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Abordagem Contemporânea da Anticoagulação em Cenários Práticos Introdução: mecanismos de ação da heparina não fracionada, heparinas de baixo peso molecular, varfarina e anticoagulantes orais diretos André Neder Ramires Abdo Médico Hematologista do Hospital Alemão Oswaldo Cruz Entender de forma prática os fenômenos da hemostasia e cascata da coagulação; Aplicar os conceitos no entendimento do coagulograma e exames correlatos; Aplicar os conceitos para entendimento do mecanismo de ação dos anticoagulantes. Inicialmente, qual o motivo de tanta informação e preocupação sobre a coagulação e seus mecanismos? A resposta, apesar de direta, é bastante complexa. Vamos nos referir ao termo hemostasia como uma tentativa de compartimentalizar um dos mecanismos mais fascinantes da evolução, ou seja, a capacidade de um ser vivo manter a homeostase evitando a perda por hemorragia (coagulação) na medida correta, sem excessos (fibrinólise), no caso das tromboses. Mas, caro aluno, não acredite que o mecanismo para por aí, a hemostasia (chamaremos assim esse fenômeno de equilíbrio) também faz interface com outros tão importantes controladores da homeostase e da evolução, como o sistema imunológico, por exemplo. Mas, quando o interesse por essa área se inicia? Introdução Voltemos aos fatos históricos: as primeiras descrições sobre hemostasia datam de 1628, realizadas pelo inglês William Harvey em seu livro intitulado Exercício anatômico sobre o movimento do sangue nos animais, passando pela descoberta da heparina (extraída do fígado de cachorro) em 1916 por Jay McLean e a estrondosa redução da mortalidade por trombose (de 18% para 0,4%) com sua utilização a partir de 1935, a comercialização da varfarina em 1936, a descoberta dos fatores da coagulação nas décadas de 1940 e 1950 (e sua nomenclatura em algarismos romanos de I a XIII, e alguns, inclusive, têm como epônimo o nome de pacientes), até a extração e síntese de alguns fatores da coagulação (para tratamento de desordens hemorrágicas) e por fim com o desenvolvimento de novas opções de anticoagulação oral, cada vez mais práticas (novos anticoagulantes). Apesar de o sangramento (em excesso, por exemplo, nas hemofilias) ter tomado grande parte dos estudos da coagulação, desde o século XIX os relatos do Dr. Armand Trousseau (sim, aquele mesmo do sinal de Trousseau) relacionando trombose e câncer (inclusive nele próprio, aos 66 anos de idade) fez com que os estados de hipercoagulabilidade ganhassem grande parte da atenção. Na figura a seguir reproduzimos dois exemplos de publicações de Trousseau. Figura 1: Publicações do Dr. Armand Trousseau Fonte: Young et al. (p. 1343)1 Sabidamente, caro aluno, ao final deste curso, você poderá se apoiar nos ombros desses gigantes que contribuíram durante toda história para o entendimento da hemostasia e conseguirá, de forma segura, utilizar esse conhecimento em sua prática clínica de forma objetiva e eficaz. Saiba mais Armand Trousseau (Tours, 14 de outubro, 1801 — Paris, 23 de junho, 1867) foi um médico francês que descreveu dois sinais: o sinal de Trousseau de malignidade e o Sinal de Trousseau de tetania latente. O primeiro sendo descrito quando descobriu a causa de sua morte, um câncer pancreático. Tanto a coagulação (controle do sangramento) quanto a fibrinólise (controle do excesso). A cascata da coagulação é uma tentativa de sintetizar esses dois fenômenos de forma objetiva e racional (embora também seja um assunto considerado difícil por muitos estudantes). Mas, isso é passado, entender de forma prática a cascata da coagulação é pré-requisito mínimo para manejar com segurança, na prática, o crescente número de drogas disponíveis para profilaxia e tratamento dos fenômenos trombóticos, assim como entender situações hemorrágicas e sua condução. 