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�l�ofi� - Consciênci� Mític� � Mit� d� R�ã� CONSCIÊNCIA MÍTICA: - Entre os inúmeros relatos de índios habitantes das terras brasileiras, encontramos o da origem do dia e da noite: ao transportarem um coco, ouviram sair de dentro dele ruídos estranhos e não resistiram à tentação de abri-lo, apesar de recomendações contrárias. Deixaram escapulir então a escuridão da noite. Por piedade divina, a claridade lhes foi devolvida pela Aurora, mas com a determinação de que nunca mais haveria só claridade, como antes, mas alternância do dia e da noite. - Semelhantemente, os gregos dos tempos homéricos relatam a lenda de Pandora, que, enviada aos homens, abre por curiosidade a caixa de onde saem todos os males. Pandora consegue fechá-la a tempo de reter a esperança, única forma de o homem não sucumbir às dores e aos sofrimentos da vida. - A leitura apressada, na busca do sentido do mito, pode nos levar a pensar que se trata apenas de uma maneira fantasiosa de explicar a realidade ainda não justificada pela razão. - No entanto, a noção de mito é complexa e mais rica do que essa posição redutora. Mesmo porque o mito não é exclusividade de povos primitivos, nem de civilizações nascentes, mas existe em todos os tempos e culturas como componente indissociável da maneira humana de compreender a realidade. Herói e o da luta entre o bem e o mal: - Da mesma forma, os psicanalistas aproveitam a riqueza do mito e descobrem nele modelos que se acham nas raízes do desejo humano: a pedra angular da psicanálise se encontra na interpretação feita por Freud do mito de Édipo. - Sófocles, dramaturgo grego do século V a.C. relata esse mito na tragédia Édipo rei. - Em vão Édipo tenta fugir ao destino vaticinado pelo oráculo: matar o pai e desposar a própria mãe. - Ao retomar o mito grego, Freud refere-se ao "complexo de Édipo", que representa o desejo inconsciente de toda criança. O mito entre os primitivos: - Enquanto processo vivo de compreensão da realidade, o mito surge como verdade. - Quando pensamos em verdade, é comum nos referirmos às explicações racionais em que a coerência lógica é garantida pelo rigor da argumentação e da exigência de provas. - Mas não é essa a verdade do mito, que é verdade intuída, isto é, percebida de maneira espontânea, sem exigência de comprovações. - O critério de adesão do mito é a crença, e não a evidência racional. - O mito é portanto uma intuição compreensiva da realidade, é uma forma espontânea de o homem situar-se no mundo. - E as raízes do mito não se acham nas explicações exclusivamente racionais, mas na realidade vivida, portanto pré-reflexiva, das emoções e da afetividade. - Ao entrar em contato com o mundo, o homem não é apenas uma cabeça que pensa diante de um "mundo como tal". Entre os dois existe a fantasia, a imaginação. - Portanto, antes de interpretar o mundo, o homem o deseja ou o teme. Nesse sentido, volta-se para ele ou dele se oculta. Funções do mito: - Embora tenhamos nos referido ao mito enquanto forma de compreensão, a sua função não é, primordialmente, explicar a realidade, mas acomodar e tranquilizar o homem em um mundo assustador. - Os primeiros modelos de construção do real são de natureza sobrenatural, isto é, o homem recorre aos deuses para apaziguar sua aflição. - É um discurso de tal força, que se estende por todas as dependências da realidade vivida, e não apenas no campo sagrado (ou seja, da relação entre o homem e o divino), mas existe em toda a atividade humana. - No mundo primitivo tudo é sagrado e nada é natural. - Para Mircea Eliade, filósofo romeno estudioso do mito e das religiões, uma das funções do mito é fixar os modelos exemplares de todos os ritos e de todas as atividades humanas significativas. Dessa forma, o homem imita os gestos exemplares dos deuses, repetindo nos ritos as ações deles. - Nesse sentido, o tempo sagrado é reversível, ou seja, toda festa religiosa não é uma simples comemoração, mas torna-se a ocasião em que o sagrado acontece novamente e representa a reatualização do evento sagrado que teve lugar no passado mítico, "no começo". O homem