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35 PSICOLOGIA CONSTRUTIVISTA 5 OS ESTÁDIOS DO DESENVOLVIMENTO COGNITIVO SEGUNDO PIAGET Por volta de 1920, Piaget ainda jovem desenvolve trabalhos no Laboratório de Alfred Binet (1857‑1911), investigando o desenvolvimento intelectual de crianças a partir de testes psicométricos. Em seus estudos, observa que crianças francesas da mesma idade cometem os mesmos erros e conclui que o pensamento lógico se desenvolve gradualmente. O trabalho de Piaget com testes de inteligência, e seus questionamentos a respeito, motivou o direcionamento de suas pesquisas para a área da psicologia do desenvolvimento. Assim sendo, para examinar o processo de desenvolvimento do pensamento, Piaget passou a observar seus próprios filhos e também outras crianças, concluindo que o modo de pensar infantil é qualitativamente diferente do modo de pensar dos adultos. Com isso, passa a ter uma compreensão psicogenética da inteligência e não psicométrica como seus colegas Alfred Binet (1857‑1911) e Théodore Simon (1872‑1961). Em outras palavras, enquanto os psicometristas medem ou quantificam a inteligência, Piaget preocupa‑se em compreender o modo como o pensamento das crianças desenvolve‑se durante a infância e a adolescência, propondo sequências universais do desenvolvimento cognitivo. Dessa forma, para entender a lógica do adulto, Piaget estudou o desenvolvimento do pensamento infantil, entrevistou e observou crianças de idades diferentes e chegou a períodos que denominou estádios do desenvolvimento cognitivo. Lembrete Apesar da utilização de estádios ter sido constante durante toda sua obra, Piaget somente define o conceito de estádio depois dos trabalhos sobre a inteligência sensório‑motora em 1936‑1937 (TRAN‑THONG, 1981). De acordo com Macedo (2009), Estádio ou estágio?, manuscrito não publicado, estádio é quando o processo de equilibração toma a forma de períodos sequenciais, em que existe, sempre, uma fase de preparação e outra de acabamento, e em que as estruturas formadas num período integram‑se em outras superiores, do período seguinte. Ao final do processo, temos fases do desenvolvimento integradas umas nas outras, e os esquemas construídos em cada uma delas são utilizados pelo sujeito de maneira interdependente. Por isso seu caráter é de integração ou de inclusão. Unidade II 36 Unidade II Por oposição a essa ideia, temos a definição de estágio, em que se pressupõe a falta de algo para completar uma determinada formação; são experiências, observações, atividades práticas, que completam uma formação, por isso seu caráter é de superação de um estágio mais simples em direção a um estágio melhor ou superior. Segundo Macedo, confundir ou reduzir estádio a estágio leva a uma compreensão e aplicação equivocada da teoria de Piaget. Se pensarmos estádio como estágio, então faz sentido ler o desenvolvimento e a aprendizagem da criança na perspectiva do que lhe falta, do que ela não tem. Ora, estádio em Piaget tem uma característica positiva (é o melhor do que podemos ser em determinado momento de um processo). Estágio, nesse outro sentido, representa algo negativo (caracteriza alguém por aquilo que ele não é, que lhe falta ser). Sendo assim, em uma perspectiva piagetiana, a construção do conhecimento ocorre em estádios de desenvolvimento e a sequência desses estádios é sempre a mesma, mas a idade dos sujeitos pode variar de acordo com o meio ou a cultura na qual está inserido. São os seguintes estádios ou fases de transição pelos quais o sujeito irá percorrer durante seu desenvolvimento: • estádio sensório‑motor (0 a 2 anos); • estádio pré‑operatório (2 a 6 anos); • estádio operatório concreto (7 a 11 anos); • estádio operatório formal (12 a 15 anos). Observação A aprendizagem refere‑se à aquisição de uma resposta particular, aprendida em função da experiência, obtida de forma sistemática ou não; o desenvolvimento seria uma aprendizagem de fato, sendo este o responsável pela formação dos conhecimentos (MACEDO, 2002). 5.1 Estádio sensório-motor (0 a 2 anos) O bebê nasce com atos e ações reflexas, inatas e automáticas (sucção, preensão) e é, no início, um sujeito passivo que constrói esquemas simples que funcionam isoladamente de maneira circular e repetitiva (pegar, olhar, bater, sugar). Durante esse período (do nascimento até aproximadamente 2 anos), irá desenvolver comportamentos voluntários e conscientes, encadear ações para um determinado fim, tornando‑se um sujeito ativo (domínio e variação das ações). Os esquemas passam a ser complexos com invenção e criação de ações (pegar, ouvir, olhar/ouvir, pegar, olhar/levantar, andar, pegar, sugar). Piaget afirma que esses 37 PSICOLOGIA CONSTRUTIVISTA comportamentos são atos inteligentes e que é no período sensório‑motor que ocorre o nascimento da inteligência da criança. Sendo assim, o processo de adaptação da criança no estádio sensório‑motor é marcado pela assimilação, que ocorre de três formas: • assimilação funcional – repetição do esquema; • assimilação generalizada – utilização do esquema em diferentes situações.; • assimilação recognitiva – reconhecimento dos esquemas. Observação Para melhor compreender as características de desenvolvimento da criança no estádio sensório‑motor, releia os principais conceitos estudados na primeira parte desta unidade. Segundo Piaget, o estádio sensório‑motor é composto por seis subestádios. A seguir, vamos estudar cada um deles a fim de compreender como a criança vai coordenando e organizando as informações de seu ambiente para, progredindo na sua aprendizagem, utilizar símbolos e conceitos na resolução de situações‑problema. Quadro 2 Estádio sensório-motor Subestádio Idade Características 1º 0 a 1 mês Exercício dos reflexos Esquemas simples Atividade reflexa 2º 1 a 4 meses Reação circular primária Primeiras diferenciações 3º 4 a 8 meses Reação circular secundária Reprodução de eventos interessantes 4º 8 a 12 meses Noção de objeto permanente Coordenação de esquemas Nascimento da inteligência 5º 12 a 18 meses Reação circular terciária Invenção de novos meios 6º 18 a 24 meses Fase de transição Representação 38 Unidade II 1º Subestádio (do nascimento até o 1º mês) Formação dos primeiros esquemas por meio do exercício dos reflexos (sucção, preensão, visão, audição). Ao exercitar seus reflexos inatos, o bebê constrói um controle sobre eles. Um exemplo disso seria o sugar, os recém‑nascidos sugam por reflexo quando seus lábios são tocados, ao interagirem com o seio materno, aprendem a encontrar o mamilo mesmo quando não são tocados e apresentam o movimento de sugar mesmo quando não estão com fome. Assim sendo, quando um objeto lhe é colocado na boca, ele passa a sugá‑lo e, quando um objeto é colocado em sua mão, ele o agarra, mesmo não tendo ainda a compreensão do que seja. Portanto, todos os estímulos são incorporados (assimilados) aos esquemas reflexos e modificados (acomodação) como resultado do seu uso repetitivo (circular) e pela interação com o meio. Com isso, o uso dos reflexos pelo bebê torna‑se essencial para o desenvolvimento das estruturas cognitivas dos estádios seguintes. Lembrete Podemos levantar a hipótese de que um bebê que é impedido dessa qualidade de interação poderá sofrer danos em seu desenvolvimento cognitivo. 2º Subestádio (1 a 4 meses) Nesse momento, há a mudança de comportamentos reflexos em função da experiência (repetição circular), e a criança de uma adaptação hereditária passa a uma adaptação adquirida. Resultados obtidos ao acaso são conservados por repetição (sugar polegar, olhar, balbuciar, agarrar, pegar e largar...). É a formação dos primeiros hábitos: a criança repete uma ação que deu certo (dedo na boca), e Piaget chamou isso de reação circular primária. Reação circular primária Repetir ações Reflexos Figura 4 39 PSICOLOGIA CONSTRUTIVISTA Assim, é o momento da formação de hábitos adquiridos, por exemplo, o hábito de chupar o dedo polegar é um comportamento tipicamenteadquirido nesse período, pois se torna habitual e não mais puramente reflexo, uma vez que pode ser controlado pela criança (coordenação mão‑boca). Outro aspecto interessante é que o movimento dos objetos começa a ser seguido pelos olhos (coordenação da visão), e a cabeça movimenta‑se em direção aos sons (coordenação da visão‑audição). Embora avanços tenham ocorrido, ainda não existe intencionalidade – ato de iniciar um comportamento dirigido a certo fim. 3º Subestádio (4 a 8 meses) O bebê apresenta reação circular secundária ou assimilação reprodutiva – a criança repete resultados interessantes obtidos ao acaso com intenção, para obter um objeto ou fazer durar os espetáculos interessantes. Por exemplo, puxar a corda do móbile ao acaso e depois repetir com intenção de observar o movimento ou o som do objeto; sacudir um chocalho várias vezes para ouvir o som; balbuciar repetidamente. Essa é uma fase de transição entre os atos pré‑inteligentes (ao acaso) para os atos inteligentes (intenção). Há coordenação entre visão – apreensão (agarra o que vê, sacode chocalhos, puxa cordões). Em relação ao conceito de objeto, a criança não tem a noção de objeto permanente, existe a busca do objeto, mas restrita à trajetória ou à ação e não ao objeto (o que vejo existe, o que não vejo não existe). 4º Subestádio (8 a 12 meses) Ocorre a formação da inteligência sensório‑motora, surgem comportamentos que constituem verdadeiros atos de inteligência, ou seja, aplicação de meios já conhecidos para resolver situações novas. A criança já é capaz de variar, coordenar, generalizar diferentes ações ou os meios para atingir um fim. Existe a intencionalidade e o desejo (objetivo), no entanto, ela não cria meios novos para atingir um fim, utilizará apenas os meios conhecidos. Não existe planejamento, apenas o estímulo do meio. Nesse sentido, a criança constrói a noção de objeto permanente, busca o objeto que é tirado de seu campo visual, presenciando o momento em que é escondido. No entanto, se escondido uma segunda vez em outro local (sob sua vista), irá procurar no primeiro lugar novamente – repetição do que deu certo. 