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Adolf Guggendbuhl Craig - O Abuso do Poder na Psicoterapia

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A maioria das profissões, de uma forma ou de outra, 
presta serviço à saúde e ao bem-estar da humanidade. 
Porém as atividades do médico, do padre, do professor, 
do psicoterapeuta e do,assistente social envolvem um 
trabalho especializado e deliberado para ajudar os 
infelizes, os' doentes, aqueles que de' algum modo se 
perderam. A presente obra analisa como e por que os 
membros dessas ((profissões de ajuda" podem também 
causar enormes danos, devido a seu próprio desejo de 
ajudar. 
DR. AnOLF GUGGENBÜHL-CRAIG é médico e analista junguiano 
radicado em Zurique. Dirigiu o Curatório do Instituto C. G. 
Jung e a Sociedade Internacional de Psicologia Analítica. 
o ABUSO DO··POD 
NA PSIC·OTERAPI4 
na medicina, serviço soei 
sacerdócio e n1.agistério 
Adolf Guggenbühl-Craig 
~ 
PAULUS 
ÍNDICE 
7 Prefácio à edição brasileira 
9 Introdução: Livrai-nos do mal? 
12 Serviço social e Inquisição 
27 Psicoterapeuta: charlatão e falso profeta 
40 O contato inicial entre analista e analisando 
46 Relacionamento é fantasia 
55 A vida extra-analítica do analista e do paciente 
59 Sexualidade e análise 
66 O medo destrutivo da homossexualidade 
70 O analista e a lisonja 
73 O abuso da busca de sentido 
78 O médico todo-poderoso e o paciente pueril 
81 O arquétipo de "terapeuta-paciente" e o poder 
84 A cisão do arquétipo 
88 O fechamento da cisão por meio do poder 
94 Médico, psicoterapeuta, assistente social e professor 
99 A sombra, a destrutividade e o mal 
112 Estará a análise condenada ao fracasso? 
116 Análise não adianta 
122 Eros 
124 Individuação 
130 O psicoterapeuta impotente 
134 Eros de novo 
Coleção AMOR E PSIQUE 
O feminino 
• Aborto - perda e renovação, E. Pattis 
As deusas e a mulher, J. S. Bolen 
A feminilidade consciente - entrevistas com 
Marion Woodman, M. Woodman 
A jóia na ferida, R. E. Rothenberg 
A mulher moderna em busca da alma: Guia 
jungulano do mundo visível e do mundo invisível, 
J.Singer 
A prostituta sagrada, N. Q. Corbett 
A virgem grávida, M. Woodman 
Caminho para a Iniciação fl!mlnlna, S. B. Perera 
Destino, amor e êxtase, J. À. Sanford 
O medo do feminino, E. Neumann 
Os mistérios da mulher, Esther Harding 
Variações sobre o tema mulher,J. Bonaventpre 
O masculino 
Curando a alma masculína, G.Jackson 
Hermes e seus filhos, R. L.-Pedraza 
No meio da vida: Uma perspectiva Junguiana, 
M.Stefi'l 
Os deuses e o homem, J. S. Bolen 
O pai e a psique, A P. Lima Filho 
Sob a sombra de Saturno, J. Hollis 
Psicologia e religião 
A alma celebra: Preparação para a nova relígião, 
L. W.Jaffe 
A doença que somos nós, J. P. Dourley 
Ajornada da alma, J. A. Sanford 
Deus, sonhos e revelação, M. Kelsey 
Nestajornada que chamamos vida, J. Holllis 
Rastreando os deuses, J. Hollis 
Uma busca interior em psicologia e re/ígião, J. 
Hillman 
Sonhos 
Aprendendo com os sonhos, M. R. Gallbach 
• Breve curso sobre os sonhos, R. Bosnak 
• O mundo secreto dos desenhos:Umaabordagem 
junguiana da cura pela arte, G. M. Furth 
Os sonhos e a cura da alma,J. A. Sanford 
• Sonhos e ritual de cura, C. A. Meier 
• Sonhos e gravidez, M. R. Gallbach 
Envelhecimento 
A passagem do meio, J. Hollis 
• A so/ídão, A.Storr 
A velha sábia, R. Weaver 
Despertando na meia-idade, K. A. Brehony 
Envelhecer, J. R. Pretat 
Meia-idade e vida, A. Bermann 
No meio da vida, M. Stein 
O velho sábio, P. Middelkoop 
Contos de fadas e histórias mitológicas 
A ansiedade e formas de lídarcom ela nos contos 
de fadas, V. Kast 
• A individuação nos contos de fada, M.-L. von 
Franz 
• A Interpretação dos contos de fada, M.-L. von 
Franz 
A psique japonesa: grandes temas e contos de 
fadas japoneses, H. Kawai 
A sombra e o mal nos contos de fada, M.-L. von 
Franz 
• Mitos de criação, M.-L. von Franz 
Mltologemas: encarnações do mundo invisível, 
J.Hollis 
O Gato, M.-L. von Franz 
O que conta o conto?, J. Bonaventure 
O significado arquetípico de Gilgamesh, R. S. 
