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Introdução A palavra “currículo” remete a muitos signi�cados e produtos no imaginário daqueles que atuam com a Educação ou a têm enquanto campo de estudo: aulas, planos, sistematizações, en�m, uma enorme conjuntura de objetos, recursos, práticas e documentos que permeiam a escola e as práticas pedagógicas. Diante desse cenário, cabe a primeira re�exão sobre o tema dessa primeira unidade: essas materializações são, de fato, a de�nição de Currículo como campo de estudo? O que queremos apontar com a questão proposta é que, para entender o produto inicial, intermediário ou �nal do currículo que se manifesta, é preciso compreender efetivamente o que é Currículo. Unidade 1 – Primeiras aproximações: concepções de Currículo Franciane Heiden Rios Iniciar Tanto em suas concepções, como em conceito, não é possível tê-lo como sinônimo exclusivo de plano de aula ou como recorte de conteúdos ou objetivos de aprendizagem. Para Silva (1996), “o currículo corpori�ca relações sociais” (p. 23), assim sendo, está inseparável da cultura, da política, da realidade histórica, da organização social e de ideologias. Ou seja, constitui-se em um campo complexo de estudo, que se altera e modi�ca a linguagem do mundo social, em um movimento de retroalimentação. Assim, teremos como objetivo principal nesta primeira unidade ampliar as re�exões sobre o termo Currículo, conceituando-o, para, a partir dessa de�nição, atingir objetivos especí�cos: 1) Ampliar a discussão de currículo como processo social; 2) Compreender a relação entre complexidade e valoração na viabilização do processo de ensino-aprendizagem, tendo como referência os níveis de Currículo (formal, real e oculto); 3) Identi�car, de forma inicial, as nuances entre concepções de currículo e práticas pedagógicas. Nesse percurso de novos conhecimentos, algumas perguntas serão fundamentais ter-se em vista: Para quem? Para quê? Como? A�nal, conforme será discutido no decorrer do texto, enquanto território de constante transformação, são essas três questões que, de fato, nos permitirão avançar e legitimar o que aqui se propõe como objetivos de aprendizagem. Desejo a todos bons estudos! 1. A complexidade do termo Currículo Para compreender a relação Currículo X Escola é preciso, inicialmente, responder à pergunta: O que é Currículo? Etimologia: Currículo deriva do latim curriculus , de currere e signi�ca “o ato de correr, percurso”. A de�nição etimológica já aponta para alguns elementos essenciais para a compreensão de currículo. Ao relacioná-lo às palavras “ato” e “percurso”, já é possível observar que Currículo prevê obrigatoriamente uma ação e um processo (percurso). Nesse sentido, a primeira característica indissociável de currículo é a de que sua concepção se dá com objetivo de agir sobre/com/junto a algo/alguém na intenção de transmitir alguma coisa. Portanto, Currículo representa tudo o que se estabelece antes da ação: intenção, concepção, entre outras; durante a ação: métodos, metodologias, escolhas, assuntos, entre outros; e, por �m, como resultado da ação: o que se aprendeu, com o que se teve contato, o que se privilegiou em decorrência de escolhas teóricas, etc. Assim, ampliando a concepção, podemos entender Currículo como: [...] um dos locais privilegiados onde se entrecruzam saber e poder, representação e domínio, discurso e regulação. É também no currículo que se condensam relações de poder que são cruciais para o processo de formação de subjetividades sociais. Em suma, currículo, poder e identidades sociais estão mutuamente implicados. [...] ( SILVA, 1996, p. 23 ) Enquanto local privilegiado, o currículo estabelece- se como campo permeado de ideologia, cultura e relações de poder, sendo esses os três principais elementos a serem compreendidos na manifestação curricular. Para Moreira e Silva (1997), ideologia consiste na veiculação de ideias que transmitem determinadas visões do mundo social. Cada grupo social possui determinada visão e, portanto, opera socialmente de acordo com sua visão. Já em relação à cultura, podemos entendê-la, brevemente, como uma “teia de signi�cados” (GEERTZ, 2007), que orienta a existência humana. Trata-se de um conjunto de valores, hábitos, costumes e símbolos que interagem com os sistemas individuais dos sujeitos em uma