40 Unidade II Figura 5 Disponível em: https://bit.ly/3oiA2Kf. Acesso em: 5 jul. 2021. 5º Subestádio (12 a 18 meses) O bebê apresenta reação circular terciária, ou seja, repete uma ação para conhecer e explorar as propriedades do objeto. Por exemplo, deixar cair um objeto várias vezes no chão ou pisar de diferentes modos em um brinquedo de plástico para ouvir as diferentes possibilidades de som. Começam, assim, a experimentar novos comportamentos para ver o que acontece. Como já caminham, podem explorar o ambiente, variando suas ações ao invés de simplesmente utilizar para isso a repetição, mostrando, com isso, originalidade na resolução de problemas. Assim sendo, há o aparecimento de formas mais elevadas de atividade comportamental antes do aparecimento da representação. A criança cria (inventa) novas formas de ação para atingir um fim (acomodação), por isso apresenta maior capacidade para diversificar e controlar suas ações. Em relação à noção de objeto, leva em consideração os deslocamentos sucessivos do objeto, procura‑o no ponto onde foi visto pela última vez, mas sabe da existência do mesmo; por isso, se não o encontra, vai buscá‑lo em outros locais. Lembrete A criança, nesse momento, apresenta três condutas inteligentes: suporte, barbante e bastão. 41 PSICOLOGIA CONSTRUTIVISTA 6º Subestádio (18 a 24 meses) Este é um momento de transição, marcado pelo final do estádio sensório‑motor e início do estádio pré‑operacional, em que ocorre a passagem da ação para a representação (imaginar acontecimentos). Assim, desenvolve‑se a capacidade representacional, isto é, a capacidade de representar mentalmente objetos e ações por meio de símbolos (palavras e imagens), libertando a criança da experiência imediata. Com isso, ela deixa as tentativas por ensaio e erro para antecipar acontecimentos, combinando ações mentais ao invés de ações físicas. Esse momento é marcado pela passagem da ação explícita para a representação mental, com o aparecimento, por exemplo, da linguagem. Piaget exemplifica isso com a seguinte observação: apresenta à sua filha, Jacqueline, uma corrente e uma caixa de fósforos. Ele manuseia a caixa várias vezes, de modo que ela possa acompanhar todos os movimentos: abre, fecha, coloca a corrente dentro da caixa, fecha, chacoalha, abre novamente e retira a corrente. Em um dado momento, coloca a corrente dentro da caixa, fecha e a entrega a sua filha. Jacqueline pega a caixa, chacoalha, tenta abrir para retirar a corrente, mas não consegue, olha para seu pai e sem expressar uma linguagem oral, uma vez que se encontra em processo de aquisição de linguagem, abre e fecha a boca, representando o movimento de abrir e fechar a caixa, como forma de comunicação. Eis que nesse momento surge a capacidade de representação: utilização de um significante com um significado, capacidade unicamente humana, diferindo o homem de outros animais. Vamos, então, conhecer o que ocorre no desenvolvimento cognitivo da criança nesse próximo estádio. Saiba mais Convidamos você a ler o artigo a seguir: FERRARI, M. Jean Piaget, o biólogo que colocou a aprendizagem no microscópio. Revista Brasil Escola, 2008. Disponível em: https://bit.ly/3sbDcQP. Acesso em: 2 jul. 2012. 5.2 Estádio pré-operatório (2 a 6 anos) No estádio pré‑operacional, a criança evolui de um funcionamento basicamente sensório‑motor, expresso por meio de ações, para um modo conceitual e representacional. Assim, esse período é marcado pela passagem da inteligência sensório‑motora ou prática para a inteligência representativa, a criança se torna apta para representar objetos e eventos. Isso ocorre porque, a partir dos 2 anos, a criança passa a ter uma função de pensamento, chamada de função simbólica ou semiótica, que possibilita a representação de um objeto ausente (significante) por meio de um significado, que pode ser expresso de várias maneiras. 42 Unidade II Lembrete Função simbólica ou função semiótica, na terminologia de Piaget, é a capacidade de utilizar representações mentais (palavras, números e imagens) às quais a criança atribuiu significado. Assim, são vários os tipos de representação que têm relevância no desenvolvimento nesse período. Pela ordem de aparecimento, são eles: imitação diferida, jogo simbólico, desenho, imagem mental, linguagem ou evocação verbal. Vamos compreender o significado de cada um deles no desenvolvimento do pensamento da criança. 5.2.1 Imitação diferida É a capacidade da criança para representar mentalmente (recordar) um comportamento imitado na ausência do modelo. A criança faz imitação de objetos e eventos, depois de sua ocorrência, longe da situação ou do objeto imitado. Piaget (2003) apresenta o exemplo de uma criança que vê um amigo zangar‑se, chorar e bater os pés (espetáculos novos para ela), e somente após algum tempo, longe do colega, ela imita a cena. Outro exemplo é a criança que após observar sua mãe na cozinha enrolando bolinhos de carne, longe da cena, imita a ação de sua mãe enrolando bolinhos de areia. Não se trata de uma cópia literal, mas de uma capacidade para representar mentalmente, lembrar‑se do fato, e poder representá‑lo; por isso, diferida. 5.2.2 Jogo simbólico É quando a criança constrói símbolos que representam qualquer coisa que ela deseja, isso quer dizer que pode dirigir‑se ao mundo real por meio de símbolos, gestos e jogos de simulação. Embora tenha um caráter imitativo, é também uma forma de autoexpressão, uma vez que não é dirigida ao outro, apenas a si mesma. O jogo simbólico é um jogo de faz de conta em que a criança atribui significado às coisas e brinca com elas em um contexto mágico e imaginário. Por exemplo: brincar de escolinha, brincar de casinha fingindo fazer comidinha, de mamãe e filhinha, de super‑heróis etc. Lembrete O jogo simbólico é também chamadode brincadeira de faz de conta, jogo de ficção, jogo da fantasia, jogo dramático, jogo da imaginação. 43 PSICOLOGIA CONSTRUTIVISTA Piaget (1966, 2003) considera indispensável ao equilíbrio afetivo e intelectual da criança a utilização do jogo simbólico durante o desenvolvimento. Mas por que o jogo simbólico tem uma função essencial para o desenvolvimento psicológico infantil? Porque permite à criança satisfazer necessidades afetivas e intelectuais do seu eu, as exigências a que é obrigada na adaptação ao mundo social, cujos interesses e regras, muitas vezes, não lhe são imediatamente significativos. 5.2.3 Desenho ou imagem gráfica As primeiras formas do desenho não são imitativas do real, mas um jogo de exercício no qual a criança se diverte rabiscando a parede, o chão ou o papel em movimentos amplos e repetitivos. Por volta dos 2 anos, ela passa a atribuir um significado a seus rabiscos, reconhece formas em suas garatujas, tenta repetir de memória um modelo, há um empenho para representar as coisas por meio do desenho de maneira realística. Surge, portanto, a intenção de representar a realidade por meio do grafismo, pela imitação e imagem mental (recordação). No decorrer deste livro‑texto, iremos estudar mais amplamente essa forma de representação. Observação Quando uma criança começa a desenhar com intenção de representar? Quando surge o desenho na criança? Essas são boas perguntas para serem respondidas. 5.2.4 Imagem mental São representações internas (símbolos) de objetos ou experiências perceptivas passadas, por meio de imagens mentais (imitação interiorizada). Piaget (2003) apresenta duas grandes categorias de imagens mentais: as imagens reprodutivas, que se limitam a evocar espetáculos já conhecidos e percebidos anteriormente, portanto, estática; e as imagens antecipadoras, que são cinéticas e imaginam movimentos ou transformações, assim como seus resultados, mas sem haver assistido anteriormente a sua realização. No estádio pré‑operatório, as imagens mentais da criança são quase que exclusivamente estáticas (como desenhos ou fotografias), ela apresenta dificuldade para reproduzir movimentos e transformações. Somente por volta dos 7/8 anos, no nível das operações concretas, as imagens tornam‑se dinâmicas, são antecipadoras, com possibilidade de movimentos e de transformações (como filmes). Quadro 3 Categorias Subcategorias Estádio Imagens reprodutivas Estáticas de movimento Pré‑operatório Imagens antecipadoras Cinéticas de transformação Operatório concreto 44 Unidade II 5.2.5 Linguagem falada Por volta dos 2 anos, a criança começa a utilizar as palavras faladas para representar objetos, são as evocações verbais de acontecimentos não atuais. Por exemplo: quando uma criança diz “au‑au”, já sem ver o cachorro, há a representação verbal, a imitação e a imagem mental. Assim, ela utiliza palavras faladas como símbolos ao invés de gestos ou objetos. Essa forma de representação simbólica permite o desenvolvimento cognitivo na criança porque possibilita: • o intercâmbio com as pessoas e, portanto, a socialização; • a internalização da palavra e o aparecimento do pensamento; • a internalização da ação que, de perceptiva e motora, passa a ser representativa (conceitual). Piaget (2003) observou, nas conversas entre crianças, duas formas de linguagem no estádio pré‑ operacional: a fala egocêntrica e a fala socializada. Na fala egocêntrica, não há intenção de comunicação, por isso não há necessidade de um interlocutor, a criança fala na presença de outras pessoas, mas sem qualquer intenção de se comunicar com elas, fala consigo mesma. Piaget chamou essas conversações de monólogos coletivos – as crianças estão juntas, brincando, conversando, mas não há um diálogo efetivo entre elas. Tal fala é nitidamente egocêntrica, há um pensamento em voz alta de suas ações, sem o desejo de comunicação efetiva. Exemplo: a Profa. Carolina conta a seus alunos sobre o passeio que irá acontecer na próxima semana. • Lucas diz: minha avó me levou no mercado e comprou um chocolate. • Felipe afirma: eu gosto da bola que eu ganhei do meu pai, ela é azul. • Pedro completa: amanhã eu vou cortar o cabelo. Por volta dos 7 anos, a linguagem se torna socializada, ou seja, as conversas entre as crianças se tornam comunicativas, envolvem a troca de ideias, o falar aos outros com a intenção clara de ser ouvido. Como vimos, embora o estádio pré‑operatório seja marcado pela capacidade representativa, o que indica um avanço em seu desenvolvimento cognitivo, a criança ainda apresenta um pensamento pré‑lógico, ou seja, encontra dificuldade para estabelecer relações lógicas entre fatos e acontecimentos, não consegue coordenar diferentes pontos de vista de maneira lógica, expressando ações cognitivas com um critério particular de elaboração, marcado por várias características que são interdependentes, descritas a seguir: 45 PSICOLOGIA CONSTRUTIVISTA Quadro 4 Características do pensamento no estádio pré-operatório Pensamento egocêntrico Pensamento animista, artificialista e finalista Centração Pensamento intuitivo Pensamento transdutivo Conservação e reversibilidade Justaposição Relacionamento social Sincretismo Pensamento egocêntrico – a criança parte de seu próprio eu para julgar a realidade e os outros, sem se preocupar com a verdade dos fatos, utiliza seu ponto de vista, sua lógica, não assume o papel ou o ponto de vista do outro, acredita que todos pensam como ela. Por exemplo: é difícil ao adulto convencer uma criança que não quer brincar porque está cansado, pois para a criança, que está presa às suas próprias perspectivas, a referência é sempre ela mesma e, com isso, não consegue perceber o outro. Portanto, ela não pode assumir o ponto de vista do outro, pois acredita que todos pensam como ela, ou seja, as mesmas coisas que ela está pensando ou desejando. Não questiona seus pensamentos, pois acredita que são os únicos possíveis e verdadeiros. É interessante ressaltar que, quando ocorre uma contradição, a criança egocêntrica conclui que a evidência está errada e que seus pensamentos estão certos. Centração – o pensamento egocêntrico da criança é centralizado, rígido, inflexível, pois ela não consegue levar em consideração várias relações ao mesmo tempo. Por exemplo: não entende como sua mãe pode ser ao mesmo tempo sua mãe e filha de sua avó. Pensamento transdutivo – a criança apresenta um raciocínio primitivo, ou seja, para pensar parte da experiência, do particular (concreto) para outro particular (concreto). Com isso, não estabelece relações lógicas entre eventos, é incapaz de raciocinar com sucesso sobre as transformações. Por exemplo: não diz todos os animais se movem ou todas as plantas crescem, porque não consegue realizar generalizações sobre os fatos, coloca cada elemento lado a lado, não entendendo a relação recíproca entre eles. Por isso, percebe cada experiência de maneira isolada, justapondo as informações. Justaposição – a criança pré‑operacional assimila, mas não discrimina e generaliza, apenas coloca as informações lado a lado. Um exemplo disso é quando os professores propõem aos alunos que levem para a escola um brinquedo de casa para brincar, é muito difícil para eles emprestarem seus brinquedos ou não tomarem, sem empréstimo, o brinquedo do colega. Não se trata de egoísmo, e sim, em função das características de pensamento, de uma dificuldade da criança compreender o porquê do empréstimo ou da troca. Vemos nesse exemplo os conceitos egocentrismo cognitivo e pensamento transdutivo, além da justaposição. Como dissemos, os conceitos piagetianos devem ser compreendidos de maneira interdependente. Lembrete Há uma diferença entre o pensamento egocêntrico infantil e o egoísmo. Propomos que pesquise sobre isso. 46 Unidade II Sincretismo – há uma tentativa da criança em fazer deduções, mas, em função de o pensamento ser egocêntrico, centrado, transdutivo e justaposto, ela realiza generalizações sem umlógica aparente. Ou seja, explica um evento com outro que não tem relação lógica com a questão, faz generalizações indevidas. Por exemplo: o balão caiu porque é vermelho; a fruta está verde, não pode comer, portanto não come qualquer outra fruta de cor verde; costuma falar “eu comi, eu bebi, eu fazi”. Pensamento animista – a criança atribui vida (anima) a seres inanimados, como bonecas, personagens de histórias etc. Por exemplo: ao tropeçar em uma cadeira e machucar‑se, bate na cadeira acreditando que a mesma sentirá dor, afirmando: “a cadeira está chorando”. Em função do pensamento animista, a criança, verdadeiramente, acredita que os brinquedos e os personagens de histórias têm vida humana, por isso os medos que sentem são, para ela, reais. Figura 6 Disponível em: https://bit.ly/3rj9lHd. Acesso em: 5 jul. 2021. Pensamento artificialista e finalista – no artificialismo, a criança atribui uma origem humana a todas as coisas, por exemplo, afirma que um homem muito grande juntou muita terra para formar uma montanha; que o “papai do céu” está muito bravo, para explicar os raios e trovões nos dias de chuva. No finalismo, a criança tem a tendência de acreditar que todos os seres e objetos têm a finalidade de servi‑la, por exemplo, se ganhou um guarda‑chuva e começa a chover, acredita que isso aconteceu para que ela possa utilizá‑lo. Pensamento intuitivo – a partir dos 4 anos, a criança apresenta um pensamento intuitivo, embora seja bastante rápido, é ainda pré‑lógico, porque se fundamenta basicamente na percepção. Como não há estrutura operativa nesse pensamento, não existem duas funções de pensamento muito importantes: a conservação e a reversibilidade. Conservação – é definida por Piaget como sendo a capacidade de perceber que, apesar das variações de forma ou arranjo espacial, uma quantidade ou valor não varia se dele não se retira ou adiciona 47 PSICOLOGIA CONSTRUTIVISTA algo. Na criança, essa noção é construída entre 7 e 12 anos, no estádio das operações concretas. A partir dos 6/7 anos, começa a conseguir conservar números, comprimento e quantidade de líquido. Em seguida, vem a conservação de substância (7/8 anos), área (9/10 anos) e volume (11/12 anos). No estádio pré‑operacional, a criança não apresenta a noção de conservação. Irreversibilidade – o pensamento pré‑operatório é marcado pela irreversibilidade de pensamento, ou seja, é impossível para a criança, em termos cognitivos, percorrer uma trajetória e depois retornar ao ponto de partida, porque não possui um pensamento móvel, capaz de perceber e corrigir seus erros por meio de descentrações sucessivas e rápidas. A reversibilidade é um dos aspectos que marcam a entrada no próximo estádio, o operatório concreto, que será estudado na terceira parte desta unidade. Saiba mais No artigo “Esquemas de ação de Piaget”, há uma relação dos conceitos piagetianos com a educação que irá ajudá‑lo a articular a teoria desse grande autor com situações do cotidiano da criança na escola. FERNANDES, E. Esquemas de ação de Piaget. Nova Escola, 1º fev. 2011. Disponível em: https://shortest.link/2oAB. Acesso em: 10 jul. 2012. Relacionamento social – as atividades em grupo se caracterizam por um brinquedo paralelo. As crianças brincam juntas, mas sem uma interação efetiva, cada uma delas está brincando sozinha. Isso ocorre em função do egocentrismo dessa fase, ela sente dificuldade para considerar a perspectiva do outro e está centrada em si mesma e em suas atividades. Piaget e colaboradores criaram diversos experimentos em que podemos verificar a transição entre as respostas – e, portanto, do pensamento – da criança pré‑operatória para a criança operatória: as conhecidas provas operatórias piagetianas. Observação A criança operatória será capaz de refletir sobre os objetos, o tempo, a causalidade e o espaço de forma independente de suas percepções e intuições, pois utilizará da lógica. 5.3 Estádio operatório concreto (7 a 11 anos) A característica principal desse estádio é que o pensamento deixa de ser pré‑lógico e passa a ser operatório, ou seja, a criança tem a capacidade cognitiva de coordenar diferentes pontos de vista de maneira lógica, expressando ações cognitivas mais elaboradas. No entanto, embora tenha essa possibilidade de maior expressão do pensamento, para poder utilizá‑lo de maneira lógica, é necessário 48 Unidade II o manuseio e a observação de objetos concretos. Isso porque lidar com ideias puramente abstratas e hipotéticas será uma aquisição do estádio seguinte, das operações formais. Piaget enfatiza que essas novas formas de organização completam as aquisições esboçadas no período precedente (o pré‑operatório), dando‑lhes mais estabilidade (maior equilíbrio entre assimilação e acomodação) e inaugurando novas e ininterruptas construções. Isso confirma sua visão de continuidade e ampliação, e não de ruptura ou substituição, entre os estádios. Podemos dividir os progressos da criança, a título didático, em três domínios, lembrando que na vida prática ocorrem interligados: • nas condutas e na socialização; • no pensamento, com as operações racionais; • afetividade, vontade e sentimentos morais. Uma marca fundamental desse período é que a criança se libertará do egocentrismo intelectual e social, capaz de novas coordenações, pois serão fundados os alicerces da inteligência lógica, isto é, coordenação de pontos de vista entre si (tanto de diferentes pessoas como de uma mesma pessoa). O que, do ponto de vista social e afetivo, implicará o início da moral de cooperação e da autonomia. 