1. A cascata da coagulação Apesar de hoje entendermos que a hemostasia é um fenômeno dinâmico, não linear e muito mais complexo do que imaginávamos (como a teoria da cascata de coagulação baseada em superfícies celulares), de forma didática buscamos separá-la em três partes: a via intrínseca, a via extrínseca e a via comum (modelo proposto em 1964)². Nesse modelo, uma série de reações proteolíticas (enzimáticas) sequenciais – e que são deflagradas por elementos do sangue e do compartimento intravascular (via intrínseca) e por elementos usualmente não presentes no espaço intravascular, como o tecido lesado (via extrínseca) – convergem para uma via de ativação comum que culmina com a geração de trombina (fator IIa) e com a formação de fibrina a partir do fibrinogênio (fator I), e esta última (fibrina) será parte fundamental na formação do coágulo. Observe que, de certa forma, a nomenclatura dos fatores de coagulação na cascata está “às avessas”, ou seja, terminamos com os primeiros fatores da coagulação (FII e FI, protrombina e fibrinogênio)². Atenção Um conceito muito importante no entendimento de qualquer esquema de reação enzimática em cascata, é o fato de que um componente sempre deverá estar em seu estado não ativado e, após o estímulo enzimático/proteolítico, este se torna ativado, portanto, denominaremos o componente (no caso o fator) ativado com a letra “a”. Vejamos um exemplo básico: todo o mecanismo converge para a última etapa ou formação do coágulo pela fibrina, logo, o precursor (ou forma inativa da fibrina, chamado fibrinogênio ou fator I) será ativado e transformado em fibrina (fator Ia)2. Mais adiante isso será resumido de forma ilustrada em um esquema (Figura 2). Mas, antes, vamos entender um pouco mais sobre as “as três vias”, começando pela junção ou via comum, que corresponde à ativação do fator X em fator Xa, que, por sua vez, em conjunto com o fator Va ativam/transformam a protrombina (FII) na sua forma ativada trombina (FIIa) que estimula a geração da forma ativada do fibrinogênio (FI), chamada fibrina (Fia). A via intrínseca (assim denominada devido a seus elementos estarem presentes no intravascular) se inicia com a ativação do fator XII, quando o sangue entra em contato com uma superfície, contendo cargas elétricas negativas, chamada de “ativação por contato” (e requer ainda a presença de outros componentes do plasma: pré-calicreína e cininogênio de alto peso molecular) que ativa o fator XI (em F XIa), que, por sua vez, ativa o fator IX (em fator IXa) que na presença de fator VIIIa ativa o fator X (início da via comum). Por sua vez, na via extrínseca (geralmente iniciada por elementos que não estão no intravascular) o fator VII plasmático é ativado na presença de seu cofator, o fator tecidual (FIII) – exposto após lesão tecidual – , formando o complexo fator VII ativado/FIII (FVIIa/FIII), responsável pela ativação do fator X (início da via comum)³. Apesar da formação do coágulo, para que ocorra a inibição do excesso e para a perpetuação do controle hemostático, são necessários (como em toda sequência enzimática) mecanismos suficientemente coesos, como a fibrinólise e a presença de substâncias com propriedades anticoagulantes naturais (por exemplo: a proteína C, a proteína S e a antitrombina)³. Você deve estar se perguntando: mas, e antes da via comum? No entanto, apesar de didático, o modelo de cascata da coagulação sofreu grandes modificações e atualmente apresenta-se de forma mais completa, não mais dividido em “vias”, mas, sim, em “fases” (denominadas iniciação, amplificação, propagação e finalização). Como exemplo, apresentamos na Figura 3 o Modelo Baseado em Superfícies Celulares 3,5. Figura 2: Cascata da Coagulação (Clássica) Fonte: adaptado de Franco (p. 230)4. Figura 3: Modelo da Cascata de Coagulação baseado em superfícies celulares Fonte: Ferreira et al. (p.147)³. Leitura Complementar Ferreira CN, Sousa MO, Dusse LMS, Carvalho MG. O novo modelo da cascata de coagulação baseado nas superfícies celulares e suas implicações. Rev Bras Hematol Hemoter. 2010[acesso em 14 jun. 2019];32(5):416-421.Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/rbhh/v32n5/aop101010. Entretanto, para nossa abordagem prática e manejo da anticoagulação na atualidade, o modelo de cascata da coagulação (clássico) nos é, de certa forma, suficiente e racional. No tópico a seguir, vamos correlacionar as drogas anticoagulantes disponíveis com base no que entendemos até agora. http://www.scielo.br/pdf/rbhh/v32n5/aop101010 Para que possamos colocar em prática aquilo que foi aprendido no tópico anterior, principalmente no exercício didático de entender a cascata da coagulação, é necessário entendermos os mecanismos de ação dos principais anticoagulantes. Alguns conceitos importantes, identificados a partir da cascata, são justamente os resultados dos exames laboratoriais que de forma objetiva (nem sempre corretas) nos informam o que aparentemente estaria acontecendo na coagulação. O coagulograma – tempo de trombina (TT), tempo de tromboplastina parcial ativada (TTPA) e tempo de protrombina (TP) – é de extrema valia no dia a dia para entendimento dos diagnósticos. Lembre-se que somos médicos, portanto, é fundamental na nossa prática como prescritores (e não transcritores) entendermos o que prescrevemos. 