Buscar

Para Apreciar A Arte - Costella

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes
Você viu 3, do total de 44 páginas

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes
Você viu 6, do total de 44 páginas

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes
Você viu 9, do total de 44 páginas

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Prévia do material em texto

EO I TO AA 
= senac 
00 
SAO PAUlO 
Editora Mantiqueira 
ANTONIO F. COSTELLA 
PARA APRECIAR A ARTE 
ROTEIRO DIDÁTICO 
Edição revista e ampliad~ 
ANTONIO F. COSTELLA tem vinte livros . 
publicados e duas vidas. 
Uma das vidas é a de escritor para pú-
blico geral, autor dos livros Patas na Euro-
pa, Patas 2 e Palas 3, que já estiveram entre 
os campeões de vendas; autor também dos 
textos da coleção "Biografias de Animais 
Ilustres" (Vida de cachorro, Cacareco, Dick 
e Bu'céfalo) e, mais recentemente, de obras 
na área da literatun infantil (Um nariz muito 
especial, A gata Mícholas e a praça, entre 
outros). 
Mas Antonio F. Costella teve também, 
durante três décadas, outra vida. Como pro-
fessor universitário na Escola de Comunica-
ção e Artes da USP, na Faculdade de Comu-
nicação Cásper Líbero e em outras 
instituições, viu-se e tinlUlado a escrever li-
vros técnicos para públicos específicos: Di-
reito da comunicação, O controle da infor-
mação no Brasil, Comunicação: do grito ao 
satélite, Introdução à gravura e história da 
xilografia, Xilogravura: manualprácico, etc. 
PARA APRECIARA ARTE 
ROTEIRO DIDÁTICO 
.:: 
Dados Internacionai s de Catalogação na Publicação (C IP) 
(Câmara Brasileira do Livro, SP, Bras il) 
Costella, Antônio F. , 1943-
Para apreciar a a rte : roteiro did;iti co / Antonio F. Costella . _ 
Ed. rev. c ampl. - São Paulo: Editora SENAC São Paulo; Cam-
pos do Jordão, SP : Editora Mantiqueira, 1997. 
ISBN 85-7359-029-7 (Editora SENAC São Paulo) 
ISBN 85-85681-12-8 (Ed itora Mantiqueira) 
I. Arte 2. Arte - Estudo e ens ino I. Titulo. 
97-50 14 CDD-707 
Índices para catál ogo sistemático: 
I. Arte: Estudo e ens ino 707 
EDITORA 
c== 
senac 
00 
ANTONIO F. COSTELLA 
PARA APRECIAR A ARTE 
ROTEIRO DIDÁTICO 
Edição revista e ampliada 
Editora Mantiqueira 
Adlllinistraçt70 Regional do SENAC no Estado de Seio Paulo 
Presidente do Conselho Regional: Abram Szajman 
Diretor do Departallle/llo Regional: Luiz Francisco de Assis Saigado 
Realizaçt7o: Centro de Comunicação c Artcs 
Editora SENAC St70 Palllo 
Gerência: A. P. Quartim dc Moraes 
Coordenaçt7o editorial: Marizilda Lourcnço 
Revist70 de provas: Izilda dc O. Pereira 
Jussara Rodrigucs Gomcs 
Reproduçt7o de fotos: Thales Trigo 
Foto da capa: d'aprcs Gioconda, Lconardo da Vinci 
Projeto gráfico e capa: Marina M. Watanabe 
Sidncy lUo 
Editoraçt7o eletrônica: Lato Scnso - Editora de Tcxtos 
Fotolito: Quadri-Color 
IlIIpresst70 e acabamento: Pancrom 
Direitos de publicação 
© 1997 Editora SENAC São Paulo 
Rua Dr. Vila Nova, 228 - 4" andar 
CEP O I 222-903 - São Paulo - SP 
Caixa Postal 3595 - CEP 01060-970 
Tel. (O I I) 236-2135 Fax (O 11) 256-578 I 
© 1997 Editora Mantiqueira de Ciência e Arte Lida. 
Av. Eduardo M. da Cruz, 295 - Caixa Poslal 42 
CEP 12460-000 - Campos do Jordão - SP 
Tel. (OI I) 287-0734 Fax (011) 251 -0234 
© Antonio F. Coslella, 1997 
SUMÁRIO 
Introdução ........................................... 9 
1. O Conteúdo da Obra de Arte . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. 15 
2. O Ponto de Vista Factual ............................. 19 
3. O Ponto de Vista Expressional ......................... 25 
4. O Ponto de Vista Técnico ............................. 33 
5. O Ponto de Vista Convencional ........... ' ............. 37 
6. O Ponto de Vista Estilístico ........................... 43 
7. O Ponto de Vista Atualizado ........................... 53 
8. O Ponto de Vista Institucional ......................... 59 
9. O Ponto de Vista Comercial ........................... 63 
10. O Ponto de Vista Neofactual .......................... 69 
11,..e Ponto-de Vista Estético ............................. 79 
.~ ' I" 
-
I 
, I 
I 
INTRODUÇÃO 
Não há nenhuma novidade em afirmar que, no século vinte, os 
bens tradicionais da cultura foram incorporados à sociedade de con-
sumo. Nunca se editaram tantas reproduções fielmente coloridas de 
obras do campo das artes plásticas, nem jamais, e em tamanhas tira-
gens, tantos discos, fitas e CDs de música. Exposições de pintura ou 
escultura de grandes artistas peregrinam pelo mundo e, alardeadas 
até com espalhafato pela mídia, tornam-se eventos de visitação 
massiva, enquanto cantores líricos, antes engaiolados em teatros, ar-
rastam multidões para estádios de futebol. A arte dita superior está , 
transbordando, enfim, dos seus nichos de origem e ganha as ruas das 
cidades, as ondas eletromagnéticas e as infovias eletrônicas, pois as 
coleções dos museus invadiram até a Internet. 
,,:-;-IJêsdená um bom tempo os artistas, suas vidas e suas criações 
vêm sendo vendidos, em forma de fascículos nas bancas de jornais, a 
preços acessíveis. Preços baixíssimos, se comparados ao de uma via-
gem cultural e, muitas vezes, gastronômica à Europa. A Gioconda de 
9 
ANTONIO F. COSTELLA 
Leonardo da Vinci (Vinci, 1452 - Amboise, 1519) no jornaleiro de 
qualquer esquina brasileira está muitos milhares de quilômetros mais 
próxima do que sua matriz guardada no Museu do Louvre. 
É bem verdade que muitíssimas pessoas compraram coleções 
de arte, em discos ou em livros, por sugestão da habilidosa e convin-
cente publicidade e, depois de um rápido manuseio, relegaram-nas ao 
inglório e frustrante destino de decorar a sala e de supostamente ates-
tar o "bom gosto" e a "cultura" do enfatuado possuidor. O mesmo 
deve estar acontecendo com muitos CD-ROMs e outros tipos de re-
produções comercializados ou "internetados" atualmente. No entan-
to, há um saldo positivo nessa onda de consumismo artístico. 
Embora uma viagem seja uma viagem, um livro seja um livro e 
uma imagem virtual seja uma imagem virtual; embora a Mona Lisa 
do Louvre tenha saído das mãos de Leonardo, enquanto a do jornalei-
ro e a do CD-ROM não passam de cópias daquela, fotográfica, uma, 
e eletrônica, a outra; embora a ambiência da primeira esquina não 
seja a mesma de uma rua de Paris, não podemos esquecer que até 
pouco tempo atrás não havia como ver as grandes obras artísticas 
sem peregrinar aos locais de sua produção ou guarda, porque as re-
produções não conseguiam retratá-las, nem de longe, com a fidelida-
de hoje obtida. 
O alemãoAlbrecht Dürer (Nuremberg, 1471 - 1528), por exem-
plo, utilizou a gravura para divulgar sua pintura no século dezesseis. 
No entanto, seus trabalhos como gravador foram tão diferentes de 
sua obra pictórica, mesmo quando pretenderam ser meras cópias, que 
acabaram por abrir novo capítulo, e dos mais importantes na história 
da gravura. A reprodução era talentosíssima, mas não veraz. Ela não 
reproduzia, ao contrário criava algo novo com linguagem nova. 
Mais ainda. Boa parte das obras de arte, ao longo dos séculos e 
dos milênios, não esteve ao alcance das vistas e dos ouvidos dos ho-
mens comuns. Talvez com a única e parcial exceção dos templos, 
la 
AWR ECHT D ORER 
Apocalipse 
x ilogravura 
ANTONIO F. COSTELLA, 
quase nunca se encontraram, ao longo de séculos e milênios l cole-
ções de livre visitação. Mus~us, entendidos como locais abertos ao. 
público em geral, são um costume que se espalhou muito recente-
mente na história do homem. O tão famoso e acima referido Louvre" 
por exemplo, somente foi inaugurado como reflexo da Revoluçãol 
Francesa, em 1793, há apenas dois séculos! Antes e até então, ele eral 
o palácio do rei e, como tal, acessível apenas à nobreza. E os outros; 
grandes museus também começaram a abrir suas portas só no séculol 
dezoito. Exemplos: Museu Capitolino, Roma, em 1734, e Museu Bri-
tânico, Londres, em 1759. 
Pois bem. Se o genial e sacrossanto Dürer admitiu a réplical 
para divulgar-se, por que não admiti-Ia hoje? Se nos últimos tempos; 
o homem comum pôde colocar seus pés em recintos ricos em arte" 
que lhe foi proibida durante milênios, por que não estender o benefí-
cio aos bípedes que não têm como chegar fisicamente a esses recin-
tos? Aplaudo, portanto, quem incluiu as reproduções artísticas na linhruda divulgação em massa. 
Até bem poucos anos atrás, havia muitas pessoas que torciam O) 
nariz para a massificação da informação artística. Embora algumas, 
ainda insistam em sobreviver, foram fragorosamente derrotadas pelai 
evolução histórica. Já não se vê demérito em que se fotografem obras, 
de museus para que suas cópias coloridas e fiéis possam circular pelo) 
mundo, levando a Maomés da arte montanhas de cultura. Quanta coi -
sa um estudante de arte pode aprender hoje, assim, de maneira eco-
nômica e rápida! Além disso, o contato com bens culturais, ainda que 
só por instigação da publicidade, pode redundar em sincero interesse 
intelectual, graças à curiosidade despertada pela presença de tais bens .. 
Em outras palavras, mesmo dentre aqueles que compraram coleções; 
para enfeitar a sala de visitas, vários se contagiaram com o vírus cul-
tural e começaram seus primeiros passos em novo e insuspeitado ca-
minho. Afinal, no século vinte, tão ansiosa e pretensa mente igualitário" 
12 
PARA APRECIAR A ARTE 
somos todos recém-chegados ao mundo de uma cultura que, no pas-
sado, quase sempre esteve limitada a uma elite aristocrática. As artes 
plásticas, a literatura e a música chamadas eruditas eram cultivadas 
usualmente por diminuto grupo de eleitos, ficando quase todo o povo 
a elas aUleio. A arte, a denominada grande arte, não saía do palácio 
nobre, quer se chamasse Louvre ou tivesse outro nome qualquer, nem 
ia além da nave da igreja, e com certeza não entrava em casa plebéia. 
