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Apresentação das ideias raciais do início do século XX. Marineide da Silva Melo1 A formação do povo brasileiro atualmente é contada a partir da miscigenação: habitavam as terras brasileiras os povos indígenas, com a chegada do branco europeu e em seguida do negro africano, esses grupos se misturaram fazendo surgir o povo brasileiro. Isso quer dizer que todo brasileiro carrega um gene misturado, miscigenado com esses grupos, nossa cultura também revelaria traços dessas identidades cruzadas. A miscigenação é o elemento central nesse discurso. E ela é contada sem a existência de conflitos. Mas esse discurso não é tão antigo assim. No início do século XX havia outras ideias mais recorrentes. Em 1911, João Batista de Lacerda, representou o Brasil em um Congresso Universal de Raças em Londres, como médico, antropólogo e cientista. O Brasil desse período era visto negativamente por conta do cruzamento de raças: um exemplo de degeneração, essa era uma influência do Darwinismo Social2. Lacerda defendeu que na verdade, a miscigenação que acontecia aqui no Brasil seria redentora, pois a partir de politicas públicas que incentivassem a imigração europeia, haveria um branqueamento no Brasil. Ele apresentou alguns dados estatísticos que mostravam um aumento na quantidade de brancos e uma diminuição gradativa da quantidade de negros e mestiços. Arriscando uma predição que em cem anos o Brasil teria maioria branca. Lacerda naquele momento defendia os planos do Brasil para a população negra e mestiça: havia um propósito de acabar com essa população. Segundo suas pesquisas em um século a população brasileira seria de maioria branca e no mesmo período desapareceriam negros e mestiços. 1 Graduada em História e Psicologia, professora da Rede Municipal de Maceió e Estadual de Alagoas. Atualmente aluna do curso de História de Alagoas do Instituto Federal de Alagoas. 2 Que recebe esse nome porque faz uso de princípios do Evolucionismo de Charles Darwin. A sociedade intelectual e branca dessa época acreditava que havia sociedades superiores às outras, e assim como na teoria de Darwin os mais aptos dominariam e deixariam descendentes. Dessa forma acreditavam que os brancos seriam dominantes no cruzamento com negros. Produzido no Canva para ilustrar a estatística apresentada por Lacerda. A pintura abaixo representa a ideia de Lacerda, de que as próximas gerações seriam branqueadas a partir da miscigenação. A mulher negra olha para o céu de mãos erguidas num gesto de agradecimento. Ela estaria agradecendo por sua descendência ser branca. Sua filha mestiça e casada com branco, segura o filho branco. A Redenção de Cam de Modesto Brocos, artista espanhol que passou a viver no Brasil a partir de 1890. Disponível em: https://www.diariodocentrodomundo.com.br/tag/a- redencao-de-cam/. Acesso em 16 de outubro de 2021. O nome da pintura também é sugestivo: ”A redenção de Cam”. Cam é um personagem bíblico Filho de Noé, foi amaldiçoado pelo pai por tê-lo visto nu e ter comentado com seus irmãos. Essa maldição é interpretada por alguns como a cor negra, embora haja outras interpretações e não haja essa referência na Bíblia. A redenção de Cam seria a forma como a descendência de Cam ficaria livre da maldição da cor através da ideia “cientifica” do Darwinismo Social. Atividade 1. Como a miscigenação era concebida no Brasil do século XIX? 2. O que foi a tese do branqueamento defendida João Batista de Lacerda no congresso Universal de Raças em Londres? 3. Pelas ideias defendidas por João Batista de Lacerda, você acredita que havia racismo no Brasil? Por quê? 4. E hoje, depois de mais de um século desse evento, existe racismo na nossa sociedade? 5. Qual a relação da obra A redenção de Cam, com as ideais de Lacerda? O fim do mito da Democracia Racial Depois da Segunda Guerra Mundial, diante de tanto sofrimento causado pelo nazismo, pelas ideias eugênicas3, somados as práticas de segregação racial nos Estados Unidos e África do Sul, o Brasil aparece no cenário mundial como um país onde a convivência entre brancos e negros acontece de maneira aparentemente ideal. Obras como Casa Grande e Senzala de Gilberto Freire contribuem para a construção da identidade nacional. Surgindo assim o mito da Democracia Racial do Brasil. Cientistas sociais estrangeiros queriam pesquisar e compreender as relações raciais que aconteciam no Brasil. Pesquisadores influenciados pelas ideias de Lacerda divulgavam que “em menos de 100 anos através de uma gradual absorção, o elemento negro já não existiria mais na sociedade brasileira e que esta seria uma melhor e mais segura solução do “problema negro” (Damasceno, 2013, p. 76)”. Em 1942 Donald Pierson publica uma tese sobre sua pesquisa no Brasil afirmando não haver problema racial no Brasil, mesmo tendo população de cor proporcionalmente maior que a dos EUA. Pierson dizia que ser negro no Brasil poderia contribuir para que uma pessoa pobre permanecesse pobre, mas que não era um fator determinante, porque havia pessoas negras que mudavam de classe social. Ele admitia que havia discriminação indireta relacionada a classe. “No Brasil, indígenas e negros nunca teriam sido alvo de preconceito racial porque não ofereceriam uma ameaça ao status do branco, ou seja, o branco não veria negros nem indígenas como uma ameaça à sua posição de privilégio (Damasceno, 2013, p. 70)”. 