangas armados para destruir a cidade. Em junho de 1897, chegou a última resposta de Roma. Dessa vez, o Santo Ofício ameaçava padre Cícero de excomunhão, se ele não se retirasse imediatamente de Juazeiro. O padre partiu imediatamente para Salgueiro, onde permaneceu vários meses. Ele se convenceu de que o último recurso era viajar pessoalmente a Roma. Graças à ajuda do presidente da província de Pernambuco, padre Cícero pôde pagar a viagem. O padre ficou em Roma oito meses (de março a outubro de 1898). Foi atendido várias vezes pelo Santo Ofício e, no fim, foi recebido, em brevíssima audiência, pelo papa Leão XIII. A conclusão foi de que se deveriam manter os decretos anteriores, quanto à prática. No entanto, o padre recebia permissão para celebrar missa em Roma e, dependendo da ratificação do bispo, também no Ceará. Enfim, qualquer modificação no seu estatuto dependeria doravante da Santa Sé, e não do bispo. Padre Cícero entendeu tudo isso como uma vitória e voltou feliz ao Brasil. O Santo Ofício tinha sugerido que saísse de Juazeiro, mas não o obrigava a fazê-lo. O sacerdote voltou a 12 Juazeiro no dia 4 de dezembro de 1898, mas o bispo não lhe permitiu rezar missa. Durante os anos seguintes, o movimento cresceu sem interrupção. Muitos romeiros vieram morar em Jua- zeiro. Entre 1890 e 1898, a população passou de dois mil a cinco mil habitantes. Em 1905, já havia doze mil habitantes e, em 1909, quinze mil. Quanto mais crescia a perseguição da Igreja, mais o povo defendia o seu “padim”. Não podendo mais confessar e pregar, ele passou a apadrinhar todas as crianças que eram batizadas e tornou-se o padrinho de todos. Pessoas importantes e ricas de Crato e de Cariri afastaram-se de padre Cícero por causa da campanha dirigida pelo bispo. Mas milhares de migrantes vindos dos estados mais pobres do Nordeste, especialmente Alagoas, passavam a defendê-lo e amá-lo. E o padre Cícero, homem ativo e dedicado, já que não podia exercer o seu ministério, passou a ocupar-se com a vida do povo, sua situação econômica, sua sobrevivência, a formação escolar e profissional, o progresso do lugar. As tensões entre os antigos habitantes da terra e os recém-chegados eram fortes e padre Cícero teve de se fazer de pacificador. Foi durante essa época que o padre Cícero começou a tornar-se o Patriarca do Nordeste. De todas as partes, o povo vinha para pedir-lhe conselho. Ele tinha fama de saber resolver todos os conflitos, de saber o remédio para as doenças e até a fama de ser casamenteiro. Diante do crescimento da cidade, começou a preocupar-se com a situação econômica do seu povo. Ficava aflito pela situação de extrema dependência dos trabalhadores que viviam a serviço dos senhores de engenho ou dos fazendeiros. Cuidava para que os meninos aprendessem um ofício e ficassem na cidade para não caírem na dependência. Por isso incentivou de todas as maneiras o artesanato. O Dr. Walter Barbosa narra como nasceu a indústria de relógios em Juazeiro. Um dia, padre Cícero mandou chamar o mestre Pelúsio Correia do Machado, dizendo: – Seu camaradinha, eu lhe mandei chamar, para lhe propor um negócio: Juazeiro está crescendo, mas o seu crescimento não está sendo coordenado. Eu não disponho de tempo para realizar empreendimentos, a fim de dar condições de subsistência a esse povo. E é constrangido que vejo tudo isso acontecer. Dando um suspiro profundo, continuou: – Não disponho de meios... Pensei e cheguei à conclusão de que vou precisar do trabalho e de uma porção de gente que pode me ajudar; por isso eu o escolhi. – Estou às ordens do