Alguém dirá: "- Hoje, tanto quanto no passado, não se encontrará um 
quadro de grande pintor na casa de um pobre". É verdade. Um origi-
naI continua, agora, tão ou até mais caro que antes. Mas hoje, sob 
forma de reprodução, mesmo comojolhinha, ou seja, brinde de casa 
de comércio em forma de calendário, as cópias de quadros famosos 
podem chegar a qualquer favela. Os bens artísticos massificaram-se. 
Todavia, o grande problema que se coloca em face da massifi-
cação dos bens artísticos é o seguinte: é fácil massificar a informação 
a respeito desses bens, mas é difícil massificar o conteúdo que eles 
encerram. É fácil informar todo o povo de que a obra de Heitor Villa-
Lobos (Rio de Janeiro, 1887 - 1959) existe e é quase fácil convencer 
as pe soas a comprar uma gravação de suas músicas. O difícil é fazer 
com que todos os ouvintes dessas obras aproveitem igual e integral-
mente Vi lia-Lobos. Quem tem seus ouvidos acostumados somente 
com a música popular mais simples não entenderá Villa-Lobos em 
toda a sua extensão. 
A tran~missão da mensagem do artista para o espectador exige 
competência de ambos: daquele, para criar, e deste, para entender. Os 
especialistas em comunicação podem dizer a mesma coisa de outra 
mane,ira:..o emissor e o receptor da mensagem devem valer-se do 
me~~'o código, para que a mensagem seja comunicada. 
A mera divulgação dos bens culturais, portanto, nem sempre 
enriquece culturalmente as pessoas. Se o simples contato físico com 
tais bens garantisse a apreensão plena da cultura, os maiores conhe-
13 
1" ) 
~r ~ II d ~I~ • I I '1 . ', I'j , 
ANTONIO F. COSTELLA 
cedores de literatura seriam sempre recrutados dentre os balconistas 
das livrarias. 
A integração de alguém ao universo de uma dada cultura exige-
lhe vontade de participar dela. Para apreender bem a mensagem con-
tida em uma obra de arte, o espectador deve esforçar-se por aprimorar 
sua capacidade de percepção. Esse aprimoramento, quando feito de 
modo empírico, consome um longo tempo, pois a multiplicação de 
tentativas, característica do empirismo, toma moroso o processo. É 
possível, porém, acelerar esse processo e abreviar o tempo necessá-
rio, desde que se obedeça a um roteiro adequado. 
É esse roteiro que este livro pretende oferecer ao leitor. Não é o 
único viável. Outras abordagens da arte são possíveis. No entanto, 
nosso roteiro nos parece fecundo tanto para quem já aprecia, quanto 
para quem gostaria de apreciar as artes. Ele é, despretensiosamente, 
uma maneira prática para organizar e melhorar a percepção artística. 
Há alguns pretensos intelectuais que se fecham em uma torre 
de marfim, querendo guardar para si o privilégio do "conhecimento" 
da arte. Este livro condena essa atitude e, ao elitismo, procura contra-
por a clareza . Aqueles que avaliam os livros por sua complexidade ou 
esperam grandes vôos filosóficos se decepcionarão. O autor deste li-
vro não pretende impressionar ninguém com sua improvável erudi-
ção, mas deseja , do fundo da alma, que suas mensagens sejam 
claramente entendidas por todos. 
Por isso, este livro se propõe explicar aquilo que, talvez por ser 
muito simples, os livros de estética e história da arte geralmente es-
quecem de dizer. 
14 
1. O CONTEÚDO DA OBRA DE ARTE 
Há uma velha fábula que pode ajudar-nos a abordar o tema do 
conteúdo da obra de arte. 
Certa vez, três cegos de nascença resolveram caçar um gato 
que varava as noites miando estridulamente junto à janela. Queriam 
lhe dar uma sova, para afastá-lo da vizinhança, mas também preten-
diam apalpá-lo, para descobrir que forma tinha o corpo do insistente 
cantor que os impedia de dormir. Usando de astúcia, montaram uma 
engenhosa armadilha e conseguiram aprisionar o felino. Não conta-
vam, porém, com a agilidade da presa e, quando abriram a porta da 
armadilha, ~ gato escapuliu, só dando tempo a cada cego para tocá-lo 
de leve. O cego cuja mão percorrera o dorso do gato em fuga di sse: 
"- Ele é felpudo e plano, deve parecer um tapete". O outro, que agar-
rara~l""apen'"as um instante o rabo do gato, corrigiu: "- Não, ele é 
longo e roliço; sem dúvida, é uma cobra peluda". Gemendo de dor 
por causa das unhadas e arranhões, o terceiro cego, em cujo braço o 
fugitivo cravara as garras ao dar o salto últimõ da escapada, protes-
15 
--
1'1 
I 
ANTONIO F. COSTELLA 
tou: "- Felpudo coisa nenhuma! É áspero e cortante como um espi-
nheiro". 
o conteúdo da obra de arte é como o gato da fábula: um ente 
composto de diversos elementos. Se observarmos apenas um ou al-
guns deles, não perceberemos o conjunto ou, ao menos, não o perce-
beremos de modo integral. 
A obra de arte, como entidade física, é inteira e única. No en-
tanto, na mente do espectador podem ser selecionados diferentes ân-
gulos de observação. Essa diversidade de angulação mental, quando 
inteiramente realizada, permitirá ao observador ver a obra de arte em 
toda a sua riqueza, absorvendo de modo completo O respectivo con-
teúdo. A cada ângulo ele apreenderá uma fatia do conteúdo, a cada 
ponto de vista observará uma parte do conteúdo total. 
Pois bem, a completa observação da obra de arte exige que a 
enfoquemos sob, pelo menos, de? pontos de vista: 
factual 
expressional 
técnico 
convencional 
esti Iístico 
atualizado 
institucional 
comercial 
neofactual 
estético 
Em nenhum momento diremos que a obra de arte só poderá ser 
apreciada quando nos tornarmos especialistas nessas dez abordagens. 
No entanto, afirmamos e continuaremos a afirmar que a apreciare-
mos melhor com o conhecimento dessas abordagens todas. 
16 
PARA APRECIAR A ARTE 
É lógico que a intensidade de interesse sobre cada aspecto do 
conteúdo poderá variar de acordo com a personalidade do observa-
dor. Por exemplo: um pintor, ao apreciar um quadro, mesmo sem ne-
gligenciar os outros aspectos, será tentado a analisá-lo mais 
detidamente sob o ponto de vista técnico, pois sua profissão o capaci-
ta a distinguir pormenores desse tipo, que escapariam a um observa-
dor leigo; já um comerciante de arte talvez se detivesse mais no ponto 
de vista comercial, pensando nas possibilidades de revenda do obje-
to; e assim por diante. 
É compreensível essa diversidade de comportamentos. No en-
tanto, se imaginarmos a obra como uma sala dotada de dez lustres, 
parece-me óbvio que a cena estará mais iluminada quando as dez 
fontes luminosas estiverem acesas. 
Ainda aproveitando oexemplo. Do mesmo modo que não ha-
verá uma fronteira rigorosa entre o halo luminoso de um lustre e o do 
outro, assim também os dez enfoques, não obstante individuáveis, 
devem fundir-se. Na mente do observador traquejado eles estarão sem-
pre íntima e simultaneamente acesos. 
17 
1 
I: 
\ ; I 
I 
2. O PONTO DE VISTA FACTUAL 
Sob o ponto de vista factual, o conteúdo da obra de arte é aqui-
lo que ela representa, ou seja, aquilo que ela objetivamente exibe. Em 
um quadro cujo tema for uma paisagem, o conteúdo factual se com-
porá das árvores que ele mostra, das construções rurais, das monta-
nhas, etc. O conhecidíssimo muralA Última Ceia ou, no título italiano, 
II Cenacolo, de Leonardo da Vinci, tem, como conteúdo factual, treze 
homens em diferentes atitudes sentados atrás de uma mesa. (Insisti-
mos em tomar exemplos na obra de Leonardo, pois Gioconda e A 
Última Ceia são, sem dúvida, as pinturas mais conhecidas no mundo 
ocidental.) Em se tratando de música, o conteúdo factual se compõe 
dos sons que ela nos faz ouvir. Num bailado, o conteúdo factua l é 
aquilo que se encontra em cena: os corpos dos bailarinos com seus 
movlme.ntos.e a música ouvida. E assim por diante. 
A apreensão do conteúdo factual se concretiza simples e tão-
somente pela identificação, em nível meramente descritivo, dos ele-
mentos que compõem a obra A operação mental exigida para essa 
19 
'A NTONIO F. C OSTEu..A 
identificação não oferece maiores dificuldades ao observador, especi-
almente quando ele se defronta com obras figu~ativl\s e de seu tempo. 
Em contraposição, obras mais antigas podem criar 'certos embaraços 
quando retratam objetos contemporâneos à obra, tTllas não mais exis-
tentes na época do observador, ou objetos que tenhaIlh mudado radical-
mente sua aparência com o passar do tempo. 
Tomemos um exemplo. 
Os jovens que sempre viveram no centro de U1ilna cidade moder-
na dificilmente terão visto um ferro de passar rouPia aquecido a car-
vão. (A última vez em que tive a oportunidade de velr um deles, sendo 
efetivamente usado, foi em 1971, na cidade de SãQ) Luís, capital do 
Maranhão, quando lá estive para dar um curso.) ESSles jovens, encon-
trando tal objeto retratado em um quadro, talvez nãk> o identifiquem, 
não o entendam. Digo talvez, porque, às vezes, a obra, mostrando 
uma ação, uma cena - nesta hipótese, Ulna mulherr passando roupa 
com o dito ferro - acaba por explicar ao observadolf o significado ou 
função do objeto. 
Quando nenhuma circunstância de dentro dta obra explica o 
objeto, o observador deve recorrer a informações 'externas à obra, 
buscando-as em fontes tanto orais, quanto escritas. lNo exemplo figu-
rado acima não será necessário nenhum tratado eSQ;rito por especia-
lista. O mero esclarecimento verbal prestado pelo av ô do observador 
ou por qualquer antiquário, homens que conviverann cada qual a seu 
modo com ferros a carvão, será suficiente. 
No entanto, nem sempre as coisas são tão simp)les. Quanto mais 
antiga uma obra ou quanto mais estranho ao nosso for o seu mundo 
cultural de origem, tanto maior será o risco de ocomer uma dificulda-
de de apreensão do conteúdo factual. Se o observadolr se põe a exami-
nar um antigo mural egípcio e nesse mural há a repr~sentação de uma 
enxada, ele não a identificará, a menos que tenha tido informação 
anterior pertinente. As enxadas, no Egito antigo, alpresentavam um 
20 
Livro dos Mortos de Anhai (detalhe) 
c. J J 50 a. c., têmpera sobre papiro 
Museu Britânico, Londres 
. I 
ANTONIO F. COSTELLA 
formato radicalmente diferente das enxadas nossas contemporâneas. 