troca recíproca. Benedict (2000) esclarece: “a cultura é como uma lente através da qual o homem vê o mundo”. Entre ideologia e cultura estabelecem-se as relações de poder. Por vezes, para melhor compreender conceitos complexos, precisamos exercitar a criatividade e, também, aproximá-los de “situações corriqueiras”. É fato que essa aproximação não deve ser a única re�exão proposta, porém, ela é subsidiária para que seja possível avançar no entendimento de um conceito profundo e que entrelaça campos tão mais complexos, como no caso do Currículo. Dito isso, o convidamos para que, juntos, analisemos a situação hipotética a seguir. Observe a imagem: Figura 1 - Dobradura aberta Fonte: Shutterstock, 2019 Nessa imagem, está representada a plani�cação de uma pirâmide de base quadrada. Caso todas suas “beiradas” estivessem coladas, a imagem tridimensional visível aproximada seria essa: Figura 2 - Pirâmide, objeto da dobradura Fonte: Shutterstock, 2019 Nessa imagem, está representada a plani�cação de uma pirâmide de base quadrada. Caso todas suas “beiradas” estivessem coladas, a imagem tridimensional visível aproximada seria essa:Porém, retornando à frase de Benedict (2000): “a cultura é como uma lente através da qual o homem vê o mundo”, é possível a�rmar que, dependendo do local de observação, cada pessoa identi�caria uma �gura geométrica plana diferente. Vejamos: Figura 3 - Representação grá�ca da dobradura Fonte: Elaborado pela autora, 2019. Dessa observação, seriam possíveis a�rmações: - Vejo um quadrado! – Vejo um triângulo! E, no caso, nenhuma delas estaria errada, pois, apresentam o “recorte do observador”, seu papel parcial, permeado por ideologia e cultura. As relações de poder se estabelecem nesse cenário quando o observador da base, por exemplo, é aquele que “tem o poder” e, portanto, de�ne o que é verdade e o que será, a partir de agora, adotado como padrão. Ou seja, independente do observador e do que ele vê, o quadrado deverá ser assumido como correto e aceito. Assim, nessa tríade, o currículo acabaria por praticar “os valores, os hábitos e costumes, os comportamentos da classe dominante” (SILVA, 1996, p. 47), na manifestação das relações de poder, oriundas do modelo social vigente. Entretanto, é preciso destaque para o fato de que nenhum dos observadores são passivos. Por isso, a a�rmação do currículo enquanto campo �losó�co, dinâmico e que “assinala uma mudança em direção a um conjunto de condições sociais que estão reconstituídas no mapa social, cultural e geográ�co do mundo e produzindo, ao mesmo tempo, novas formas de crítica cultural.” (GIROUX, 1993, p. 15). Saiba mais A UNESCO-IBE, em um trabalho conjunto, colaborativo e intermitente disponibiliza para acesso o Glossário de Terminologia Curricular. Esse documento não tem como objetivo estabelecer definições padrão universalmente aplicáveis sobre o termo “Currículo”. Em vez disso, intenciona apresentar conceitos e práticas diversas, contribuindo para a reflexão no âmbito de sistemas educacionais sobre o papel da terminologia curricular na promoção de melhorias significativas. Portanto, essa leitura pode enriquecer seus conhecimentos acerca das concepções curriculares, bem como, ser interessante, seja por sua proposta, seja pelo formato em que se apresenta. Disponível em: http://movimentopelabase.org.br/wp- content/uploads/2016/10/glossario_unesco.pdf 1.1. Currículo escolar Na transposição para a escola, o currículo é assumido como o elemento central do projeto pedagógico. Complexo e relativo como todo processo social, ampara lado a lado os fatores lógicos, epistemológicos, intelectuais e determinantessociais (poder, interesses, con�itos simbólicos e culturais). É ele que organiza e viabiliza o processo de aprendizagem: “[...]