senhor... Se achar que posso ser útil em alguma coisa... – Como não! Olhe, Pelúsio, é condoído que vejo esta criançada crescendo sem ter um ofício. Já estou encaminhando uns para aprenderema arte de sapateiro, pois é uma arte que sempre dá, todo mundo precisa andar 13 calçado; outros encaminhei para ourivesaria, a fim de se tornarem bons artífices, e agora desejo montar uma fábrica de relógios... – Meu padrinho, e onde vai ser essa fábrica? – Aqui em Juazeiro. – Em Juazeiro? – Sim, homem de Deus! O engenheiro que escolhi foi você. A fábrica vai ser dirigida pelo meu bom amigo e afilhado. – Mas, meu padrinho, eu nunca tive a menor noção de tal coisa! – Pelúsio, para você não há problema. Temos de montar essa fábrica de relógios monumentais, a fim de servir de escola ou aprendizado para uma parte dessa rapaziada. – Mas, meu padrinho, como é que posso fazer uma coisa que nunca fiz? – Fazendo a primeira vez! Olhe, vou mandar comprar um despertador. Quando esse chegar, você o desmonta, veja como funcionam as suas peças, estude-as. Depois você montará. Quando isso acontecer, já se tem meio caminho andado para se implantar uma fábrica de relógios em nossa Juazeiro. – Mas, meu padrinho, e como vou fabricar essas peças? – Camarada, você usa o mesmo processo dos ourives. Faz fundição em areia. Quanto às ligas dos metais, essas, os livros ensinam.1 Assim foi feito. A fábrica funcionou e fabricou relógios. No dia do aniversário do padrinho, Pelúsio pôde ofertar um relógio que registrava horas, minutos, dia, mês, ano e fases da lua. Esse relógio ainda está na Coluna da Hora da cidade. Naquele tempo, como hoje em dia, não havia problema mais grave do que o da propriedade da terra. Padre Cícero tinha a sua ideia a esse respeito. Assim narra dona Maria da Conceição Lopes Campina, lembrando palavras do padrinho: Se eu fosse um padre novo neste tempo, eu ia pedir ao papa para dar licença aos bispos para comprarem terras com o dinheiro da Igreja e a arrendaria bem barato para o povo, porque o dinheiro da Igreja pertence ao povo, que é ele quem dá. Só assim ele se endireitaria e se afastaria de tanto sofrimento de viver no eito destes orgulhosos. Assim dizia meu Padrinho Cícero. Olhe que estou escrevendo este caderno e ouvi um dono da terra dizer: – Eu só quero ver morador com colarinho na camisa. Outra vez, meu marido estava no mercado e um homem começou a comprar carne de cabeça de boi, já estava ruim, com mau cheiro; e foi chegando outro da escala dele e disse: – O que é que está fazendo aqui, fulano? Ele respondeu: – Estou aqui comprando rebotalho para os cachorros comerem, dizendo isso em relação aos trabalhadores do engenho. Por isso Deus castiga esses homens que se 14 enricam com o suor dos pobres e ainda os descompõem. Agora, cadê os engenhos? Levaram fim. Chegaram outros mais ricos que os rebaixaram à usina de açúcar, estão plantando cana aperreados e vendendo-lhes; e só tratam da cana porque os pobres dos agricultores não têm para onde se virar. Meu padrinho Cícero cansou de dizer: – Plantem mandioca para vocês não viverem tão aperreados. Mas agora nem isso eles podem fazer, porque os ricos compraram todas as terras boas e deixaram os pobres sem ter onde plantar uma tarefa de mandioca e dizem assim: – Na minha terra não planta nem pé de mandioca, que eu vou plantar capim para o meu gado. E a terra foi Deus quem fez, mas, para defender-se de um derramamento de sangue, é melhor comprar as terras e ir botando o povo pobre para trabalhar.2 Todos os dias, ao entardecer, padre Cícero pregava na praça pública dando os seus