A leitura de livros de história sobre o Egito antigo ou a preleção de 
um especialista no assunto resolverão o impasse e permitirão ao ob-
servador a apreensão dessa parte do conteúdo factual. 
Em geral uma falha parcial na apreensão do contelido factual . 
não impede o observador de compreender o conjunto dn obra. No 
entanto, a apreensão de todo o conteúdo factual favorecel'á uma me-
lhor compreensão da obra. 
É óbvio que o estudo de textos e o convívio com obras de arte 
promovem a aquisição paulatina de uma bagagem de conhecimentos 
que favorece a apreensão do conteúdo factual. Do mesmo modo que 
a Arte sempre ensinou História aos homens, de sua parte a História 
também nos auxilia a compreender a Arte. 
Neste assunto falta ainda um comentário. No campo das artes 
plásticas, há obras que não são figurativas . Exemplo: os quadros do 
grande pintor Manabu Mabe (Kumamoto, 1924 - São Paulo, 1997) 
não representam nem ferros de passar roupa, nem enxadas, nem quais-
quer outros objetos identificáveis. Filiando-se ao abstracionismo, Mabe 
afastou-se da pintura figurativa, por ele praticada apenas no início de 
sua carreira. Nem por isso deixa de haver conteúdo factlll:al em suas 
telas. Posso descrever as cores e as formas que nelas vej o. E esses 
elementos - manchas de cores - constituem o conteúdo factual. 
Um quadro do holandês Piet Mondrian (Amersfoot, 1872 -
New York, 1944), embora não contendo objetos identifidíveis, tam-
bém pode ser descrito com pormenores até milimétricos, do mesmo 
modo que alguém pode descrever a cor e a forma dos novos azule-
jos da cozinha, do tapete da sala ou da cortina do quarto. 
A boa e completa apreensão do conteúdo factual é I() primeiro 
passo para entender a obra de arte. O importante é abrir os olhos e 
ver. Ver com atenção. Ou ouvir, quando se tratar de música. 
22 
PIET MONDRIAN 
Composição, 1921 
Museu Nacional de Arte Moderna , Paris 
[
I' II 
II I i I 
II 
11 3. O PONTO DE VISTA EXPRESSIONAL 
Algumas músicas entristecem a ponto de arrancar lágrimas do 
ouvinte. Outras, em contrapartida, infundem ar de festa a qualquer 
ambiente. Desde a Antigüidade certos ritmos vêm sendo utilizados 
para inflamar e impulsionar tropas militares, tamanho o poder de su-
gestão da música. Também a literatura consegue tocar fundo em nos-
sos sentimentos. Confesso que já ri sozinho ao ler certas passagens 
dos romances Incidente em Antares, de Érico Veríssimo (Cruz Alta, 
1905 - Porto Alegre, 1975), e Dona Flor e seus dois maridos, de 
Jorge Amado (Pirangi, 1912). Em contraposição, não creio que al-
guém consfga manter-se de bom humor logo depois de ter lido A pele, 
o terrível romance de guerra do italiano Curzio Malaparte. No cam-
po das artes plásticas o mesmo fenômeno se repete. Muitas vezes, em 
museus, observei pessoas dizendo: "- Esse quadro é formidável, mas 
eu não gostaria de tê-lo na parede da minha sala. É tão triste!" Em 
contrapartida, há obras que transformam locais sisudos em descon-
traídos. 
25 
I' 
I I 
I 11 
ANTONIO F. COSTELLA 
Uma das parcelas do conteúdo da obra de arte mexe, pois, com 
o sentimento do observador. A essa parcela damos o nome de conteú-
do expressional. 
O conteúdo expressional é atributo da obra, e não do observa-
dor. 
Embora jamais tivesse dúvidas a esse respeito, testei várias ve-
zes, observando alunos, as reações provocadas por certas obras sobre 
as pessoas. Essas reações revelaram-se nitidamente concordantes, com 
forte tendência, às vezes, à unanimidade. 
A pintura do francês Paul Gauguin (Paris, 1848 - Ilhas Mar-
quesas, 1903) costuma infundir sensação de paz e tranqüilidade. To-
mei repetidamente como amostragem, nesse sentido, o Ta Matete, 
quadro pintado por ele no Taiti. O tema exótico, a composição sem 
sobressaltos, os gestos das figuras retratadas e, principalmente, as cores 
quentes transmitem ao ob ervador uma suave alegria de viver. 
Em contraste, sempre que mostrei aos mesmos alunos, logo em 
seguida ao Ta Matete, uma reprodução de algum trabalho da magis-
tral série Retirantes, do nosso Cândido Portinari (Brodósqui, 1903 _ 
Rio de Janeiro, 1962), a reação imediata foi de lamento, queixume, 
tristeza, quase horror. Mesmo aqueles que não se mostravam propen-
sos a considerar a pintura de Gauguin alegre, passaram a admitir que 
o fosse, tamanho o contrastecom o quadro de Portinari, pungente 
retrato expressionista das misérias sofridas pelos flagelados da seca 
nordestina. O tema, a composição, o traço anguloso, as cores frias, 
tudo ali inocula tristeza. 
Ressaltei que o conteúdo expressional é atributo da obra, e não 
do observador, porque as reações deste último não são fruto do acaso. 
É o artista, com sua competência, que consegue induzir no observa-
dor um sentimento escolhido e habilmente desencadeado. Por exem-
plo: Os Fuzilamentos do 3 de Maio, de Francisco Goya y Lucientes 
(Saragoza, 1746 - Bordeaux, 1828). 
26 
PAUL GAUGUIN 
Ta Marere (O Mercado), 1892 
óleo sobre t e l~ 
Museu de Arte ela Basiléia, Basiléia 
CÂNDIDO P ORTINARI 
Retirantes, 1944 
óleo sobre tela 
Museu de Arte de São Paulo, São p\ ulo 
F RANCISCO G OYA 
Os Fuzilamentos do 3 de Majo, 18 14 
óleo sobre leIa 
Museu do Prado, Madri 
ANTONIO F. COSTELLA 
Nesse quadro de Goya a angústia de um fuzilamento sobressai 
por vários motivos, além do tema, já trágic<? em si mesmo. Vejamos. 
São eles: a composição, na qual se antagonizam dois principais volu-
mes, de um lado os condenados e de outro os atiradores, o que já 
sugere um conflito; o uso conveniente de linhas e formas, repetitivas 
e retas no grupo dos atiradores, dando-lhes aparência de segurança, 
mas divergentes e oblíquas, quase convulsas, no lado dos condena-
dos, retratando seu desespero, pois é sabido que linhas verticais e 
horizontais traduzem firmeza e paz, enquanto oblíquas lembram mo-
vimento e ação; o desenho dos rostos, bem vincados nos condenados, 
em contraposição à anonímia compacta dos soldados, cujas feições 
estão ocultas; etc. Além de todos esses recursos, a competência de 
Goya concebeu mais um oportuno artifício: a cena é iluminada por 
um lampião colocado no solo. A presença desse lampião, assim situa-
do, permitiu a Goya fazer dela uma cena noturna e, daí, lúgubre. Mais 
que tudo, porém, permitiu ao artista justificar a iluminação das figu-
ras de baixo para cima. Ora, é sabido que tal direção de luz favorece 
a criação de uma ambiência tenebrosa. Como confirmação, basta fo-
lhear qualquer revista em quadrinhos dedicada hoje em dia a temas 
de terror. 
Tantos hábeis estratagemas fizeram de Os Fuzilamentos do 3 
de Maio, de Goya, um dos mais expressivos retratos da opressão e da 
angústia. E, como acabamos de ver, nada ali ocorreu por acaso. 
Não se pense, porém, que o artista, para merecer aplauso, este-
ja sempre obrigado a exacerbar o sentimento dos observadores. Tudo 
tem sua hora e seu lugar. Ninguém, por exemplo, pensará em mandar 
uma banda tocar A Morte do Cisne, quando o que se pretende é fazer 
marchar uma tropa de soldados. 
Ademais, na história dos estilos, há posturas divergentes a pro-
pósito desse assunto. Certas correntes artísticas se comprazem em 
apelar para o sentimento (romantismo, expressionismo, etc.), enquanto 
30 
PARA APRECIAR A ARTE 
outras quase o abominam, preferindo valorizar a razão (classicismo, 
neoclassicismo, etc.). Em qualquer das correntes, entretanto, ainda 
que com graus diferentes, há alguma forma de ligação entre a obra e 
o sentimento do espectador. A obra funciona como um gatilho que 
dispara uma reação em nível psíquico. Quando o disparo acerta o 
alvo do sentimento, podemos ter certeza de que o conteúdo expres-
sional da obra foi absorvido pelo espectador. 
31 
4. O PONTO DE VISTA TÉCNICO 
o conteúdo da obra de arte não diz respeito apenas ao fato e ao 
sentimento. Mais do que isso, e para expressar um e outro, a obra é 
resultado de um labor técnico. 
Observada do ponto de vista técnico, a obra é fruto dos elemen-
tos materiais e imateriais utilizados pelo artista para realizá-Ia. É a 
tela e a competência necessária para pintar, é a madeira e a habilidade 
do escultor, é o piano e o engenho musical, é a palavra e o estro poé-
tico ... É, enfim, o material utilizado - seja tela, madeira, piano ou 
palavra - e o conhecimento da teoria, isto é, das regras e até segredos , 
que permitem o bom uso dos materiais escolhidos. 
Geralmente as pessoas tendem a dar importância apenas ao co-
nhecimento teórico, relegando a contribuição dos materiais a segun-
do piano. " -=-0 que importa é a competência do artista! Se ele for 
bom, fará arte com qualquer material", dizem. Não é bem assim. O 
artista olha com muito amor e carinho os seus materiais, pois eles lhe 
condicionam o trabalho. Michelangelo Buonãrroti (Caprese, 1475 -
33 
ANTONIO F. COSTELLA 
Roma, 1564) deslocava-se até Carrara, na Toscana, e pessoalmente 
escalava as pedreiras, lá permanecendo 10!1gos períodos na escolha 
dos mármores com os quais conseguiu criar sua maravilhosa obra 
escultórica. É bem verdade que, ao escolhê- los, lançava mão de seus 
vastos conhecimentos teóricos sedimentados em longa experiência, 
mas nada teria ele realizado sem a colaboração daquelas dóceis pe-
dras toscanas. Sob o ponto de vista técnico, portanto, a apreciação da 
obra de arte diz respeito, simultaneamente, à competência do artista e 
às qualidades do material. 
