Baixe o app para aproveitar ainda mais
Prévia do material em texto
EO I TO AA = senac 00 SAO PAUlO Editora Mantiqueira ANTONIO F. COSTELLA PARA APRECIAR A ARTE ROTEIRO DIDÁTICO Edição revista e ampliad~ ANTONIO F. COSTELLA tem vinte livros . publicados e duas vidas. Uma das vidas é a de escritor para pú- blico geral, autor dos livros Patas na Euro- pa, Patas 2 e Palas 3, que já estiveram entre os campeões de vendas; autor também dos textos da coleção "Biografias de Animais Ilustres" (Vida de cachorro, Cacareco, Dick e Bu'céfalo) e, mais recentemente, de obras na área da literatun infantil (Um nariz muito especial, A gata Mícholas e a praça, entre outros). Mas Antonio F. Costella teve também, durante três décadas, outra vida. Como pro- fessor universitário na Escola de Comunica- ção e Artes da USP, na Faculdade de Comu- nicação Cásper Líbero e em outras instituições, viu-se e tinlUlado a escrever li- vros técnicos para públicos específicos: Di- reito da comunicação, O controle da infor- mação no Brasil, Comunicação: do grito ao satélite, Introdução à gravura e história da xilografia, Xilogravura: manualprácico, etc. PARA APRECIARA ARTE ROTEIRO DIDÁTICO .:: Dados Internacionai s de Catalogação na Publicação (C IP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Bras il) Costella, Antônio F. , 1943- Para apreciar a a rte : roteiro did;iti co / Antonio F. Costella . _ Ed. rev. c ampl. - São Paulo: Editora SENAC São Paulo; Cam- pos do Jordão, SP : Editora Mantiqueira, 1997. ISBN 85-7359-029-7 (Editora SENAC São Paulo) ISBN 85-85681-12-8 (Ed itora Mantiqueira) I. Arte 2. Arte - Estudo e ens ino I. Titulo. 97-50 14 CDD-707 Índices para catál ogo sistemático: I. Arte: Estudo e ens ino 707 EDITORA c== senac 00 ANTONIO F. COSTELLA PARA APRECIAR A ARTE ROTEIRO DIDÁTICO Edição revista e ampliada Editora Mantiqueira Adlllinistraçt70 Regional do SENAC no Estado de Seio Paulo Presidente do Conselho Regional: Abram Szajman Diretor do Departallle/llo Regional: Luiz Francisco de Assis Saigado Realizaçt7o: Centro de Comunicação c Artcs Editora SENAC St70 Palllo Gerência: A. P. Quartim dc Moraes Coordenaçt7o editorial: Marizilda Lourcnço Revist70 de provas: Izilda dc O. Pereira Jussara Rodrigucs Gomcs Reproduçt7o de fotos: Thales Trigo Foto da capa: d'aprcs Gioconda, Lconardo da Vinci Projeto gráfico e capa: Marina M. Watanabe Sidncy lUo Editoraçt7o eletrônica: Lato Scnso - Editora de Tcxtos Fotolito: Quadri-Color IlIIpresst70 e acabamento: Pancrom Direitos de publicação © 1997 Editora SENAC São Paulo Rua Dr. Vila Nova, 228 - 4" andar CEP O I 222-903 - São Paulo - SP Caixa Postal 3595 - CEP 01060-970 Tel. (O I I) 236-2135 Fax (O 11) 256-578 I © 1997 Editora Mantiqueira de Ciência e Arte Lida. Av. Eduardo M. da Cruz, 295 - Caixa Poslal 42 CEP 12460-000 - Campos do Jordão - SP Tel. (OI I) 287-0734 Fax (011) 251 -0234 © Antonio F. Coslella, 1997 SUMÁRIO Introdução ........................................... 9 1. O Conteúdo da Obra de Arte . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. 15 2. O Ponto de Vista Factual ............................. 19 3. O Ponto de Vista Expressional ......................... 25 4. O Ponto de Vista Técnico ............................. 33 5. O Ponto de Vista Convencional ........... ' ............. 37 6. O Ponto de Vista Estilístico ........................... 43 7. O Ponto de Vista Atualizado ........................... 53 8. O Ponto de Vista Institucional ......................... 59 9. O Ponto de Vista Comercial ........................... 63 10. O Ponto de Vista Neofactual .......................... 69 11,..e Ponto-de Vista Estético ............................. 79 .~ ' I" - I , I I INTRODUÇÃO Não há nenhuma novidade em afirmar que, no século vinte, os bens tradicionais da cultura foram incorporados à sociedade de con- sumo. Nunca se editaram tantas reproduções fielmente coloridas de obras do campo das artes plásticas, nem jamais, e em tamanhas tira- gens, tantos discos, fitas e CDs de música. Exposições de pintura ou escultura de grandes artistas peregrinam pelo mundo e, alardeadas até com espalhafato pela mídia, tornam-se eventos de visitação massiva, enquanto cantores líricos, antes engaiolados em teatros, ar- rastam multidões para estádios de futebol. A arte dita superior está , transbordando, enfim, dos seus nichos de origem e ganha as ruas das cidades, as ondas eletromagnéticas e as infovias eletrônicas, pois as coleções dos museus invadiram até a Internet. ,,:-;-IJêsdená um bom tempo os artistas, suas vidas e suas criações vêm sendo vendidos, em forma de fascículos nas bancas de jornais, a preços acessíveis. Preços baixíssimos, se comparados ao de uma via- gem cultural e, muitas vezes, gastronômica à Europa. A Gioconda de 9 ANTONIO F. COSTELLA Leonardo da Vinci (Vinci, 1452 - Amboise, 1519) no jornaleiro de qualquer esquina brasileira está muitos milhares de quilômetros mais próxima do que sua matriz guardada no Museu do Louvre. É bem verdade que muitíssimas pessoas compraram coleções de arte, em discos ou em livros, por sugestão da habilidosa e convin- cente publicidade e, depois de um rápido manuseio, relegaram-nas ao inglório e frustrante destino de decorar a sala e de supostamente ates- tar o "bom gosto" e a "cultura" do enfatuado possuidor. O mesmo deve estar acontecendo com muitos CD-ROMs e outros tipos de re- produções comercializados ou "internetados" atualmente. No entan- to, há um saldo positivo nessa onda de consumismo artístico. Embora uma viagem seja uma viagem, um livro seja um livro e uma imagem virtual seja uma imagem virtual; embora a Mona Lisa do Louvre tenha saído das mãos de Leonardo, enquanto a do jornalei- ro e a do CD-ROM não passam de cópias daquela, fotográfica, uma, e eletrônica, a outra; embora a ambiência da primeira esquina não seja a mesma de uma rua de Paris, não podemos esquecer que até pouco tempo atrás não havia como ver as grandes obras artísticas sem peregrinar aos locais de sua produção ou guarda, porque as re- produções não conseguiam retratá-las, nem de longe, com a fidelida- de hoje obtida. O alemãoAlbrecht Dürer (Nuremberg, 1471 - 1528), por exem- plo, utilizou a gravura para divulgar sua pintura no século dezesseis. No entanto, seus trabalhos como gravador foram tão diferentes de sua obra pictórica, mesmo quando pretenderam ser meras cópias, que acabaram por abrir novo capítulo, e dos mais importantes na história da gravura. A reprodução era talentosíssima, mas não veraz. Ela não reproduzia, ao contrário criava algo novo com linguagem nova. Mais ainda. Boa parte das obras de arte, ao longo dos séculos e dos milênios, não esteve ao alcance das vistas e dos ouvidos dos ho- mens comuns. Talvez com a única e parcial exceção dos templos, la AWR ECHT D ORER Apocalipse x ilogravura ANTONIO F. COSTELLA, quase nunca se encontraram, ao longo de séculos e milênios l cole- ções de livre visitação. Mus~us, entendidos como locais abertos ao. público em geral, são um costume que se espalhou muito recente- mente na história do homem. O tão famoso e acima referido Louvre" por exemplo, somente foi inaugurado como reflexo da Revoluçãol Francesa, em 1793, há apenas dois séculos! Antes e até então, ele eral o palácio do rei e, como tal, acessível apenas à nobreza. E os outros; grandes museus também começaram a abrir suas portas só no séculol dezoito. Exemplos: Museu Capitolino, Roma, em 1734, e Museu Bri- tânico, Londres, em 1759. Pois bem. Se o genial e sacrossanto Dürer admitiu a réplical para divulgar-se, por que não admiti-Ia hoje? Se nos últimos tempos; o homem comum pôde colocar seus pés em recintos ricos em arte" que lhe foi proibida durante milênios, por que não estender o benefí- cio aos bípedes que não têm como chegar fisicamente a esses recin- tos? Aplaudo, portanto, quem incluiu as reproduções artísticas na linhruda divulgação em massa. Até bem poucos anos atrás, havia muitas pessoas que torciam O) nariz para a massificação da informação artística. Embora algumas, ainda insistam em sobreviver, foram fragorosamente derrotadas pelai evolução histórica. Já não se vê demérito em que se fotografem obras, de museus para que suas cópias coloridas e fiéis possam circular pelo) mundo, levando a Maomés da arte montanhas de cultura. Quanta coi - sa um estudante de arte pode aprender hoje, assim, de maneira eco- nômica e rápida! Além disso, o contato com bens culturais, ainda que só por instigação da publicidade, pode redundar em sincero interesse intelectual, graças à curiosidade despertada pela presença de tais bens .. Em outras palavras, mesmo dentre aqueles que compraram coleções; para enfeitar a sala de visitas, vários se contagiaram com o vírus cul- tural e começaram seus primeiros passos em novo e insuspeitado ca- minho. Afinal, no século vinte, tão ansiosa e pretensa mente igualitário" 12 PARA APRECIAR A ARTE somos todos recém-chegados ao mundo de uma cultura que, no pas- sado, quase sempre esteve limitada a uma elite aristocrática. As artes plásticas, a literatura e a música chamadas eruditas eram cultivadas usualmente por diminuto grupo de eleitos, ficando quase todo o povo a elas aUleio. A arte, a denominada grande arte, não saía do palácio nobre, quer se chamasse Louvre ou tivesse outro nome qualquer, nem ia além da nave da igreja, e com certeza não entrava em casa plebéia. Alguém dirá: "- Hoje, tanto quanto no passado, não se encontrará um quadro de grande pintor na casa de um pobre". É verdade. Um origi- naI continua, agora, tão ou até mais caro que antes. Mas hoje, sob forma de reprodução, mesmo comojolhinha, ou seja, brinde de casa de comércio em forma de calendário, as cópias de quadros famosos podem chegar a qualquer favela. Os bens artísticos massificaram-se. Todavia, o grande problema que se