é a ligação entre a cultura e a sociedade exterior à escola e à educação; entre o conhecimento e cultura herdados e a aprendizagem dos alunos; entre a teoria [...] e a prática possível, dadas determinadas condições.” (SACRISTÀN, 1999, p. 61). Young et al (2014) inclusive destacam que, em sua visão, “[...] currículo é o conceito mais importante que emergiu do campo dos estudos educacionais” (p. 197), a�nal, tem como propósito a aprendizagem, a “mais básica atividade humana”, permitindo a produção de conhecimentos. Como campo de conhecimento e objeto de estudo, as perspectivas de análise do currículo avançam para várias correntes de pensamento, principalmente, a partir do século XX, sendo possível destacar duas abordagens distintas e antagônicas: o e�cientismo e o progressivismo . http://movimentopelabase.org.br/wp-content/uploads/2016/10/glossario_unesco.pdf O e�cientismo é marcado por uma perspectiva de resultado, como o próprio termo já transparece. É a transposição do modelo industrial e fabril, resultado da Revolução Industrial, para a escola. A e�ciência, etapas e sequência linear de uma linha de produção é tida como ideário ao processo educacional e, diante do resultado dessa organização no campo econômico, surge como promessa no campo da Educação. É desse pensamento estrutural fortemente ancorado na administração cientí�ca que derivam as abordagens tradicionais do currículo, tema que será desenvolvido na unidade dois. A progressivismo contrapõe-se à ideia do e�cientismo. Como já discutimos, sendo a experiência humana ampla, diversa e complexa e o currículo espaço cultural, ideológico e político, o e�cientismo buscava uma “neutralidade” impossível, bem mais que isso, desconsiderava em grande medida a ação e a intervenção ativa dos sujeitos no processo educacional. Portanto, o progressivismo questiona, principalmente, o fato do e�cientismo desconsiderar as questões humanas, tendo a escolarização apenas como evento para formação instrumental de métodos e a organização do currículo apenas sob a perspectiva técnica. É dessa perspectiva que se consolidam as teorias críticas e pós-críticas, temas da próxima unidade. Compreender nesse momento a existência da dualidade (e�cientismo x progressivismo) teórica acerca do currículo nos permite, principalmente, nesse momento, compreender que, assim como todo conhecimento e como já evidenciamos até o momento, é possível entender o currículo sob diferentes perspectivas. O que não é possível enquanto pro�ssionais da educação é compreender essas perspectivas de forma descontextualizada de todas as demais relações que fundamentam, incorrendo no risco de assumirmos como “verdade” ou “qualidade” modelos e propostas já comprovadamente inefetivas. É necessário conhecer a totalidade da construção teórica e do pensamento enquanto pro�ssionais para, assim, perceber e poder exercer com êxito a pro�ssão a que nos propomos, nesse caso, a de educadores. Uma re�exão simples, mas, muito pertinente a respeito da teoria da Origem da Vida. Durante muito tempo, a perspectiva da Abiogênese ou geração espontânea foi tida como verdade cientí�ca aceita. Nessa hipótese, os seres vivos poderiam surgir da matéria sem vida, a partir de substâncias que possuíam a chamada “força vital”. Uma comprovação empírica dessa premissa era o surgimento de moscas sobre a carne e de ratos em trapos sujos. Entretanto, no século XVII, o cientista Francesco Redi realizou o experimento representado na �gura 3 e, essa teoria, até aquele momento aceita, entrou em descrédito e, posteriormente, em desuso. Figura 4: Experimento de Francesco Redi sobre geração espontânea de vida Fonte: blog do Enem, 2019 Na atualidade, outros cientistas avançaram em pesquisas e, com isso, as discussões e teorias foram remodeladas e novos conhecimentos passaram a integrar o conhecimento humano. Mas, a questão pertinente é: qual a relação desse experimento com a perspectiva da teoria curricular e, consequentemente, com o conceito de currículo? Apesar de limitador e questionável em muitos aspectos, se não conhecemos a proposta e�cientista, não podemos avançar para a progressista e, também, se não exercitarmos nosso senso crítico, pouca será nossa contribuição para a melhoria dos currículos em qualquer que seja a perspectiva. Cabe lembrar que a distinção entre as abordagens até aqui trabalhadas �carão mais evidentes quando avançarmos nas Teorias Curriculares, conteúdo da unidade 2, sendo primordial, nesse momento, retornamos à concepção e conceito geral de currículo. Assim, com as discussões até aqui propostas podemos considerar currículo como: - um espaço de relações sociais e de poder com uma história especí�ca; isso está relacionado com a ideia de que o currículo pode ser entendido como “conhecimento dos poderosos”; - um corpo complexo de conhecimentos especializados e está ligado a saber se e, em que medida, um currículo