conselhos, exortações e advertências. Terminava dando a bênção ao povo. A doutrina do padre Cícero era aquela que todos os missionários sempre ensinaram no sertão. Havia grande insistência no juízo final, grande denúncia dos pecados do mundo e a ameaça dos castigos de Deus. Os primeiros romeiros também disseram que ouviram meu padrinho Cícero dizer que, quando o sol escurecesse, os amancebados e amasiados correriam todos virados em bichos; e era uma zoada tão grande nos becos das ruas, que parecia dez latas batendo umas nas outras, dos gritos das fêmeas nos dentes dos machos. E para os amasiados, sendo os dois solteiros, tem um jeito. É só se casar na Igreja Católica Apostólica Romana governada pelo Santo Papa de Roma, mas, para os amancebados, só serve ir viver com a esposa ou então sozinho, sem ter mulher alguma. É o jeito que tem para eles. E meu Padrinho Cícero disse que, depois que o sol se limpar, a chuva que caísse no chão não daria para apagar o rastro de um animal de tão pouca que seria. Secariam todas as cacimbas, que mal daria para os donos beberem e cozinharem. E o povo sairia e iria passar esta seca nas margens do rio São Francisco comendo beiju de massa de mandioca ralada em ralo e espremida em um saco e feitos os beijus nos cacos das panelas velhas das suleiras. E o sertão ficaria pelado de não haver folha verde nos paus...3 Disse Jesus Cristo que nos últimos tempos haveria de multiplicar-se a iniquidade e o amor de muitos havia de esfriar. Quer dizer que a santa religião cristã seria abandonada, que a terra atualmente está cheia de falsas religiões, de falsos profetas e de falsos cristãos, que são estes homens que se fazem de padres sem ser ordenados na Lei de Jesus Cristo. As doutrinas anticristãs estão sendo propagadas em toda parte, como o tal espiritismo ou feitiçaria moderna, levando em todos os países do mundo a sua lei. Tudo isso são os verdadeiros sinais do fim do mundo, ou fim dos homens.4 Padre Cícero dizia aos romeiros que vêm ao Ceará: 15 Vocês que são romeiros de fora, comprem a sua casa aqui em Juazeiro, para que, quando chegar este tempo, vocês já tenham o seu lugar. É bom comprar para não ficar à toa e não andar doido de rua em rua atrás de casa para alugar, sem encontrar, que neste tempo é pior. É difícil encontrar uma casa para alugar e quem tiver a sua é melhor, que é só entrar dentro, porque, quando o povo ouvir falar em guerra no Brasil, vem logo e aluga as que estiverem desocupadas, e quem vier por derradeiro, fica é por debaixo dos paus, porque não encontra casa para alugar. E eu ensino a este povo pobrezinho que compre lona velha de caminhão, para fazer latada enquanto encontra uma casinha, pode até fazer no fundo dos quintais dos conhecidos que não vão cobrar aluguel disto, não. Tenham caridade. Bem, aqui é lugar de sofrimento, é lugar de trabalhar nas roças, principalmente para quem é pobre. Se vier para o Ceará, venha conformado com a vontade de Deus e com o destino de trabalhar na roça e que está longe com duas ou três léguas de distância, porque nos arredores as terras já estão cansadas e não dão mais nada de futuro, e outras ocupadas com a criação de gado. Se quiserem trabalhar, vão para a serra da Mãozinha, vão para a serra do Araripe, não, que meu Padrinho Cícero disse que a serra do Araripe, no fim do mundo, desaba quatro léguas em quadro e se afunda.5 O fim do mundo estava sempre presente nas expectativas daquele tempo. Juazeiro seria como que uma cidade de refúgio, no meio das adversidades dos últimos tempos, assim ela será também, de certo modo, uma cidade de Deus, uma nova Jerusalém. 