coloca em face da massifi- cação dos bens artísticos é o seguinte: é fácil massificar a informação a respeito desses bens, mas é difícil massificar o conteúdo que eles encerram. É fácil informar todo o povo de que a obra de Heitor Villa- Lobos (Rio de Janeiro, 1887 - 1959) existe e é quase fácil convencer as pe soas a comprar uma gravação de suas músicas. O difícil é fazer com que todos os ouvintes dessas obras aproveitem igual e integral- mente Vi lia-Lobos. Quem tem seus ouvidos acostumados somente com a música popular mais simples não entenderá Villa-Lobos em toda a sua extensão. A tran~missão da mensagem do artista para o espectador exige competência de ambos: daquele, para criar, e deste, para entender. Os especialistas em comunicação podem dizer a mesma coisa de outra mane,ira:..o emissor e o receptor da mensagem devem valer-se do me~~'o código, para que a mensagem seja comunicada. A mera divulgação dos bens culturais, portanto, nem sempre enriquece culturalmente as pessoas. Se o simples contato físico com tais bens garantisse a apreensão plena da cultura, os maiores conhe- 13 1" ) ~r ~ II d ~I~ • I I '1 . ', I'j , ANTONIO F. COSTELLA cedores de literatura seriam sempre recrutados dentre os balconistas das livrarias. A integração de alguém ao universo de uma dada cultura exige- lhe vontade de participar dela. Para apreender bem a mensagem con- tida em uma obra de arte, o espectador deve esforçar-se por aprimorar sua capacidade de percepção. Esse aprimoramento, quando feito de modo empírico, consome um longo tempo, pois a multiplicação de tentativas, característica do empirismo, toma moroso o processo. É possível, porém, acelerar esse processo e abreviar o tempo necessá- rio, desde que se obedeça a um roteiro adequado. É esse roteiro que este livro pretende oferecer ao leitor. Não é o único viável. Outras abordagens da arte são possíveis. No entanto, nosso roteiro nos parece fecundo tanto para quem já aprecia, quanto para quem gostaria de apreciar as artes. Ele é, despretensiosamente, uma maneira prática para organizar e melhorar a percepção artística. Há alguns pretensos intelectuais que se fecham em uma torre de marfim, querendo guardar para si o privilégio do "conhecimento" da arte. Este livro condena essa atitude e, ao elitismo, procura contra- por a clareza . Aqueles que avaliam os livros por sua complexidade ou esperam grandes vôos filosóficos se decepcionarão. O autor deste li- vro não pretende impressionar ninguém com sua improvável erudi- ção, mas deseja , do fundo da alma, que suas mensagens sejam claramente entendidas por todos. Por isso, este livro se propõe explicar aquilo que, talvez por ser muito simples, os livros de estética e história da arte geralmente es- quecem de dizer. 14 1. O CONTEÚDO DA OBRA DE ARTE Há uma velha fábula que pode ajudar-nos a abordar o tema do conteúdo da obra de arte. Certa vez, três cegos de nascença resolveram caçar um gato que varava as noites miando estridulamente junto à janela. Queriam lhe dar uma sova, para afastá-lo da vizinhança, mas também preten- diam apalpá-lo, para descobrir que forma tinha o corpo do insistente cantor que os impedia de dormir. Usando de astúcia, montaram uma engenhosa armadilha e conseguiram aprisionar o felino. Não conta- vam, porém, com a agilidade da presa e, quando abriram a porta da armadilha, ~ gato escapuliu, só dando tempo a cada cego para tocá-lo de leve. O cego cuja mão percorrera o dorso do gato em fuga di sse: "- Ele é felpudo e plano, deve parecer um tapete". O outro, que agar- rara~l""apen'"as um instante o rabo do gato, corrigiu: "- Não, ele é longo e roliço; sem dúvida, é uma cobra peluda". Gemendo de dor por causa das unhadas e arranhões, o terceiro cego, em cujo braço o fugitivo cravara as garras ao dar o salto últimõ da escapada, protes- 15 -- 1'1 I ANTONIO F. COSTELLA tou: "- Felpudo coisa nenhuma! É áspero e cortante como um espi- nheiro". o conteúdo da obra de arte é como o gato da fábula: um ente composto de diversos elementos. Se observarmos apenas um ou al- guns deles, não perceberemos o conjunto ou, ao menos, não o perce- beremos de modo integral. A obra de arte, como entidade física, é inteira e única. No en- tanto, na mente do espectador podem ser selecionados diferentes ân- gulos de observação. Essa diversidade de angulação mental, quando inteiramente realizada, permitirá ao observador ver a obra de arte em toda a sua riqueza, absorvendo de modo completo O respectivo con- teúdo. A cada ângulo ele apreenderá uma fatia do conteúdo, a cada ponto de vista observará uma parte do conteúdo total. Pois bem, a completa observação da obra de arte exige que a enfoquemos sob, pelo menos, de? pontos de vista: factual expressional técnico convencional esti Iístico atualizado institucional comercial neofactual estético Em nenhum momento diremos que a obra de arte só poderá ser apreciada quando nos tornarmos especialistas nessas dez abordagens. No entanto, afirmamos e continuaremos a afirmar que a apreciare- mos melhor com o conhecimento dessas abordagens todas. 16 PARA APRECIAR A ARTE É lógico que a intensidade de interesse sobre cada aspecto do conteúdo poderá variar de acordo com a personalidade do observa- dor. Por exemplo: um pintor, ao apreciar um quadro, mesmo sem ne- gligenciar os outros aspectos, será tentado a analisá-lo mais detidamente sob o ponto de vista técnico, pois sua profissão o capaci- ta a distinguir pormenores desse tipo, que escapariam a um observa- dor leigo; já um comerciante de arte talvez se detivesse mais no ponto de vista comercial, pensando nas possibilidades de revenda do obje- to; e assim por diante. É compreensível essa diversidade de comportamentos. No en- tanto, se imaginarmos a obra como uma sala dotada de dez lustres, parece-me óbvio que a cena estará mais iluminada quando as dez fontes luminosas estiverem acesas. Ainda aproveitando oexemplo. Do mesmo modo que não ha- verá uma fronteira rigorosa entre o halo luminoso de um lustre e o do outro, assim também os dez enfoques, não obstante individuáveis, devem fundir-se. Na mente do observador traquejado eles estarão sem- pre íntima e simultaneamente acesos. 17 1 I: \ ; I I 2. O PONTO DE VISTA FACTUAL Sob o ponto de vista factual, o conteúdo da obra de arte é aqui- lo que ela representa, ou seja, aquilo que ela objetivamente exibe. Em um quadro cujo tema for uma paisagem, o conteúdo factual se com- porá das árvores que ele mostra, das construções rurais, das monta- nhas, etc. O conhecidíssimo muralA Última Ceia ou, no título italiano, II Cenacolo, de Leonardo da Vinci, tem, como conteúdo factual, treze homens em diferentes atitudes sentados atrás de uma mesa. (Insisti- mos em tomar exemplos na obra de Leonardo, pois Gioconda e A Última Ceia são, sem dúvida, as pinturas mais conhecidas no mundo ocidental.) Em se tratando de música, o conteúdo factual se compõe dos sons que ela nos faz ouvir. Num bailado, o conteúdo factua l é aquilo que se encontra em cena: os corpos dos bailarinos com seus movlme.ntos.e a música ouvida. E assim por diante. A apreensão do conteúdo factual se concretiza simples e tão- somente pela identificação, em nível meramente descritivo, dos ele- mentos que compõem a obra A operação mental exigida para essa 19 'A NTONIO F. C OSTEu..A identificação não oferece maiores dificuldades ao observador, especi- almente quando ele se defronta com obras figu~ativl\s e de seu tempo. Em contraposição, obras mais antigas podem criar 'certos embaraços quando retratam objetos contemporâneos à obra, tTllas não mais exis- tentes na época do observador, ou objetos que tenhaIlh mudado radical- mente sua aparência com o passar do tempo. Tomemos um exemplo. Os jovens que sempre viveram no centro de U1ilna cidade moder- na dificilmente terão visto um ferro de passar rouPia aquecido a car- vão. (A última vez em que tive a oportunidade de velr um deles, sendo efetivamente usado, foi em 1971, na cidade de SãQ) Luís, capital do Maranhão, quando lá estive para dar um curso.) ESSles jovens, encon- trando tal objeto retratado em um quadro, talvez nãk> o identifiquem, não o entendam. Digo talvez, porque, às vezes, a obra, mostrando uma ação, uma cena - nesta hipótese, Ulna mulherr passando roupa com o dito ferro - acaba por explicar ao observadolf o significado ou função do objeto. Quando nenhuma circunstância de dentro dta obra explica o objeto, o observador deve recorrer a informações 'externas à obra, buscando-as em fontes tanto orais, quanto escritas. lNo exemplo figu- rado acima não será necessário nenhum tratado eSQ;rito por especia- lista. O mero esclarecimento verbal prestado pelo av ô do observador ou por qualquer antiquário, homens que conviverann cada qual a seu modo com ferros a carvão, será suficiente. No entanto, nem sempre as coisas são tão simp)les. Quanto mais antiga uma obra ou quanto mais estranho ao nosso for o seu mundo cultural de origem, tanto maior será o risco de ocomer uma dificulda- de de apreensão do conteúdo factual. Se o observadolr se põe a exami- nar um antigo mural egípcio e nesse mural há a repr~sentação de uma enxada, ele não a identificará, a menos que tenha tido informação anterior pertinente. As enxadas, no Egito antigo, alpresentavam um 20 Livro dos Mortos de Anhai (detalhe) c. J J 50 a. c., têmpera sobre papiro Museu Britânico, Londres . I ANTONIO F. COSTELLA formato radicalmente diferente das enxadas nossas contemporâneas. A leitura de livros de história sobre o Egito antigo ou a preleção de um especialista no assunto resolverão o impasse e permitirão ao ob- servador a apreensão dessa parte do conteúdo factual. Em geral uma falha parcial na apreensão do contelido factual . não impede o observador de compreender o conjunto dn obra. No entanto, a apreensão de todo o conteúdo factual favorecel'á uma me- lhor compreensão da obra. É óbvio que o estudo de textos e o convívio com obras de arte promovem a aquisição paulatina de uma bagagem de conhecimentos que favorece a apreensão do conteúdo factual. Do mesmo modo que a Arte sempre ensinou História aos homens, de sua parte a História também nos auxilia a compreender a Arte. Neste assunto falta ainda um comentário. No campo das artes plásticas, há obras que não são figurativas . Exemplo: os quadros do grande pintor Manabu Mabe (Kumamoto, 1924 - São Paulo, 1997) não representam nem ferros de passar roupa, nem enxadas, nem quais- quer outros objetos identificáveis. Filiando-se ao abstracionismo, Mabe afastou-se da pintura figurativa, por ele praticada apenas no início de sua carreira. Nem por isso deixa de haver conteúdo factlll:al em suas telas. Posso descrever as cores e as formas que nelas vej o. E esses elementos - manchas de cores - constituem o conteúdo factual. Um quadro do holandês Piet Mondrian (Amersfoot, 1872 - New York, 1944), embora não contendo objetos identifidíveis, tam- bém pode ser descrito com pormenores até milimétricos, do mesmo modo que alguém pode descrever a cor e a forma dos novos azule- jos da cozinha, do tapete da sala ou da cortina do quarto. A boa e completa apreensão do conteúdo factual é I() primeiro passo para entender a obra de arte. O importante é abrir os olhos e ver. Ver com atenção. Ou ouvir, quando se tratar de música. 