Kiuger 
Opuer 
• Livro do puer, J. Hillman 
• Puer aeternus, M.-L. von Franz 
Relacionamentos 
• Amar, trair, A. Carotenuto 
Eros e phatos, A. Carotenuto 
Incesto e amor humano, R. Stein 
Não sou mais a mulher com quem você se casou, 
A.B.Filenz 
No caminho para as núpcias, L. S. Leonard 
Os parceiros invisíveis: O masculíno e o feminino, 
J. A. Sanford 
Sombra 
Mal, o lado sombrio da realldade,J. A. Sanford 
• Os pantanais da alma, J. Hollis • 
• Psicologia profunda e nova ética, E. Neumann 
Outros 
Alímento e transformação, G. Jackson 
Ansiedade cultural, R. L.-Pedraza 
A terapia do jogo de areia: Imagens que curam 
a alma e desenvolvem a persona/ídade, R. Am-
mann 
Conhecendo a si mesmo, D. Sharp 
Consciência solar, consciência lunar, M. Stein 
Dioniso no exílio: Sobre a repressão da emoção 
e do corpo, R. L.-Pedraza 
Meditações sobre os 22 arcanos maiores do tarô, 
anónimo 
No espelho de Psique, E. Neumann 
O abuso do poder na psicoterapia e na medicina, 
seNiçósocla/'sacerdócio e magistério, A. G.-Craig 
O caminho da transformação, E. Perrot 
O despertar de seu filho, C. de Truchis 
O projeto tden, J. Hollis 
Psicoterapia, M.-L. von Franz 
Psiquiatria Junguiana, H. K. Fierz 
• Saudades do paraíso: Perspectivas psicológicas 
de um arquétipo, M. Jacoby 
ADOLF GUGGENBÜHL-CRAIG 
o ABUSO DO PODER 
NA PSICOTERAPIA 
e na medicina, serviço social, 
sacerdócio e magistério 
Â' 
PAULUS 
.... ;. 
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) 
(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) 
Guggenbúhl-Craig, Adolf 
O abuso do poder na psicoterapia: e na medicina, serviço social, sacerdócio e magistério I Adolf 
Guggenbúhl-Cralg; [tradução Roberto Gambini). - São Paulo: Paulus, 2004. - (Amor e psique) 
Tftulo original: rylacht ais Gefahr beim Helfer 
ISBN 978-85-349-2226-5 
1. Jung, Carl Gustav, 1875-1961 2. Poder (Ciências sociais) 3. Psicanálise 4. PSicoterapia 
5. Saúde mental 1. Tftulo. 11. Série. 
04-2524 CDD-150.1954 
indices para catálogo sistemático: 
1. Poder na psicoterapia: Abuso: Psicologia analftica junguiana 150.1954 
Coleção AMOR E PSIQUE coordenada por 
Dr. Léon Bonaventure 
Ora. Maria Elei Spaeeaquerehe 
Título original 
Maeht aIs Gefahr beim Helfer 
© S. Karger AG, Basel, 1987 
ISBN 3-8055-4562-2 
Tradução 
Roberto Gambini 
Revisão técnica 
M. de Fátima Salomé Gambini 
Editoração 
PAULUS 
Impressão e acabamento 
PAULUS 
2a edição, 2008 
© PAULUS - 2004 
Rua Francisco Cruz, 229·04117-091 São Paulo (Brasil) 
Fax (11) 5579-3627· Tel. (11) 5087-3700 
www.paulus.com.br·editorial@paulus.com.br 
ISBN 978-85-349-2226-5 
INTRODUÇÃO À COLEÇÃO 
AMOR E PSIQUE 
N a busca de sua alma e do sentido de sua vida, o 
homem descobriu novos caminhos que o levam para a 
sua interioridade: o seu próprio espaço interior torna-se 
um lugar novo de experiência. Os viajantes destes cami-
nhos nos revelam que somente o amor é capaz de gerar 
a alma, mas também o amor precisa de alma. Assim, em 
lugar de buscar causas, explicações psicopatológicas às 
nossas feridas e aos nossos sofrimentos, precisamos, em 
primeiro lugar, amar a nossa alma, assim como ela é. 