Enquanto os enfoques factual e expressional, sa lvo exceções, 
não exigem conhecimentos especiais do observador, o conteúdo téc-
nico impõe-lhe uma bagagem especiali zada de informações. A apre-
ensão do conteúdo técnico será bem menor sem tal bagagem. Há uma 
disparidade considerável entre o que vê na obra o espectador despre-
venido e aqu ilo que descobre nela o especia lista. 
Diante de um quadro, o primeiro dirá: "- É uma pintura a óleo 
sobre tela" . E ainda se dará por satisfeito por ter percebido ser óleo e 
não aquarela a técnica empregada, e ser tela e não papel, o suporte. 
Analisando o mesmo quadro, o especia lista tentará saber se a tela é 
de linho ou de algodão, pois isso condiciona a conservação da obra, 
já que a dilatação do linho é muito mais compatível com a dilatação 
da tinta a óleo; eventualmente procurará saber se a tela foi bem pre-
parada para evitar ataques à celulose; tentará detectar a maneira de 
trabalhar do artista, se com espátula ou com pincel, se com veladuras, 
etc. Notará, ainda, a composição e, nela , a distribuição dos volumes; 
a segurança do desenho e a perspectiva linear, se for o caso; a obediên-
cia a alguma das leis de proporção, etc. Cogitará da harmonização 
das cores, da distribuição dos va lores, do uso das complementares, 
etc. etc. etc. 
O especialista, enfim, vê muito mais que o observador comum, 
isto é, absorve mais conteúdo técnico. 
34 
PARA APRECIAR A ARTE 
Os artistas em geral podem ser incluídos entre os observadores 
privilegiados, pois, defrontando-se em seu trabalho com dificuldades 
equivalentes, sabem avaliar melhor a capacidade do colega. Mas não 
é preciso ser artista para fruir o conteúdo técnico de uma obra. Se 
assim fosse, as apresentações de peças de teatro somente seriam as-
sistidas por atores e as exibições musicais teriam apenas músicos na 
platéia. Muito pelo contrário, a arte é produzida pelos artistas para o 
público em geral e, até mesmo, para artistas. 
De mais a mais, entre 8 e 80 há muitos números. No fundo, 
ninguém é 8 e ninguém é 80; ninguém é totalmente incompetente e 
ninguém possui a competência total em matéria de arte. Todos nós 
estamos sempre tentando ir além do 8, para nos aproximarmos do 80. 
É lógico que a obtenção, sempre que possível, de novos conhe-
cimentos sobre as técnicas artísticas permitirá ao observador melhor 
desfrute no ato de apreciação. Além das leituras específicas, a convi-
vência assídua com obras de arte, seja em museus, em teatros, cinemas 
ou em qualquer outro lugar, irá contribuindo para o enriquecimento do 
saber técnico do observador, principalmente se ele ficar sempre com 
seus olhos bem abertos e ouvidos igualmente atentos. 
35 
5. O PONTO DE VISTA CONVENCIONAL 
Se mostro uma estampa na qual se vê um homem coroado de 
espinhos, arrastando ao ombro pesada cruz de madeira, o leitor, mais 
que depressa,identificará Jesus Cristo rumo ao Calvário. Bem dife-
rente será a reação de um indígena da Amazônia que apenas acaba de 
ser contatado pelo branco, ao se lhe mostrar a mesma imagem. É 
óbvio que ele não dirá tratar-se de uma cena da Paixão de Cristo e 
nem entenderá aquele estranho tronco de madejra enganchado no 
ombro do homem retratado. A cruz, símbolo da fé religiosa dos cris-
tãos, é algo totalmente alheio ao mundo original do indígena. Por 
isso, a cruynão será vista com seu conteúdo simbólico, mas sim como 
tronco ou algo parecido, tomando-se impossível ao índio interpretar 
adequadamente a figura de Jesus Cristo. 
O que transforma dois pedaços de madeira em símbolo do Cris-
tiamsmo e um homem com cruz ao ombro em Jesus Cristo são conven-
ções. Convenções baseadas em crenças religiosas e apoiadas, nesse caso, 
em determínados fatos históricos partilhados por certos grupos sociais. 
37 
ANTONIO F. COSTELLA 
Ora, a vida social em todos os tempos e em todos os lugares 
sempre foi fértil na criação de convenções .. Não é de estranhar, por-
tanto, que_ essas convenções, cristalizadas em símbolos usualmente 
importantes para a sociedade, se mostrem retratadas pela arte e intro-
duzam nela um conteúdo convencional. 
Quando nos defrontamos com obra contemporânea e de autor a 
quem estamos ligados pelos mesmos costumes, não é difícil apreen-
der-lhe o conteúdo convencional. No entanto, ao tomarmos contato 
com obra de outra época ou de outra latitude, podemos nos sentir tão 
alheios ao seu conteúdo convencional quanto o índio, tomando a cruz 
por tronco. Um turista ocidental, vinculado a raízes culturais euro-
péias, nem adivinha quantos significados deixa de entender, quando 
defrontado com um templo hindu, por exemplo. 
Mas nem é preciso ir tão longe. 
A "Índia" pode ser aqui mesmo. 
Muitas gerações de estudantes, a minJla inclusive, aprenderam 
o idioma português fazendo análise de Os Lusíadas, de Luís de 
Camões (Coimbra, 1524 - Lisboa, 1580). Lembro-me que vários co-
legas de ginásio acabaram por detestar Camões. Detestaram-no só 
porque sua obra oferecesse dificuldades em matéria de análise lógi-
ca? Em parte, sim. Detestaram-na, talvez bem mais, creio eu, por 
verem-se estranhos a ela. Era freqüente Camões fazer com que nós, 
adolescentes, nos sentíssemos indígenas aparvalhados diante de suas 
invocações à mitologia greco-romana. 
A terceira estrofe do primeiro canto, logo no início do poema, e 
possivelmente a mais famosa de Os Lusíadas, ilustrará nossa afirma-
ção: 
38 
Cessem do sábio grego e do troiano 
As navegações grandes que fizeram; 
Cale-se de Alexandro e de Trajano 
PARA APRECIAR A ARTE 
A fama das vitórias que tiveram; 
Que eu canto o peito ilustre lusitano, 
A qucm Netuno e Marte obedeceram. 
Cesse tudo o que a Musa antiga canta, 
Que outro valor mais alto se alevanta. 
!<linguém fica sabendo, a menos que um livro ou pessoa lhe 
explique, que o "sábio grego" é Ulisses, rei de ítaca, um dos invaso-
resde Tróia, e que o mencionado "troiano" é Enéias, filho deAnquises, 
o qual, fugindo de sua terra natal, viria a ser responsável, segundo 
lenda difundida por Virgílio, pela fundação de Roma. É possível, de 
igual modo, um adolescente desconhecer que Netuno fosse conside-
rado, na Roma antiga, o deus do mar e Marte, o da guerra. E com 
relação a essa "Musa antiga", até os comentadores de Camões titu-
beiam: o Poeta pode ter se referido a Calíope, inspiradora da epopéia 
e da eloqüência; ou pode ter querido lembrar, de modo genérico, o 
conjunto das nove musas, além de Calíope, também Clio, da história; 
Melpómene, da tragédia; Tália, da comédia; Erato, da poesia amoro-
sa e da mímica; Euterpe, da música; Terpsícore, da dança e do canto; 
PoIimnia, da ode; e Urânia, da astronomia. 
Durante a apreciação da obra de arte, a absorção de seu conteú-
do convencional pode, ]portanto, exigir o concurso de variadas fontes 
para a compreensão de símbolos pelos quais se identificam divinda-
des mitológicas, santos católicos ou muitas outras entidades e repre-
sentações de convenções socialmente adotadas. A descrição dessas 
figuras é ta(efa da Iconografia, preciosa auxiliar da História da Arte. 
Sem as informações iconográficas também é possível fruir a 
obra. Com elas, porém, a fruição aumenta de intensidade. 
PiI'rd evitar confusões, tentemos deixar tão clara, quanto possí-
ve~ a fronteira entre o conteúdo factual e o conteúdo convencional da 
obra de arte. Em ambos há, em essêncià, um ato de identificação de 
39 
ANTONIO F. COSTELLA 
objetos. No entanto, essa identificação se faz em níveis diferentes. 
Tomemo novamente a cruz. O índio a vê como estranho tronco de 
madeira e eu, como cruz e símbolo cristão. O índio não lhe alcança 
nem o aspecto factual, nem o convencional, enquanto eu apreendo 
ambos. Podemos, agora, imaginar alguém em situação intermediária 
a esses extremos: um habitante de Roma no ano 21 de nossa era. Esse 
romano, ao ver a cruz sendo levada ao ombro por um homem, não a 
consideraria apenas um estranho tronco de madeira, como o faria o 
indígena. Esse súdito do Império Romano identificaria os paus cru-
zados como um instrumento judiciário de execução de criminosos. 
Não foram os cristãos que inventaram a cruz. Os romanos usavam-
na, como também utilizaram paus em forma de forquilha, aos quais 
suspendiam com cordas o condenado à morte, e igualmente se servi-
ram de simples troncos, nos quais o infeliz executado era dependura-
do de cabeça para baixo. O pau que sustinha o culpado, infelix arbor 
(árvore estéril), era consagrado aos deuses do inferno. Pois bem. O 
romano do ano 21, embora identificando o conteúdo factual da ima-
gem, isto é, vendo nele uma cruz como objeto de seu mundo judiciá-
rio penal, não poderia imaginar o conteúdo convencional hoje 
identificado por um cristão. Faltavam ainda alguns anos para que ocor-
resse a crucificação de Cristo e, só depois dessa execução, a cruz 
viria a ser adotada, como seu símbolo, pelos cristãos. 
Os objetos, portanto, podem exteriorizar objetivamente aquilo 
que são e para que servem, de tal modo que cu possa fazer deles uma 
identificação direta, mas também podem representar algo além, assu-
mindo o caráter evocativo de alguma coisa neles identificada de ma-
neira indireta. Quando os objetos deixam de ser apenas aquilo que 
são e passam a sugerir também alguma outra coisa, eles se tornam 
símbolos. O conteúdo factual da obra de arte diz respeito aos objetos 
pelo que eles são, enquanto o conteúdo convencional interessa-se por 
e les como símbolos. 
40 
PARA APR ECIAR A ARTE 
Resumindo. Se, por um pa se de mágica, pudéssemos reunir 
em uma sala o indígena, o cidadão romano de 21 d.e. e o Papa, e a 
eles apresentássemos uma crucifixão de Cristo pintada por qualquer 
artista, teríamos os seguintes resultados: 
1. o índio não apreenderia, com relação à cruz, nem o conteúdo factual, 
nem o convencional; 
2. o cidadão romano apreenderia o conteúdo factual, mas não o con-
vencionai; e 
3. o Papa apreenderia ambos os conteúdos, o factual e o convencio-
naI. 
Que devemos fazer para melhor desfrutar a arte no seu aspecto 
convencional? 