22 PIET MONDRIAN Composição, 1921 Museu Nacional de Arte Moderna , Paris [ I' II II I i I II 11 3. O PONTO DE VISTA EXPRESSIONAL Algumas músicas entristecem a ponto de arrancar lágrimas do ouvinte. Outras, em contrapartida, infundem ar de festa a qualquer ambiente. Desde a Antigüidade certos ritmos vêm sendo utilizados para inflamar e impulsionar tropas militares, tamanho o poder de su- gestão da música. Também a literatura consegue tocar fundo em nos- sos sentimentos. Confesso que já ri sozinho ao ler certas passagens dos romances Incidente em Antares, de Érico Veríssimo (Cruz Alta, 1905 - Porto Alegre, 1975), e Dona Flor e seus dois maridos, de Jorge Amado (Pirangi, 1912). Em contraposição, não creio que al- guém consfga manter-se de bom humor logo depois de ter lido A pele, o terrível romance de guerra do italiano Curzio Malaparte. No cam- po das artes plásticas o mesmo fenômeno se repete. Muitas vezes, em museus, observei pessoas dizendo: "- Esse quadro é formidável, mas eu não gostaria de tê-lo na parede da minha sala. É tão triste!" Em contrapartida, há obras que transformam locais sisudos em descon- traídos. 25 I' I I I 11 ANTONIO F. COSTELLA Uma das parcelas do conteúdo da obra de arte mexe, pois, com o sentimento do observador. A essa parcela damos o nome de conteú- do expressional. O conteúdo expressional é atributo da obra, e não do observa- dor. Embora jamais tivesse dúvidas a esse respeito, testei várias ve- zes, observando alunos, as reações provocadas por certas obras sobre as pessoas. Essas reações revelaram-se nitidamente concordantes, com forte tendência, às vezes, à unanimidade. A pintura do francês Paul Gauguin (Paris, 1848 - Ilhas Mar- quesas, 1903) costuma infundir sensação de paz e tranqüilidade. To- mei repetidamente como amostragem, nesse sentido, o Ta Matete, quadro pintado por ele no Taiti. O tema exótico, a composição sem sobressaltos, os gestos das figuras retratadas e, principalmente, as cores quentes transmitem ao ob ervador uma suave alegria de viver. Em contraste, sempre que mostrei aos mesmos alunos, logo em seguida ao Ta Matete, uma reprodução de algum trabalho da magis- tral série Retirantes, do nosso Cândido Portinari (Brodósqui, 1903 _ Rio de Janeiro, 1962), a reação imediata foi de lamento, queixume, tristeza, quase horror. Mesmo aqueles que não se mostravam propen- sos a considerar a pintura de Gauguin alegre, passaram a admitir que o fosse, tamanho o contrastecom o quadro de Portinari, pungente retrato expressionista das misérias sofridas pelos flagelados da seca nordestina. O tema, a composição, o traço anguloso, as cores frias, tudo ali inocula tristeza. Ressaltei que o conteúdo expressional é atributo da obra, e não do observador, porque as reações deste último não são fruto do acaso. É o artista, com sua competência, que consegue induzir no observa- dor um sentimento escolhido e habilmente desencadeado. Por exem- plo: Os Fuzilamentos do 3 de Maio, de Francisco Goya y Lucientes (Saragoza, 1746 - Bordeaux, 1828). 26 PAUL GAUGUIN Ta Marere (O Mercado), 1892 óleo sobre t e l~ Museu de Arte ela Basiléia, Basiléia CÂNDIDO P ORTINARI Retirantes, 1944 óleo sobre tela Museu de Arte de São Paulo, São p\ ulo F RANCISCO G OYA Os Fuzilamentos do 3 de Majo, 18 14 óleo sobre leIa Museu do Prado, Madri ANTONIO F. COSTELLA Nesse quadro de Goya a angústia de um fuzilamento sobressai por vários motivos, além do tema, já trágic<? em si mesmo. Vejamos. São eles: a composição, na qual se antagonizam dois principais volu- mes, de um lado os condenados e de outro os atiradores, o que já sugere um conflito; o uso conveniente de linhas e formas, repetitivas e retas no grupo dos atiradores, dando-lhes aparência de segurança, mas divergentes e oblíquas, quase convulsas, no lado dos condena- dos, retratando seu desespero, pois é sabido que linhas verticais e horizontais traduzem firmeza e paz, enquanto oblíquas lembram mo- vimento e ação; o desenho dos rostos, bem vincados nos condenados, em contraposição à anonímia compacta dos soldados, cujas feições estão ocultas; etc. Além de todos esses recursos, a competência de Goya concebeu mais um oportuno artifício: a cena é iluminada por um lampião colocado no solo. A presença desse lampião, assim situa- do, permitiu a Goya fazer dela uma cena noturna e, daí, lúgubre. Mais que tudo, porém, permitiu ao artista justificar a iluminação das figu- ras de baixo para cima. Ora, é sabido que tal direção de luz favorece a criação de uma ambiência tenebrosa. Como confirmação, basta fo- lhear qualquer revista em quadrinhos dedicada hoje em dia a temas de terror. Tantos hábeis estratagemas fizeram de Os Fuzilamentos do 3 de Maio, de Goya, um dos mais expressivos retratos da opressão e da angústia. E, como acabamos de ver, nada ali ocorreu por acaso. Não se pense, porém, que o artista, para merecer aplauso, este- ja sempre obrigado a exacerbar o sentimento dos observadores. Tudo tem sua hora e seu lugar. Ninguém, por exemplo, pensará em mandar uma banda tocar A Morte do Cisne, quando o que se pretende é fazer marchar uma tropa de soldados. Ademais, na história dos estilos, há posturas divergentes a pro- pósito desse assunto. Certas correntes artísticas se comprazem em apelar para o sentimento (romantismo, expressionismo, etc.), enquanto 30 PARA APRECIAR A ARTE outras quase o abominam, preferindo valorizar a razão (classicismo, neoclassicismo, etc.). Em qualquer das correntes, entretanto, ainda que com graus diferentes, há alguma forma de ligação entre a obra e o sentimento do espectador. A obra funciona como um gatilho que dispara uma reação em nível psíquico. Quando o disparo acerta o alvo do sentimento, podemos ter certeza de que o conteúdo expres- sional da obra foi absorvido pelo espectador. 31 4. O PONTO DE VISTA TÉCNICO o conteúdo da obra de arte não diz respeito apenas ao fato e ao sentimento. Mais do que isso, e para expressar um e outro, a obra é resultado de um labor técnico. Observada do ponto de vista técnico, a obra é fruto dos elemen- tos materiais e imateriais utilizados pelo artista para realizá-Ia. É a tela e a competência necessária para pintar, é a madeira e a habilidade do escultor, é o piano e o engenho musical, é a palavra e o estro poé- tico ... É, enfim, o material utilizado - seja tela, madeira, piano ou palavra - e o conhecimento da teoria, isto é, das regras e até segredos , que permitem o bom uso dos materiais escolhidos. Geralmente as pessoas tendem a dar importância apenas ao co- nhecimento teórico, relegando a contribuição dos materiais a segun- do piano. " -=-0 que importa é a competência do artista! Se ele for bom, fará arte com qualquer material", dizem. Não é bem assim. O artista olha com muito amor e carinho os seus materiais, pois eles lhe condicionam o trabalho. Michelangelo Buonãrroti (Caprese, 1475 - 33 ANTONIO F. COSTELLA Roma, 1564) deslocava-se até Carrara, na Toscana, e pessoalmente escalava as pedreiras, lá permanecendo 10!1gos períodos na escolha dos mármores com os quais conseguiu criar sua maravilhosa obra escultórica. É bem verdade que, ao escolhê- los, lançava mão de seus vastos conhecimentos teóricos sedimentados em longa experiência, mas nada teria ele realizado sem a colaboração daquelas dóceis pe- dras toscanas. Sob o ponto de vista técnico, portanto, a apreciação da obra de arte diz respeito, simultaneamente, à competência do artista e às qualidades do material. Enquanto os enfoques factual e expressional, sa lvo exceções, não exigem conhecimentos especiais do observador, o conteúdo téc- nico impõe-lhe uma bagagem especiali zada de informações. A apre- ensão do conteúdo técnico será bem menor sem tal bagagem. Há uma disparidade considerável entre o que vê na obra o espectador despre- venido e aqu ilo que descobre nela o especia lista. Diante de um quadro, o primeiro dirá: "- É uma pintura a óleo sobre tela" . E ainda se dará por satisfeito por ter percebido ser óleo e não aquarela a técnica empregada, e ser tela e não papel, o suporte. Analisando o mesmo quadro, o especia lista tentará saber se a tela é de linho ou de algodão, pois isso condiciona a conservação da obra, já que a dilatação do linho é muito mais compatível com a dilatação da tinta a óleo; eventualmente procurará saber se a tela foi bem pre- parada para evitar ataques à celulose; tentará detectar a maneira de trabalhar do artista, se com espátula ou com pincel, se com veladuras, etc. Notará, ainda, a composição e, nela , a distribuição dos volumes; a segurança do desenho e a perspectiva linear, se for o caso; a obediên- cia a alguma das leis de proporção, etc. Cogitará da harmonização das cores, da distribuição dos va lores, do uso das complementares, etc. etc. etc. O especialista, enfim, vê muito mais que o observador comum, isto é, absorve mais conteúdo técnico. 