primitivo e a consciência de si: - Como todo o real é interpretado por meio do mito, e sendo a consciência mítica uma consciência comunitária, o homem primitivo desempenha papéis que o distanciam da percepção de si como sujeito propriamente dito. - Não é ele que comanda sua ação, já que sua experiência não se separa da experiência da comunidade, mas se faz por meio dela. - Isso não quer dizer que não haja nenhum princípio de individuação, mas que o equilíbrio individual é feito de maneira diferente, mediante a preponderância do coletivo sobre o individual. - Como diz Gusdorf, a primeira consciência pessoal está, portanto, presa na massa comunitária e nela submergida. - Mas esta consciência dependente e relativa não é uma ausência de consciência; é uma consciência em situação, extrínseca e não intrínseca, a individualidade aparecendo então como um nó no tecido complexo das relações sociais. - E o eu se afirma pelos outros, isto é, ele não é pessoa, mas personagem. - A decorrência do coletivismo é o dogmatismo: a consciência mítica é ingênua (no sentido de não crítica), desprovida de problematização e supõe a aceitação tácita dos mitos e das prescrições dos rituais. - A adesão ao mito é feita pela fé, pela crença. - Da visão dogmática decorre a moral dogmatizante, pois, na comunidade que vive sob a preponderância do mito, vimos que a dimensão pessoal se acha submetida ao coletivo, determinando a adaptação sem crítica do indivíduo às normas da tradição. Mito e religião: - Em todo curso de sua história, a religião permanece indissoluvelmente ligada a elementos míticos. - Podemos distinguir três fases na formação dos conceitos de deuses. - A primeira fase é caracterizada pela multiplicidade de deuses momentâneos, assim chamados porque não perduram além do momento. São simplesmente excitações instantâneas, fugidias, às quais é atribuído o valor de divindade, e cuja fonte é a emoção subjetiva, marcada ainda pelo medo. - Esses deuses não representam nem forças da natureza nem aspectos especiais da vida humana. Às vezes, trata-se de um conteúdo mental, como a alegria, a decisão, a inteligência; outras, de um objeto ou de qualquer realidade percebida como tendo sido repentinamente enviada do céu. - Na segunda fase, há a descoberta do sentimento da individualidade do divino, dos elementos pessoais do sagrado. O surgimento dessa nova etapa se dá à medida que a ação exercida pelo homem sobre o mundo se torna mais complexa, fazendo surgir a divisão do trabalho. Assim, toda atividade humana particular ganha o seu deus funcional, que vigia cada etapa do trabalho dos homens. A regulação da atividade encontra sua medida na própria periodicidade dos ciclos naturais (as estações do ano, o plantio, a colheita etc.). E cada ato, por mais especializado que seja, adquire um significado religioso: o homem recorre a divindades que devem protegê-lo a cada momento. - Ao mesmo tempo, o caráter existencial do mito conduz à prática de rituais mágicos, e a fé na magia constitui o despertar da confiança do homem em si mesmo. Ele não se sente mais à mercê das forças naturais e sobrenaturais e desempenha o seu papel, convicto de que o que acontece no mundo natural depende, em parte, dos atos humanos. Convém lembrar aqui que a magia tanto pode ser usada para o bem como para o mal, uma vez que não se encontra ligada a princípios éticos. - A terceira fase caracteriza-se pelo aparecimento do deus-pessoa. Ele é fruto do processo histórico que inclui o desenvolvimento linguístico e aparece quando o nome do deus funcional, derivado do círculo de atividade especial que lhe deu origem, perde a ligação com essa atividade e torna-se um nome próprio, constituindo um novo ser que continua a se desenvolver segundo suas próprias leis. O deus pessoal caracteriza-se por ser capaz de sofrer e agir como os homens. Ele atua de maneiras diversas e seus múltiplos nomes expressam diferentes aspectos de suanatureza, seu poder e sua eficiência. - Como desenvolvimento da terceira fase, surgem as religiões monoteístas, decorrentes de forças morais e que se concentram no problema do bem e do mal. A natureza passa a ser