3 A eugenia, também chamada de eugenismo, consiste em uma série de crenças e práticas cujo objetivo é o de melhorar a qualidade genética da população. Uma das justificativas para a existência da eugenia é a de que as raças humanas consideradas superiores prevalecem no ambiente de maneira mais adequada. Disponível em: https://www.significados.com.br/eugenia/> acesso em 17 de outubro de 2021. https://www.significados.com.br/eugenia/ Oracy Nogueira foi o primeiro autor brasileiro a pesquisar e publicar um trabalho sobre atitude desfavorável de anunciantes em relação aos empregados negros (1942). Ele formulou uma terceira alternativa: o preconceito de cor. Além dos já conhecidos preconceito de raça e o de classe. . Em 1945 Virginia Bicudo4, apresenta sua dissertação sobre atitudes raciais de pretos e mulatos em São Paulo. Diferente de Oracy Nogueira seus entrevistados eram “gente de cor”, que falariam sobre atitudes em relação ao negro, ao mulato e ao branco. Era a primeira vez que o negro deixara a posição de objeto de investigação e ele próprio podia ser sujeito, falando sobre suas ideias e experiências. Sua proposta era estudar a situação racial através da observação de atitudes, ou seja, a reação da pessoa frente a uma dada situação. Bicudo entendia o preconceito racial como um “sentimento de antipatia ou uma tendência para afastar ou limitar os contatos sociais” (Bicudo, 1945, p. 68, Apud Damasceno p, 101). Bicudo estuda temáticas como “hibridismo cultural, miscigenação, relações amorosas, casamento e dá enfoque ao que chama de “o pensamento obsessivo de não possuir boa aparência”(p. 101). Seus estudos fazem com que ela entenda que a ascensão social leva o negro a adquirir consciência racial, quando ele percebe que mesmo tendo boa condição financeira, ele não é visto como igual ao branco. Sobre os depoimentos anexados a dissertação, Dasmasceno diz: Eles são um dos materiais que narram com maior drama as experiências de homens e mulheres negros que viviam em São Paulo nos anos 1940. Tramas amorosas, familiares e pessoais. Preocupação com a aparência, desilusões com as possibilidades de ascensão social. O auto desprezo, a rejeição ao corpo e a assunção direta de que o branco é melhor, sempre (p. 103).4 Virgínia Leone Bicudo nasceu em São Paulo, em 1910, filha de descendente de escravo e uma imigrante italiana. Concluiu o magistério público estadual, fez o Curso de Educadores Sanitários do Instituto de Higiene de São Paulo, cursou graduação em Ciências Políticas e Sociais. Foi a primeira a tratar da questão racial no Brasil com sua dissertação de mestrado, com titulo: “Estudo de atitudes raciais de pretos e mulatos em São Paulo”. Foi a primeira mulher negra a ser psicanalisada no Brasil. Sua formação em psicanálise aconteceu no Instituto de Psicanálise de Londres. E também foi a primeira mulher, negra e não médica a ser reconhecida como psicanalista. Os entrevistados falam das dificuldades de ser negro e pobre no Brasil, do sentimento de inferioridade que eles sentem, e que muitas vezes preferem estabelecer relações com brancos do que com outros negros. E que os mulatos evitavam se identificarem como negros. O preconceito de cor ficou evidente no trabalho de Bicudo. Agora era necessário pensar em como desenvolver consciência racial, atitudes de simpatia, de admiração entre negros e promover a educação para colocar fim ao sentimento de inferioridade. REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA GOMES, Janaina Damasceno. Os segredos de Virginia: estudos de atitudes raciais em São Paulo (1945 – 1955). Tese (Doutorado), FFLCH - USP, São Paulo, 2013. SCHWARCZ. Lilia Moritz. Previsões são sempre traiçoeiras: João Baptista de Lacerda e seu Brasil branco. História, Ciências, Saúde – Manguinhos, Rio de Janeiro, v.18, n.1, jan-mar. 2011, p.225-242. Disponível em: https://www.scielo.br/j/hcsm/a/wRVg8H99n65JLwhF9BMbHpF/?format=pdf&lan g=pt> Acesso em 16 de outubro de 2021 Atividade 1. Leia o texto a seguir: “Nenhuma cultura, nenhuma gente, nenhum povo depois do português, exerceu maior influência na cultura brasileira do que o negro. Quase todo brasileiro traz a marca dessa influência. Da negra que o embalou e lhe deu de mamar. Da sinhá a que lhe deu de comer, ela própria https://www.scielo.br/j/hcsm/a/wRVg8H99n65JLwhF9BMbHpF/?format=pdf&lang=pt https://www.scielo.br/j/hcsm/a/wRVg8H99n65JLwhF9BMbHpF/?format=pdf&lang=pt fazendo com os dedos o bolão de comida.” Fonte: FREYRE, G. Casa- grande & senzala em quadrinhos. São Paulo: Global, 2009. P. 35. O texto de Freyre contribui para uma visão positiva com relação a população negra do Brasil? Por quê? 2. Qual a contribuição de Virginia Bicudo nas discussões sobre questões raciais no Brasil? 3. As pesquisas de Virginia Bicudo foram há mais de 70 anos. Se essa pesquisa fosse feita na atualidade que resultados poderíamos esperar?
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