Deste modo é que poderemos reconhecer que estas feridas 
e estes sofrimentos nasceram de uma falta de amor. Por 
outro lado, revelam-nos que a alma se orienta para um 
centro pessoal e transpessoal, para a nossa unidade e a 
realização de nossa totalidade. Assim a nossa própria 
vida carrega em si um sentido, o de restaurar a nossa 
unidade primeira. 
Finalmente, não é o espiritual que aparece primeiro, 
mas o psíquico, e depois o espiritual. É a partir do olhar 
do imo espiritual interior que a alma toma seu sentido, 
o que significa que a psicologia pode de novo estender a 
mão para a teologia. 
Esta perspectiva psicológica nova é fruto do esforço 
para libertar a alma da dominação da psicopatologia, do 
espírito analítico e do pSIcologismo, para que volte a si 
5 
mesma, à sua própria originalidade. Ela nasceu de refle-
xões durante a prática psicoterápica, e está começando 
a renovar o modelo e a finalidade da psicoterapia. É 
uma nova visão do homem na sua existênciacotidiana, 
do seu tempo e dentro de seu contexto cultural, abrindo 
dimensões diferentes de nossa existência para podermos 
reencontrar a nossa alnla. Ela poderá alimentar todos 
aqueles que são sensíveis à necessidade de inserir mais 
alma em todas as atividades humanas. 
A finalidade da presente coleção é precisamente res-
tituir a alma a si mesma e "ver aparecer uma geração de 
sacerdotes capazes de entender novamente a linguagem 
da alma", como C. G. Jung o desejava. 
Léon Bonaventure 
6 
, , 
" 
PREFÁCIO À EDIÇÃO BRASILEIRA 
o Abuso do Poder na Psicoterapia é hoje um clássico 
da moderna literaturajunguiana. Publicado pela primeira 
vez em 1971 na Suíça, no original alemão, logo em seguida 
em inglês e em 1979 em português, este livro desempenhou 
um papel inestimável na formação dos analistas contempo-
râneos que seguem a linha de, trabalho inaugurada por Carl 
Gustav Jung no início do século XX. A edição brasileira logo 
se esgotou, mas tal era a demanda pelo texto em aulas, semi-
nários e supervisões que um sem-número de cópias passou a 
circular em lugar do livro que já não se encontrava mais. 
Seu assunto central é o mal que o analista involunta-
riamente pode causar a seus pacientes quando se propõe a 
ajudá-los. Que ousadia! A quem ocorreu a inusitada idéia 
de escrever tal livro? 
Adolf Guggenbühl-Craig, analista experiente e di-
ferenciado, sempre pautou sua vida, sua reflexão e sua 
prática pela tentativa incessante e sistemática de detectar 
as mil formas sob as quais se oculta a sombra do analista, 
do médico, do assistente social e do professor; Sombra, 
comojá havia dito Jung, esse avesso das boas intenções, 
essa outra face do discurso edificante e da ação filantró;. 
pica. SU,a análise é cirúrgica: arde, quando passo a passo 
o autor remove a pele e expõe o nervo de uma relação 
- especialmente aquela entre analista e analisando - fa-
7 
dada ao progressivo desnudamento e nunca a sossegadas 
conclusões. Tratar, ensinar, ajudar são ações que exigem 
de seu praticante um eterno voltar-se à origem do gesto. 
Guggenbühl compele o sujeito ingênuo a examinar-se num 
espelho implacável que desmascare persistentemente a 
vontade de poder que sutilmente se disfarça de huma-
nismo desinteressado, um espelho apto a delatar o lobo 
escondido sob pelagem macia de cordeiro. 
O Abuso do Poder na Psicoterapia estabelece a origem 
da ética terapêutica, médica, pedagógica ou assistencial 
não em códigos oficiais, mas no honesto reconhecimento 
de intenções sombrias inconfessas. Simples como a luz do 
dia, e no entanto tão difícil de realizar como descer um 
barranco numa noite escura. 
Este livro é uma lição de análise, seus percalços e 
seus perigos. Fiel a seu tema, o 'autor não assume ares 
de quem tudo sabe, mas de quem choca. Detecta, delata, 
constrange, envergonha, ridiculariza e por fim explica. 
Suas conclusões são banhos de água fria que nos ensopam 
a roupa de trabalho. 