1 Cf. Walter Barbosa. Padre Cícero. Pessoas, fotos e fatos. Fortaleza, 1980, pp. 29-30. 2 Cf. Maria da Conceição Lopes Campina. Voz do Padre Cícero, São Paulo, Edições Paulinas, 1985, p. 188. 3 Cf. Ibidem, p. 222s. 4 Ibidem, p. 223. 5 Ibidem, p. 199. 16 5. Padre Cícero entra na política Padre Cícero entrou na política do Ceará já com 67 anos de idade. Sempre afirmou que entrou a contragosto, forçado pelas circunstâncias. A circunstância foi a luta pela emancipação política de Juazeiro. Depois de longa luta, Juazeiro foi emancipada e tornou-se município em 1911, quando já era o principal centro urbano do Ceará, depois de Fortaleza. Ora, as rivalidades eram grandes entre os coronéis da região do Cariri. Muitos queriam aumentar o seu poder na região graças à prefeitura de Juazeiro. Em Jua- zeiro mesmo, havia rivalidades tremendas entre filhos da terra e habitantes que vinham de fora. Padre Cícero resolveu candidatar-se para evitar lutas ferozes e talvez até sangrentas. Era a única pessoa capaz de estabelecer certaunidade entre os partidos. De fato, padre Cícero conseguiu diversos pactos de não agressão entre partidos e coronéis que podiam muito bem ter desencadeado guerras sangrentas. Padre Cícero foi o conciliador que buscava a paz. Naquela época entrou no círculo das pessoas que tiveram mais ascendência sobre o Patriarca de Juazeiro o Dr. Floro Bartolomeu da Costa. O Dr. Floro, até a sua morte, em 1926, transformou-se no conselheiro mais ouvido do padre Cícero. Ele era médico nascido na Bahia e tinha trabalhado nos sertões da Bahia e de Pernambuco, como médico, jornalista e tabelião. Chegou a Juazeiro em 1908. Aliou-se a um nobre francês, o engenheiro de Minas conde Adolfo van den Brule. Ambos puseram-se a descobrir minérios e pedras preciosas. Descobriram uma mina de cobre em Coxá, numa terra adquirida por padre Cícero. Assim nasceu a amizade e a colaboração entre eles. Em todo caso, o Dr. Floro afirmou-se rapidamente como o chefe de novas tendências políticas. Ele trazia ideias novas e entraria em conflito com os coronéis locais. Era o típico “forasteiro” que viera desafiar as oligarquias locais. Encontrou apoio na maioria da população que já não era dos nativos do Cariri. Ora, o Dr. Floro entrou rapidamente em todas as lutas políticas do Ceará, que tradicionalmente eram lutas entre coronéis e caciques locais. O Patriarca de Juazeiro – o padre Cícero – foi levado a tomar partido cada vez mais abertamente. Uma vez prefeito de Juazeiro, tornou-se o líder político mais importante do Cariri e ocupou essa função durante 20 anos: durante vinte anos foi a figura política mais poderosa do Cariri e um dos mais influentes do estado. Em 1912, padre Cícero foi eleito vice-governador do Ceará. O Dr. Floro foi eleito deputado federal. Em 1913-14, houve uma verdadeira guerra entre Crato e Juazeiro, e o Dr. Floro organizou um exército de capangas. Juazeiro foi devastada. Mas, no fim, em 24 de janeiro de 1914, as tropas do Dr. Floro venceram e saquearam a cidade de Crato. Depois dessa vitória, as tropas de Juazeiro marcharam contra Fortaleza. O governo federal mandou ajudar e o governador Franco Rabelo abdicou-se e embarcou para o Rio de Janeiro, em 24 de março de 1914. O Patriarca de Juazeiro era o 17 conquistador do Ceará. Juazeiro foi o reduto político mais importante do Nordeste durante duas décadas. Vencedor de uma revolução, padre Cícero controlava o Ceará e exercia também uma influência importante na política nacional. Foi prefeito de Juazeiro sem interrupção até 1927 e