2. Varfarina, heparina não fracionada (HNF) e heparina de baixo peso molecular (HBPM) O TTPA é um exame/procedimento que, com a adição de cefalina, cálcio e um ativador do fator XII (substâncias que estimulam a ativação da via intrínseca sem ativar o fator VII), simula a via intrínseca, desde a ativação do fator XII até a formação do coágulo (fibrina ou fator FIa). Por outro lado, o TP mede a velocidade de formação do coágulo desde o início da ativação do fator VII e, portanto, reflete a via extrínseca. Por fim, o TT mimetiza a via comum (leia-se: ativação do fator X até a formação de trombina) 6,7,8 . Figura 4: Etapas da cascata da coagulação sob a ótica dos exames de triagem Fonte: elaborado pelo autor. CAPM PK XI IX VIII X V II VII TP TTPa Fibrinogênio Fibrina TT XII Nota: CAPM: cininogênio de alto peso molecular; PK: pré-calicreína. Iniciaremos os mecanismos de ação dos anticoagulantes pela mais conhecida e mais antiga, a varfarina, também conhecida como agente cumarínico, que na verdade age como antagonista da vitamina K (um importante cofator para a síntese hepática dos fatores II, VII, IX e X). Os representantes disponíveis no mercado brasileiro incluem a própria varfarina (warfarin) e a femprocumona (Marcoumar®). Ressalta-se, porém, que o uso da femprocumona tem diminuído progressivamente pelo fato de que a maioria dos estudos são realizados com a varfarina. A inibição da síntese dos fatores K dependentes, entre eles o FVII (correspondente da via extrínseca e, como também mencionado no item anterior, do TP), acarreta o bloqueio da formação do coágulo e no efeito anticoagulante desejado. Atenção As proteínas S e C, que são anticoagulantes naturais, também são K dependentes, então CUIDADO, pois, até a obtenção da anticoagulação, existe um período inicial pró-trombótico9! Em seguida, temos a heparina não fracionada (HNF), uma glicosaminaglicana sulfatada, de peso molecular médio de 15.000 dáltons, que exerce sua ação essencialmente sobre a antitrombina (lembrando que esta é um anticoagulante natural) aumentando sua atividade em cerca de mil vezes, e por sua vez atua inibindo mais acentuadamente a trombina (fator IIa) e fator Xa, sendo seu reflexo laboratorial a medida do TTPA (via intrínseca e via comum) 9. Por fim, as heparinas de baixo peso molecular (HBPM) são assim chamadas pois derivam de frações da heparina não fracionada (HNF) e têm peso molecular médio de 5.000 dáltons. Por terem tamanho menor, quase não há inibição da trombina (FIIa) diretamente, apenas do fator Xa9 (observe que inibe apenas a via comum), motivo pelo qual o TTPA não serve como parâmetro para medir sua atividade, mas, sim, um outro exame, denominado dosagem do fator anti-Xa. Após décadas sem opção de anticoagulação oral, exceto pela varfarina (aliás, em 1999 este foi o 11º medicamento mais prescrito nos Estados Unidos), novos e promissores fármacos começaram a ser testados, aprovados e comercializados. “Os novos anticoagulantes”, como eram chamados, não mais usariam o mecanismo de antagonismo da vitamina K, mas, sim, exerceriam sua função de forma parecida com a ação da heparina (em especial da HBPM), ou seja, não haveria necessidade de controle do tempo de protrombina como no caso da varfarina. Lembrando que a HBPM, por agir diretamente na via comum, em teoria, não afetaria nem o TP, nem o TTPA. Mas, como funcionam então os novos anticoagulantes? Funcionam de duas formas: A primeira ocorre por inibição direta da trombina (FIIa), sem necessidade, por exemplo, de estimular (ter como cofator) a antitrombina (como faz a heparina não fracionada). Como exemplo de drogas utilizadas nesse caso, temos a dabigatrana que é metabolizada no fígado, transformando-se em um composto ativo que se liga de forma competitiva e reversível ao sítio de atividade da trombina. A segunda forma de atuação dos novos anticoagulantes é chamada de inibição direta do fator Xa (bloqueando, neste caso, a via comum), cujas drogas mais conhecidas são a rivaroxabana e a edoxabana, ambas com metabolização hepática que se ligam de forma reversível ao sítio de atividade do fator Xa, e a apixabana, também de metabolização hepática que impede a atividade do fator Xa (com ligação seletiva e reversível)10,11. 