5.3.1 Condutas e socialização Seguindo a divisão anterior, do ponto de vista das condutas e da socialização, observaremos um aumento da concentração individual, o que favorecerá o aumento da colaboração efetiva, e vice‑versa, uma vez que elas são complementares e resultam das mesmas causas. No campo da linguagem, ocorrerá um declínio da linguagem egocêntrica, até seu total desaparecimento, e manifestação progressiva da linguagem socializada. Ou seja, a criança já não confundirá seu ponto de vista com o dos outros, dissociando‑os mesmo para poder coordená‑los. Com isso, as discussões tornam‑se possíveis: há compreensão dos pontos de vista alheios e procura pela justificação ou comprovação das próprias afirmações. Vale destacar que essa vivência mais intensa com outras pessoas, e especialmente entre seus pares, impulsionará, portanto, a necessidade de conexão lógica entre ideias e justificativas. Ao mesmo tempo, no plano intersubjetivo, a criança se tornará capaz de um começo de reflexão: as crenças imediatas e impulsivas darão lugar à capacidade de pensar antes de agir, após uma deliberação interna (como se argumentasse frente a interlocutores dentro de si mesma). Uma questão que Piaget coloca é: a reflexão é uma discussão interiorizada ou a discussão socializada corresponde a uma reflexão exteriorizada? Na realidade, o autor afirmará que elas são construções paralelas e simultâneas, que se constroem reciprocamente. 49 PSICOLOGIA CONSTRUTIVISTA Lembrete Para Piaget, a capacidade de discutir e argumentar socialmente se constrói simultaneamente à capacidade de refletir (argumentar e discutir internamente consigo mesmo). Verificam‑se, portanto, progressos significativos quanto aos relacionamentos sociais, pois ocorre a diminuição do egocentrismo social e a criança tem a capacidade de perceber pensamentos, sentimentos diferentes dos seus (descentração). Isso permitirá maior interação social tanto com crianças como com os adultos, pois agora ela tem maior flexibilidade de pensamento e entenderá melhor as regras grupais, manifestando condutas de cooperação. No plano dos jogos de regras – um tema caro para Piaget –, ocorrem importantes conquistas, que influenciarão diretamente o desenvolvimento da moralidade. Em item específico na próxima unidade, esse tema será mais aprofundado; porém, brevemente, destacamos aqui algumas de suas principais características.Para crianças pequenas, antes dos 7 anos, as regras são eternas. Além disso, as crianças imitavam os mais velhos, jogavam juntas, mas sem compartilharem exatamente das mesmas regras. Todas podiam ganhar, por exemplo, sem que isso fosse contraditório. A condição moral que está por trás dessas posturas é a heteronomia: a dependência de uma autoridade moral externa ao indivíduo (no caso, os pais, adultos em geral ou crianças mais velhas). A partir dos 7 anos, observaremos que as regras eternas darão lugar a uma percepção de que elas são fruto do acordo mútuo entre os jogadores. Haverá um duplo progresso: ao mesmo tempo em que buscarão igualdade de regras, ao menos durante uma partida, controlando‑se mutuamente, as crianças atribuirão um sentido coletivo ao ato de ganhar (que significa ser bem‑sucedido após uma competição com regras), mesmo que passível de discussões. Progressivamente, veremos que os indivíduos passarão a seguir as regras por uma adesão autônoma e coletiva, e não por motivos exteriores. Isto é, tanto por uma pressão interna, do desenvolvimento lógico e moral, como por uma pressão externa, pelo convívio com seus pares. A mentira adquire status efetivo, pois as crianças serão capazes de reconhecer – e condenar – a intenção por trás dos atos (a responsabilidade subjetiva). Surgem sentimentos de honestidade (e repúdio ao seu contrário, a trapaça), de companheirismo, de fair play e de justiça (que antes era inferior ao de obediência, era dependente dele, e agora se tornará superior, com um valor moral maior). É importante salientar que esses sentimentos morais promovem uma reorganização de valores da vida social e afetiva. Assim, à medida que os valores ganham maior estabilidade, a reciprocidade – irmã gêmea da reversibilidade operatória – prepara o terreno socioafetivo para o estabelecimento de relações igualitárias, fundadas no respeito mútuo. A moralidade, até então heterônoma posto que dependente de uma 50 Unidade II consciência externa, caminha em direção à autonomia. Esta, vinculada à cooperação, criará condições para uma forma de equilíbrio superior à moral da simples submissão, característica do período anterior. 5.3.2 Pensamento operatório Em termos gerais, a marca desse estádio será o declínio da causalidade movida pela atividade própria, com novas formas de relação causa‑efeito, sustentadas pela descentração e pela objetividade. O pensamento é indutivo, por meio do qual a criança parte da experiência, do particular (concreto), para um princípio geral. As conclusões sobre os fatos dependem de um conjunto de experiências individuais, portanto ainda possuindo certa fragilidade frente às trocas sociais (o que se fortalecerá com o desenvolvimento da lógica e do pensamento formal, este último no próximo estádio). Examinemos como se dá essa transição. No estádio anterior, a característica era um pensamento marcado pelo egocentrismo, e que também se baseava nos princípios do animismo, do artificialismo e do finalismo – todos centrados em uma visão de mundo antropomórfica (moldada segundo a vida humana). Vejamos por meio de um exemplo, dentre os muitos estudados por Piaget e seus colaboradores, que ilustra essa evolução. Ao perguntar a crianças de diferentes idades: “Qual a origem dos astros/a origem do Sol?”, encontramos as seguintes explicações: Antes dos 7 anos, são comuns respostas baseadas no animismo e no artificialismo misturados: “Ele nasceu e cresceu como nós nascemos”. Isso porque nas crianças o animismo sustenta uma espécie de causalidade, fundada no princípio de identidade: a explicação por identificação. A criança entende que tudo – os astros, a natureza, os objetos – tem uma existência semelhante à sua. Depois, surge a ideia de transmutação das substâncias: a formação não é mais devida a um processo biológico (semelhante à vida humana), mas a transmutações físicas (por exemplo: a fumaça e o ar geram as nuvens). Em seguida, surgem explicações atomísticas: explicação da origem dos astros baseada em grânulos (“poeira”). Somente a partir dos 7 anos (lembrando que as idades servem como referência no universo piagetiano e não como condição fixa), a criança se tornará capaz de atribuir uma existência independente dos astros, e diferente da sua, seguindo outros processos naturais. Vejamos mais um exemplo, relacionado a uma experiência feita junto com as crianças. Um experimentador pega dois copos com água pura e, em um deles, dissolve – na frente da criança – dois pedaços (torrões) de açúcar. Enquanto o açúcar se dissolve, pergunta: para onde vai o açúcar? O peso da água vai mudar em relação ao copo de água pura? O nível da água vai mudar ou continuará igual? Antes dos 7 anos, as crianças negam qualquer conservação da matéria, peso ou volume: para elas, o açúcar simplesmente desaparece (pois é isso o que ela consegue perceber visualmente). Mesmo se 51 PSICOLOGIA CONSTRUTIVISTA for convidada a provar a água adocicada, ela dirá que o gosto desaparecerá em alguns dias (como uma sombra que se dissipa...). A partir dos 7 anos, inicialmente ela fornecerá uma explicação com base na transmutação, como se o açúcar se transformasse em água, Depois, com base na “metafísica da poeira”, ela defenderá que o açúcar se dissolve em pedacinhos, mas o peso não muda. Num momento posterior, por volta dos 9 anos, ela dirá que o peso se alterará pela soma do peso das “bolinhas” de açúcar (que ficará igual ao dos dois pedaços de açúcar submersos), mas ela ainda acreditará que o volume final da água abaixará. Por volta dos 11/12 anos é que se generaliza a explicação, baseada na invariância das substâncias, mesmo após elas entrarem em contato e se misturarem. É importante notar que a evolução dessas noções de invariância (conservação) do pensamento equivale à construção da noção de objeto permanente que você estudou no estádio sensório‑motor, junto ao desenvolvimento das noções de tempo, velocidade e espaço, descoladas da percepção e da intuição. Lembrete A construção das invariâncias do pensamento operatório (reversibilidade e conservação) equivale à construção da noção de objeto permanente no estádio sensório‑motor. Outro exemplo que verificamos corriqueiramente entre as crianças diz respeito à compreensão temporal. A criança operatória será capaz de considerar diferentes referências simultaneamente, o que antes não conseguia. Por exemplo, ela aceitará que uma pessoa que faz aniversário em outubro seja mais velha do que uma que faz em janeiro, pois ela levará em conta não somente a ordem dos meses, mas os anos em que ambas nasceram (janeiro de 2000 e outubro de 1999, por exemplo). Para uma criança mais nova, ao contrário, parece impossível que quem faz aniversário em outubro possa ser mais velho do que alguém nascido em janeiro. 5.3.3 As operações racionais Estamos falando da evolução do pensamento da criança neste terceiro estádio e, para isso, é essencial que você compreenda o sentido do termo “operação”, no vocabulário de Piaget. De forma sintética, podemos dizer que uma operação é uma ação interiorizada e reversível. Mas o que isso quer dizer? Lembrete Uma operação trata‑se de uma ação interiorizada e reversível. 52 Unidade II Nessa definição, retomamos a essência das conquistas dos estádios anteriores. Ação: você se lembra que a inteligência sensório‑motora era eminentemente prática, concreta? Ou seja, para Piaget, a base de todo conhecimento é a ação. Já quando falamos em uma ação interiorizada, isso pressupõe a capacidade de representação, simbolização dessa ação: algo que se consolidou no estádio pré‑operatório, não é mesmo? E a capacidade de identificar a reversibilidade dessa ação interna/mental é, portanto, a grande conquista do presente estádio. Vejamos isso um pouco mais detalhadamente. “Uma operação é então, psicologicamente, uma ação qualquer (reunir indivíduos ou unidades numéricas, deslocar etc.), cuja origem é sempre motora, perceptiva ou intuitiva” (PIAGET, 2003, p. 48).E como se dá a passagem das intuições para as operações? Vejamos os dois passos necessários: 1. As intuições reúnem‑se em esquemas de conjunto, ao mesmo tempo passíveis de composição e revisão (elas não são mais unidades isoladas, mas formam grupos). 