vice-governador durante dois mandatos. No entanto, padre Cícero não se sentia à vontade na política. Praticamente depois da vitória de 1914, deixou de exercer de fato o poder real que tinha. Nada se fazia doravante no vale do Cariri sem o seu consentimento. Mas quem exercia o poder de fato era o Dr. Floro. O Patriarca estava ficando velho. Em 1924, já tinha 80 anos e não gostava mais de sair de Juazeiro. Em 1914, o estilo de vida de padre Cícero mudou. Sob a influência do Dr. Floro, ele deixou a sua casa modesta, onde vivia até então, para morar numa casa mais suntuosa. Sua mãe e uma irmã haviam falecido. A beata Maria de Araújo também havia falecido. A antiga casa do padre tornou-se o refúgio da família e das beatas, como também de meninas órfãs. E a nova casa era frequentada pelos políticos da região. Inúmeras visitas enchiam a casa, vindas não somente do interior do estado do Ceará, mas também da capital e até do estrangeiro. Padre Cícero reinava nessa casa quase pública, mas era somente em aparência. Quem reinava de fato era o Dr. Floro, que morreu em 1926. Já fazia alguns anos que a saúde em declínio do padre Cícero não mais lhe permitia uma participação real na vida pública. Os últimos dez anos de sua vida foram vividos no interior da casa. Desta vez, quem orientou padre Cícero foi outra beata, dona Joana Tertuliana de Jesus, conhecida pelo cognome de Beata Mocinha. Morta a última irmã do Patriarca de Juazeiro, Beata Mocinha ficou como secretária e orientadora de todos os negócios, de todas as relações com o mundo exterior e como dona da casa. Ela cuidou da saúde e dos assuntos pessoais de padre Cícero. 18 6. A preocupação dos últimos anos: reaver o uso das ordens À medida que o tempo passava, padre Cícero ficou cada vez mais com a obsessão de recuperar o uso pleno do sacerdócio. Em 1914, o papa Bento XV criou a nova diocese de Crato. Padre Cícero havia lutado durante anos para que a nova diocese, projetada pelo Vaticano no Cariri cearense, fosse sediada em Juazeiro. Não se dava conta de que, por si só, a presença dele, sacerdote suspenso de ordens, tornava muito difícil tal decisão. Em todo caso, Juazeiro perdeu a batalha e a animosidade cresceu de novo entre as duas cidades rivais. Provavelmente para apaziguar os ânimos, dom Quirino, primeiro bispo de Crato, submeteu o padre Cícero a uma série de restrições e humilhações: proibição de receber romeiros em sua casa, proibição de dar a bênção, proibição de benzer artigos religiosos, proibição de batizar crianças mesmo em perigo de morte. Aconteceu que várias vezes, nesses anos, a excomunhão do padre Cícero saiu de Roma, mas o bispo sempre segurou essa excomunhão e deixou de publicar a bula romana, pois temia o furor popular. Todavia, os inimigos do Patriarca tornaram-se numerosos. O novo vigário de Juazeiro era hostil ao padre. Acusações chegavam de todas as partes. Acontece que o Patriarca de Juazeiro recebia muito dinheiro dos romeiros. Distribuía intenções de missas a todo o clero secular e regular do Brasil e mesmo a congregações estrangeiras. Depois da guerra na Europa, de 1914 a 1918, mandou dinheiro à França e Alemanha para a reconstrução de igrejas destruídas. O dinheiro abundava em suas mãos, o que não podia deixar de suscitar inveja tanto da parte do vigário como dos outros padres da região e da própria diocese. Em 1921, dom Quintino suspendeu padre Cícero de novo. A indignação dos romeiros foi imensa. Ameaçaram o vigário e impediram as obras empreendidas por ele. O padre Esmeraldo, primeiro vigário de Juazeiro, foi forçado a renunciar. Esse fato