representa “conhecimento poderoso” – em outras palavras, é capaz de prover aos alunos recursos para explicações e pensar alternativas, qualquer que seja a área de conhecimento e a etapa da escolarização. ( YOUNG et al, 2014, p. 201 ) Para efeito de análise, diante de um resumo tão complexo de relações, alguns estudos a partir das décadas de 1960 e 1970 indicaram a classi�cação em três distintos graus de aprofundamento do currículo: formal, real e oculto. Em cada nível é possível a identi�cação de posicionamentos de valores e, consequentemente, a distinção do aprendido ou não pelo estudante. Para a melhor compreensão desses níveis, e de como eles efetivamente se estabelecem como práticas pedagógicas, as análises de suas estruturas serão orientadas pelas três questões indicadas no início da unidade: Para quem? Para que? Como? permitindo, assim, re�etir sobre a complexidade desse campo nas macro e micro estruturas da escola. Você quer ler? Livro: Indagações sobre Currículo: Currículo e Avaliação, organizado por: Jeanete Beauchamp, Sandra Denise e Pagel Aricélia Ribeiro do Nascimento, para Ministério da Educação/MEC – Secretaria da Educação Básica. Nesse livro, os textos organizados se propõem a trabalhar concepções educacionais e a responder às questões propostas pelos coletivos das escolas e das Redes, a refletir sobre elas, a buscar seus significados na perspectiva da reorientação do currículo e das práticas educativas. Link: http://portal.mec.gov.br/seb/arquivos/pdf/Ensfund/indag5.pdf 2. Currículo formal Currículo formal também é chamado de currículo prescrito. Refere-se às intenções educativas estabelecidas às redes e sistemas de ensino. Sua materialização se dá em diretrizes curriculares, matrizes e, também, em referenciais, tendo como princípio organizar objetivos e conteúdos das áreas e disciplinas de estudo. Assim, sistematizando a primeira resposta às questões propostas - Para quem? - é possível a�rmar que o currículo formal é genérico e global, se estabelece enquanto regra e normativa a todos os sistemas e redes de ensino 2.1. Currículo normativo http://portal.mec.gov.br/seb/arquivos/pdf/Ensfund/indag5.pdf Uma das questões primordiais para entender as necessidades de considerar a importância do currículo prescrito é entender a natureza do processo educativo. Young (2014) a�rma que existem duas questões relacionadas e cruciais sobre o aspecto normativo das abordagens curriculares. São elas: 1) A educação é uma atividade prática. Para ele, [...] Não é como a física, �loso�a ou história - campos de investigação que buscam a verdade sobre nós e sobre o mundo e o universo que habitamos. A educação trata de fazer coisas com e para os outros; a pedagogia é sempre uma relação de autoridade [...] e devemos aceitar essa responsabilidade. A educação preocupa-se, antes de mais nada, em capacitar as pessoas a adquirir conhecimentosque as leve para além da experiência pessoal, e que elas provavelmente não poderiam adquirir se não fossem à escola ou à universidade. ( YOUNG, 2014, p. 196 ) 2) A educação é uma atividade especializada, consequentemente, o currículo também o é. Sendo, portanto, imprescindível “[...] desenvolver currículos melhores e ampliar oportunidades de aprendizado.” ( YOUNG, 2014, p. 197 ). Diante desses dois itens, a segunda questão se elucida - Para que? O currículo prescrito teria, então, como desa�o e meta organizar os conhecimentos de relevância histórica, social e cultural a todos que fazem parte do sistema de ensino. Por �m, a última questão - Como? - seria expressa na materialização em normativas da duas questões anteriores. Portanto, de acordo com o efetivo documento que agrupa informações ao campo educacional: “[...] o que ensinar, o para que ensinar, o como ensinar e as formas de avaliação, em estreita colaboração com a didática” ( 2008, p. 168 ). Cabe lembrar que a “prescrição” fragmenta-se em recortes curriculares conforme aproxima-se da sala de aula e do estudante. Assim, na �gura 4 podemos identi�car que o currículo, nesse caso, se rami�ca da lei maior da Educação Brasileira - LDB 9394/96 - para o Plano Nacional da Educação e, por �m, para a Base Nacional Comum Curricular e seus desdobramentos nos currículos especí�cos das redes, que, a partir do documento orientativo, reestruturam seus currículos locais. Veja: Figura 