abordada pelo lado racional, e não mais pelo emocional, como acontecia nas fases anteriores. O divino deixa também de ser concebido pelos poderes mágicos e passa a ser enfocado pelo poder de justiça. O sentido ético substituiu e suplantou o sentido mágico, a vida inteira do homem se converte numa luta constante pelo amor da justiça. É pelo exercício do livre-arbítrio, agora que o homem entra em contato com o sagrado. Ao dar a sua livre adesão ao bem, torna-se um aliado da divindade, praticando o "dever " religioso. O mito hoje: - A consciência do homem pré-histórico que existe antes do advento da escrita, permanece ingênua e dogmática. - A nova forma de compreensão do mundo dessacraliza o pensamento e a ação (isto é, retira dele o caráter de sobrenaturalidade), fazendo surgir a filosofia, a ciência, a técnica e a religião. - Quando Augusto Comte, filósofo francês do século XIX e fundador do positivismo, explica a evolução da humanidade com a teoria dos três estados, define a maturidade do espírito humano pelo abandono de todas as formas míticas e religiosas. - Com isso privilegia o fato positivo, ou seja, o fato objetivo, que pode ser medido e controlado pela experimentação. - Essa posição opõe radicalmente o mito à razão, ao mesmo tempo que inferioriza o mito como tentativa fracassada de explicação da realidade. - Ao criticar o mito, o positivismo se mostra reducionista, empobrecendo as possibilidades de abordagens do mundo abertas ao homem. - A ciência é necessária, mas não é a única interpretação válida do real, nem é suficiente. - Quando exaltada, faz nascer o mito do cientificismo: a crença na ciência como única forma de saber possível e mitos também prejudiciais, como o do progresso, cujo fruto mais amargo é a tecnocracia, e os da objetividade e neutralidade científicas. - O mito é o ponto de partida para a compreensão do ser. - Em outras palavras, tudo o que pensamos e queremos se situa inicialmente no horizonte da imaginação, nos pressupostos míticos, cujo sentido existencial serve de base para todo trabalho posterior da razão. - Nas histórias em quadrinhos, o maniqueísmo retoma o arquétipo da luta entre o bem e o mal, e a dupla personalidade do super-herói atinge em cheio o desejo do homem moderno de superar a própria impotência, tornando-se um ser excepcional. - O comportamento do homem também é permeado de "rituais", mesmo que secularizados: as comemorações de nascimentos, casamentos, aniversários, os festejos de ano novo, as festas de formatura, de debutantes, trote de calouros, lembram verdadeiros ritos de passagem. - Mito e razão se complementam mutuamente. - No entanto, o mito, recuperado no cotidiano do homem contemporâneo, não se apresenta com a abrangência que se fazia sentir no homem primitivo. O nascimento da reflexão permite a rejeição dos mitos prejudiciais ao homem. O exercício da crítica racional faz a diferenciação deles, legitimando alguns e negando outros que levam à desumanização. DO MITO À RAZÃO: NASCIMENTO DA FILOSOFIA NA GRÉCIA ANTIGA - Advento da Polis, nascimento da filosofia: entre as duas ordens de fenômenos os vínculos são demasiado estreitos para que o pensamento racional não apareça, em suas origens, solidário das estruturas sociais e mentais próprias da cidade grega. - O que veremos é o processo pelo qual se tornou possível a passagem da consciência mítica para a consciência filosófica na civilização grega, constituída por diversas regiões politicamente autônomas. Periodização da história da Grécia Antiga: - Civilização Micênica: Desenvolve-se desde o início do segundo milênio a.C. e tem esse nome pela importância da cidade de Micenas, de onde, no século XII a.C., partem Agamemnon, Aquiles e Ulisses para sitiar e conquistar Tróia. - Tempos Homéricos (séculos XII a VIII a.C.): São assim chamados porque nesse período teria vivido Homero (século IX ou VIII). Na fase de transição de um mundo essencialmente rural, o enriquecimento dos senhores faz surgir a aristocracia proprietária de terras e o desenvolvimento do sistema escravista. - Período Arcaico (séculos VIII a VI a.C.): Grandes alterações sociais e políticas com o