provocou forte irritação no bispo, dom Quintino. As esperanças de reabilitação do velho Patriarca pareciam impossíveis. Nos últimos anos de vida, padre Cícero aproxi- mou-se muito dos salesianos. Em 1923, fez deles os herdeiros de todos os seus bens. Correspondeu-se com o padre Rota, superior geral, para que os salesianos fundassem um colégio em Juazeiro. É provável que esperasse poder contar com o apoio dos salesianos em Roma, já que com dom Quintino não havia mais esperança de reconciliação. Em 1929, dom Quintino faleceu. Dom Francisco de Assis Pires, seu sucessor, mostrou-se mais indulgente. Houve muitas aproximações. Parece que a questão do testamento de padre Cícero criou problemas. Em todo caso, jamais padre Cícero recuperou os poderes sacerdotais. No entanto, não morreu sem reconciliação. Nos últimos dias de sua vida, aceitou a condição de um simples fiel recebendo os 19 sacramentos. Monsenhor Joviniano Barreto, vigário de Juazeiro nos últimos anos de vida do Patriarca, descreveu assim os seus últimos sentimentos: Ele nunca faltou à missa aos domingos. Era sempre paciente e jamais teve uma palavra de revolta, um gesto sequer, em relação ao que lhe ocorreu na vida. Isso não prova desdém à religião, que amava com todas as veras de sua alma de sacerdote e, sim, espírito de fé católica, da qual nunca se afastou.6 Até o fim da vida tinha pensado em fazer uma nova viagem a Roma, para pedir sua reintegração nos poderes da ordem sacerdotal. Não teve mais condições físicas para essa viagem. 6 Cf. Ralph Della Cava, Milagre em Juazeiro, p. 256. 20 7. O Pai dos Pobres! O povo consagrou padre Cícero porque ele antes entregara a sua vida aos pobres. Amou sinceramente os pobres. Foi incansável defensor dos pobres, que o procuravam para solucionar todo tipo de problemas e questões. Casos como o de um fazendeiro e influente chefe político do Cariri, cujo gerente mandou botar o gado do patrão no roçado de um pobrepai de família, antes de este colher a safra toda, prejudicando assim o algodão. O pobre que não tinha sindicato nem tinha delegado por ele, foi ao padre Cícero. Este fez o seguinte bilhete para o patrão: Meu caro compadre, chegou ao meu conhecimento que um sujeito sem consciência botou uma porção de reses no roçadinho do portador deste, e elas estão devorando o fruto do seu trabalho e dando-lhe um prejuízo tão grande que lhe digo, venho pedir-lhe que faça valer agora o seu prestígio e mande, com a maior urgência, botar para fora esses animais e tomar providências para evitar que outros perversos abusem de sua confiança e pratiquem aí injustiças dessa natureza. 7 O patrão obedeceu imediatamente. Levantava os pobres, mostrando-lhes seu valor. Seus conselhos eram: “Não vá morar em terras de senhor de engenho”, “Não venda suas terras”, “Não vá morar em terra de outros”, “Compre terras”... Procurava promover os pobres, ajudando-os a sair da condição de miseráveis, de pessoas improdutivas e dependentes dos coronéis e fazendeiros. Mais de 100 camponeses foram estimulados a plantar na serra do Araripe (uma terra da nação, com 40.000 km2. Pela orientação e estímulo de padre Cícero, o Cariri conseguiu autonomia nos produtos agrícolas básicos: arroz, feijão, milho, cana para rapadura, mandioca etc., e ficou conhecido como celeiro do Ceará. Estimulou a abertura de cacimbas e a construção de cisternas para recolher as águas das chuvas em cada quintal, prevenindo a falta de água. Ensinou o povo a ganhar o seu sustento, pois ele não tolerava gente desocupada. Ensinou ofícios comuns como: pedreiro, carpinteiro, ferreiro, marceneiro