3. Novos anticoagulantes Figura 5: Cascata de anticoagulação com os locais de ação dos medicamentos anticoagulantes Fonte: Fernandes et al. (p. 147)¹¹. Leitura Complementar Lewis SM, Bain BJ, Bates I. Hematologia prática de Dacie e Lewis. 9a ed. Porto Alegre: Artmed; 2006. 572 p. O diagrama da cascata de anticoagulação pode ser melhor apreciado no infográfico interativo associado a este módulo. Entender os mecanismos da hemostasia é condição primordial para a correta condução e tratamento das situações que a envolvem. A abordagem prática atual do uso dos anticoagulantes, dado o número crescente de novas drogas para o tratamento dos fenômenos trombóticos, deve ser suportada antes por uma base sólida em conceitos básicos sobre o funcionamento (mesmo que apresentados de forma didática) da fisiologia e por consequência da fisiopatologia que envolve esse fenômeno responsável pelo equilíbrio da hemostasia. Nos próximos módulos vocês terão a oportunidade de aplicar os conceitos estudados nas diversas situações patológicas do dia a dia da medicina (independentemente de sua especialidade). Conclusão Glossário Fibrinólise: Processo através do qual um coágulo de fibrina (produto da coagulação do sangue) é destruído. A fibrina é degradada pela plasmina levando à produção de fragmentos circulantes que são depois destruídas por outras proteínas ou pelos rins e fígado. Trombose: Formação de um trombo ou coágulo no interior de um vaso ou de uma cavidade cardíaca. Heparina: Esse medicamento é um anticoagulante (evita que o sangue se coagule dentro do vaso). A heparina pode ser usada no tratamento da trombose (venosa, pulmonar, cerebral), do infarto agudo do miocárdio e na prevenção do entupimento dos vasos cerebrais, que pode acontecerem pacientes que têm fibrilação atrial (um tipo de arritmia cardíaca) e em pacientes que tiveram que trocar válvulas cardíacas. Hemostasia: Interrupção de uma hemorragia por meios mecânicos, físicos ou químicos, ou em outras palavras, conjunto de mecanismos fisiológicos por meio dos quais se faz a parada de uma hemorragia (vasoconstrição, aderência e agregação plaquetária e coagulação). Anticoagulante: Substância que impede ou diminui a coagulação do sangue. São diversos os coagulantes conhecidos e que são utilizados em terapêutica ou, nos laboratórios, para evitar a coagulação do sangue que vai ser analisado ou estudado. 1. Young P, Bravo MA, González MG, Finn BC,Quezel MA, Bruetman JE. Armand Trousseau (1801-1867), su historia y los signos de hipocalcemia. Rev Med Chile. 2014[acesso em 14 jun. 2019];142:1341-1347. Disponível em: https://scielo.conicyt.cl/pdf/rmc/v142n10/art17.pdf 2. Macfarlane RG. An enzyme cascade in the blood clotting mechanism,and its function as a biological amplifier. Nature. 1964;202:498-9. 3. Ferreira CN, Sousa MO, Dusse LMS, Carvalho MG. O novo modelo da cascata de coagulação baseado nas superfícies celulares e suas implicações. Rev Bras Hematol Hemoter. 2010;32(5):416-21. 4. Franco RF. Fisiologia da coagulação, anticoagulação e fibrinólise. Medicina, Ribeirão Preto, jul./dez. 2001[acesso em 14 jun. 2019];34:229- 237. http://revista.fmrp.usp.br/2001/vol34n3e4/fisiologia_coagulacao.pdf. 5. Markus Berger et al. Caderno pedagógico, Lajeado, v. 11, n. 1, p. 140-148, 2014 6. Hoffman M. Remodeling the blood coagulation cascade. J Thromb Thrombolysis. 2003;16(1/2):17-20. 7. Riddel Jr JP, Aouizerat BE, Miaskowski C, Lillicrap DP. Theories of blood coagulation. J Pediatr Oncol Nurs. 2007;24(3):123-31. 8. Monroe DM, Hoffman M. The coagulation cascade in cirrosis. Clin Liver Dis. 2009;13(1):1-9. 9. Becattini C, Lignani A, Agnelli G. New anticoagulants for the prevention of venous thromboembolism. Drugs Devel Ther. 2010; 4:49-60 10.Grillo TA, Miranda RC. Rev Med Minas Gerais 2014; 24(Supl 8): S87-S95 11. Fernandes CJCS, Alves Júnior JL, Gavilanes F, Prada LF, Morinaga LK, Souza R. Os novos anticoagulantes no tratamento do tromboembolismo venoso. J Bras Pneumol. 2016;42(2):146-54. Referências http://revista.fmrp.usp.br/2001/vol34n3e4/fisiologia_coagulacao.pdf
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