34 PARA APRECIAR A ARTE Os artistas em geral podem ser incluídos entre os observadores privilegiados, pois, defrontando-se em seu trabalho com dificuldades equivalentes, sabem avaliar melhor a capacidade do colega. Mas não é preciso ser artista para fruir o conteúdo técnico de uma obra. Se assim fosse, as apresentações de peças de teatro somente seriam as- sistidas por atores e as exibições musicais teriam apenas músicos na platéia. Muito pelo contrário, a arte é produzida pelos artistas para o público em geral e, até mesmo, para artistas. De mais a mais, entre 8 e 80 há muitos números. No fundo, ninguém é 8 e ninguém é 80; ninguém é totalmente incompetente e ninguém possui a competência total em matéria de arte. Todos nós estamos sempre tentando ir além do 8, para nos aproximarmos do 80. É lógico que a obtenção, sempre que possível, de novos conhe- cimentos sobre as técnicas artísticas permitirá ao observador melhor desfrute no ato de apreciação. Além das leituras específicas, a convi- vência assídua com obras de arte, seja em museus, em teatros, cinemas ou em qualquer outro lugar, irá contribuindo para o enriquecimento do saber técnico do observador, principalmente se ele ficar sempre com seus olhos bem abertos e ouvidos igualmente atentos. 35 5. O PONTO DE VISTA CONVENCIONAL Se mostro uma estampa na qual se vê um homem coroado de espinhos, arrastando ao ombro pesada cruz de madeira, o leitor, mais que depressa,identificará Jesus Cristo rumo ao Calvário. Bem dife- rente será a reação de um indígena da Amazônia que apenas acaba de ser contatado pelo branco, ao se lhe mostrar a mesma imagem. É óbvio que ele não dirá tratar-se de uma cena da Paixão de Cristo e nem entenderá aquele estranho tronco de madejra enganchado no ombro do homem retratado. A cruz, símbolo da fé religiosa dos cris- tãos, é algo totalmente alheio ao mundo original do indígena. Por isso, a cruynão será vista com seu conteúdo simbólico, mas sim como tronco ou algo parecido, tomando-se impossível ao índio interpretar adequadamente a figura de Jesus Cristo. O que transforma dois pedaços de madeira em símbolo do Cris- tiamsmo e um homem com cruz ao ombro em Jesus Cristo são conven- ções. Convenções baseadas em crenças religiosas e apoiadas, nesse caso, em determínados fatos históricos partilhados por certos grupos sociais. 37 ANTONIO F. COSTELLA Ora, a vida social em todos os tempos e em todos os lugares sempre foi fértil na criação de convenções .. Não é de estranhar, por- tanto, que_ essas convenções, cristalizadas em símbolos usualmente importantes para a sociedade, se mostrem retratadas pela arte e intro- duzam nela um conteúdo convencional. Quando nos defrontamos com obra contemporânea e de autor a quem estamos ligados pelos mesmos costumes, não é difícil apreen- der-lhe o conteúdo convencional. No entanto, ao tomarmos contato com obra de outra época ou de outra latitude, podemos nos sentir tão alheios ao seu conteúdo convencional quanto o índio, tomando a cruz por tronco. Um turista ocidental, vinculado a raízes culturais euro- péias, nem adivinha quantos significados deixa de entender, quando defrontado com um templo hindu, por exemplo. Mas nem é preciso ir tão longe. A "Índia" pode ser aqui mesmo. Muitas gerações de estudantes, a minJla inclusive, aprenderam o idioma português fazendo análise de Os Lusíadas, de Luís de Camões (Coimbra, 1524 - Lisboa, 1580). Lembro-me que vários co- legas de ginásio acabaram por detestar Camões. Detestaram-no só porque sua obra oferecesse dificuldades em matéria de análise lógi- ca? Em parte, sim. Detestaram-na, talvez bem mais, creio eu, por verem-se estranhos a ela. Era freqüente Camões fazer com que nós, adolescentes, nos sentíssemos indígenas aparvalhados diante de suas invocações à mitologia greco-romana. A terceira estrofe do primeiro canto, logo no início do poema, e possivelmente a mais famosa de Os Lusíadas, ilustrará nossa afirma- ção: 38 Cessem do sábio grego e do troiano As navegações grandes que fizeram; Cale-se de Alexandro e de Trajano PARA APRECIAR A ARTE A fama das vitórias que tiveram; Que eu canto o peito ilustre lusitano, A qucm Netuno e Marte obedeceram. Cesse tudo o que a Musa antiga canta, Que outro valor mais alto se alevanta. !<linguém fica sabendo, a menos que um livro ou pessoa lhe explique, que o "sábio grego" é Ulisses, rei de ítaca, um dos invaso- resde Tróia, e que o mencionado "troiano" é Enéias, filho deAnquises, o qual, fugindo de sua terra natal, viria a ser responsável, segundo lenda difundida por Virgílio, pela fundação de Roma. É possível, de igual modo, um adolescente desconhecer que Netuno fosse conside- rado, na Roma antiga, o deus do mar e Marte, o da guerra. E com relação a essa "Musa antiga", até os comentadores de Camões titu- beiam: o Poeta pode ter se referido a Calíope, inspiradora da epopéia e da eloqüência; ou pode ter querido lembrar, de modo genérico, o conjunto das nove musas, além de Calíope, também Clio, da história; Melpómene, da tragédia; Tália, da comédia; Erato, da poesia amoro- sa e da mímica; Euterpe, da música; Terpsícore, da dança e do canto; PoIimnia, da ode; e Urânia, da astronomia. Durante a apreciação da obra de arte, a absorção de seu conteú- do convencional pode, ]portanto, exigir o concurso de variadas fontes para a compreensão de símbolos pelos quais se identificam divinda- des mitológicas, santos católicos ou muitas outras entidades e repre- sentações de convenções socialmente adotadas. A descrição dessas figuras é ta(efa da Iconografia, preciosa auxiliar da História da Arte. Sem as informações iconográficas também é possível fruir a obra. Com elas, porém, a fruição aumenta de intensidade. PiI'rd evitar confusões, tentemos deixar tão clara, quanto possí- ve~ a fronteira entre o conteúdo factual e o conteúdo convencional da obra de arte. Em ambos há, em essêncià, um ato de identificação de 39 ANTONIO F. COSTELLA objetos. No entanto, essa identificação se faz em níveis diferentes. Tomemo novamente a cruz. O índio a vê como estranho tronco de madeira e eu, como cruz e símbolo cristão. O índio não lhe alcança nem o aspecto factual, nem o convencional, enquanto eu apreendo ambos. Podemos, agora, imaginar alguém em situação intermediária a esses extremos: um habitante de Roma no ano 21 de nossa era. Esse romano, ao ver a cruz sendo levada ao ombro por um homem, não a consideraria apenas um estranho tronco de madeira, como o faria o indígena. Esse súdito do Império Romano identificaria os paus cru- zados como um instrumento judiciário de execução de criminosos. Não foram os cristãos que inventaram a cruz. Os romanos usavam- na, como também utilizaram paus em forma de forquilha, aos quais suspendiam com cordas o condenado à morte, e igualmente se servi- ram de simples troncos, nos quais o infeliz executado era dependura- do de cabeça para baixo. O pau que sustinha o culpado, infelix arbor (árvore estéril), era consagrado aos deuses do inferno. Pois bem. O romano do ano 21, embora identificando o conteúdo factual da ima- gem, isto é, vendo nele uma cruz como objeto de seu mundo judiciá- rio penal, não poderia imaginar o conteúdo convencional hoje identificado por um cristão. Faltavam ainda alguns anos para que ocor- resse a crucificação de Cristo e, só depois dessa execução, a cruz viria a ser adotada, como seu símbolo, pelos cristãos. Os objetos, portanto, podem exteriorizar objetivamente aquilo que são e para que servem, de tal modo que cu possa fazer deles uma identificação direta, mas também podem representar algo além, assu- mindo o caráter evocativo de alguma coisa neles identificada de ma- neira indireta. Quando os objetos deixam de ser apenas aquilo que são e passam a sugerir também alguma outra coisa, eles se tornam símbolos. O conteúdo factual da obra de arte diz respeito aos objetos pelo que eles são, enquanto o conteúdo convencional interessa-se por e les como símbolos. 