5. Currículo prescrito. Fonte: Elaborado pelo autor, 2019 Você quer ler? Artigo: BNCC - Desafios e oportunidades na Educação Básica - por Maria Helena Guimarães Andrade. Neste artigo, a BNCC é apresentada, historicizada e, mais à frente, são discutidas as possibilidades, desafios e oportunidades dos municípios no processo de reestruturação de seus currículos frente à nova proposta nacional. Link: https://blog.conexia.com.br/bncc/ 3. Currículo real Currículo real também é encontrado como currículo “em ação” na literatura acadêmica. Em uma breve explicação, diz respeito às práticas efetivas na escola, em sala de aula. Veja: Figura 6. Identi�cação do Currículo real. Fonte: Elaborado pelo autor, 2019. Retornando às questões orientadoras: “Para quem? Para quê? Como?”, a primeira característica está no público desse currículo: professores e alunos. Trata-se da efetividade no dia a dia da sala de aula dos conhecimentos prescritos, considerando as particularidades das vivências locais e individuais, bem como da identidade e das maneiras de pensar sobre esses conhecimentos organizados em normativas. https://blog.conexia.com.br/bncc/ A resposta da questão “Para quê?” Em se tratando do currículo Real, ainda é objetiva no sentido de “promover a aprendizagem”, bem como a da questão “Como?” que seria possibilitar que os conhecimentos sejam, como aponta Young (2014) “ensináveis” e “aprendíveis” “[...] por alunos de diferentes etapas e idades.” (YOUNG, 2014, p. 199). Mas, como a aproximação humana e contextualizada torna-se mais efetiva, apenas essas a�rmações cartesianas são insu�cientes para entender a materialização do currículo em ação. 3.1. Currículo em ação O currículo real consiste nas adaptações feitas no cotidiano pelos professores ao notarem o interesse de seus alunos por determinado assunto, por exemplo. “A questão da identidade cultural, de que fazem parte a dimensão individual e a de classe dos educandos, cujo respeito é absolutamente fundamental na prática educativa progressista, é problema que não pode ser desprezado. Tem que ver diretamente com a assunção de nós por nós mesmos ( FREIRE, 2002, p. 34 ).” Assim, ao conceituar currículo real é preciso considerar as interações e, mais que nunca, o processo de recontextualização que, para Young (2014), consiste em “[...] uma palavra relativamente simples para um processo extremamente complexo.” (2004, p. 199). Para compreender um pouco melhor o currículo em ação convidamos a todos a re�etir sobre a seguinte proposta de trabalho: Tema: Andiroba Conteúdo: Gêneros textuais (texto informativo) e Usos do Solo (cultivo x extração da semente da Andiroba) Disciplina: Ciências e Língua Portuguesa Turma: 3º ano - Fundamental I Em recorte, a professora tem como objetivo apresentar a Andiroba por meio de textos informativos, propor a produção autoral de um texto coletivo com características informativas e, a partir dele, discutir como se dá a extração e/ou o cultivo dessa planta e o processamento da semente para os produtos usados no cotidiano. A professora inicia mostrando a imagem da semente de Andiroba e, a partir dela, veri�ca os conhecimentos prévios sobre o assunto Figura 6: Semente de Andiroba. Fonte: Tua saúde, 2019 Esse exemplo permite que façamos algumas perguntas iniciais: - Sendo um recurso natural da Floresta Amazônica, estudantes de todas as regiões do Brasil teriam a mesma relação com o conteúdo? - Sendo previstas relações diversas com o mesmo conteúdo, as propostas metodológicas da professora deveriam ser as mesmas indiferentemente do contexto? - Havendo especi�cidades regionais de �ora, deveria esse conteúdo ser retirado do currículo de determinadas regiões? Não temos como objetivo neste tópico responder essas questões, apenas propor essas re�exões, para que seja possível perceber que, independente das ações tomadas pela professora, o fato é que haverá recontextualização do currículo, instaurando o que Young (2014) a�rma ser a “inevitável tensão entre os papéis do governo e das comunidades educacionais na elaboração do currículo.” (p. 199). Portanto, como entendimento inicial das discussões sobre currículo em ação, o fundamental para avançarmos no tema “Currículo” é entender que da prescrição do currículo formal, o currículo real avança para, efetivamente, o processo ensino- aprendizagem, no