Pela via do choque, este livro contribui para que os 
profissionais da ajuda se tornem mais conscientes do que 
de fato fazem. Mas não caiamos mais uma vez na ilusão 
de acreditar numa resolução suficiente e aceitável dos in-
calculáveis perigos do poder, princípio antagônico, na visão 
de Jung, ao de Eros. A negatividade que emana do poder 
exercido sem a contrapartida de Eros e da autoconsciência 
só pode ser percebida pela remoção constante e contínua 
das camadas que a dissimulam. E isso a consciência só é 
capaz de perceber se adotar Eros como contraponto. 
Eros é a única cura para a patologia do poder. É sua 
medida, seu norte e seu limite. Eros é a nudez do poder 
e sua possível evolução. 
8 
Roberto Gambini 
São Paulo, 2004 
INTRODUÇÃO 
LIVRAI-NOS DO MAL? 
A maioria das profissões, de uma forma ou outra , 
presta um serviço à saúde e ao bem-estar da humanidade. 
Porém as atividades do médico, do padre, do professor, 
do psicoterapeuta e do assistente social envolvem um 
trabalho especializado e deliberado para ajudar os 
infelizes, os doentes, aqueles que de algum modo se 
perderam.'Nos capítulos que seguem, gostaria de exa-
minar como e por que os membros dessas "profissões de 
ajuda" podem também causar enormes danos, devido a 
seu próprio desejo de ajudar. 
Sou médico psicoterapeuta. Ao preparar relatórios 
psiquiátricos, entro em contato regular com assisten-
tes sociais e freqüentemente me sinto um deles. Vários 
pacientes meus são professores e clérigos. Ao escrever 
este livro, procurei encarar os problemas existentes 
também em mim e não apenas nos outros. É por essa 
razão que me concentrei especialmente nos problemas 
de poder do médico e do psicoterapeuta. Entretanto, para 
introduzir a questão da destrutividade nas profissões de 
ajuda, explorei um pouco os antecedentes psicológicos 
do serviço social e abordei as atividades dos religiosos e 
professores. 
Contudo, ao referir-me aos médicos e psicoterapeutas 
é que tento explorar em detalhe a possibilidade de superar 
9 
os problemas fundamentais dessas profissões. Q que eu 
queria mesmo era arrumar minha própria casa, deixan-
do que meus vizinhos cuidassem das suas. Ocorre, porém, 
que o problema do poder e seu exercício é semelhante em 
todas as profissões de ajuda, ainda que cada uma possua 
características específicas. Este pequeno livro dii:-ige-se 
assim não apenas a médicos e psicoterapeutas, mas 
também a assistentes sociais, professores e ao clero. Por 
essa razão, procurei utilizar o menor número possível de 
termos psicológicos especializados. Nos casos em que isso 
não foi possível, acrescentei uma pequena explicação do 
termo em questão. 
Espero que alguém ligado a uma profissão de ajuda 
distinta da medicina procure a seu modo lidar em maior 
profundidade com os problemas básicos e pessoais de seu 
próprio campo, indicando as soluções que lhe parecerem 
possíveis. 
As referências bibliográficas estão praticamente 
ausentes neste livro. Meu objetivo central não é estimular 
o leitor a ler ainda mais, mas antes fazer com que se volte 
para dentro e examine a si próprio. Evitei igualmente 
tentar provar minhas asserções citando experimentos, 
estatísticas e trechos de outros autores. Espero que a 
apresentação de minhas próprias experiências e das que 
tive com meus colegas e colaboradores seja estimulante 
para o leitor. Não estou necessariamente interessado 
em provar que tenho razão. 
Nas páginas que seguem, é freqüente o uso das 
palavras análise, psicoterapia, analista e psicotera-
peuta. Para evitar equívocos: psicoterapia para mim 
quer dizer, em termos bastante amplos, um tratamento 
que lida com a psique, desde a orientação psicológica 
de apenas poucas horas até uma análise prolongada de 
algumas centenas de horas, na qual são exploradas as 
profundezas do inconsciente e discutid'os em detalhe 
10 
i,' 
fenômenos como transferência, contra transferência e 
relacionamento entre analista e analisando. O analis-
ta, portanto, trabalha com uma forma especializada de 
psicoterapia. Os problemas de poder com que se defron-
tam este e o psicoterapeuta em geral são basicamente 
os mesmos. Para o leitor, portanto, não deve fazer muita 
diferença se numa passagem em particular nos referimos 
a psicoterapia ou análise. 
Para concluir este prefácio: nós, das profissões de 
ajuda, não ficaremos nunca livres do mal. Mas podemos 
aprender a lidar com ele. 