Precisamos procurar obter, sempre, mais e mais informações a 
respeito do mundo cultural no qual ela foi gerada. 
, ... , 
41 
6. O PONTO DE VISTA ESTILÍSTICO 
Voltemos, neste capítulo, a tomar como exemplo, já que é tão 
difundida, a figura de Cristo. Vamos fazer uma comparação entre o 
Cristo em mosaico da cúpula da Igreja de Dafne, do século onze; o 
Cristo da Transfiguração de Rafael Sanzio (Urbino, 1483 - Roma, 
1520), do século dezesseis; e o Cristo e sua Cruz, do mexicano José 
Orozco (Zapotlán, 1883 - Cidade do México, 1949), do nosso sécu-
lo. Embora os três representem a mesma figura, identificável por qual-
quer pessoa minimamente informada sobre o Cristianismo, salta aos 
olhos a diferença entre eles. 
O Cristo de Dafne é uma amostra da pinturabizantina. Com 
capital em Bizâncio, depois chamada Constantinopla e hoje Istam-
bul, o Império Romano do Oriente, ou Império Bizantino, tomou-se 
-"'''' 
um regime teocrático depois de cristianizado. Fundiram-se na pessoa 
do Imperador, a um só tempo, o chefe político e o representante de 
Deus. Não é de estranhar que, em tal ambiência.a pintura incumbida 
de retratar figuras sacras fosse obrigada a obedecer normas rigorosas 
43 
Cristo Pantocrator 
mosaico bizantino, fins do século XI 
Igreja do Mostei ro de Dafne 
PARA APRECIAR A ARTE 
determinadas pelo próprio poder público. Moldou-se, por força de 
tais cânones impostos, um estilo peculiar de longa tradição conserva-
dora, no qual não se buscava o traço individual ou realista, mas sim a 
idealização, pouco importando a veracidade anatômica. O Cristo de 
Dafne, mero símbolo material para evocar um valor espiritual, foi 
desenhâdo do modo oficial e com a mesma regra utilizada para se 
desenharem milhares de outros Cristos. Refiro-me à regra dos três 
círculos concêntricos. O primeiro círculo, cujo raio mede o equiva-
lente ao comprimento do nariz, circunscreve, além deste, também a 
testa e os olhos. O segundo círculo, tendo por raio cerca de dois nari-
zes, limita a linha do cabelo e marca o local correspondente ao quei-
xo. O terceiro, com medida de três narizes, forma a auréola ao redor 
da cabeça. Todos os Cristos bizantinos; ao longo dos séculos, pare-
cem-se uns com os outros porque obedeceram a esta fórmula que 
conduz a figura a uma resolução estereotipada, muito distante de qual-
quer exatidão objetiva, com a qual, aliás, ninguém estava preocupado 
no mundo bizantino. 
Bem diferente se mostra o Cristo da Transfiguração, de Rafael. 
Derradeira obra de um artista situado na fase do apogeu da pintura 
renascentista italiana, este Cristo exibe as características do ideal clás-
sico de glorificação do homem. 
Ao Cristo de Rafael não incumbe apenas evoéar o mundo espi-
ritual , mas também enlevar-nos, seja pela beleza da figura humana, 
seja pela harmonia com que ela se insere na composição geral da , 
obra. Diferentemente dos anônimos criadores bizantinos, Rafael va-
lorizou a correção anatômica, na medida em que ela lhe serviu ao 
propósito de compor imagens plenas de vida e de movimento. 
1'"o(seu túmo, o Cristo expressionista de Orozco, ainda que car-
regando o mesmo conteúdo convencional dos outros dois, é uma ex-
plosão de revolta . Curiosamente, a estrutura de seu rosto lembra os 
trabalhos bizantinos. Mas a postura, não. Armado de machado, em 
45 
RAFAEL SANZIO 
Transfiguraçiio, c. 1520 
óleo sobre madeira 
Pinacoteca do Vaticano 
Transfiguração (deta lhe) 
JOSÉ OROZCO 
Migração Moderna do Espírito , 1932- 1934 
mural 
Dartmouth ColIege, Hanover, New Hampshire 
PARA APR ECIAR A ARTE 
um ambiente de destruição da qual nem a cruz escapa, esse Cristo 
angustiado, revolucionário, duro, pretende condenar a violência, a 
guerra e a era da máquina. O Cristo do mexicano Orozco é um grito. 
Um grito pungente. 
Embora nas três obras de arte o tema seja o mesmo - a figura de 
Cristo ., elas diferem muitíssimo entre si, pelo fato de refletirem 
momentos históricos diferentes. O Cristianismo, originalmente pre-
gado na Galiléia, difundiu-se pelo mundo e introduziu-se no âmago 
de variadas culturas, nelas influindo, mas também delas recebendo 
influências. Interpretado por artistas de universos culturais diferen-
tes, o mesmo tema recebeu resoluções plásticas diversas, como no 
exemplo ora visto: cada artista adaptou a figura do Cristo ao seu tem-
po e ao seu lugar, isto é, ao estilo de seu momento cultural. 
A pluralidade de culturas explica a pluralidade de estilos artísti-
cos, já que cada obra de arte é sempre parte integrante do mundo cultu-
ral de um povo. A obra não é peça isolada. É fração de uma cadeia de 
fatos à qual se integra. Ao observarmos a obra sob o ponto de vista 
estilístico, colocamos mentalmente em relevo a ligação que existe en-
tre a obra e a corrente cultural dentro da qual foi engendrada. 
No entanto, a noção de conteúdo estilístico não se esgota na 
identificação da corrente artística à qual a obra pertence. Além desse 
conteúdo estilístico coletivo, fruto da ambiência social, há que se con-
siderar o conteúdo estilístico individual, resultante da personalidade 
do artista criador. A obra sempre é relacionada a uma cultura, mas 
seu autor é um indivíduo. Se é bem verdade que os valores e padrões 
do mundo cultura l do artista criador, armazenados em sua mente, in-
fluenciam a criação da obra, é inconteste que dessa mesma mente 
promana.a marca de uma personalidade, a qual também se transmite 
à obra. Esse cunho pessoal é o estilo individual do artista e também 
integra aqui lo que denominamos conteúdo estilístico. 
49 
ANTONIO F. COSTELLA 
Imaginemos alguém que tenha visto várias vezes gravuras de 
Marcelo Grassmann (São Simão, 1925). Imaginemos que essa pes-
soa entre na sala de visitas de uma casa onde jamais esteve. Se na 
parede estiver dependurada uma gravura de Grassmann, nossa hipo-
tética pessoa, mesmo sem ser um especialista em arte brasileira, pro-
vavelmente identificará num simples relance a au(oria da obra, tão 
inconfundível é a marca da personalidade daquele artista. Sua obra 
reflete elementos da cultura, na qual se formou como artista, mas, 
além de ser um gravador de nosso tempo, Marcelo Grassmann é Mar-
celo Grassmann. 
O exemplo que figuramos foi tirado das artes plásticas, por ser 
mais fácil de ser ilustrado em um livro. No entanto, o raciocínio aci-
ma desenvolvido é igualmente aplicável a qualquer outro tipo de 
manifestação artística: música, teatro, literatura, dança, culinária, etc. 
A presença do componente individual no conteúdo das obras 
de arte, isto é, o estilo do artista, marcante em nosso tempo, não se fez 
notar de modo intenso em outras épocas. No Egito antigo e em todas 
as civilizações teocráticas, como o já mencionado Império Bizantino, 
a marca da personalidade do artista não só foi indesejada, como até 
mesmo proibida. Por isso, aliás, raramente chegaram até nós os no-
mes dos artistas dessas civilizações, confundidos que foram com meros 
artesãos repetidores do cânone imposto. O Renascimento europeu, 
retomando o individualismo da Grécia antiga, que valorizava o artis-
ta, começou a elevá-lo como individualidade merecedora de especial 
respeito, tanto que seu status social melhorou muito. Essa tendência 
persiste no mundo de hoje na maioria das regiões do globo terrestre, 
embora tenha às vezes sofrido a neutralização imposta por Estados 
ditatoriais. Exemplo recente, nesse sentido, pudemos ver na União 
Soviética durante a vigência obrigatória do chamado realismo socia-
lista, estilo duramente realista imposto pelo Estado, para propagandear 
50 
... ,. .... . ', 
MARCELO GRASSMANN 
Gravura da série íncubos e SLÍcu.bos 
ANTONIO F. COSTELLA 
as vitórias do proletariado, ainda que em detrimento da personalida-
de do artista. 
Pois bem. É a personalidade do artista a grande mola propulso-
ra da história da arte. É a contribuição individual do artista, muitas 
vezes antecipada ao gosto comum, que fornece novos veios para a 
arte, arrancando-a dos riscos do imobilismo e enriquecendo-a com 
imaginosos avanços. Em conseqüência, a liberdade de criação do ar-
tista revela-se direito fundamental do ser humano e deve ser preser-
vada a todo custo. 
Resumindo o que analisamos neste capítulo, lembramos que, 
para desfrutar da integralidade do conteúdo das obras artísticas, de-
vemos observar-lhes o conteúdo estilístico, tanto o coletivo, quanto o 
individual. 
Mas quem nos guiará nessa observação estilística? 
A História da Arte. Ela nos fornecerá elementos para inserir a 
obra dentro da corrente artística à qual pertença e nos propiciará in-
formações biográficas para avaliar a contribuição devida à personali-
dade de cada artista. 
52 
7. OPONTO DE VISTA ATUALIZADO 
A obra de arte não se limita apenas àquilo que ela mostra ou 
simboliza, nem tampouco ao seu enquadramento estilístico. Muitas 
vezes, a obra de arte se "completa" com aquilo que nela vemos. 
A fruição artística pressupõe sempre, além da obra em si, a exis-
tência de um observador. O aparato mental desse observador deve ser 
levado em conta. 
Envelhecida pelos séculos ou levada de um lugar para outro, a 
obra de arte deslocada no tempo e no espaço pode acabar sendo vista 
de maneira diversa daquela como a viam os homens de seu tempo ou 
lugar. Seus ~ontemporâneos ou seus conterrâneos a viam sob a mes-
ma óptica do seu criador. Passado o tempo ou mudado o lugar, um 
novo espectador, pertencente a outro universo cultural, pode fazer 
ajqj1Nrn~nto diferente da obra e, até mesmo, tirar dela um desfrute 
antes insuspeitado. 
Exemplos sempre ajudam a esclarecer. Vejamos. 