40 PARA APR ECIAR A ARTE Resumindo. Se, por um pa se de mágica, pudéssemos reunir em uma sala o indígena, o cidadão romano de 21 d.e. e o Papa, e a eles apresentássemos uma crucifixão de Cristo pintada por qualquer artista, teríamos os seguintes resultados: 1. o índio não apreenderia, com relação à cruz, nem o conteúdo factual, nem o convencional; 2. o cidadão romano apreenderia o conteúdo factual, mas não o con- vencionai; e 3. o Papa apreenderia ambos os conteúdos, o factual e o convencio- naI. Que devemos fazer para melhor desfrutar a arte no seu aspecto convencional? Precisamos procurar obter, sempre, mais e mais informações a respeito do mundo cultural no qual ela foi gerada. , ... , 41 6. O PONTO DE VISTA ESTILÍSTICO Voltemos, neste capítulo, a tomar como exemplo, já que é tão difundida, a figura de Cristo. Vamos fazer uma comparação entre o Cristo em mosaico da cúpula da Igreja de Dafne, do século onze; o Cristo da Transfiguração de Rafael Sanzio (Urbino, 1483 - Roma, 1520), do século dezesseis; e o Cristo e sua Cruz, do mexicano José Orozco (Zapotlán, 1883 - Cidade do México, 1949), do nosso sécu- lo. Embora os três representem a mesma figura, identificável por qual- quer pessoa minimamente informada sobre o Cristianismo, salta aos olhos a diferença entre eles. O Cristo de Dafne é uma amostra da pinturabizantina. Com capital em Bizâncio, depois chamada Constantinopla e hoje Istam- bul, o Império Romano do Oriente, ou Império Bizantino, tomou-se -"'''' um regime teocrático depois de cristianizado. Fundiram-se na pessoa do Imperador, a um só tempo, o chefe político e o representante de Deus. Não é de estranhar que, em tal ambiência.a pintura incumbida de retratar figuras sacras fosse obrigada a obedecer normas rigorosas 43 Cristo Pantocrator mosaico bizantino, fins do século XI Igreja do Mostei ro de Dafne PARA APRECIAR A ARTE determinadas pelo próprio poder público. Moldou-se, por força de tais cânones impostos, um estilo peculiar de longa tradição conserva- dora, no qual não se buscava o traço individual ou realista, mas sim a idealização, pouco importando a veracidade anatômica. O Cristo de Dafne, mero símbolo material para evocar um valor espiritual, foi desenhâdo do modo oficial e com a mesma regra utilizada para se desenharem milhares de outros Cristos. Refiro-me à regra dos três círculos concêntricos. O primeiro círculo, cujo raio mede o equiva- lente ao comprimento do nariz, circunscreve, além deste, também a testa e os olhos. O segundo círculo, tendo por raio cerca de dois nari- zes, limita a linha do cabelo e marca o local correspondente ao quei- xo. O terceiro, com medida de três narizes, forma a auréola ao redor da cabeça. Todos os Cristos bizantinos; ao longo dos séculos, pare- cem-se uns com os outros porque obedeceram a esta fórmula que conduz a figura a uma resolução estereotipada, muito distante de qual- quer exatidão objetiva, com a qual, aliás, ninguém estava preocupado no mundo bizantino. Bem diferente se mostra o Cristo da Transfiguração, de Rafael. Derradeira obra de um artista situado na fase do apogeu da pintura renascentista italiana, este Cristo exibe as características do ideal clás- sico de glorificação do homem. Ao Cristo de Rafael não incumbe apenas evoéar o mundo espi- ritual , mas também enlevar-nos, seja pela beleza da figura humana, seja pela harmonia com que ela se insere na composição geral da , obra. Diferentemente dos anônimos criadores bizantinos, Rafael va- lorizou a correção anatômica, na medida em que ela lhe serviu ao propósito de compor imagens plenas de vida e de movimento. 1'"o(seu túmo, o Cristo expressionista de Orozco, ainda que car- regando o mesmo conteúdo convencional dos outros dois, é uma ex- plosão de revolta . Curiosamente, a estrutura de seu rosto lembra os trabalhos bizantinos. Mas a postura, não. Armado de machado, em 45 RAFAEL SANZIO Transfiguraçiio, c. 1520 óleo sobre madeira Pinacoteca do Vaticano Transfiguração (deta lhe) JOSÉ OROZCO Migração Moderna do Espírito , 1932- 1934 mural Dartmouth ColIege, Hanover, New Hampshire PARA APR ECIAR A ARTE um ambiente de destruição da qual nem a cruz escapa, esse Cristo angustiado, revolucionário, duro, pretende condenar a violência, a guerra e a era da máquina. O Cristo do mexicano Orozco é um grito. Um grito pungente. Embora nas três obras de arte o tema seja o mesmo - a figura de Cristo ., elas diferem muitíssimo entre si, pelo fato de refletirem momentos históricos diferentes. O Cristianismo, originalmente pre- gado na Galiléia, difundiu-se pelo mundo e introduziu-se no âmago de variadas culturas, nelas influindo, mas também delas recebendo influências. Interpretado por artistas de universos culturais diferen- tes, o mesmo tema recebeu resoluções plásticas diversas, como no exemplo ora visto: cada artista adaptou a figura do Cristo ao seu tem- po e ao seu lugar, isto é, ao estilo de seu momento cultural. A pluralidade de culturas explica a pluralidade de estilos artísti- cos, já que cada obra de arte é sempre parte integrante do mundo cultu- ral de um povo. A obra não é peça isolada. É fração de uma cadeia de fatos à qual se integra. Ao observarmos a obra sob o ponto de vista estilístico, colocamos mentalmente em relevo a ligação que existe en- tre a obra e a corrente cultural dentro da qual foi engendrada. No entanto, a noção de conteúdo estilístico não se esgota na identificação da corrente artística à qual a obra pertence. Além desse conteúdo estilístico coletivo, fruto da ambiência social, há que se con- siderar o conteúdo estilístico individual, resultante da personalidade do artista criador. A obra sempre é relacionada a uma cultura, mas seu autor é um indivíduo. Se é bem verdade que os valores e padrões do mundo cultura l do artista criador, armazenados em sua mente, in- fluenciam a criação da obra, é inconteste que dessa mesma mente promana.a marca de uma personalidade, a qual também se transmite à obra. Esse cunho pessoal é o estilo individual do artista e também integra aqui lo que denominamos conteúdo estilístico. 49 ANTONIO F. COSTELLA Imaginemos alguém que tenha visto várias vezes gravuras de Marcelo Grassmann (São Simão, 1925). Imaginemos que essa pes- soa entre na sala de visitas de uma casa onde jamais esteve. Se na parede estiver dependurada uma gravura de Grassmann, nossa hipo- tética pessoa, mesmo sem ser um especialista em arte brasileira, pro- vavelmente identificará num simples relance a au(oria da obra, tão inconfundível é a marca da personalidade daquele artista. Sua obra reflete elementos da cultura, na qual se formou como artista, mas, além de ser um gravador de nosso tempo, Marcelo Grassmann é Mar- celo Grassmann. O exemplo que figuramos foi tirado das artes plásticas, por ser mais fácil de ser ilustrado em um livro. No entanto, o raciocínio aci- ma desenvolvido é igualmente aplicável a qualquer outro tipo de manifestação artística: música, teatro, literatura, dança, culinária, etc. A presença do componente individual no conteúdo das obras de arte, isto é, o estilo do artista, marcante em nosso tempo, não se fez notar de modo intenso em outras épocas. No Egito antigo e em todas as civilizações teocráticas, como o já mencionado Império Bizantino, a marca da personalidade do artista não só foi indesejada, como até mesmo proibida. Por isso, aliás, raramente chegaram até nós os no- mes dos artistas dessas civilizações, confundidos que foram com meros artesãos repetidores do cânone imposto. O Renascimento europeu, retomando o individualismo da Grécia antiga, que valorizava o artis- ta, começou a elevá-lo como individualidade merecedora de especial respeito, tanto que seu status social melhorou muito. Essa tendência persiste no mundo de hoje na maioria das regiões do globo terrestre, embora tenha às vezes sofrido a neutralização imposta por Estados ditatoriais. Exemplo recente, nesse sentido, pudemos ver na União Soviética durante a vigência obrigatória do chamado realismo socia- lista, estilo duramente realista imposto pelo Estado, para propagandear 50 ... ,. .... . ', MARCELO GRASSMANN Gravura da série íncubos e SLÍcu.bos ANTONIO F. COSTELLA as vitórias do proletariado, ainda que em detrimento da personalida- de do artista. Pois bem. É a personalidade do artista a grande mola propulso- ra da história da arte. É a contribuição individual do artista, muitas vezes antecipada ao gosto comum, que fornece novos veios para a arte, arrancando-a dos riscos do imobilismo e enriquecendo-a com imaginosos avanços. Em conseqüência, a liberdade de criação do ar- tista revela-se direito fundamental do ser humano e deve ser preser- vada a todo custo. Resumindo o que analisamos neste capítulo, lembramos que, para desfrutar da integralidade do conteúdo das obras artísticas, de- vemos observar-lhes o conteúdo estilístico, tanto o coletivo, quanto o individual. Mas quem nos guiará nessa observação estilística? A História da Arte. Ela nos fornecerá elementos para inserir a obra dentro da corrente artística à qual pertença e nos propiciará in- formações biográficas para avaliar a contribuição devida à personali- dade de cada artista. 52 7. OPONTO DE VISTA ATUALIZADO A obra de arte não se limita apenas àquilo que ela mostra ou simboliza, nem tampouco ao seu enquadramento estilístico. Muitas vezes, a obra de arte se "completa" com aquilo que nela vemos. A fruição artística pressupõe sempre, além da obra em si, a exis- tência de um observador. O aparato mental desse observador deve ser levado em conta. Envelhecida pelos séculos ou levada de um lugar para outro, a obra de arte deslocada no tempo e no espaço pode acabar sendo vista de maneira diversa daquela como a viam os homens de seu tempo ou lugar. Seus ~ontemporâneos ou seus conterrâneos a viam sob a mes- ma óptica do seu criador. Passado o tempo ou mudado o lugar, um novo espectador, pertencente a outro universo cultural, pode fazer ajqj1Nrn~nto diferente da obra e, até mesmo, tirar dela um desfrute antes insuspeitado. Exemplos sempre ajudam a esclarecer. Vejamos. 