qual “transmitir” ou “transferir” conteúdos não são práticas possíveis para a construção do conhecimento. Você quer ler? Artigo: Ponto de chegada: a definição do currículo, por: Daniela Almeida, para Nova Escola. Nesse texto, são discutidas as características inerentes a um “bom currículo” no que se refere aos objetivos de aprendizagem dos estudantes. Assim, trata-se da análise fundamental do Currículo Real e da relação deste com a prática pedagógica. Link: https://novaescola.org.br/conteudo/1531/ponto- de-chegada-a-definicao-do-curriculo Assim, das diretrizes, normativas e legislação, escolas e professores selecionam e ressigni�cam conteúdos para seus estudantes, considerando os aspectos culturais, históricos e sociais em uma perspectiva mais próxima da realidade desses estudantes. Entretanto, os objetivos de aprendizagem são propostos pelo professor, que considera assim, apesar das relações humanas, o processo educacional a partir de seus planos e sistemas. Porém, existem in�uências, que já são percebidas no currículo em ação, mas que se evidenciam no Currículo Oculto, tema discutido a seguir. 4. Currículo oculto https://novaescola.org.br/conteudo/1531/ponto-de-chegada-a-definicao-do-curriculo Na proposta analítica de níveis de currículo, o último a ser apresentado e discutido é o Currículo oculto ou implícito. Esse termo é utilizado para denominar as in�uências que afetam as aprendizagens dos estudantes e a prática dos professores mas que, de certa forma, são implícitas e, por vezes, não percebidas de forma consciente pelos interlocutores do processo. Em uma sistematização básica, podemos entender o currículo oculto da seguinte forma: Para quem? Para quê? Como? Ou seja, o currículo oculto não aparece no planejamento do professor, não é avaliado nas provas semestrais, não é tido como objetivo das famílias, tampouco é ponderado nas avaliações de desempenho. Para os estudantes, por vezes, é o de�nidor do comportamento aprendido, é o que, de forma precisa e ágil, colabora para a construção identitária dos sujeitos. Você quer ler? Artigo: Estigma e Currículo Oculto,por: Rita de Cássia Barbosa Paiva Magalhães e Erasmo Miessa Ruiz. Nesse artigo, é proposta uma discussão profunda sobre estigma e suas formas de manifestação no currículo da escola, a partir do conceito de currículo oculto. Link: http://www.scielo.br/pdf/rbee/v17nspe1/10.pdf 4.1. Currículo como construtor de identidade Efetivamente, é possível compreender currículo oculto como normas e valores implícitos, transmitidos nos ambientes escolares. Apple (1982) e Santomé (1995) evidenciam algumas características peculiares à escola como ambiente gerador de comportamentos: 1. Local em que hábitos são ensinados de forma subliminar por intermédio da organização e sua prática pedagógica. Por exemplo: alunos exitosos nas avaliações são recompensados, reforçando a lógica de recompensas e punições. 2. Constante vigilância de comportamento e disciplina. Por exemplo: sinal com marcações de horários, �la para entrar na sala de aula e outras práticas que fracionam “trabalho” e “lazer”. 3. Fração entre “desejos pessoais” e “intencionalidades institucionais”. Por exemplo: escolha dos grupos de trabalho, local para sentar na sala, entre outros. 4. Categorização dos estudantes via avaliações e, também, predileções (elogios ou censuras). Por exemplo: veja fulano como é bem comportado! http://www.scielo.br/pdf/rbee/v17nspe1/10.pdf Diante dessas constatações, podemos identi�car que, mais que ensinar matemática, língua portuguesa e ciências, a escola e seus atores em suas escolhas “não objetivas”, acabam por ensinar pertencimento, ambiguidades, preconceitos e, intencionalmente ou não, reproduzir aquilo que, por vezes, o currículo formal e real propõe transformar. Observe a imagem a seguir: Figura 6: Placas de identi�cação de banheiros na Educação Infantil Fonte: Pinterest, 2019 Esses recursos visuais de identi�cação são muito comuns e recorrentes no espaço da escola e, di�cilmente, analisamos sob a perspectiva crítica que nos instrumentaliza o currículo oculto. Sabendo que um dos elementos previstos, tanto no currículo formal como no real é a diversidade, garantindo as matrizes africanas e indígenas, ao retornarmos a imagem, veremos crianças de um único grupo identitário. Sabendo que: [...] o conhecimento