53 
ANTONIO F. COSTELLA 
As pinturas executadas nas paredes das mastabas e de outros 
tipos de túmulos do Egito antigo, assim como os demais objetos ne-
les encontrados, tinham originalmente função utilitária, serviriam ao 
morto em sua vida futura. No entanto, hoje, essas criações são aprecia-
das em museus não mais como utensílios sacros ou apenas de interes-
se histórico, mas também por seu aspecto artístico. Os artistas do Egito 
helenizado que costumavam pintar numa tábua o retrato do morto, 
para aplicá-Ia sobre a cabeça da respectiva múmia, e deixaram para 
os milênios posteriores exemplares da hoje raríssima pintura à 
encáustica, técnica de pintar com cera derretida, não pretendiam que 
tais obras viessem a ser objeto de degustação estética por parte de 
turistas do mundo inteiro. Esses retratos fúnebres foram concebidos 
para permanecer na escuridão dos túmulos, bem longe de olhares pro-
fanos. Quando observamos tais produções egípcias, nós, homens de 
hoje, as vemos com seu conteúdo mentalmente alterado ou, se prefe-
rirem, mentalmente atualizado, isto é, adaptado aos valores atuais. 
Cada geração, cada ambiente, cada momento cultural, enfim, 
acrescenta mentalmente à obra algo que não está na obra, mas sim 
na cabeça dos observadores. Quando analisamos uma criação artísti-
ca sob o ponto de vista atualizado, trazemo-Ia à força, portanto, para 
nossa óptica cultural. 
Essa noção da existência de um conteúdo atualizado nos aux i-
lia a compreender o porquê de o valor atribuído a uma obra de arte 
variar no tempo e no espaço. Para os beduínos do deserto, a grande 
Esfinge de Gizé não valia nada, tanto que a usaram como alvo, para o 
exercício de pontaria de seus artilheiros, e é por isso que hoje vemos 
o milenar monumento com o nariz destruído. Mas as flutuações de 
gosto não são privativas de nômades e primitivos. Na Europa a pintu-
ra de Guido Reni (Bolonha, 1575-1642), por exemplo, era tão esti-
mada por seus contemporâneos quanto a de Rafael e de Michelangelo. 
Passadas algumas gerações, os trabalhos de Reni caíram em descré-
54 
A Esfinge, terceiro milênio a.C. 
monumento em pedra 
Gizé, Egito 
.. 
... 
ANTONIO F. COSTELLA 
dito e muitos museus chegaram a esconder suas telas. Tal exagero 
veio a ser reparado com a reabilitação do pintor. Pois bem. Sua pintu-
ra foi sempre a mesma. O que mudou ao longo dos séculos foi a 
maneira como as pessoas a viam. A maneira de ver atual (atual em 
cada momento) fez com que a cotação do artista flutuasse do céu ao 
inferno e vice-versa. 
Nos últimos duzentos anos e graças à liberdade de expressão 
vigente, tem sido freqüente o artista antecipar-se ao gosto de seu tem-
po. O Impressionismo, quando surgiu, foi recebido com desagrado 
pela maioria das pessoas do meio artístico parisiense e viu-se 
vigorosamente rejeitado por críticos proeminentes de então. O pró-
prio nome Impressionismo, depois assumido pelos artistas do grupo, 
surgiu de uma chacota feita por um crítico contra o quadro de Claude 
Monet (Paris, 1840 - Giverny, 1926) intitulado Impressão: Nascer 
do Sol. Hoje, no entanto, ninguém se interessa em saber quem foi 
esse crítico e, contrariando sua impressão, os trabalhos deixados pe-
los impressionistas são fervorosamente apreciados. Em contraparti-
da, nomes de pintores tidos como exponenciais naquela época caíram 
em total esquecimento, enquanto as obras de Monet e de outros 
impressionistas são largamente reproduzidas em milhões de cópias. 
Já vi até uma dançarina de cancã, de Toulouse Lautrec (Albi, 1864 -
Malromé, 1901), ilustrando um pano de cozinha! 
Que significa isso? Significa que, estando tais obras mais aferidas 
ao gosto estético de seus pósteros do que ao de seus contemporâneos, 
passaram a valorizar-se com a atualização de seu conteúdo realizada 
mentalmente por gerações posteriores. 
Assim como o artista é fruto de seu ambiente cultural, assim 
também o observador reflete, ao atualizar mentalmente a obra, os 
padrões usuais de seu lugar e de seu tempo. Em conseqüência, a atua-
lização é generalizada e coerente, homogênea enfim, para a maioria 
das pessoas de um determinado lugar e de um determinado tempo. 
56 
.... r"' .... '. 
LEONARDO DA VINCI 
Gioconda, 1503- 1505 
pintura em madeira 
Museu do Louvre, Paris 
ANTONIO F. COSTELA 
Em outras palavras: em se tratando de observadores originados de 
um mesmo ambiente cultural, a atualização tende a ser feita de modo 
igual por todos. 
Às vezes essa atualização chega a tamanha uniformidade e ge-
neralização que, levada ao paroxismo, mitifica certas obras. A 
Gioconda, também chamada Mona Lisa, de Leonardo da Vinci, não 
parece ser melhor do que várias outras pinturas existentes no Museu 
do Louvre. No entanto, sua fama é tamanha que, hoje, ela é cor-
riqueiramente aceita como a representação da genialidade em ma-
téria de pintura. (Justamente por revelar-se um mito universal, aliás, 
acabou sendo usada na capa deste livro.) Mesmo nos dias de menor 
visitação, quando podemos encontrar muitas salas do Louvre vazias, 
há sempre uma multidão de turistas voejando defronte da Mona Lisa, 
e todos se mostram dispostos a encantar-se com seu decantado sorri-
so indefinido. Embora Leonardo tenha sido mesmo um gênio, e o foi 
bem mais em outros setores além da pintura, a devoção pública à 
Gioconda é um exagero. Mas exageros desse tipo, embora tendo es-
casso valor para quem estuda com equilíbrio a história da arte, reve-
lam a que ponto de generalização e uniformidade pode, às vezes, 
chegar a atualização do conteúdo de uma obra. 
58 
8. O PONTO DE VISTA INSTITUCIONAL 
Durante longo período de sua vida, Monteiro Lobato reuniu-
se, para bater papo nos finais de tarde, com um grupo de boêmios e 
malandros em um bar do centro de São Paulo, mas, a fim de que não 
perdessem a naturalidade, justamente aquela naturalidade que o en-
cantava como observador do comportamento humano, Lobato jamais 
lhes contou que era escritor. Ele bem sabia o que estava fazendo. A 
arte, muitas vezes, assusta e a presença do artistá, com freqüência, 
intimida. 
Há pessoas que entram em um museu com o mesmo ar de reve-, 
rência e contrição com o qual se ajoelham na igreja. Em qualquer 
vernissage sempre existe alguém que, de tão intimidado, parece estar 
pisando em ovos. Mesmo nos ambientes musicais, que já conquista-
(áJp'"'geríérosas doses de descontração, vêem-se, ao menos em teatros 
mais solenes, algumas figuras acanhadas a ponto de pedir desculpas 
quando esbarram em uma coluna. O cinema, 0_ rádio, a televisão e os 
megaeventos trouxeram os atores ao convívio das multidões. Os fãs 
59 
, ,.' ~II'W" 
ANTONIO F. COSTELLA 
se sentem tão próximos de seus ídolos, que não hesitam <:m lhes en-
viar cartas amigáveis. No entanto, mesmo com toda essa "intimida-
de", os astros e as estrelas são sempre imaginados pelo público como 
criaturas situadas acima do nível dos mortais comuns. Em suma: o 
museu, a galeria, o texto escrito, todas as artes e os artistas infundem 
respeito. 
Esserespeito, um timor reverens, isto é, um temor reverencial, 
é fenômeno tipicamente cultural e, a esse título, peculiar a cada civi-
lização. Se eu for aprisionado em meio à selva por uma tribo de an-
tropófagos, não melhorarei meu destino culinário invocando minha 
condição de escritor. Entre antropófagos iletrados o escritor, prova-
velmente, não merecerá um lugar acima dos mortais comuns. 
Nem sempre os artistas tiveram status invejável. Na maioria 
das civilizações do passado (não em todas) foram igualados a qual-
quer outro trabalhador braçal. Já mencionamos que, por exceção, desde 
o Renascimento europeu para cá o artista começou a ganhar progres-
iva importância, na mesma proporção em que sua obra também pas-
sou a ser vista como um tipo especial de manufatura, desejável por 
suas virtudes estéticas, independentemente de qualquer destinação 
utilitária. 
O interesse por obras antigas, artísticas ou não, inclusive de 
caráter arqueológico, ganhou agigantado impulso nos últimos duzen-
tos anos. Enriqueceram-se assim os museus, principalmente da Euro-
pa. Paralelamente, a democratização dos costumes franqueou a maioria 
dos acervos ao grande público, como já ressaltamos em capítulo an-
terior. O passo seguinte foi a massificação desses elementos por meio 
de novos veículos de comunicação. Desse modo, em grande número 
de países, contingentes crescentes de pessoas passaram a ter acesso a 
bens culturais anteriom1ente privativos de uma elite. Tornando-se mais 
acessível, a arte tende a ser menos "assustadora". 
60 
PARA APRECIAR A ARTE 
No entanto, entre e e público crescente e o sítio de nascimento 
das obras coloca-se quase sempre uma instituição, que pode ser o 
museu, a universidade, o veículo de comunicação, etc. Essa institui-
ção intennediadora, que amplia de modo benéfico e às vezes incrível 
o elenco'de infonnações disponíveis, pode selecionar, escolher, rejei-
tar, louvar, criticar e até, por vezes, sonegar a obras de arte a serem 
levadas ao público. Ela exerce uma forma de poder. 
Se um importante museu expõe a obra do artista X e não a do 
artista Y, posso ser levado a crer que o artista X é mais importante do 
que o artista Y. Se a mais categorizada editora do país edita o romance 
de determinado escritor, fico propenso a imaginar que ele não deve 
ser tão medíocre como diziam. Se a programação do Teatro Munici-
pal inclui determinadas músicas, julgarei razoável supor que elas se-
jam valiosas. Se o crítico de cinema do jornal condena certo filme, 
talvez nem me arrisque a assisti-lo. Essas instituições todas e outras 
equivalentes hierarquizam as obras de arte e lhes atribuem um valor 
que denominaremos institucional. 
A análise da obra de arte sob o ponto de vista institucional pode 
ser uma fonna de atualização da obra. Nesse sentido, trata-se da 
mesma postura vista no capítulo anterior. 
No entanto, há nuanças a considerar e elas talvez justifiquem 
termos tratado deste assunto em capítulo independente. 
A visão in~titucional da obra é gerada de maneira formal, en-
quanto a simples atualização se de envolve por estímulos sociais es-
pontâneos, nem sempre controláveis, geralmente livres e, com 
freqüência, até contraditório. Entre uma e outra vai a mesma diferença 
que scpã:l1t" o aprendizado infonnal do aprendizado escolar. Todas as 
pes oas aprendem a falar graças ao convívio social. É somente depois, 
na escola, que vão descobrir oficialmente as regras da gramática. 
Além disso, a visão institucional pode incidir sobre obra con-
temporãnea e conterrânea nossa, que, portanto, não demanda atuali-
61 
ANTONIO F. COSTELLA 
zação quanto a tempo ou lugar. Exemplo: um crítico de arte do jornal, 
eventualmente, estará se referindo amanhã a uma sinfonia-terminada 
nesta semana pelo compositor que é meu vizinho. 