2. Duas ações do mesmo gênero tornam‑se operatórias logo que puderem compor uma terceira, do mesmo gênero, e que possam ser invertidas. Ex.: a ação de reunir (adição lógica ou aritmética) torna‑ se uma operação porque várias reuniões sucessivas podem ser reunidas em uma só (composição das adições) e podem ser invertidas por dissociações (subtração). Isso corresponde às quatro seguintes características das operações: • Composição – duas operações podem compor‑se entre si e originar uma terceira, por exemplo: 2 + 2 = 4 – o que serve de esquema abstrato para muitas outras situações. • Reversibilidade – toda operação pode ser invertida, por exemplo: 1 + 3 = 4 → 4 – 3 = 1. • A operação direita e sua inversa dão uma operação nula ou idêntica, por exemplo: – 2 + 2 = 0. • As operações podem associar‑se entre si (grupos/agrupamentos), isto é: “as noções e relações não podem se construir isoladamente, mas constituem organizações de conjuntos, nas quais todos os elementos são solidários e equilibram‑se entre si” (PIAGET, 2003, p. 52). Considerando, então, o que expusemos até aqui, fica claro que o pensamento lógico é expresso pela capacidade de: reversibilidade das operações mentais, conservação de quantidades, inclusão de classes, classificação, seriação, sequenciação, descentração. Lembrando, entretanto, que isso tudo só é possível, ainda, no plano das ações concretas: falta habilidade para imaginar e organizar possibilidades não visíveis e não vividas (isto é, situações puramente abstratas). A criança operatória concreta, e mesmo anterior, é capaz de imaginar, mas não de sustentar sua imaginação logicamente (o que será a conquista do próximo estádio). 53 PSICOLOGIA CONSTRUTIVISTA Lembrete O pensamento lógico apoia‑se na reversibilidade e na conservação das operações, na classificação e na inclusão de classes, na seriação e na organização sequencial dos objetos. A reversibilidade das operações mentais é a característica que melhor define a inteligência: o pensamento pode seguir a linha de raciocínio de volta ao ponto de partida. A aquisição dessa noção ganhará consistência por volta dos 7/8 anos, tornando possível o estabelecimento da capacidade operatória que dá nome ao terceiro estádio: das operações concretas. As operações, portanto, consistem não apenas de ações interiorizadas, mas de ações articuladas em sistemas fechados, com invariantes independentes das situações concretas que as geraram. São generalizáveis a situações análogas e permitem inversões. Há um ganho inquestionável em relação aos estádios anteriores, porém o pensamento ainda não consegue operar por meio de hipóteses, uma vez que, do ponto de vista da forma, persiste uma subordinação direta dos dados reais e do conteúdo, as operações restringem‑se a cada domínio específico: “é essa ausência de diferenciação entre suposição e fato que constitui o egocentrismo do período operacional concreto” (ELKIND, 1982, p. 94). Com as operações mentais, a criança adquire a noção de classes ou se torna capaz de realizar classificações – o sistema essencial das operações lógicas. E, além de classificar, ela poderá unir e dissociar, simultaneamente, os diferentes agrupamentos. Vejamos um exemplo: colocamos, diante da criança, 20 peças de madeira em uma caixa, sendo 18 delas da cor marrom e 2 da cor branca. Se perguntarmos a ela: “Há mais peças de madeira ou peças marrons?”, antes dos 7 anos, ela dirá que há mais peças marrons, pois ela não consegue, ao mesmo tempo, comparar as cores e as relações entre as partes (no caso, cores) e o todo. Depois dessa idade, ela facilmente responderá que há mais peças de madeira, pois não se prenderá a apenas uma dimensão (a cor). As aplicações e implicações da teoria de Piaget são inúmeras e bastante atuais, dando sustentação a diferentes estudos e pesquisas. Selecionamos uma, realizada em 2005, pelo professor Vandeir Robson da Silva Martins, do Instituto de Geociências da Universidade Estadual de Londrina (PR). Seu trabalho, intitulado: Percepções da natureza por crianças do estágio do pensamento operatório lógico‑concreto tal como descrito por Jean Piaget, buscou verificar a compreensão de crianças entre 7 e 8 anos de idade sobre temas relacionados ao meio ambiente e à sustentabilidade. Os sujeitos foram convidados a fazer uma representação de um ambiente natural (por meio de desenho ou elaboração escrita), segundo seu ponto de vista, de dois temas: • O que é natureza? • Para que a natureza serve? 54 Unidade II O autor verificou que os indivíduos utilizaram o pensamento simbólico, representativo e intuitivo, típico do estádio do pensamento operatório lógico‑concreto, para realizar as atividades propostas, justamente porque a aprendizagem baseia‑se na cognição. De modo geral, demonstraram uma visão da natureza composta por elementos belos e separados, considerando o Homem e a Natureza desarticulados. O autor alerta que esse aspecto deve merecer atenção especial dos educadores, de modo a não favorecerem um desenvolvimento alienado e pouco consciente dos alunos, o que comprometeria uma ação futura engajada com uma sustentabilidade efetiva. 5.3.4 Afetividade, vontade e sentimentos morais A conquista da coerência e da não contradição são paralelas à construção da cooperação no plano social, que subordina o eu às leis de reciprocidade. E essa moral de cooperação é superior, do ponto de vista social e democrático (horizonte da teoria piagetiana), à moral de submissão, pois se baseia em uma lógica para a nova organização de valores. Figura 7 Disponível em: https://bit.ly/3KVAWpH. Acesso em: 5 jul. 2021. O pensar da criança, ao tornar‑se operatório, expande‑se, relativiza‑se e amplia o universo das suas generalizações, ganha poder e autonomia: o pensamento formal da adolescência, como vimos, atinge a esfera dos ideais e do futuro. Mudanças correspondentes acontecem no plano afetivo (incremento da vontade e hierarquização de valores), incidindo sobre a esfera coletiva. O sentido e a imutabilidade das regras são questionados e a decisão de aceitá‑los, ou não, também. Submeter‑se a elas passará a ser uma questão de um querer autônomo (auxiliado, ou não, pela força de vontade): torna‑se uma questão ética. Não se trata, no entanto, de ser livre para agir de qualquer maneira, mas de aceitar limites (assim como a lógica permanecerá vinculada à coerência): o que seria um retrocesso à posição egocêntrica. 55 PSICOLOGIA CONSTRUTIVISTA Observação Você já se perguntou se nossas escolas atualmente favorecem o desenvolvimento efetivo da autonomia dos adolescentes ou os mantém numa posição heterônoma? Assim como o pensamento operatório tornou‑se possível graças à reversibilidade, nas relações a criança valorizará a reciprocidade, a qual assegurará o desenvolvimento da autonomia e uma coesão maior nas relações. Piaget falará aqui do aparecimento dos sentimentos normativos (regulados e não dependentes da intuição ou percepção imediata), cuja base é o respeito mútuo. Antes, a criança vivia o respeito de forma unilateral: ela obedecia aos mais velhos sem muito questionar e sem sentir a obrigação da reciprocidade. A partir de agora – e os pais sabem muito bem disso, pelo aumento de questionamentos dos filhos frente às regras –, o respeito se tornará mútuo, recíproco e baseado em relações igualitárias e não mais assimétricas. Um dispositivo afetivo – e cognitivo – importante que começará a fazer parte da vida infantil é a vontade, ou melhor, a organização de vontade, que possibilitará uma melhor integração do eu e regulação da vida afetiva. Mas o que é “vontade” para Piaget? Vejamos o que ele diz: A vontade não é, de nenhum modo, a própria energia a serviço desta ou daquela tendência.É uma regulação de energia, o que é bem diferente, e uma regulação que favorece certas tendências à custa de outras. [...] a vontade é inútil quando já existe uma intenção firme e única; aparece, ao contrário, quando há conflitos de tendência ou de intenções, como quando, por exemplo, oscila entre um prazer tentador e um dever (PIAGET, 2003, p. 56). Analisando esse trecho, verificamos que a vontade é diferente de quando dizemos simplesmente “estar com vontade” de algo; ela implica um conflito entre tendências, o qual exigirá uma regulação, uma postura ativa no sentido do enfrentamento dessa tensão. Por exemplo, imaginemos um menino de 8 anos que estuda no 3º ano do Ensino Fundamental e adora jogar futebol com os vizinhos do seu prédio. É véspera de prova de matemática e ele não está bem nessa matéria, e os amigos o chamam para jogar bola na quadra. Para Piaget, a vontade será um instrumento interno fundamental que auxiliará essa criança (e posteriormente esse adolescente e esse adulto) a tomar melhores decisões, no caso, permanecer estudando – o que é um dever e cujo ganho só ocorrerá futuramente – em vez de descer para jogar bola –, o que fornece um prazer mais imediato, mas pode prejudicar o projeto de passar de ano. É importante destacarmos que não se trata de uma proposta moralista por parte do autor, pois podemos pensar que, em outras circunstâncias, a decisão a serviço da vontade poderia ser a inversa. Vejamos. Uma criança da mesma idade, que é muito tímida, estudiosa (a conhecida pejorativamente por nerd) e que se sente bem sozinha lendo e estudando, e que está ficando obesa. Os vizinhos a chamam 56 Unidade II para jogar bola e, nesse caso, fazer essa segunda opção seria a melhor decisão baseada na vontade: de cuidar da saúde e de enturmar‑se mais com as outras crianças. A vontade implica sempre uma regulação entre forças em conflito, fazendo vencer uma tendência superior e fraca a uma tendência inferior e forte. Para Piaget, portanto, a vontade é o verdadeiro equivalente afetivo