e os mais diversos tipos de artesanato em palha, fibra, couro, relógios, sinos, redes, rendas, além de costura e prendas domésticas, ajudado pelas irmãs e amigos que passavam. Orientava o povo sobre saúde, remédios do mato, primeiros socorros. Abriu doze escolinhas particulares e duas públicas. Abriu o primeiro orfanato (1916) e colaborou na instalação da primeira Escola Normal Rural (1932). Costumava dizer: “cada casa deve ser um santuário, uma oficina e cada quintal, uma horta”. Juazeiro foi se tornando refúgio dos pobres, o oásis de milhares de romeiros que buscavam alívio para seus sofrimentos e opressão. Todos os que o procuravam, desiludidos dos poderosos, nele encontravam, invariavelmente, o carinho de uma palavra ou de um gesto amigo. Durante horas a fio, desde a manhã até alta noite, recebia os romeiros, consolando- 21 os através de seus conselhos e de sua bênção amorosa e paternal. Respondia-lhes os telegramas e as cartas, às vezes de uma adorável ingenuidade. Nunca se lhe viu espelhar no rosto a sombra de um enfado. Foi, na realidade, o consolador das gentes abandonadas dos sertões, que sempre tiveram fome e sede de justiça.8 Faleceu na manhã de 20 de julho de 1934. Em Juazeiro, foi como um fim do mundo. A vida parou. Muitos pensaram que a cidade fosse morrer sem o seu Patriarca. No dia 21, sessenta mil pessoas acompanharam o cortejo fúnebre. Mas a cidade não morreu; pelo contrário, continuou a crescer. E as romarias também não cessaram, continuaram a crescer. Pois, no meio de todas as tribulações da vida do Patriarca de Juazeiro, o povo dos pobres nunca o abandonou. Padre Cícero teve mui- tos inimigos e detratores, mas jamais lhe faltou a confiança do povo simples. Este sempre se reconheceu na figura do sacerdote, que encarnava para o povo pobre a pessoa do Cristo de maneira visível, acessível e compreensível. Padre Cícero adotou amorosamente os pobres e advogou a causa dos nordestinos oprimidos, dedicando-lhes incansavelmente 62 anos da sua vida. E o povo pobre o reconheceu, o defendeu e o consagrou, continuando a expressar-lhe o seu devotamento, porque viu e vê nele o Pai dos Pobres! Antecipou em muitos anos as opções da Igreja na América Latina. É impossível negar a sincera opção pelos pobres de alguém que os próprios pobres proclamam! Meu padrinho é padre santo Como ele outro não há Pois tudo que ele recebe Tudo de esmola dá. Assim foi fazendo o bem Que ele tão grande ficou E seu nome corre o mundo E nobre fama tomou. Para ter uma batina Era preciso lhe dar Pois dinheiro não guardava Para ele mesmo comprar. Somente por estes atos De tanto desprendimento De tanto amor ao seu próximo De tanto devotamento. É que dos sertões longínquos Para aqui foram chegando Levas e levas de gente Segura fé procurando. 22 Por isso depois um dia Deus lhe querendo mostrar O quanto pode a virtude O bom caminho trilhar. E pela graça divina Na primeira sexta-feira De março de oitenta e nove E da quarenta a primeira. Permitiu-lhe que um milagre Nesta aparecesse Que o sangue de Jesus Cristo Pelas suas mãos corresse. Em uma mocinha pobre Sem parente e sem posição Quase preta, sem parente Mas pura de coração. Foi então que se manifestou O fato que admirou A quem viu sem se enganar Mesmo a quem depois negou.9 7 Cf. Pe. Azarias Sobreira, em O patriarca de Juazeiro. 8 Cf. Dr. Antonio Martins Filho e Raimundo Girão, O Ceará. 9 Cf. Maria da Conceição Lopes Campina, op. cit. p. 213. 23 Bibliografia BARBOSA, Walter. Padre Cícero. Pessoas, fotos e fatos. Fortaleza: Editora Henriqueta Galeno, 1980. DELLA CAVA, Ralph. Milagre em Juazeiro. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987. LOPES CAMPINA, Maria da Conceição. Voz do Padre Cícero e outras memórias. São Paulo: Paulinas, 1985. MARTINS FILHO, Dr. Antonio e GIRÃO, Raimundo (orgs.). O Ceará. Fortaleza: Editora Fortaleza, 1945. NETO, Lira. Padre Cícero - poder, fé e guerra no sertão. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. SOBREIRA, Pe. Azarias. O patriarca de Juazeiro. Juazeiro, 1969. 24 Coleção Biografias • Oscar Romero e a Comunhão dos Santos, Scott Wright • João Paulo II – A biografia, Andréa Riccardi • Padre Ibiapina, José Comblin • Padre Cícero de Juazeiro, José Comblin 25 Direção editorial: Zolferino Tonon Assistente editorial: Jacqueline Mendes Fontes Revisão: Iranildo Bezerra Lopes e Tiago José Risi Leme Capa: Marcelo Campanhã Coordenação de novas mídias: Tom Viana Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Comblin, José Padre Cícero de Juazeiro / José Comblin. – São Paulo : Paulus, 2012. -- (Coleção biografias) Bibliografia 1. Cícero, Padre, 1844-1934 2. Devoções populares 3. Juazeiro do Norte (CE) - História 4. Sacerdotes - Brasil - Biografia I. Título. II. Série. 11-04539 CDD-922.2 Índices para catálogo sistemático: 1. Padres católicos: Biografia e obra 922.2 © PAULUS – 2013 Rua Francisco Cruz, 229 04117-091 São Paulo (Brasil) Tel. (11) 5087-3700 Fax (11) 5579-3627 editorial@paulus.com.br www.paulus.com.br ISBN 978-85-349-3437-4 26 27 Scivias de Bingen, Hildegarda 9788534946025 776 páginas Compre agora e leia Scivias, a obra religiosa mais importante da santa e doutora da Igreja Hildegarda de Bingen, compõe-se de vinte e seis visões, que são primeiramente escritas de maneira literal, tal como ela as teve, sendo, a seguir, explicadas exegeticamente. Alguns dos tópicos presentes nas visões são a caridade de Cristo, a natureza do universo, o reino de Deus, a queda do ser humano, a santifi cação e o fi m do mundo. Ênfase especial é dada aos sacramentos do matrimônio e da eucaristia, em resposta à heresia cátara. Como grupo, as visões formam uma summa teológica da doutrina cristã. No fi nal de Scivias, encontram-se hinos de louvor e uma peça curta, provavelmente um rascunho primitivo de Ordo virtutum, a primeira obra de moral conhecida. 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Depois de um momento, fiquei toda contente; mas foi tamanha a comoção que me senti muito pequena diante dela, e tamanho o contentamento que não pude pronunciar palavra, senão dizer, repetidamente, o nome de 'Mãe'. [...] Enquanto juntas conversávamos, e me tinha sempre pela mão, deixou-me; eu não queria que fosse, estava quase chorando, e então me disse: 'Minha filha, agora basta; Jesus pede-lhe este sacrifício, por ora convém que a deixe'. A sua palavra deixou-me em paz; repousei tranquilamente: 'Pois bem, o sacrifício foi feito'. Deixou-me. Quem poderia descrever em detalhes quão bela, quão querida é a Mãe celeste? Não, certamente não existe comparação. Quando terei a felicidade de vê-la novamente? 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Sacerdote dedicado ao seu povo 7 3. O Milagre 9 4. O movimento popular 12 5. Padre Cícero entra na política 17 6. A preocupação dos últimos anos: reaver o uso das ordens 19 7. O Pai dos Pobres! 21 Bibliografia 24 Coleção 25 Créditos 26 37 Rosto Apresentação 1. A vida oculta 2. Sacerdote dedicado ao seu povo 3. O Milagre 4. O movimento popular 5. Padre Cícero entra na política 6. A preocupação dos últimos anos: reaver o uso das ordens 7. O Pai dos Pobres! Bibliografia Coleção Créditos