Nuanças à parte, muito freqüentemente a atualização e a 
institucionalização da obra se aproximam, se interpenetram e, às ve-
zes, se fundem. É forçoso reconhecer que boa parte da atualização 
mental de uma obra, a sociedade a realiza, inclusive, a partir de ele-
mentos institucionais. 
62 
9. O PONTO DE VISTA COMERCIAL 
Como qualquer objeto material, a obra de arte tem um preço. 
O valor comercial de uma obra resulta da soma de vários fato-
res, tais como a matéria-prima empregada, a mão-de-obra necessária, 
as características finais do produto, a raridade da peça, eventualmen-
te a notoriedade do artista, etc. 
Também no mundo da arte vigora a lei da oferta e da procura. E 
sempre vigorou. Dois mil anos antes de Cristo, os ceramistas das ilhas 
gregas produziam vasos criativamente decorados, dos quais encon-
tram-se vestígios em escavações arqueológicas muito distantes entre 
si à volta de t~do o Mar Mediterrâneo. A presença de tais obras mos-
tra-se tão freqüente, que é lícito supor fossem muito procuradas e 
disputadas pelos compradores, alcançando por conseqüência bons 
pr~~ Qoanto o pintor grego ganhava, proporcionalmente ao preço 
de venda dos vasos, não o sabemos, mesmo porque a forma de pagar 
o trabalho dos artistas variou ao longo dos séculos, desde a escravi-
dão pura e simples até as cotações mirabolantes ãlcançadas por Pablo 
63 
Cerâmica da ilha de Thcra, c. 1500 a.C. 
Museu Nacional de Atenas 
PARA APRECIAR A ARTE 
Picasso (Málaga, 1881 - Mougins, 1973) e, postumamente, por Van 
Gogh (Oroot Zundert, 1853 - Auvers-sur-Oise, 1890). O certo, en-
tretanto, é que, desde a mais remota antigüidade até os dia de hoje, 
sempre foi atribuído um valor comercial à obra de arte. 
Como resultado da tendência instaurada durante o Renascimen-
to, intensificada ao tempo da Revolução Industrial e alargada pelo 
avanço· das comunicações, nunca se valorizou tanto como agora a 
obra de arte. Seu sentido comercial é crescente. E cresce em igual 
escala a complexidade de sua distribuição ao mercado consumidor, 
exigindo o concurso de competentes especialistas. A figura tradicio-
nal do marchand em sua galeria, antigamente símbolo típico do co-
mércio de arte, coexiste agora com outros personagens, criados pela 
presença da gigantesca indústria cultural do nosso tempo. 
O processo teve início no século quinze, com o surgimento da 
tipografia . A invenção de Gutenberg (Mainz, 1398?- 1468) não só 
permitiu a produção de livros por meios mecânicos, como também 
revelou-se a primeira máquina de produção em série posta a funcio-
nar pelo ser humano. As tiragens cada vez maiores, barateando o li-
vro, levaram-no às mãos de pessoas que, antes, nem poderiam sonhar 
em possuir um, tão alto costumara ser o preço dos livros manuscritos . 
Inovações técnicas posteriores e condições favoráveis de mercado 
acabaram por culminar na massificação da literatura. Por outro lado, 
de um século para cá a reprodução fonográfica introduziu a música 
no fabuloso comércio de massa, primeiro com discos, depois com 
fitas, agora som CDs e no futuro ... sabe-se lá com o quê? De sua 
parte, o cinema já nasceu com estrutura industrial , tanto que, no ini-
cio, muitos críticos relutaram em aceitá-lo como atividade artística. 
Depois, a música e o filme amplificaram o próprio alcance por serem 
rept;0 uzraos pelas ondas do rádio e da televisão. Mais recentemente, 
do universo incrível dos meios eletrônicos de comunicação, incluído 
aí o computador com sua revolução informática.) passaram a emergir 
65 
II 
: 
i 
, 
I1 
J 
IIII! 
II 
IIL 
ANTONIO F. COSTELLA 
novas formas de arte que, inclusive, se globalizam agora pela Internet. 
Pois bem. Por detrás de todo esse cenário fascinante, que não se can-
sa de nos surpreender, circula, como a seiva que percorre silenciosa-
mente o caule da planta, um velho conhecido do homem: o dinheiro. 
Conseqüência óbvia: todas essas novidades artísticas já surgem com 
preço. 
Esse preço geralmente tem muito a ver com o enfoque institu-
cional da arte. 
Às vezes, o valor comercial da obra artística decorre, em parte, 
do apreço institucionalpor ela recebido. É por isso que editoras de 
livros, gravadoras musicais, distribuidoras de filmes , donos de galeri-
as de arte, todos, cada qual a seu modo, anseiam por obter para seus 
produtos elogios dos críticos de jornais e revistas ou gestos benevo-
lentes por parte de outros formadores de opinião. Nestes casos, aplau-
sos elevam o preço da obra. 
Em contrapartida, há manifestações artísticas de forte presença 
institucional, mas com valor comercial modesto ou até mesmo inex-
pressivo. Por exemplo: o teatro, embora reconhecido institucional-
mente como uma das manifestações mais fecundas do gênio humano, 
necessita com freqüência de subsídios governamentais ou particula-
res para poder sobreviver. Ninguém nega seu status cultural, seu va-
lor institucional. No plano comercial, no entanto, sua modéstia é tanta 
que os atores, quando querem ganhar melhor, têm de aceitar contra-
tos para trabalhar no cinema ou na televisão. Outro exemplo: um bom 
violoncelista, que por sua fonnação metódica e paciente está apto a 
executar as peças mais difíceis do repertório da música erudita, tal-
vez não consiga um emprego que lhe garanta salário digno. 
Dir-se-á que esse panorama é só de nosso País. Não é não. Tam-
bém em países ditos "mais civilizados", algumas manifestações artís-
ticas, com grande importância sob o ponto de vista institucional, 
resistem à extinção não porque tenham mais aceitação comercial do 
66 
--
PARA APRECIAR A ARTE 
que aqui, mas sim por receberem verbas governamentais mais gordas 
ou injeções de dólares das empresas privadas. 
A prudência aconselha encerrar este capítulo por aqui, uma 
vez que o assunto, se aprofundado, gerará sozinho vários livros 
bem maiores do que este, mesmo porque o tema alimenta a foguei-
ra de uma polêmica entre os que condenam e os que apóiam a 
massificação cultural; entre os que exorcizam e os que aplaudem o 
dinheiro no mundo da arte; etc. 
O problema com relação a tais polêmicas é que os contendores 
assumem postura maniqueísta, sempre radical, quando, bem pelo con-
trário, deveriam abster-se de tais extremismos. Se é verdade que a 
arte não deve ser considerada apenas do ponto de vista comercial, é 
igualmente verdadeiro que tal valor não pode ser desprezado como se 
não tivesse nenhuma importância. 
Há pessoas que só consideram boas as obras de arte de grande 
valor comercial e tomam as cotações de leilões e galerias como pala-
vra de fé. Lembro-me, bem a propósito do tema, de uma cena a que 
assisti na casa de um colecionador amigo meu. Recebeu ele o telefo-
nema de um seu colega de outra cidade e, segundo percebi, tratava-se 
de continuação de uma conversa anterior, na qual estavam combinan-
do a permuta de algumas obras. Ao final da ligação interurbana, o 
negócio ficou acertado: meu amigo daria dois quadros de autor bem 
valorizado e receberia em troca cinco quadros de pintores menos con-
siderados. O curioso da história é que nenhum dos dois colecionado-
res vira as o6ras que haveria de receber. Estavam, portanto, negociando 
apenas com base no nome, isto é, no valor comercial dos pintores em 
questão, sem qualquer preocupação com a qualidade estética das pe-
ç~: .. única condição imposta foi a de se encontrarem as telas em 
bom estado de conservação. 
Por outro lado, há pessoas, e não são poucas, que consideram 
um "defeito" a boa vendagem do artista, rejeitando a obra que se 
67 
ANTONIO F. COSTELLA 
populariza. Logo acodem a dizer que o artista "comercializou-se" e, 
com ranço pseudo-aristocrático, torcem o nariz. Até parece que su-
põem ser indispensável, para merecer glória, que o artista nunca con-
siga vender nada, passe fome irremediavelmente e seja totalmente 
desconhecido das multidões. 
Ambas as posturas são equivocadas. Atribuem valor absoluto a 
algo relativo. O enfoque comercial é apenas um dentre os vários 
enfoques sob os quais a obra pode ser observada. Um só. Nem mais 
importante, nem menos importante que os outros. 
68 
10. O PONTO DE VISTA NEOFACTUAL* 
Nada é infenso ao passar do tempo. O correr dos anos, dos sé-
culos, dos milênios desgasta, recobre, corrói, sedimenta, transforma 
todas as coisas e, dentre elas, também as obras de arte. 
Quando alguém observa uma tela antiga em um museu, na ver-
dade está vendo a obra mais o escurecimento provocado pelo verniz 
envelhecido. Os vernizes aplicados como proteção têm o inconve-
niente de escurecer com o decorrer de longos períõdos. Muitos qua-
dros que nos mostram hoje cenas mal iluminadas, bruxuleantes, 
ostentaram, quando novos, cores vivas e luminosas. , 
Por outro lado, quando se promove a restauração da obra, ten-
tando fazê-Ia voltar a sua feição original, pode ocorrer o problema 
inverso. Em décadas remotas, houve restauradores que se notabiliza-
ram-põr ·" Iavar" de modo tão radical os quadros que, junto com os 
* Em edição anterior utilizou-se o termo acrescido, on.~e agora se emprega neo-
facrual. 
69 
ANTONIO F. COSTELLA 
vernizes, removeram também as veladuras. Para harmonizar as cores, 
muitos artistas lançaram mão do recurso da veladura, isto. é, aplica-
ram na fase final do trabalho uma demão de tinta transparente, mas 
colorida, lançando assim uma tênue película uniformemente colorida 
por sobre todas as cores utilizadas na obra. Essa cor comum, aplicada 
assim em veladura (de "velar", cobrir), tem a função de harmonizar o 
conjunto, pois as tintas todas, ao transparecerem, mostram-se igual-
mente tingidas pela cor da veladura. Pois bem, os restauradores men-
cionados, ao removerem os vernizes envelhecidos, arrancavam junto 
a veladura, adulterando a obra original e expondo cruamente à vista 
cores que o autor antes amenizara. É como se mostrassem o quadro 
em uma fase anterior ao seu término pelo artista. 