das operações da razão; a vontade é uma lógica das ações, assim como a operação implica uma moral do pensamento. A vontade, assim como operações da lógica, é reversível, diferente dos sentimentos intuitivos, menos estáveis e irreversíveis, característicos dos estádios anteriores. Como bem sintetiza La Taille: “longe de significar isolamento e impermeabilidade às ideias presentes na cultura, autonomia significa ser capaz de se situar competentemente na rede de diversos pontos de vista e conflitos presentes na sociedade” (1992, p. 17). Lembrete Para Piaget, a vontade é: 1) é um regulador entre tendências conflitantes; 2) uma lógica das ações, assim como a operação mental implica uma moral do pensamento. Nesse terceiro estádio, que se estenderá dos 7 até por volta dos 11 anos, mais uma vez ficam claras as correspondências entre os avanços da inteligência e as transformações no plano afetivo. Assim como as operações mentais favorecem a coordenação entre ações, conservam‑se, são reversíveis e generalizáveis, da mesma forma o sujeito passa a contar com uma nova e poderosa aliada no exercício de sua afetividade: a vontade, conceito nodal do ponto de vista da afetividade, para Piaget. Concluindo, o desenvolvimento da afetividade pressupõe, tal como o da inteligência, reorganizações sucessivas, que ganham em qualidade e extensão; porém, ganham, acima de tudo, uma qualidade de descentração cada vez maior. Não há dúvida de que os diferentes afetos (emoções básicas, afetos perceptivos, intuitivos, intencionais e normativos) tornam‑se sucessivamente mais complexos e abrangentes. O pensamento formal, característica do quarto estádio do desenvolvimento cognitivo, que se inicia a partir de 11 ou 12 anos, considerará a virtualidade, a incompletude e a combinatória das relações lógicas, encontrando correlatos no plano dos afetos e das relações sociais. É precisamente na adolescência que esse passo decisivo será iniciado. 57 PSICOLOGIA CONSTRUTIVISTA Saiba mais Em uma interessante entrevista a Márcia Junges e Patrícia Fachin, Fernando Becker comenta algumas das implicações do construtivismo para a escola que se mantêm atuais, destacando que Piaget foi considerado o Einstein da Psicologia. Disponível em: FACHIN, P.; JUNGES, M. A escola como laboratório e não auditório. Revista do Instituto Humanitas Unisinos, ed. 281, 10 nov. 2008. Disponível em: https://bit.ly/3ogI7z8. Acesso em: 24 jan. 2022. 5.4 Estádio operatório formal (12 a 15 anos) No estádio anterior, tanto os esquemas conceituais como as operações mentais são dependentes de objetos e situações que existem concretamente na realidade. Na adolescência, essa limitação deixa de existir e o sujeito é capaz de formar esquemas conceituais abstratos (amor, justiça, saudade) e realizar operações mentais de acordo com uma lógica formal mais sofisticada em termos de conteúdo e flexibilidade de raciocínio. A partir desse estádio, é capaz de discutir sobre valores morais dos pais, construir seus próprios valores, adquirindo autonomia, é capaz de levantar hipóteses e expressar proposições para depois testá‑las e refletir sobre seus próprios pensamentos, buscando justificativas lógicas para seus julgamentos. Isso o levará à construção de autonomia e identidade. Dessa forma, temos a passagem da lógica indutiva para a lógica dedutiva. O sujeito tem a capacidade cognitiva de pensar a partir de um princípio geral e chegar à antecipação de uma experiência (caminhar do geral para o particular – G → P). É o raciocínio mais difícil e sofisticado, pois libera o pensamento do concreto e passa a trabalhar com ideias (pura abstração). De acordo com Piaget, o sujeito atingiu sua forma final de equilíbrio e uma capacidade tão complexa de pensamento que permite a construção e a compreensão de doutrinas filosóficas e teorias científicas. Ainda que essa capacidade de formalização e abstração do pensamento não finalize nessa etapa da vida, mas, ao contrário, poderá (e deverá) ser aprofundada e consolidada durante os anos futuros. Podemos, então, sintetizar as três aquisições essenciais deste quarto e último estádio piagetiano: • operações abstratas: o pensamento formal; • conquista da personalidade; • inserção na sociedade dos adultos. 58 Unidade II Ao tratar desse estádio, é importante mencionar que Piaget insistirá, novamente, que são comuns os desequilíbrios nos períodos de mudança e transição entre estádios, o que ocorrerá com o adolescente. Ou seja, a oscilação que nós percebemos, ora agem e pensam como crianças menores, ora se colocam e expõem argumentos mais elaborados e complexos. Isso é compreensível pela instabilidade das novas estruturas, ainda em formação. Veremos, então, uma ampliação das operações mentais, que ganham em abstração e, com isso, possibilitam a construção de sistemas explicativos e teorias. Junto com isso, tornam‑se capazes de lidar e mostram‑se genuinamente interessados em temas como filosofia, estética e política. 5.4.1 Operações abstratas: o pensamento formal Mas vejamos, por meio de um exemplo simples e didático, de que se trata exatamente essa capacidade do pensamento hipotético dedutivo. Analisemos a seguinte proposição: “Ana tem cabelos mais escuros que Luana. Ana tem cabelos mais claros do que Suzana. Qual tem cabelos mais escuros?” Crianças menores costumam fazer relações aos pares, respondendo que Ana e Luana têm cabelos mais escuros e que Ana e Suzana têm cabelos mais claros e, portanto, Luana tem cabelos escuros, Suzana tem cabelos claros e Ana tem cabelos meio claros e meio escuros. Se tivessem diante de si três bonecas, responderiam corretamente, mas, apenas com base em enunciados verbais, não conseguem desvendar a questão. Após 11 ou 12 anos, o pensamento formal torna‑se possível, ou seja, ele opera independente das percepções ou manipulações concretas, de maneira que as crianças respondem com facilidade que Suzana tem cabelos mais escuros. O pensamentoformal é, portanto, hipotético‑dedutivo, ou seja, capaz de tirar conclusões a partir de puras hipóteses, com base na lógica e não na existência real do problema em si. Um pensamento hipotético‑dedutivo pode ser expresso pela proposição “se… → então…”. O sujeito utiliza esse tipo de raciocínio no cotidiano para pensar os fatos da realidade e resolver situações‑problema que geram conflito cognitivo e desadaptação. Trata‑se do pensamento proposicional que é capaz de refletir não só sobre objetos, mas sobre proposições (criações abstratas). Uma reflexão (pensamento) de segundo grau (ou potência). “O pensamento concreto é a representação de uma ação possível, e o formal é a representação de uma representação de ações possíveis” (PIAGET, 2003, p. 60). Essa importante conquista cognitiva oferece grande poder ao pensamento do adolescente, liberando‑o do real e, nesse caso, verificamos um “novo” tipo de egocentrismo, que Piaget qualificou de egocentrismo messiânico. Ele se acha capaz de resolver os problemas do mundo, colocando‑se num lugar superior frente aos adultos que ele considera impotentes. A ampliação indefinida da reflexão que permite esse novo instrumento que é a lógica das proposições leva, inicialmente, o adolescente a uma indiferenciação entre esse poder novo e imprevisto que o eu descobre e o universo social ou cósmico que é objeto dessa reflexão. Em outras palavras, o adolescente passa por uma fase que atribui um poder ilimitado ao seu pensamento (INHELDER; PIAGET, 1976). 59 PSICOLOGIA CONSTRUTIVISTA Como a construção do pensamento formal é profundamente inter‑relacionada às demais conquistas desse período, nós optamos por fazer essa explanação mais geral, de modo que, ao longo dos próximos subitens, você irá formar uma compreensão mais aprofundada dos desdobramentos desse tipo de pensamento. Lembrete O pensamento formal ou hipotético‑dedutivo libera o pensamento do universo concreto e passa a trabalhar com ideias (pura abstração). 5.4.2 Afetividade/conquista da personalidade No plano afetivo, observamos no adolescente uma capacidade crescente de organização autônoma das regras, dos valores e da afirmação da vontade. Ou seja, as aquisições do estádio anterior ganharão mais estabilidade e maior controle voluntário pelo indivíduo. Além disso, ou junto a isso, ocorrerá uma maior efetividade na regularização e na hierarquização moral das tendências ou necessidades. Ou seja, ele se tornará capaz de conduzir a própria vida e as escolhas pessoais de forma progressivamente mais responsável e autônoma. Isso porque seus pensamentos, valores e ideias passarão a se subordinar a um sistema único (pessoal) e coerente de valores, o que convergirá com a construção de um projeto de vida. As mudanças no plano cognitivo favorecem uma nova organização afetiva e de valores e um novo posicionamento do adolescente perante o grupo social. A reversibilidade cognitiva estende‑se ao campo das relações interindividuais, na forma de relações de reciprocidade, causando, muitas vezes, turbulências. Isso porque, num primeiro momento, devido ao egocentrismo característico dessa fase (não mais ligado às ações como no período sensório‑motor, mas às ideias), predomina uma postura de confronto com os valores da sociedade (e seus representantes, como pais e professores) e tentativas de reformá‑la. Esse modo de pensar e agir, com seu colorido messiânico e prepotente, não deve ser qualificado por características negativas ou patológicas, uma vez que, como assinalou Piaget, justifica‑se pela própria natureza do processo de desenvolvimento cognitivo. O poder de abstração que o adolescente está adquirindo no plano cognitivo é solidário ao aparecimento de uma tendência à idealização dos sentimentos, como amor e amizade. Seguindo esse mesmo movimento, ao caracterizar o egocentrismo típico dessa fase, Elkind sublinha a forte indiferenciação entre aquilo que o adolescente pensa e os pensamentos alheios, o que sustenta sua crença em uma “audiência imaginária”. Um exemplo