53 ANTONIO F. COSTELLA As pinturas executadas nas paredes das mastabas e de outros tipos de túmulos do Egito antigo, assim como os demais objetos ne- les encontrados, tinham originalmente função utilitária, serviriam ao morto em sua vida futura. No entanto, hoje, essas criações são aprecia- das em museus não mais como utensílios sacros ou apenas de interes- se histórico, mas também por seu aspecto artístico. Os artistas do Egito helenizado que costumavam pintar numa tábua o retrato do morto, para aplicá-Ia sobre a cabeça da respectiva múmia, e deixaram para os milênios posteriores exemplares da hoje raríssima pintura à encáustica, técnica de pintar com cera derretida, não pretendiam que tais obras viessem a ser objeto de degustação estética por parte de turistas do mundo inteiro. Esses retratos fúnebres foram concebidos para permanecer na escuridão dos túmulos, bem longe de olhares pro- fanos. Quando observamos tais produções egípcias, nós, homens de hoje, as vemos com seu conteúdo mentalmente alterado ou, se prefe- rirem, mentalmente atualizado, isto é, adaptado aos valores atuais. Cada geração, cada ambiente, cada momento cultural, enfim, acrescenta mentalmente à obra algo que não está na obra, mas sim na cabeça dos observadores. Quando analisamos uma criação artísti- ca sob o ponto de vista atualizado, trazemo-Ia à força, portanto, para nossa óptica cultural. Essa noção da existência de um conteúdo atualizado nos aux i- lia a compreender o porquê de o valor atribuído a uma obra de arte variar no tempo e no espaço. Para os beduínos do deserto, a grande Esfinge de Gizé não valia nada, tanto que a usaram como alvo, para o exercício de pontaria de seus artilheiros, e é por isso que hoje vemos o milenar monumento com o nariz destruído. Mas as flutuações de gosto não são privativas de nômades e primitivos. Na Europa a pintu- ra de Guido Reni (Bolonha, 1575-1642), por exemplo, era tão esti- mada por seus contemporâneos quanto a de Rafael e de Michelangelo. Passadas algumas gerações, os trabalhos de Reni caíram em descré- 54 A Esfinge, terceiro milênio a.C. monumento em pedra Gizé, Egito .. ... ANTONIO F. COSTELLA dito e muitos museus chegaram a esconder suas telas. Tal exagero veio a ser reparado com a reabilitação do pintor. Pois bem. Sua pintu- ra foi sempre a mesma. O que mudou ao longo dos séculos foi a maneira como as pessoas a viam. A maneira de ver atual (atual em cada momento) fez com que a cotação do artista flutuasse do céu ao inferno e vice-versa. Nos últimos duzentos anos e graças à liberdade de expressão vigente, tem sido freqüente o artista antecipar-se ao gosto de seu tem- po. O Impressionismo, quando surgiu, foi recebido com desagrado pela maioria das pessoas do meio artístico parisiense e viu-se vigorosamente rejeitado por críticos proeminentes de então. O pró- prio nome Impressionismo, depois assumido pelos artistas do grupo, surgiu de uma chacota feita por um crítico contra o quadro de Claude Monet (Paris, 1840 - Giverny, 1926) intitulado Impressão: Nascer do Sol. Hoje, no entanto, ninguém se interessa em saber quem foi esse crítico e, contrariando sua impressão, os trabalhos deixados pe- los impressionistas são fervorosamente apreciados. Em contraparti- da, nomes de pintores tidos como exponenciais naquela época caíram em total esquecimento, enquanto as obras de Monet e de outros impressionistas são largamente reproduzidas em milhões de cópias. Já vi até uma dançarina de cancã, de Toulouse Lautrec (Albi, 1864 - Malromé, 1901), ilustrando um pano de cozinha! Que significa isso? Significa que, estando tais obras mais aferidas ao gosto estético de seus pósteros do que ao de seus contemporâneos, passaram a valorizar-se com a atualização de seu conteúdo realizada mentalmente por gerações posteriores. Assim como o artista é fruto de seu ambiente cultural, assim também o observador reflete, ao atualizar mentalmente a obra, os padrões usuais de seu lugar e de seu tempo. Em conseqüência, a atua- lização é generalizada e coerente, homogênea enfim, para a maioria das pessoas de um determinado lugar e de um determinado tempo. 56 .... r"' .... '. LEONARDO DA VINCI Gioconda, 1503- 1505 pintura em madeira Museu do Louvre, Paris ANTONIO F. COSTELA Em outras palavras: em se tratando de observadores originados de um mesmo ambiente cultural, a atualização tende a ser feita de modo igual por todos. Às vezes essa atualização chega a tamanha uniformidade e ge- neralização que, levada ao paroxismo, mitifica certas obras. A Gioconda, também chamada Mona Lisa, de Leonardo da Vinci, não parece ser melhor do que várias outras pinturas existentes no Museu do Louvre. No entanto, sua fama é tamanha que, hoje, ela é cor- riqueiramente aceita como a representação da genialidade em ma- téria de pintura. (Justamente por revelar-se um mito universal, aliás, acabou sendo usada na capa deste livro.) Mesmo nos dias de menor visitação, quando podemos encontrar muitas salas do Louvre vazias, há sempre uma multidão de turistas voejando defronte da Mona Lisa, e todos se mostram dispostos a encantar-se com seu decantado sorri- so indefinido. Embora Leonardo tenha sido mesmo um gênio, e o foi bem mais em outros setores além da pintura, a devoção pública à Gioconda é um exagero. Mas exageros desse tipo, embora tendo es- casso valor para quem estuda com equilíbrio a história da arte, reve- lam a que ponto de generalização e uniformidade pode, às vezes, chegar a atualização do conteúdo de uma obra. 58 8. O PONTO DE VISTA INSTITUCIONAL Durante longo período de sua vida, Monteiro Lobato reuniu- se, para bater papo nos finais de tarde, com um grupo de boêmios e malandros em um bar do centro de São Paulo, mas, a fim de que não perdessem a naturalidade, justamente aquela naturalidade que o en- cantava como observador do comportamento humano, Lobato jamais lhes contou que era escritor. Ele bem sabia o que estava fazendo. A arte, muitas vezes, assusta e a presença do artistá, com freqüência, intimida. Há pessoas que entram em um museu com o mesmo ar de reve-, rência e contrição com o qual se ajoelham na igreja. Em qualquer vernissage sempre existe alguém que, de tão intimidado, parece estar pisando em ovos. Mesmo nos ambientes musicais, que já conquista- (áJp'"'geríérosas doses de descontração, vêem-se, ao menos em teatros mais solenes, algumas figuras acanhadas a ponto de pedir desculpas quando esbarram em uma coluna. O cinema, 0_ rádio, a televisão e os megaeventos trouxeram os atores ao convívio das multidões. Os fãs 59 , ,.' ~II'W" ANTONIO F. COSTELLA se sentem tão próximos de seus ídolos, que não hesitam <:m lhes en- viar cartas amigáveis. No entanto, mesmo com toda essa "intimida- de", os astros e as estrelas são sempre imaginados pelo público como criaturas situadas acima do nível dos mortais comuns. Em suma: o museu, a galeria, o texto escrito, todas as artes e os artistas infundem respeito. Esserespeito, um timor reverens, isto é, um temor reverencial, é fenômeno tipicamente cultural e, a esse título, peculiar a cada civi- lização. Se eu for aprisionado em meio à selva por uma tribo de an- tropófagos, não melhorarei meu destino culinário invocando minha condição de escritor. Entre antropófagos iletrados o escritor, prova- velmente, não merecerá um lugar acima dos mortais comuns. Nem sempre os artistas tiveram status invejável. Na maioria das civilizações do passado (não em todas) foram igualados a qual- quer outro trabalhador braçal. Já mencionamos que, por exceção, desde o Renascimento europeu para cá o artista começou a ganhar progres- iva importância, na mesma proporção em que sua obra também pas- sou a ser vista como um tipo especial de manufatura, desejável por suas virtudes estéticas, independentemente de qualquer destinação utilitária. O interesse por obras antigas, artísticas ou não, inclusive de caráter arqueológico, ganhou agigantado impulso nos últimos duzen- tos anos. Enriqueceram-se assim os museus, principalmente da Euro- pa. Paralelamente, a democratização dos costumes franqueou a maioria dos acervos ao grande público, como já ressaltamos em capítulo an- terior. O passo seguinte foi a massificação desses elementos por meio de novos veículos de comunicação. Desse modo, em grande número de países, contingentes crescentes de pessoas passaram a ter acesso a bens culturais anteriom1ente privativos de uma elite. Tornando-se mais acessível, a arte tende a ser menos "assustadora". 60 PARA APRECIAR A ARTE No entanto, entre e e público crescente e o sítio de nascimento das obras coloca-se quase sempre uma instituição, que pode ser o museu, a universidade, o veículo de comunicação, etc. Essa institui- ção intennediadora, que amplia de modo benéfico e às vezes incrível o elenco'de infonnações disponíveis, pode selecionar, escolher, rejei- tar, louvar, criticar e até, por vezes, sonegar a obras de arte a serem levadas ao público. Ela exerce uma forma de poder. Se um importante museu expõe a obra do artista X e não a do artista Y, posso ser levado a crer que o artista X é mais importante do que o artista Y. Se a mais categorizada editora do país edita o romance de determinado escritor, fico propenso a imaginar que ele não deve ser tão medíocre como diziam. Se a programação do Teatro Munici- pal inclui determinadas músicas, julgarei razoável supor que elas se- jam valiosas. Se o crítico de cinema do jornal condena certo filme, talvez nem me arrisque a assisti-lo. Essas instituições todas e outras equivalentes hierarquizam as obras de arte e lhes atribuem um valor que denominaremos institucional. A análise da obra de arte sob o ponto de vista institucional pode ser uma fonna de atualização da obra. Nesse sentido, trata-se da mesma postura vista no capítulo anterior. No entanto, há nuanças a considerar e elas talvez justifiquem termos tratado deste assunto em capítulo independente. A visão in~titucional da obra é gerada de maneira formal, en- quanto a simples atualização se de envolve por estímulos sociais es- pontâneos, nem sempre controláveis, geralmente livres e, com freqüência, até contraditório. Entre uma e outra vai a mesma diferença que scpã:l1t" o aprendizado infonnal do aprendizado escolar. Todas as pes oas aprendem a falar graças ao convívio social. É somente depois, na escola, que vão descobrir oficialmente as regras da gramática. Além disso, a visão institucional pode incidir sobre obra con- temporãnea e conterrânea nossa, que, portanto, não demanda atuali- 61 ANTONIO F. COSTELLA zação quanto a tempo ou lugar. Exemplo: um crítico de arte do jornal, eventualmente, estará se referindo amanhã a uma sinfonia-terminada nesta semana pelo compositor que é meu vizinho. Nuanças à parte, muito freqüentemente a atualização e a institucionalização da obra se aproximam, se interpenetram e, às ve- zes, se fundem. É forçoso reconhecer que boa parte da atualização mental de uma obra, a sociedade a realiza, inclusive, a partir de ele- mentos institucionais. 