Apesar de os restauradores utilizarem hoje métodos sofistica-
díssimos, seu trabalho sempre implica no risco de alterar, por acrés-
cimo ou por remoção, o original. Mesmo com inconvenientes, 
entretanto, as técnicas de restauração são indispensáveis para a per-
petuação das obras. Tome-se, por exemplo, o famosíssimo mural A 
ÚLtima Ceia, ou Il CenacoLo, de Leonardo da Vinci, reproduzida de 
mil modos e maneiras com uma infinidade de materiais e, assim, 
encontrada em milhões de lares. A Última Ceia, como Leonardo a 
concebeu e realizou, praticamente não mais existe. Pintada entre 
1495 e 1498 na parede do refeitório do convento dominicano de 
Santa Maria das Graças, em Milão, deteriorou-se rapidamente. Já 
quase apagada em 1540, vinte anos depois só lhe restava o desenho. 
Passados mais cem anos, por abrirem uma porta na parede, foi mu-
tilada a figura de Cristo. No século dezoito a obra mereceu duas 
restaurações, aliás sofríveis, as quais não lograram impedir que o 
antigo refeitório fosse transformado em estrebaria . Somente no iní-
cio do século dezenove o recinto teve sua dignidade restaurada e a 
obra-prima conseguiu melhor tratamento. Fica claro: quando alguém 
70 
LEONARDO DA VINCI 
A Última Ceia, afresco, 1495- 1498 
Convento de Santa Maria das Graças, Milão 
ANTONIO F. COSTELLA 
aprecia hoje, in loco, a A Última Ceia, salvo o desenho, nada mais 
encontra ali de autoria de Leonardo. 
Essa mudança material sofrida pelo objeto artístico denomina-
mos, na edição anterior deste livro, conteúdo acrescido. Preferimos, 
aqui e doravante, denominá-lo conteúdo neofactual. Qualquer que seja 
o nome usado, o que se quer ressaltar sob este ponto de vista é que a 
obra passa a exibir algo originalmente não previsto pelo artista. 
O elemento neofactual pode impregnar de tal modo a obra que 
o observador relutará, às vezes, em acreditar tenha ela sido no passa-
do diferente do que é agora. Por exemplo. Proponho ao leitor o se-
guinte: "- Imagine um templo grego". Seguramente se formará na 
mente de todos os leitores a imagem de uma construção guarnecida 
por altas colunas e encimada por um frontão de tímpano triangular. 
Esseedifício será imaginado em cor de pedra clara, provavelmente 
de mármore branco. Essa é a idéia que fazemos a propósito de tem-
plos gregos, porque os que nos restaram, ainda que em ruínas, são 
assim. Por isso, os leitores pensarão de acordo com esse estereótipo, 
até mesmo aqueles que sabem que os gregos pintavam suas constru-
ções e pintavam-nas com cores vivas e estridentes: vermelhos, azuis, 
dourados ... Fica difícil admitir que o Partenon, no século quarto antes 
de Cristo, quase não exibisse a cor de suas pedras, tão coberto de tinta 
se encontrava. 
Que esse exemplo não nos confunda! Não se trata aqui de atua-
lização de conteúdo. 
Embora o estereótipo lembrado esteja na cabeça de todas as 
pessoas, ele se formou por força de um fato concreto, objetivo, mate-
rial: os templos gregos que conhecemos mostram-se há séculos sem 
pintura. Trata-se, portanto, de caso típico de alteração real da obra. 
Há aqui um inequívoco elemento neofactual. Diferentemente, no caso 
do enfoque atualizado, a elaboração é toda mental: a obra, mesmo 
sem sofrer alterações físicas, é vista de modo diferente pelo observa-
72 
Partelloll , templo grego, obra de lctinos e Ca lícrates 
sob direção de Fídias, 448-432 a. c. 
Acrópole de Atenas, Grécia -
I1 
ANTONIO P. C OSTELL.A 
dor. No âmbito da atualização surge um" nova manei ra de ~er a obra, 
enq uanto no do conteúdo neofactual a própria obra sofre lnmsforma-
ções físicas. Ins ist indo: no exemplo do templo grego eu o imagino 
branco porque é mesmo assim que os templos gregos materialmente 
se enconlram. 
Os his toriadores da arte, os estetas, os literalos, os artistas em 
gera l não tem dado suficiente atenção à ex traordinária presença do 
elemento neofactual. Enquanto isso, novas maneiras de provocar o 
surgimento de conteúdos neofactuais vão, sorrateira ou abertamente, 
se impondo, em parte alicerçadas em recursos técnicos modernos. Já 
existe uma maneira de tornar coloridos filmes originalmente rodados 
em preto-e-branco. Milhões de cópias impressas reproduzindo qua-
dros ou outras obms de arte sofrem desvio de coloração, seja por 
falha grosseira de registro, seja por sutis va riações químicas dos pig-
mentos. A imagem de televisão comum, isto é, da televis.10 de algu-
mas centenas de linhas, está muito longe dc qualquer fidelidade 
razoável. Embora O setor de gravação musica l tenha evoluído muito, 
subsistem ainda anomalias acústicas nas reproduções. Até mesmo os 
textos escritos não licam a salvo. Tanto é verdade esta últ ima alirma-
ção que, dentre as várias edições de urna obra literária, oficia liza-se 
uma delas como edição-padrão para O futuro. 
Alguém diní que acabamos de fazer a condenação dos meios de 
comunicação modernos, po is todos os exemplos anteriore..'\ colocaram 
esses engenhos no banco dos TI!US, como responsáveis por reprodução 
infiel das obnls. Não é verdadeira, nem justa, a conclusão. Os meios de 
comunicação pernlitiram um fluxo de informação volumoso e rápido, 
com enomlCS benefícios para o ser humano. Prefiro que os Girassóis 
de Van Gogh alegrem milhões de residências, ainda que suas reprodu-
ções coloridas não sejam cópias rigorosamente perfeitas do original. 
Aplaudo entus iasticamente o balé, mcsmo que na transmissão por tele-
visão a qualidade de imagem c S0111 deixe a desejar. 
14 
PAKA A I' IUlClAK A ARTE 
O contcüdo ncofactual nem sempre é um prejuízo. Ele osrcnla 
duas faces: é vida c é morte, ao mesmo tempo. Quando lima obra de 
arte s implesmente se deteriora, há uma perda, há morte. Mas, ,\5 ve-
zes, uma morte parcial pode ser o preço pago por uma nova forma de 
vida. ,?m certos casos, pode mesmo ser um preço baixo se compamdo 
âs inúmeras vantagens resultantes. Veja-se o exemplo acima lembra-
do: uma imensidão de pessoas paSSéI a ter a possibilidade de assistir, 
em casa, a um espetáculo de ba lé, ainda que a tela de vídeo lhes dê 
uma imagem menos definida do que a usufruída pelo público presen-
tc ao teatro. 
Esse caráter contraditório - a um só tempo, vida e morte - do 
conteúdo neofactual manifesta-se de modo patente no traba lho do 
tradutor de obras literárias. O tradutor,.1O exercer seu ofício, não raro 
recria a obra no novo idioma, adaptando-a ao vestuário v'ocabular, à 
s intaxe e ao espírito da língua adotiva. O dilema do tradutor é angus-
tiante: se mantiver a Iitcra lidade, podeni deformar a id6ia do autor; se 
se afastar da tradução litera l, podeni deixar fugir algum ritmo deseja-
do pelo autor. A tradução, a um só tempo, faz nascer e faz morrer 
alguma coisn. 
Caso curiosissimo de elemento neofactual encontra-se no qua-
dro Mor,/"ke Terrace, de William Thmer (Londrçs, 1775- 185 1). Ar-
tista interessado nos cfeitos luminosos, Thrner realizou aqui a proeza 
de pintar uma paisagcm totalmente a contra luz. O sol, pressentido de 
frente, refl6te-se no ri o Tâmisa e "come" o parapeito de pedra. Sobre 
esse parapeito, e l11 si lhucta, caminha um cão. Pois bem. Esse cachor-
ro não existia originalmente no quadro. No dia do vemissage, CIl-
~oJ"mer se ausentara para almoçar, um pintor ri val, talvcz para 
dê'illinciar a falIa de um ponto foeul ma is forte na obra, recortou um 
cão e m papel e colou-o sobre a te la . Voltando, Turner não se 
abespinholl COI11 o acréscimo. Reconheceu que ele era necessário. 
WILLlAM TURNER 
Mortlake Terrace, 1826-1827 
óleo sobre tela 
Galeria Nacional de Arte, Washington 
PARA APRECIAR AARTE 
Apenas removeu o cão alguns milímetros para o lado, tingiu-o de 
preto e lá o deixou definitivamente. 
Convenhamos, esse elemento neofactual foi tão inusitado quanto 
oportuno. 
77 
11. O PONTO DE VISTA ESTÉTICO 
Assim como o alimento é o objeto próprio para nutrir o ser 
humano; a roupa, para protegê-lo do frio; a casa, para defendê-lo das 
agressões do clima e dos bandidos; assim também a obra de arte é o 
objeto apropriado para transmitir-lhe o prazer estético. 
Que vem a ser esse prazer estético? 
Mais fácil de sentir do que explicar, o prazer estético é alarga-
mento da mente e conforto para o espírito. O prazer estético é uma 
forma de bem-aventurança. Pode parecer estranha essa tentativa de 
explicação, mas há lugares, principalmente no Oriente, nos quais a 
fruição da' arte é comparada à postura mística de busca do Absoluto e 
tem, por meta final, levar quase a um estado de êxtase. Lá ou aqui, a 
verdadeira obra de arte faz com que o observador tenha a sensação de 
erescer por dentro e de partilhar uma outra dimensão da realidade. 
~", .... ~" 
Recordando o passado de suas vidas, os leitores talvez se lem-
brem de situações nas quais sentiram um bem-estar profundo, mar-
cante, intenso, depois de visitar uma exposição de artes plásticas ou 
79 
ANTONIO F. COSTELLA 
ler um livro, ou ainda ouvindo uma música ou assistindo a um filme 
ou peça de teatro. Usufruíram, então, o prazer estético, algo. muitas 
vezes parecido com uma estimulante alegria de viver. 
Com esse último comentário, não estou aludindo à capacidade, 
que tem a obra, de despertar sentimentos. Desse tema nos ocupamos 
no capítulo relativo ao ponto de vista expressional. É mais que isso. A 
obra de arte toca também em algum ponto de nosso espírito que está 
além e acima dos sentimentos comuns de alegria, tristeza, ódio, amor, 
ira, etc. Tanto isso é verdade, que a mesma pessoa que chora durante 
a projeção de um filme triste, poderá sair do cinema com a paradoxal 
sensação de ter sido reconfortada, aliviada, feliz, caso o filme seja de 
forte conteúdo artístico. Essa aptidão demonstrada pela obra de arte, 
no sentido de enlevar, extasiar, enobrecer o espírito é o fruto de seu 
valor estético. 
Como se apreende o conteúdo estético? 
A apreensão do conteúdo estético é uma forma de conhecimen-
to que se faz através dos sentidos, mas opera antes de atingir o nível 
da razão. No dizer muito apropriado de Harold Osborne, "a experiên-
cia estética é um modo de cognição através da apreensão

Continue navegando