advento das cidades-estados (pólis) e desenvolvimento do comércio e consequente movimento de colonização grega. - Período Clássico (séculos V e IV a.C-): Apogeu da civilização grega. Na política, expressão da democracia ateniense; explosão das artes, literatura e filosofia. Época em que viveram os sofistas, Sócrates, Platão e Aristóteles. - Período Helenístico (séculos III e II a.C.): Decadência política da Grécia, com o domínio macedônico e conquista pelos romanos. Culturalmente se dá a influência das civilizações orientais. A concepção mítica: As epopéias: - Os mitos gregos eram recolhidos pela tradição e transmitidos oralmente pelos aedos e rapsodos, cantores ambulantes que davam forma poética aos relatos populares e os recitavam de cor em praça pública. - Era difícil conhecer os autores de tais trabalhos de formalização, porque num mundo em que predomina a consciência mítica não existe a preocupação com a autoria da obra, já que o anonimato é a consequência do coletivismo, fase em que ainda não se destaca a individualidade. - Além disso, não havia a escrita para fixar obra e autor. - Por esse motivo há controvérsia a respeito da época em que teria vivido Homero, um desses poetas, e até se ele realmente teria existido. - É costume atribuir-lhe a autoria de dois poemas épicos (epopéias): Ilíada, que trata da guerra de Tróia (Tróia em grego é Ilion), e Odisséia, que relata o retorno de Ulisses a Ítaca, após a guerra de Tróia (Odisseus é o nome grego de Ulisses). - De qualquer forma, as epopéias tiveram função didática importante na vida dos gregos porque descrevem o período da civilização micênica e transmitem os valores da cultura por meio das histórias dos deuses e antepassados, expressando uma determinada concepção de vida. - Por isso, desde cedo as crianças decoravam passagens dos poemas de Homero. - As ações heróicas relatadas nas epopéias mostram a constante intervenção dos deuses, ora para auxiliar um protegido seu, ora para perseguir um inimigo. - O homem homérico é presa do Destino (Moira), que é fixo, imutável, e não pode ser alterado. - O herói vive, portanto, na dependência dos deuses e do destino, faltando a ele a nossa noção de vontade pessoal, de livre-arbítrio. - Mas isto não o diminui diante dos homens comuns. Ao contrário, ter sido escolhido pelos deuses é sinal de valor e em nada tal ajuda desmerece a sua virtude. - A virtude do herói se manifesta pela coragem e pela força, sobretudo no campo de batalha, mas também na assembleia, no discurso, pelo poder de persuasão. - Nessa perspectiva, a noção de virtude não deve ser confundida com o conceito moral de virtude como o conhecemos posteriormente, mas como excelência, superioridade, alvo supremo do herói. - Trata-se da virtude do guerreiro belo e bom. A Teogonia: - Hesíodo, outro poeta que teria vivido por volta do final do século VIII e princípios do VII a.C., produz uma obra com características que apontam para a época que se vai iniciar a seguir, com particularidades que tendem a superar a poesia impessoal e coletiva das epopéias. - Mas mesmo assim, sua obra Teogonia (teo: deus; gonia: origem) reflete ainda a preocupação com a crença nos mitos. - Nela Hesíodo relata as origens do mundo e dos deuses, e as forças que surgem não são a pura natureza, mas sim as próprias divindades: Gaia é a Terra, Urano é o Céu, Cronos é o Tempo, surgindo ora por segregação, ora pela intervenção de Eros, princípio que aproxima os opostos. A concepção filosófica: - É no período arcaico que surgem os primeiros filósofos gregos, por volta de fins do século VII a.C. e durante o século VI a.C. - Alguns autores costumam chamar de "milagregrego" a passagem do pensamento mítico para o pensamento crítico racional e filosófico. - Atenuando a ênfase dada a essa "mutação", no entanto, alguns estudiosos mais recentes pretendem superar essa visão simplista e a-histórica, realçando o fato de que o surgimento da racionalidade crítica foi o resultado de um processo muito lento, preparado pelo passado mítico, cujas características não desaparecem "como por encanto” na nova abordagem filosófica do mundo. - Ou seja, o surgimento