62 9. O PONTO DE VISTA COMERCIAL Como qualquer objeto material, a obra de arte tem um preço. O valor comercial de uma obra resulta da soma de vários fato- res, tais como a matéria-prima empregada, a mão-de-obra necessária, as características finais do produto, a raridade da peça, eventualmen- te a notoriedade do artista, etc. Também no mundo da arte vigora a lei da oferta e da procura. E sempre vigorou. Dois mil anos antes de Cristo, os ceramistas das ilhas gregas produziam vasos criativamente decorados, dos quais encon- tram-se vestígios em escavações arqueológicas muito distantes entre si à volta de t~do o Mar Mediterrâneo. A presença de tais obras mos- tra-se tão freqüente, que é lícito supor fossem muito procuradas e disputadas pelos compradores, alcançando por conseqüência bons pr~~ Qoanto o pintor grego ganhava, proporcionalmente ao preço de venda dos vasos, não o sabemos, mesmo porque a forma de pagar o trabalho dos artistas variou ao longo dos séculos, desde a escravi- dão pura e simples até as cotações mirabolantes ãlcançadas por Pablo 63 Cerâmica da ilha de Thcra, c. 1500 a.C. Museu Nacional de Atenas PARA APRECIAR A ARTE Picasso (Málaga, 1881 - Mougins, 1973) e, postumamente, por Van Gogh (Oroot Zundert, 1853 - Auvers-sur-Oise, 1890). O certo, en- tretanto, é que, desde a mais remota antigüidade até os dia de hoje, sempre foi atribuído um valor comercial à obra de arte. Como resultado da tendência instaurada durante o Renascimen- to, intensificada ao tempo da Revolução Industrial e alargada pelo avanço· das comunicações, nunca se valorizou tanto como agora a obra de arte. Seu sentido comercial é crescente. E cresce em igual escala a complexidade de sua distribuição ao mercado consumidor, exigindo o concurso de competentes especialistas. A figura tradicio- nal do marchand em sua galeria, antigamente símbolo típico do co- mércio de arte, coexiste agora com outros personagens, criados pela presença da gigantesca indústria cultural do nosso tempo. O processo teve início no século quinze, com o surgimento da tipografia . A invenção de Gutenberg (Mainz, 1398?- 1468) não só permitiu a produção de livros por meios mecânicos, como também revelou-se a primeira máquina de produção em série posta a funcio- nar pelo ser humano. As tiragens cada vez maiores, barateando o li- vro, levaram-no às mãos de pessoas que, antes, nem poderiam sonhar em possuir um, tão alto costumara ser o preço dos livros manuscritos . Inovações técnicas posteriores e condições favoráveis de mercado acabaram por culminar na massificação da literatura. Por outro lado, de um século para cá a reprodução fonográfica introduziu a música no fabuloso comércio de massa, primeiro com discos, depois com fitas, agora som CDs e no futuro ... sabe-se lá com o quê? De sua parte, o cinema já nasceu com estrutura industrial , tanto que, no ini- cio, muitos críticos relutaram em aceitá-lo como atividade artística. Depois, a música e o filme amplificaram o próprio alcance por serem rept;0 uzraos pelas ondas do rádio e da televisão. Mais recentemente, do universo incrível dos meios eletrônicos de comunicação, incluído aí o computador com sua revolução informática.) passaram a emergir 65 II : i , I1 J IIII! II IIL ANTONIO F. COSTELLA novas formas de arte que, inclusive, se globalizam agora pela Internet. Pois bem. Por detrás de todo esse cenário fascinante, que não se can- sa de nos surpreender, circula, como a seiva que percorre silenciosa- mente o caule da planta, um velho conhecido do homem: o dinheiro. Conseqüência óbvia: todas essas novidades artísticas já surgem com preço. Esse preço geralmente tem muito a ver com o enfoque institu- cional da arte. Às vezes, o valor comercial da obra artística decorre, em parte, do apreço institucionalpor ela recebido. É por isso que editoras de livros, gravadoras musicais, distribuidoras de filmes , donos de galeri- as de arte, todos, cada qual a seu modo, anseiam por obter para seus produtos elogios dos críticos de jornais e revistas ou gestos benevo- lentes por parte de outros formadores de opinião. Nestes casos, aplau- sos elevam o preço da obra. Em contrapartida, há manifestações artísticas de forte presença institucional, mas com valor comercial modesto ou até mesmo inex- pressivo. Por exemplo: o teatro, embora reconhecido institucional- mente como uma das manifestações mais fecundas do gênio humano, necessita com freqüência de subsídios governamentais ou particula- res para poder sobreviver. Ninguém nega seu status cultural, seu va- lor institucional. No plano comercial, no entanto, sua modéstia é tanta que os atores, quando querem ganhar melhor, têm de aceitar contra- tos para trabalhar no cinema ou na televisão. Outro exemplo: um bom violoncelista, que por sua fonnação metódica e paciente está apto a executar as peças mais difíceis do repertório da música erudita, tal- vez não consiga um emprego que lhe garanta salário digno. Dir-se-á que esse panorama é só de nosso País. Não é não. Tam- bém em países ditos "mais civilizados", algumas manifestações artís- ticas, com grande importância sob o ponto de vista institucional, resistem à extinção não porque tenham mais aceitação comercial do 66 -- PARA APRECIAR A ARTE que aqui, mas sim por receberem verbas governamentais mais gordas ou injeções de dólares das empresas privadas. A prudência aconselha encerrar este capítulo por aqui, uma vez que o assunto, se aprofundado, gerará sozinho vários livros bem maiores do que este, mesmo porque o tema alimenta a foguei- ra de uma polêmica entre os que condenam e os que apóiam a massificação cultural; entre os que exorcizam e os que aplaudem o dinheiro no mundo da arte; etc. O problema com relação a tais polêmicas é que os contendores assumem postura maniqueísta, sempre radical, quando, bem pelo con- trário, deveriam abster-se de tais extremismos. Se é verdade que a arte não deve ser considerada apenas do ponto de vista comercial, é igualmente verdadeiro que tal valor não pode ser desprezado como se não tivesse nenhuma importância. Há pessoas que só consideram boas as obras de arte de grande valor comercial e tomam as cotações de leilões e galerias como pala- vra de fé. Lembro-me, bem a propósito do tema, de uma cena a que assisti na casa de um colecionador amigo meu. Recebeu ele o telefo- nema de um seu colega de outra cidade e, segundo percebi, tratava-se de continuação de uma conversa anterior, na qual estavam combinan- do a permuta de algumas obras. Ao final da ligação interurbana, o negócio ficou acertado: meu amigo daria dois quadros de autor bem valorizado e receberia em troca cinco quadros de pintores menos con- siderados. O curioso da história é que nenhum dos dois colecionado- res vira as o6ras que haveria de receber. Estavam, portanto, negociando apenas com base no nome, isto é, no valor comercial dos pintores em questão, sem qualquer preocupação com a qualidade estética das pe- ç~: .. única condição imposta foi a de se encontrarem as telas em bom estado de conservação. Por outro lado, há pessoas, e não são poucas, que consideram um "defeito" a boa vendagem do artista, rejeitando a obra que se 67 ANTONIO F. COSTELLA populariza. Logo acodem a dizer que o artista "comercializou-se" e, com ranço pseudo-aristocrático, torcem o nariz. Até parece que su- põem ser indispensável, para merecer glória, que o artista nunca con- siga vender nada, passe fome irremediavelmente e seja totalmente desconhecido das multidões. Ambas as posturas são equivocadas. Atribuem valor absoluto a algo relativo. O enfoque comercial é apenas um dentre os vários enfoques sob os quais a obra pode ser observada. Um só. Nem mais importante, nem menos importante que os outros. 68 10. O PONTO DE VISTA NEOFACTUAL* Nada é infenso ao passar do tempo. O correr dos anos, dos sé- culos, dos milênios desgasta, recobre, corrói, sedimenta, transforma todas as coisas e, dentre elas, também as obras de arte. Quando alguém observa uma tela antiga em um museu, na ver- dade está vendo a obra mais o escurecimento provocado pelo verniz envelhecido. Os vernizes aplicados como proteção têm o inconve- niente de escurecer com o decorrer de longos períõdos. Muitos qua- dros que nos mostram hoje cenas mal iluminadas, bruxuleantes, ostentaram, quando novos, cores vivas e luminosas. , Por outro lado, quando se promove a restauração da obra, ten- tando fazê-Ia voltar a sua feição original, pode ocorrer o problema inverso. Em décadas remotas, houve restauradores que se notabiliza- ram-põr ·" Iavar" de modo tão radical os quadros que, junto com os * Em edição anterior utilizou-se o termo acrescido, on.~e agora se emprega neo- facrual. 