característico são as reuniões entre eles “no sentido de que cada jovem é, simultaneamente, um ator para si mesmo e uma audiência para os demais” (ELKIND, 1982, p. 107). Ao crer que os outros compartilham de suas ideias e sentimentos, o adolescente pode tentar monopolizar as atenções ou tornar‑se excessivamente suscetível à crítica alheia e a sentimentos de vergonha. Um aspecto importante desse movimento é que, no transcorrer da própria adolescência, as ideias que atribui aos outros passarão a ser tratadas como hipóteses a serem verificadas, aproximando‑o de uma visão mais realista, diferenciada e integrada em relação a si 60 Unidade II mesmo, aos outros e ao mundo. O grupo de pares se tornará um lugar privilegiado de trocas cognitivas e afetivas, proporcionando ao adolescente o fortalecimento de ideias, valores e sentimentos. Observação O grupo de pares entre adolescentes alimenta, inicialmente, o egocentrismo dessa fase, mas progressivamente irá confrontá‑lo e enfraquecê‑lo, direcionando‑o para ações e projetos mais realistas. Do ponto de vista do desenvolvimento afetivo, as importantes aquisições nessa fase – e que se desdobrarão indefinidamente, como já apontamos – concernem à consolidação dos afetos normativos (que já haviam lançado suas raízes em período anterior) e ao aparecimento de sentimentos relativos a ideais, extensivos às pessoas. No primeiro caso, da consolidação de afetos normativos, o que se observa é uma presença maior e mais consistente de atos de vontade. Como agora tem ao seu alcance ferramentas para fazer hipótese e proposições, o adolescente possui mais argumentos para levar adiante as negociações internas em favor de objetivos menos imediatos, porém mais sólidos. Planejar um futuro profissional e pessoal, escolher uma carreira ou desenhar os contornos de uma vida afetiva adulta são situações que dependerão do quanto ele será capaz de abrir mão de gratificações imediatas, projetando‑se confiante e persistentemente num projeto virtual. Ao enfrentar a tarefa de estabelecer um programa de vida para si, a relação não só com o trabalho, mas também com o grupo social, será essencial para dar suporte real aos planos e ideias. No segundo caso, dos sentimentos relativos a ideais, o que se observa é a possibilidade de refletir sobre conceitos e temas não apreensíveis diretamente e que dependem de operações cognitivas e afetivas mais complexas: noções de justiça, ética, pátria, solidariedade ocupam tanto os pensamentos solitários como os debates acalorados entre grupos de adolescentes. E, como insiste Piaget, essa vida social estimulará, precisamente, uma descentração que é também intelectual, além de moral: “é principalmente nas discussões com os colegas que o criador de teorias frequentemente descobre, pela crítica às dos outros, a fragilidade das suas” (INHELDER; PIAGET, 1976, p. 257). Considerar a opinião do grupo não significa de modo algum mera repetição ou sujeição à opinião alheia (o que, no entanto, pode ocorrer), mas poder enriquecer‑se de maneira autônoma e responsável. A personalidade é o eu descentralizado. [...] É a submissão do eu a um ideal que encarna, mas que o ultrapassa e ao qual se subordina; é a adesão a uma escala de valores, não abstrata, mas relativa a uma obra; portanto, é a adoção de um papel social, mas não preparado como uma função administrativa, e sim de um papel que o indivíduo irá criar ao representar (INHELDER; PIAGET, 1976, p. 259). 61 PSICOLOGIA CONSTRUTIVISTA Um aspecto fundamental da afetividade e da moralidade dos adolescentes é a consolidação de ações cooperativas, calcadas no respeito mútuo e na autonomia, cujas raízes já haviam sido lançadas no estádio anterior. Sugerimos a leitura do trabalho: Adolescente e grupo: aprendendo a cooperar em oficina de jogos (GARCIA, 2010), em que você encontrará uma descrição detalhada de situações reais de interação entre adolescentes e diferentes procedimentos da pesquisadorano sentido de favorecer o desenvolvimento da cooperação entre eles. Saiba mais Na monografia a seguir você encontrará uma descrição detalhada de situações reais de interação entre adolescentes e diferentes procedimentos da pesquisadora no sentido de favorecer o desenvolvimento da cooperação entre eles. Sugerimos sua leitura: GARCIA, H. H. G. O. de. Adolescentes em grupo: aprendendo a cooperar em oficinas de jogos. 2010. Tese (Doutorado em Psicologia) ‑ Instituto de Psicologia, Universidade de São Paulo, São Paulo. 2010. Disponível em: https://bit.ly/3HBN0d5. Acesso em: 10 fev. 2012. 5.4.3 Inserção na sociedade dos adultos/formação de um projeto de vida Para Piaget, o principal fator que irá impulsionar a reaproximação necessária, trabalhosa e lenta, entre o pensamento e a experiência concreta será o trabalho. Por meio dele, os ímpetos idealistas por reformas podem transformar‑se em realizações criativas e úteis. “A metafísica própria ao adolescente, assim como suas paixões e megalomanias, são preparativos reais para a criação pessoal” (INHELDER; PIAGET, 1976, p. 64). Ou seja, fica aqui um alerta para nós, educadores, será que deixamos o adolescente sonhar? Será que valorizamos essa capacidade como vinculada ao desenvolvimento criativo do pensamento? Como vimos anteriormente, há um momento inicial da adolescência em que a megalomania e o egocentrismo são mais presentes e, até certo ponto, justificáveis. Mas é necessário que o adolescente seja capaz de realizar projetos, de vincular‑se a ações efetivas em que se sinta útil e em que aplique suas ideias (e verifique suas incompletudes, viva frustrações e promova mudanças e ajustes). Piaget sintetizará com uma expressão: a passagem de reformador a realizador. No início da adolescência, ele se crê capaz de reformar o mundo, a sociedade, mas isso no plano hipotético, da discussão e da argumentação. Aos poucos, para que possa inserir‑se de maneira sólida na sociedade, ele deverá tornar‑se realizador: isto é, ser capaz de adaptar suas ideias a planos possíveis; flexibilizar, modificar seu pensamento – sem abrir mão do seu poder transformador – mas de forma possível. No próximo subitem, retomaremos, de forma articulada, o modo como Piaget compreende o adolescente e a grande importância que essa etapa da vida terá para a construção de um adulto capaz de refletir, ponderar, julgar suas ações e suas escolhas de modo autônomo e responsável. 62 Unidade II Convidamos você a ler o artigo “Autonomia intelectual e moral como finalidade da educação contemporânea”, do professor Jesus Garcia Pascual, da Universidade Federal do Ceará. Ele apresenta conceitos teóricos que vimos nesta unidade – como reversibilidade/reciprocidade; submissão/cooperação; heteronomia/autonomia, discutindo a atualidade desses temas no campo pedagógico. Destacamos um trecho para motivar você à leitura do texto completo: Um aspecto que enriquece a visão das interações em sala de aula é fornecido pela dimensão genética que Piaget imprimiu tanto ao desenvolvimento cognitivo quanto ao moral. Isso significa que a participação dos alunos na elaboração dos códigos normativos será sempre educativa, porém, de acordo com o grau de desenvolvimento daqueles (PASCUAL, 1999, grifo do autor). Saiba mais O artigo completo está disponível em: PASCUAL, J. G. Autonomia intelectual e moral como finalidade da educação contemporânea. Psicologia: Ciência e Profissão, Brasília, v. 19, n. 3, 1999. Disponível em: https://bit.ly/3JL9Bpq. Acesso em: 20 mar. 2012. Boa leitura! 6 O DESENHO EM UMA PERSPECTIVA PSICOGENÉTICA 6.1 O desenho segundo Luquet De acordo com Piaget, ao final do estádio Sensório‑Motor (por volta dos 2 anos), surge na criança uma capacidade cognitiva de representação – um significado por meio de um significante –, e o meio que utiliza para isso pode ser a linguagem, o jogo simbólico, a imitação, a imagem mental e o desenho. O desenho, nessa perspectiva, não é apenas um ato criativo e espontâneo da criança, mas sim uma função de pensamento, simbólica e semiótica, que possibilita a representação da realidade. Em outras palavras, o desenho é uma das manifestações da função simbólica ou semiótica que surge na criança por volta dos 2 anos (estádio pré‑operatório), possibilitando a representação intencional da realidade por meio do grafismo. 63 PSICOLOGIA CONSTRUTIVISTA Saiba mais No livro a seguir, Piaget apresenta um estudo muito interessante sobre as relações espaciais elementares e o espaço gráfico. Vale a pena conferir: PIAGET, J. A representação do mundo na criança. São Paulo: Ideias & Letras, 2005. Piaget considera o desenho uma forma de representação do pensamento e, embora não tenha estudado o desenvolvimento do grafismo infantil, refere‑se em seus textos aos célebres estudos de Georges‑Henri Luquet (1876‑1965), que foi o primeiro a tabular em etapas evolutivas. Luquet inicia seus estudos observando de maneira sistemática os desenhos de seus filhos, Simone e Jean Luquet. Percebe o desenhar como um ato de representação da realidade, uma imitação do real através da representação e, nesse sentido, afirma que o desenho é realista na intenção. Portanto, o “realismo” do desenho é uma concepção‑chave em sua teoria. A característica fundamental do desenho infantil é ser realista, a criança quando desenha expressa uma intenção de representar a realidade tal qual ela se apresenta. Nesse sentido, o desenho infantil é uma imitação do real por meio de uma representação e, por isso, é realista na intenção. Compreende o desenvolvimento do grafismo infantil em quatro importantes etapas, demonstrando que o desenho sofre mudanças e destacando um realismo que se desenvolve à medida que a criança vai avançando em idade. Essa característica realista apontada por Luquet sofre modificações ao longo do desenvolvimento infantil. Gradativamente o desenho vai evoluindo em etapas e, em cada uma delas, há um tipo de realismo. Em outras palavras, o realismo do desenho infantil ocorre em diferentes fases: • realismo fortuito (2 e 3 anos); • realismo malsucedido (3 e 4 anos); • realismo intelectual (4 a 8/9 anos); • realismo visual (8/9 a 11/12 anos). Quadro 5 - Etapas do desenho infantil – Luquet Etapa Idade Descrição Realismo fortuito Realismo malsucedido Realismo intelectual Realismo visual 2 a 3 anos 3 a 4 anos 4 a 8 anos 9 a 12 anos Analogia entre o traço e o objeto, dando nome/“sem querer” A criança aprende a representar, há fracassos e sucessos; badameco girino e badameco A criança desenha o que sabe e não o que vê; transparência/plano deitado/rebatimento A criança desenha o que vê/perda da espontaneidade para desenhar 64 Unidade II 6.1.1 Primeira fase: realismo fortuito O desenho, para Luquet, é um conjunto de traços feitos intencionalmente para representar um objeto real. No entanto, no início, não existe essa intenção de fazer uma imagem, o desenho é resultado da livre exploração que a criança faz sobre os materiais. Munida de vários acessórios e dos movimentos de sua mão, realiza marcas acidentais no papel, uma obra involuntária, que reconhece como sendo sua, resultado de sua atividade, à qual não atribui significado. A criança limita‑se a fazer traços aleatórios no papel sem qualquer objetivo ou significação, manipula e explora os materiais, e no grafismo é o olho que segue a mão e não as marcas impressas no papel. Figura 8 – Débora (2 anos e 2 meses) Por volta dos 2 e 3 anos, a criança começa a fazer traços intencionais no papel, percebe certa analogia entre seus traçados e objetos da realidade e faz uma interpretação: surge, então, o desenho intencional, o desenho como representação. A criança que antes rabiscava aleatoriamente passa a fazer uma analogia entre um objeto e seu traço, dando‑lhe um nome e isso acontece de modo fortuito (LUQUET, 1927, p. 138), uma representação da realidade ao acaso. Essa representação, por ser fortuita, não se mantém em todos os desenhos que a criança faz:é apenas acidentalmente que ela é capaz de fazer um traçado que se pareça com um objeto, e isso explica o porquê de ora nomear seu desenho de uma maneira, ora de outra. 6.1.2 Segunda fase: realismo malsucedido Na segunda fase de evolução do desenho infantil, a criança desenha com a intenção realista (LUQUET, 1927) de representar, mas encontra dois obstáculos que dificultam a representação da realidade: um de ordem física (LUQUET, 1927) ou gráfica, que consiste em coordenar seus movimentos motores para dar ao traçado o aspecto do objeto desenhado; e o outro de ordem psíquica (LUQUET, 1927), que consiste na falta de atenção da criança para desenhar pormenores. Por causa desses obstáculos, o desenho infantil nessa fase é marcado por sucessos e fracassos; por isso, Luquet o chamou de “réalisme 65 PSICOLOGIA CONSTRUTIVISTA manqué ou l’incapacité synthétique” (1927, p. 151‑155), uma fase de imperfeição geral do desenho, que se inicia geralmente entre 3 e 4 anos. Observação Vários autores traduzem réalisme manqué como “realismo fracassado”, levando a uma conotação pejorativa esse momento evolutivo do desenho. Na interpretação de Luquet, há uma incapacidade sintética e não uma percepção “fracassada” da criança sobre sua representação. Por isso preferimos utilizar o termo malsucedido. A falta de proporções nos elementos desenhados é a primeira manifestação da incapacidade sintética, isto é, os traços são feitos de maneira independente, a criança não estabelece as relações entre os traçados. Luquet (1927) explica que essa desproporção pode ser resultado da imperícia gráfica da criança ou pela maneira como procura ocupar o espaço no papel: se faltar espaço, encurta o traço, se sobrar espaço, procura ocupá‑lo e se o objeto ou o tema tratado é importante para ela, exagera em seu tamanho (em um jogo de bola os braços são enormes). No entanto, tais desproporções ocasionam justaposições ou síntese falsa. Segundo Piaget e Inhelder (1966, 1968), essa justaposição não retrata inabilidade técnica, mas revela modos de pensar da criança, ou seja, fatores operatórios. Figura 9 – Melina (4 anos e 1 mês) A justaposição, “juxtaposés” (PIAGET; INHELDER, 1966, p. 51), é a falta de coordenação entre os elementos de um mesmo desenho em um todo. A criança desenha os elementos lado a lado (as 4 patas de um cavalo desenhado em paralelo), separados (disjuntos) e não tangentes (guarda‑chuva ao lado da menina e não em sua mão; chapéu no ar e não na cabeça do boneco) ou desenha sem relação de inclusão (os botões da roupa desenhados fora do corpo). A síntese falsa (ALVES, 1986) é o desenho que apresenta detalhes incompatíveis com a realidade: nariz sob a boca, pernas que saem da cabeça. 66 Unidade II Dessa forma, a incapacidade sintética é a indiferença da criança pela orientação de conjunto do desenho em relação à posição do papel em que é traçado (céu e terra) e pela colocação de detalhes que não condizem ao desenho (figura humana de cabeça para baixo dentro da casa; a ponta do telhado desenhado para o chão e não para o céu). Segundo Piaget e Inhelder, também nessa fase a criança inicia a representação da figura humana, que passa por estágios: inicialmente são representados os “bonecos‑girinos ou badamecos girinos” (PIAGET; INHELDER, 1966, p. 51), com cabeça, pernas e braços sem tronco e, em seguida, os “bonecos ou badamecos” (PIAGET; INHELDER, 1966, p. 51), a figura humana propriamente dita. 6.1.3 Terceira fase: realismo intelectual Por volta dos 4 anos, inicia‑se o principal estádio, que irá estender‑se até por volta dos 8/9 anos. Essa fase se caracteriza pela superação da incapacidade sintética e, por isso, a criança passa a desenhar de maneira realista, isto é, desenha os pormenores do objeto, levando em consideração as suas relações recíprocas, o conjunto. Em outras palavras, o que caracteriza essa fase do realismo chamado por Luquet de intelectual (LUQUET, 1927, p. 165) “é a concepção infantil de que para que o desenho seja parecido deve conter todos os elementos visíveis e invisíveis do objeto do ponto de vista do sujeito, buscando a sua exemplaridade”. Figura 10 – Camila (9 anos e 2 meses) Dessa forma, a criança utiliza procedimentos para representar os elementos invisíveis de um objeto, que são a transparência, o plano deitado e o rebatimento. A transparência (LUQUET, 1927, p. 174) “consiste em representar o interior dos objetos como se fossem transparentes: os dedos no interior do sapato, o cesto com as frutas à mostra, um ovo com o pato dentro”. 67 PSICOLOGIA CONSTRUTIVISTA Lembrete Segundo Luquet, o realismo intelectual é a fase de maior expressão de criatividade do desenho infantil e deve ser preservado pelo adulto em relação a sua psicogênese. O plano deitado (LUQUET, 1927) consiste em representar o objeto projetado no solo, no plano, como se fosse visto por cima, do alto e não de lado, e o rebatimento consiste em rebater as laterais dos suportes dos objetos desenhados: perna de animais, pés de móveis, roda de carros. Esse tipo de procedimento é utilizado em objetos vistos do alto, em plano deitado, pois desse ponto de vista os suportes estão encobertos pelo corpo e, para a criança, não há outra forma de representá‑lo. Para Piaget, a fase do realismo intelectual é a mais importante, pois a criança desenha o que sabe sobre os objetos e não aquilo que vê deles, dando ao desenho a característica de exemplaridade, sem preocupação com a perspectiva visual: um rosto de perfil tem dois olhos, as pernas do cavaleiro serão vistas por meio do cavalo e a comida no interior do boneco. 6.1.4 Quarta fase: realismo visual Na última fase de evolução do desenho infantil, que se inicia por volta dos 8/9 anos, uma série de fatores levam a criança a abandonar o realismo intelectual e a adotar o realismo visual como forma de representação gráfica. O desenho infantil, para ser plenamente realista na fase do realismo visual, deve representar o objeto da forma como é visualmente percebido. As contradições e a insuficiência do realismo intelectual em relação a isso levam a criança a abandonar os procedimentos utilizados na etapa anterior. Por isso, no lugar da transparência, ela utiliza a opacidade (LUQUET, 1927), que consiste em suprimir os pormenores que são objetivamente invisíveis no objeto representado; e, no lugar do rebatimento e do plano, utiliza a perspectiva, que consiste na modificação do aspecto da silhueta de um objeto ou de pormenores vistos de frente. O resultado disso é o abandono da exemplaridade. Para Luquet, há uma submissão da criança às leis da realidade, com perda da espontaneidade ao desenhar, diminuindo a produção artística (figuração adequada do real). Em resumo, o realismo visual é marcado pela descoberta da perspectiva e pela submissão às suas leis. Isso leva a um empobrecimento do desenho infantil, pois a criança, pela preocupação em desenhar aquilo que vê e não o que sabe sobre os objetos, passa a limitar os detalhes de seu grafismo, tornando‑o pobre e pouco frequente, assemelhando‑se às produções adultas (veja um exemplo de desenho empobrecido de um adulto na figura a seguir). A criança e, posteriormente, o adulto, a partir desse momento, perdem a espontaneidade ao desenhar e, com isso, sua produção artística diminui, em função da preocupação que existe em fazer certo, de acordo 68 Unidade II com a realidade. As partes escondidas não são figuradas, os objetos em segundo plano são diminuídos em relação ao primeiro plano (perspectiva). Como na maioria das vezes não há um aprendizado sobre essas técnicas de desenho, o sujeito irá apresentar um empobrecimento em sua produção gráfica e uma inibição para expressar seus pensamentos por meio dessa forma de representação. Esta é uma das maiores críticas dos estudiosos do grafismo infantil. Observação Pablo Picasso afirmou: “antes eu desenhava como Rafael, mas eu precisei de toda uma existência para aprender a desenhar como as crianças”, indicando o valor
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