da filosofia na Grécia não foi o resultado de um salto, um "milagre" realizado por um povo privilegiado, mas a culminação de um processo que se fez através dos tempos e tem sua dívida com o passado mítico. - Algumas novidades surgidas no período arcaico ajudaram a transformar a visão que o homem mítico tinha do mundo e de si mesmo. - São elas a invenção da escrita, o surgimento da moeda, a lei escrita, o nascimento da pólis (cidade-estado), todas elas tornando-se condição para o surgimento do filósofo. A escrita: - Geralmente a consciência mítica predomina nas culturas de tradição oral, onde ainda não há escrita. - É interessante observar que mythos significa "palavra", "o que se diz". - A palavra antes da escrita, ligada a um suporte vivo que a pronuncia, repete e fixa o evento por meio da memória pessoal. - Aliás, etimologicamente, epopéia significa "o que se exprime pela palavra" e a lenda é "o que se conta". - É bem verdade que, de início, a primeira escrita é mágica e reservada aos privilegiados, aos sacerdotes e aos reis. - Enquanto os rituais religiosos são cheios de fórmulas mágicas, termos fixos e inquestionados, os escritos deixam de ser reservados apenas aos que detêm o poder e passam a ser divulgados em praça pública, sujeitos à discussão e à crítica. - Isso não significa que a escrita tenha se tornado acessível a todos. Muito ao contrário, permanece ainda grande o número de analfabetos. - O que está em questão, no entanto, é a dessacralização da escrita, ou seja, seu desligamento da religião. - Como a escrita fixa a palavra, e consequentemente o mundo, para além de quem a proferiu, necessita de mais rigor e clareza, o que estimula o espírito crítico. - Além disso, a retomada posterior do que foi escrito e o exame pelos outros - não só de contemporâneos mas de outras gerações - abrem os horizontes do pensamento, propiciando o distanciamento do vivido, o confronto das idéias, a ampliação da crítica. A moeda: - Por volta dos séculos VIII a VI a.C. houve o desenvolvimento do comércio marítimo decorrente da expansão do mundo grego mediante a colonização da Magna Grécia (atual sul da Itália) e Jônia (atual Turquia). - O enriquecimento dos comerciantes promoveu profundas transformações decorrentes da substituição dos valores aristocráticos pelos valores da nova classe em ascensão. - Na época da predominância da aristocracia rural, cuja riqueza se baseava em terras e rebanhos, a economia era pré-monetária e os objetos usados para troca vinham carregados de simbologia afetiva e sagrada, decorrente da posição social ocupada por homens considerados superiores e do caráter sobrenatural que impregnava as relações sociais. - A fim de facilitar os negócios, a moeda, que tinha sido inventada na Lídia, aparece na Grécia por volta do século VII a.C. - A moeda torna-se necessária porque, com o comércio, os produtos que antes eram feitos sobretudo com valor de uso passam a ter valor de troca, isto é, transformam-se em mercadoria. - A invenção da moeda desempenha papel revolucionário, pois está vinculada ao nascimento do pensamento racional. - Isso porque passa a ser emitida e garantida pela cidade, revertendo benefícios para a própria comunidade. - Além desse efeito político de democratização, a moeda sobrepõe aos símbolos sagrados e afetivos o caráter racional de sua concepção: muito mais do que um metal precioso que se troca por qualquer mercadoria, a moeda é um artifício racional, uma convenção humana, uma noção abstrata de valor que estabelece a medida comum entre valores diferentes. A lei escrita: - Drácon (séc. VII a.C.), Sólon e Clístenes (séc. VI a.C.) são os primeiros legisladores que marcam uma nova era: a justiça, até então dependente da arbitrariedade dos reis ou da interpretação da vontade divina, é codificada numa legislação escrita. - Regra comum a todos, norma racional, sujeita à discussão e modificação, a lei escrita passa a encarnar uma dimensão propriamente humana. - As reformas provocadas pela legislação de Clístenes fundam a pólis sobre uma base nova: a antiga organização tribal é abolida e estabelecem-se novas relações, não mais baseadas na