69 ANTONIO F. COSTELLA vernizes, removeram também as veladuras. Para harmonizar as cores, muitos artistas lançaram mão do recurso da veladura, isto. é, aplica- ram na fase final do trabalho uma demão de tinta transparente, mas colorida, lançando assim uma tênue película uniformemente colorida por sobre todas as cores utilizadas na obra. Essa cor comum, aplicada assim em veladura (de "velar", cobrir), tem a função de harmonizar o conjunto, pois as tintas todas, ao transparecerem, mostram-se igual- mente tingidas pela cor da veladura. Pois bem, os restauradores men- cionados, ao removerem os vernizes envelhecidos, arrancavam junto a veladura, adulterando a obra original e expondo cruamente à vista cores que o autor antes amenizara. É como se mostrassem o quadro em uma fase anterior ao seu término pelo artista. Apesar de os restauradores utilizarem hoje métodos sofistica- díssimos, seu trabalho sempre implica no risco de alterar, por acrés- cimo ou por remoção, o original. Mesmo com inconvenientes, entretanto, as técnicas de restauração são indispensáveis para a per- petuação das obras. Tome-se, por exemplo, o famosíssimo mural A ÚLtima Ceia, ou Il CenacoLo, de Leonardo da Vinci, reproduzida de mil modos e maneiras com uma infinidade de materiais e, assim, encontrada em milhões de lares. A Última Ceia, como Leonardo a concebeu e realizou, praticamente não mais existe. Pintada entre 1495 e 1498 na parede do refeitório do convento dominicano de Santa Maria das Graças, em Milão, deteriorou-se rapidamente. Já quase apagada em 1540, vinte anos depois só lhe restava o desenho. Passados mais cem anos, por abrirem uma porta na parede, foi mu- tilada a figura de Cristo. No século dezoito a obra mereceu duas restaurações, aliás sofríveis, as quais não lograram impedir que o antigo refeitório fosse transformado em estrebaria . Somente no iní- cio do século dezenove o recinto teve sua dignidade restaurada e a obra-prima conseguiu melhor tratamento. Fica claro: quando alguém 70 LEONARDO DA VINCI A Última Ceia, afresco, 1495- 1498 Convento de Santa Maria das Graças, Milão ANTONIO F. COSTELLA aprecia hoje, in loco, a A Última Ceia, salvo o desenho, nada mais encontra ali de autoria de Leonardo. Essa mudança material sofrida pelo objeto artístico denomina- mos, na edição anterior deste livro, conteúdo acrescido. Preferimos, aqui e doravante, denominá-lo conteúdo neofactual. Qualquer que seja o nome usado, o que se quer ressaltar sob este ponto de vista é que a obra passa a exibir algo originalmente não previsto pelo artista. O elemento neofactual pode impregnar de tal modo a obra que o observador relutará, às vezes, em acreditar tenha ela sido no passa- do diferente do que é agora. Por exemplo. Proponho ao leitor o se- guinte: "- Imagine um templo grego". Seguramente se formará na mente de todos os leitores a imagem de uma construção guarnecida por altas colunas e encimada por um frontão de tímpano triangular. Esseedifício será imaginado em cor de pedra clara, provavelmente de mármore branco. Essa é a idéia que fazemos a propósito de tem- plos gregos, porque os que nos restaram, ainda que em ruínas, são assim. Por isso, os leitores pensarão de acordo com esse estereótipo, até mesmo aqueles que sabem que os gregos pintavam suas constru- ções e pintavam-nas com cores vivas e estridentes: vermelhos, azuis, dourados ... Fica difícil admitir que o Partenon, no século quarto antes de Cristo, quase não exibisse a cor de suas pedras, tão coberto de tinta se encontrava. Que esse exemplo não nos confunda! Não se trata aqui de atua- lização de conteúdo. Embora o estereótipo lembrado esteja na cabeça de todas as pessoas, ele se formou por força de um fato concreto, objetivo, mate- rial: os templos gregos que conhecemos mostram-se há séculos sem pintura. Trata-se, portanto, de caso típico de alteração real da obra. Há aqui um inequívoco elemento neofactual. Diferentemente, no caso do enfoque atualizado, a elaboração é toda mental: a obra, mesmo sem sofrer alterações físicas, é vista de modo diferente pelo observa- 72 Partelloll , templo grego, obra de lctinos e Ca lícrates sob direção de Fídias, 448-432 a. c. Acrópole de Atenas, Grécia - I1 ANTONIO P. C OSTELL.A dor. No âmbito da atualização surge um" nova manei ra de ~er a obra, enq uanto no do conteúdo neofactual a própria obra sofre lnmsforma- ções físicas. Ins ist indo: no exemplo do templo grego eu o imagino branco porque é mesmo assim que os templos gregos materialmente se enconlram. Os his toriadores da arte, os estetas, os literalos, os artistas em gera l não tem dado suficiente atenção à ex traordinária presença do elemento neofactual. Enquanto isso, novas maneiras de provocar o surgimento de conteúdos neofactuais vão, sorrateira ou abertamente, se impondo, em parte alicerçadas em recursos técnicos modernos. Já existe uma maneira de tornar coloridos filmes originalmente rodados em preto-e-branco. Milhões de cópias impressas reproduzindo qua- dros ou outras obms de arte sofrem desvio de coloração, seja por falha grosseira de registro, seja por sutis va riações químicas dos pig- mentos. A imagem de televisão comum, isto é, da televis.10 de algu- mas centenas de linhas, está muito longe dc qualquer fidelidade razoável. Embora O setor de gravação musica l tenha evoluído muito, subsistem ainda anomalias acústicas nas reproduções. Até mesmo os textos escritos não licam a salvo. Tanto é verdade esta últ ima alirma- ção que, dentre as várias edições de urna obra literária, oficia liza-se uma delas como edição-padrão para O futuro. Alguém diní que acabamos de fazer a condenação dos meios de comunicação modernos, po is todos os exemplos anteriore..'\ colocaram esses engenhos no banco dos TI!US, como responsáveis por reprodução infiel das obnls. Não é verdadeira, nem justa, a conclusão. Os meios de comunicação pernlitiram um fluxo de informação volumoso e rápido, com enomlCS benefícios para o ser humano. Prefiro que os Girassóis de Van Gogh alegrem milhões de residências, ainda que suas reprodu- ções coloridas não sejam cópias rigorosamente perfeitas do original. Aplaudo entus iasticamente o balé, mcsmo que na transmissão por tele- visão a qualidade de imagem c S0111 deixe a desejar. 14 PAKA A I' IUlClAK A ARTE O contcüdo ncofactual nem sempre é um prejuízo. Ele osrcnla duas faces: é vida c é morte, ao mesmo tempo. Quando lima obra de arte s implesmente se deteriora, há uma perda, há morte. Mas, ,\5 ve- zes, uma morte parcial pode ser o preço pago por uma nova forma de vida. ,?m certos casos, pode mesmo ser um preço baixo se compamdo âs inúmeras vantagens resultantes. Veja-se o exemplo acima lembra- do: uma imensidão de pessoas paSSéI a ter a possibilidade de assistir, em casa, a um espetáculo de ba lé, ainda que a tela de vídeo lhes dê uma imagem menos definida do que a usufruída pelo público presen- tc ao teatro. Esse caráter contraditório - a um só tempo, vida e morte - do conteúdo neofactual manifesta-se de modo patente no traba lho do tradutor de obras literárias. O tradutor,.1O exercer seu ofício, não raro recria a obra no novo idioma, adaptando-a ao vestuário v'ocabular, à s intaxe e ao espírito da língua adotiva. O dilema do tradutor é angus- tiante: se mantiver a Iitcra lidade, podeni deformar a id6ia do autor; se se afastar da tradução litera l, podeni deixar fugir algum ritmo deseja- do pelo autor. A tradução, a um só tempo, faz nascer e faz morrer alguma coisn. Caso curiosissimo de elemento neofactual encontra-se no qua- dro Mor,/"ke Terrace, de William Thmer (Londrçs, 1775- 185 1). Ar- tista interessado nos cfeitos luminosos, Thrner realizou aqui a proeza de pintar uma paisagcm totalmente a contra luz. O sol, pressentido de frente, refl6te-se no ri o Tâmisa e "come" o parapeito de pedra. Sobre esse parapeito, e l11 si lhucta, caminha um cão. Pois bem. Esse cachor- ro não existia originalmente no quadro. No dia do vemissage, CIl- ~oJ"mer se ausentara para almoçar, um pintor ri val, talvcz para dê'illinciar a falIa de um ponto foeul ma is forte na obra, recortou um cão e m papel e colou-o sobre a te la . Voltando, Turner não se abespinholl COI11 o acréscimo. Reconheceu que ele era necessário. WILLlAM TURNER Mortlake Terrace, 1826-1827 óleo sobre tela Galeria Nacional de Arte, Washington PARA APRECIAR AARTE Apenas removeu o cão alguns milímetros para o lado, tingiu-o de preto e lá o deixou definitivamente. Convenhamos, esse elemento neofactual foi tão inusitado quanto oportuno. 77 11. O PONTO DE VISTA ESTÉTICO Assim como o alimento é o objeto próprio para nutrir o ser humano; a roupa, para protegê-lo do frio; a casa, para defendê-lo das agressões do clima e dos bandidos; assim também a obra de arte é o objeto apropriado para transmitir-lhe o prazer estético. Que vem a ser esse prazer estético? Mais fácil de sentir do que explicar, o prazer estético é alarga- mento da mente e conforto para o espírito. O prazer estético é uma forma de bem-aventurança. Pode parecer estranha essa tentativa de explicação, mas há lugares, principalmente no Oriente, nos quais a fruição da' arte é comparada à postura mística de busca do Absoluto e tem, por meta final, levar quase a um estado de êxtase. Lá ou aqui, a verdadeira obra de arte faz com que o observador tenha a sensação de erescer por dentro e de partilhar uma outra dimensão da realidade. ~", .... ~" Recordando o passado de suas vidas, os leitores talvez se lem- brem de situações nas quais sentiram um bem-estar profundo, mar- cante, intenso, depois de visitar uma exposição de artes plásticas ou 79 ANTONIO F. COSTELLA ler um livro, ou ainda ouvindo uma música ou assistindo a um filme ou peça de teatro. Usufruíram, então, o prazer estético, algo. muitas vezes parecido com uma estimulante alegria de viver. Com esse último comentário, não estou aludindo à capacidade, que tem a obra, de despertar sentimentos. Desse tema nos ocupamos no capítulo relativo ao ponto de vista expressional. É mais que isso. A obra de arte toca também em algum ponto de nosso espírito que está além e acima dos sentimentos comuns de alegria, tristeza, ódio, amor, ira, etc. Tanto isso é verdade, que a mesma pessoa que chora durante a projeção de um filme triste, poderá sair do cinema com a paradoxal sensação de ter sido reconfortada, aliviada, feliz, caso o filme seja de forte conteúdo artístico. Essa aptidão demonstrada pela obra de arte, no sentido de enlevar, extasiar, enobrecer o espírito é o fruto de seu valor estético. Como se apreende o conteúdo estético? A apreensão do conteúdo estético é uma forma de conhecimen- to que se faz através dos sentidos, mas opera antes de atingir o nível da razão. No dizer muito apropriado de Harold Osborne, "a experiên- cia estética é um modo de cognição através da apreensão
Compartilhar