não é exterior ao poder, o conhecimento não se opõe ao poder. O conhecimento não é aquilo que põe em xeque o poder: o conhecimento é parte inerente do poder [...], o mapa do poder é ampliado para incluir os processos de dominação centrados na raça, na etnia, no gênero e na sexualidade. ( SILVA, 1999, p. 84 ) Poderíamos dizer, assim, que optar pela representação da Figura 6 e não por, talvez, a representação a seguir (�gura 7), implicitamente, haveria a predileção de determinado conhecimento em relação a outro? Figura 7: Representação de menino. Fonte: Shutterstock, 2019 Novamente, como unidade introdutória às questões complexas ao que se relaciona ao tema currículo, não objetivamos responder tal questão, apenas ilustrar situações reais e cotidianas da escola e como elas se relacionam com o campo teórico da disciplina de Teorias do Currículo. Tais re�exões são fundamentais para compreender as correntes de pensamento e, também, à construção dos documentos que orientam os currículos no seio da educação brasileira. Compreendendo a perspectiva dos três níveis de currículo, é possível vê-lo tomar forma na escola, a partir das práticas que o constituem em diversas dimensões, mas que se inserem intencionalmente ou implicitamente nas ações dos professores e nas aprendizagens dos estudantes. O currículo deve estabelecer, portanto, uma relação dinâmica dentro do ambiente no qual se insere, alterando perspectivas e, com isso, ressigni�cando-se e redesenhando práticas e propostas. Você quer ver? Emocionando o currículo oculto | Diego Díaz Martínez | TEDxRúaSanFroilán Nesse vídeo, Professor Diego discute e reflete como o Currículo Oculto se faz à base do dia a dia da sala de aula e sobre sua importância na aprendizagem. Professor de Educação Primária e Licenciado em Jornalismo, seu trabalho junto aos estudantes vem se destacado ao aliar ensino e comunicação. Link: https://www.youtube.com/watch? v=M1Tn0vFGwEo Síntese Nessa unidade, discutimos as concepções de “currículo”, ampliando seus signi�cados para, a partir de re�exões e exposições teóricas, esboçar o conceito pertinente que irá orientar a trajetória de aprendizagem sobre o tema. Assim, de�nimos Currículo como: um sistema de relações sociais permeado por ideologia, cultura e relações de poder.No que diz respeito ao currículo escolar, analisamos sua materialização em três níveis conforme Figura 8. https://www.youtube.com/watch?v=M1Tn0vFGwEo Figura 8. Níveis do Currículo nos espaços escolaresFonte: Elaborado pela autora, 2019. Assim, podemos evidenciar como principais conteúdos abordados nesta unidade: Conceito de currículo enquanto campo teórico; Conceito de currículo escolar e seus níveis para análise; Materialização e breve análise do currículo formal nas práticas pedagógicas; Materialização e breve análise do currículo real nas práticas pedagógicas e, por �m; Discussão e análise do currículo oculto em sua perspectiva educativa. Download do PDF da unidade Bibliografia BENEDICT, Ruth. Padrões de Cultura. Tradução: Alberto Candeias. Lisboa: livros do Brasil, 2000. FREIRE. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. 27. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2002. GEERTZ, Cli�ord. A Interpretação das Culturas. New York: Basic Books, 2007. GIROUX, Henry. O pós-modernismo e o discurso da crítica educacional. In: SILVA, Tomaz Tadeu (Org.). Teoria educacional crítica em tempos pós-modernos. Porto Alegre: Artes Médicas, 1993. MOREIRA, Antonio Flávio Barbosa; SILVA, Tomaz Tadeu. (Org.). Currículo, cultura e sociedade. 2. ed. São Paulo: Cortez, 1997. SACRISTÁN, J. G. O Currículo: uma re�exão sobre a prática. 3. ed. Porto Alegre: Artmed, 1998. ____________, J. Gimeno. Poderes instáveis em educação. Tradução de Beatriz A�onso Neves. Porto Alegre: Artmed, 1999. SANTOMÉ, J. T. O curriculum oculto. 3. ed. Porto: Porto Editora, 1995. SILVA, Tomaz Tadeu da. Identidades terminais: as transformações na política da pedagogia e na pedagogia da política. Petrópolis: Vozes, 1996. YOUNG, Michael. Teoria do currículo: o que é e por que é importante. Cadernos de Pesquisa, São Paulo, v. 44, n. 151, p. 190-202, jan./mar. 2014. Disponível em: < http://dx.doi.org/10.1590/198053142851 >. Acesso em 15 jun. 2019. http://dx.doi.org/10.1590/198053142851
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