consanguinidade, mas determinadas por nova organização administrativa. - Tais modificações expressam o ideal igualitário que prepara a democracia nascente, pois a unificação do corpo social abole a hierarquia fundada no poder aristocrático das famílias. O cidadão da pólis: - A originalidade da cidade grega é que ela está centralizada na ágora (praça pública), espaço onde se debatem os problemas de interesse comum. - Separam-se na pólis o domínio público e o privado: isto significa que ao ideal de valor de sangue, restrito a grupos privilegiados em função do nascimento ou fortuna, se sobrepõe a justa distribuição dos direitos dos cidadãos enquanto representantes dos interesses da cidade. - Está sendo elaborado o novo ideal de justiça, pelo qual todo cidadão tem direito ao poder. - A nova noção de justiça assume caráter político, e não apenas moral, ou seja, ela não diz respeito apenas ao indivíduo e aos interesses da tradição familiar, mas se refere a sua atuação na comunidade. - A pólis se faz pela autonomia da palavra, não mais a palavra mágica dos mitos, palavra dada pelos deuses e, portanto, comum a todos, mas a palavra humana do conflito, da discussão, da argumentação. - O saber deixa de ser sagrado e passa a ser objeto de discussão. - A expressão da individualidade por meio do debate faz nascer a política, libertando o homem dos exclusivos desígnios divinos, e permitindo a ele tecer seu destino na praça pública. - A instauração da ordem humana dá origem ao cidadão da pólis, figura inexistente no mundo coletivista da comunidade tribal. - Portanto, o cidadão da pólis participa dos destinos da cidade por meio do uso da palavra em praça pública. - Mas para que isso fosse possível, desenvolveu-se uma nova concepção a respeito das relações entre os homens, não mais assentadas nas suas diferenças, na hierarquia típica das relações de submissão e domínio. - De início a igualdade existe apenas entre os guerreiros, mas essa imagem do mundo humano encontrará no século VI sua expressão rigorosa num conceito, o de isonomia: igual participação de todos os cidadãos no exercício do poder. - O apogeu da democracia ateniense se dá no século V a.C., já no período clássico, quando Péricles era estratego. - É bem verdade que Atenas possuía meio milhão de habitantes, dos quais 300 mil eram escravos e 50 mil metecos (estrangeiros); excluídas mulheres e crianças, restavam apenas 10% considerados cidadãos propriamente ditos, capacitados para decidir por todos. - Por isso, quando falamos em democracia ateniense, é bom lembrar que a maior parte da população se achava excluída do processo político. - Aliás, quanto mais se desenvolvia a idéia de cidadão ideal, com a consolidação da democracia, mais a escravidão surgia como contraponto indispensável, na medida em que ao escravo eram reservadas as tarefas consideradas "menores" dos trabalhos manuais e da luta pela sobrevivência. O nascimento do filósofo: - Os primeiros filósofos viveram por volta do século VI a.C. e, mais tarde, foram classificados como pré-socráticos (a divisão da filosofia grega se centraliza na figura de Sócrates) e agrupados em diversas escolas. - A filosofia surgiu no século VI a.C. nas colônias gregas da Magna Grécia e da Jônia. Só no século seguinte desloca-se para Atenas, centro da fermentação cultural do período clássico. - É interessante notar que, enquantoHesíodo, ao relatar o princípio do mundo (cosmogonia) e dos deuses (teogonia), refere- se a sua gênese ou origem, as preocupações dos primeiros pensadores levam à elaboração de uma cosmologia, pois procuram a racionalidade do universo. - Isso significa que, ao perguntarem como seria possível emergir do Caos um "cosmos" - ou seja, como da confusão inicial surgiu o mundo ordenado -, os pré-socráticos procuram o princípio (a arché) de todas as coisas, entendido este não como o que antecede no tempo, mas enquanto fundamento do ser. - Buscar a arché é explicar qual é o elemento constitutivo de todas as coisas. - As respostas dos filósofos à questão do fundamento das coisas são as mais variadas. - Cada um descobre a arché, a unidade que pode explicar a multiplicidade: para Tales é a água; para Anaxímenes é o ar; para Demócrito é o átomo; para Empédocles, os famosos quatro elementos, terra, água, ar e fogo, teoria aceita até o século XVIII. quando foi criticada por Lavoisier. Mito e filosofia: continuidade e ruptura: - Já podemos observar a diferença entre o pensamento mítico e a filosofia nascente: os filósofos divergem entre si e a filosofia se distingue da tradição dogmática dos mitos oferecendo uma pluralidade de explicações possíveis. Assim justificamos a perspectiva comumente aceita da ruptura entre mythos e logos (razão). - Segundo Vernant, Cornford observou que a física jônica é a expressão do pensamento filosófico racional e abstrato, pois recorre a argumentos e não a explicações sobrenaturais. - No entanto, se a atitude do filósofo o distingue do homem mítico, o conteúdo da filosofia permanece semelhante ao do mito, e dele o aproxima. - Para os filósofos, a ordem do mundo deriva de forças opostas que se equilibram reciprocamente, e a união dos opostos explica os fenómenos meteóricos, as estações do ano, o nascimento e a morte de tudo que vive. - Portanto, na passagem do mito à razão, há continuidade no uso comum de cenas estruturas de explicação. - Na concepção de Cornford não existe "uma imaculada concepção da razão", pois o aparecimento da filosofia é um fato histórico enraizado no passado. - Enquanto o mito é uma narrativa cujo conteúdo não se questiona, a filosofia problematiza e, portanto, convida à discussão. - Enquanto no mito a inteligibilidade é dada, na filosofia ela é procurada. - A filosofia rejeita o sobrenatural, a interferência de agentes divinos na explicação dos fenômenos. - Ainda mais: a filosofia busca a coerência interna, a definição rigorosa dos conceitos, o debate e a discussão, organiza-se em doutrina e surge, portanto, como pensamento abstrato. - Na nova abordagem do real, caracterizada pelo pensamento filosófico, podemos ainda notar a vinculação entre filosofia e ciência. - O próprio teor das preocupações dos primeiros filósofos é de natureza cosmológica, de maneira que, na Grécia Antiga, o filósofo é também o homem do saber científico. - Só no século XVII as ciências encontram seu próprio método e separam-se da filosofia, formando as chamadas ciências particulares. Pré-socráticos: - Anaximandro: Anaximandro afirma que, por ocasião da gênese deste cosmos, a força criadora do princípio eterno separou-se do calor e do frio, formando-se uma esfera deste fogo ao redor do ar que envolve a Terra, assim como a casca em torno da árvore. Quando esta se rompeu, dividindo-se em diversos círculos, formaram-se o Sol, a Lua e as estrelas. - Anaxímenes: Outros dizem que a alma é ar, como Anaxímenes e alguns estóicos. As estrelas surgiram da Terra, ao destacar-se desta a umidade ascendente; com a rarefação da umidade, surgiu o fogo; e do fogo, que se elevava, constituíram-se as estrelas. - Heráclito: Eles não compreendem como, separando-se, podem harmonizar-se: harmonia de forças contrárias, como o arco e a lira, A guerra é o pai de todas as coisas e de todas o rei; de uns fez deuses, de outros, homens; de uns, escravos, de outros, homens livres. - Parmênides: Os (anéis) mais estreitos estão cheios de fogo sem mistura; os (seguintes) estão cheios da noite, mas entre ambos está projetada a parte de fogo; no centro destes (anéis) está a divindade que tudo governa; pois em tudo ela é o princípio do cruel nascimento e da união, enviando o feminino a unir-se com o masculino, como, ao contrário, o masculino com o feminino. - Empédocles: Esta (luta das duas forças) é manifesta na massa dos membros humanos: às vezes, unem-se pelo amor todos os membros que atingiram a corporeidade, na culminância da vida florescente; outras, divididos pela cruel força da discórdia, erram separados nas margens da vida. Assim também com as árvores e peixes das águas, com os animais selvagens das montanhas e os pássaros mergulhões levados por suas asas. Referência: ARANHA M.L.; MARTINS M.H.; Filosofando, Introdução à Filosofia. 2ª ed. Editora Moderna. São Paulo. 1993.
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