11 
SERVIÇO SOCIAL E INQUISIÇÃO 
No trabalho social muitas vezes é necessário agir 
contra a vontade do cliente, visto que com bastante fre-
qüência este não é capaz de reconhecer o que é bom para 
si. Em certas circunstâncias, o assistente social dispõe de 
meio!:> legais para executar medidas desse tipo com base 
em seu próprio julgamento - e eles sempre reclamam 
quando tais meios não podem ser utilizados. Por exemplo, 
as crianças maltratadas ou abandonadas pelos pais podem 
ser removidas de casa. Freqüentemente, porém, apesar de 
estar perfeitamente claro para as autoridades que uma 
criança sofre os efeitos de condições desfavoráveis, não háuma base legal para se interferir no caso. Só mais tarde , 
quando o então adolescente talvez entre em conflito com 
a lei na qualidade de delinqüente, é que surge a oportu-
nidade de pôr em prática as devidas medidas contra a 
vontade, seja do jovem, seja de seus pais. Várias pessoas 
que trabalham com serviço social lamentam o fato de que 
muitas vezes só se pode agir quandojá é tarde demais, ao 
lado da extrema dificuldade de afastar os filhos dos pais 
em seu próprio benefício. 
Adotar medidas coercivas contra adultos é ainda mais 
difícil. Na Suíça? porém, uma pessoa que tenha colocado 
a si ou a sua família em situação de perigo, desgraça ou 
penúria devido a esbanjamento, alcoolismo, depravação 
12 
',' 
ou dissipação do patrimônio familiar pode ser colocada 
sob tutela. 
Segundo as leis da Suíça e de muitos outros países, 
não é sempre que o assistente social pode interferir onde 
e quando julgar necessário; há, porém, várias situações 
em que certas medidas podem ser tomadas contra os pais 
em benefício dos filhos. Um adulto colocado sob tutela, 
por exemplo, não pode agir contrariamente ao que for 
estabelecido pelo assistente social responsável. E jovens 
menores de ·18 anos .que tenham cometido até mesmo 
uma leve infração podem ser forçados a submeter-se à 
orientação das autoridades competentes. 
É preciso ter muita convicção para agir contra a von-
tade de um cliente. Deve-se estar seguro de que as próprias 
idéias estão corretas. O seguinte caso pode ilustrar esse 
ponto: uma garota de 17 anos, que chamaremos deAna, vivia 
com a mãe duas vezes divorciada. Após o segundo divórcio, 
ela foi colocada sob tutela (em decorrência de reclamações 
apresentadas por pessoas ligadas à família). Parecia existir 
uma dependência pouco sadia entre mãe e filha, sendo esta 
completamente mimada. Ao sair da escola, Ana teve vários 
empregos sem importância e por fim parou de trabalhar. 
Apesar de lamentar o comportamento da filha, a mãe pare-
cia apoiar sua inatividade, sem dúvida por não querer que 
ela crescesse e se tornasse independente. O assistente social 
que meticulosamente estudou o caso chegou à conclusão, 
juntamente com um psiquiatra, de que mãe e filha deveriam 
ser separadas. A saúde mental da garota estava em risco. 
E o fato de que ambas resistissem à idéia de separação 
não deveria absolutamente ser levado em conta~ 
Mesmo após a separação, foi impossível aumentar 
o interesse de Ana pelo trabalho. Tudo parecia indicar 
que ela preferia deixar que os homens cuidassem de seu 
sustento. Para evitar o recurso à prostituição, sua tutela 
foi prolongada até que completasse 20 anos. 
13 
Os profissionais envolvidos concordavam todos que o 
caso tinha sido tratado corretam ente sob todos os pontos 
de vista. Em que se baseava essa certeza? Não devemos 
esquecer que certas medidas foram tomadas contra a 
vontade declarada das pessoas interessadas. 
Aatividade do assistente social se baseia numa filoso-
fia oriunda do Iluminismo, a qual sustenta que as pessoas 
podem e devem ser racionais e socialmente adaptadas e 
que o objetivo da vida consiste num desenvolvimento até 
c~rto ponto "normal" e feliz dentro dos limites do poten-
cIal da pessoa. Um bebê tratado por uma mãe carinhosa 
deveria assim tornar-se uma criança satisfeita, cabendo 
ao pai responsável assegurar-lhe uma juventude alegre 
e sau~ável. Depois de um período feliz na escola, o jovem 
devepa gradualmente desligar-se dos pais, abraçar uma 
profissão e, na qualidade de indivíduo não-neurótico 
equilibrado e socialmente ajustado, escolher uma mu~ 
lher com quem por sua vez terá filhos, os quais como 
pai satisfeito, conduzirá à maturidade. Quando o~ filhos 
estiverem crescidos e começarem a formar suas próprias 
famílÜ;l.S, ele sentirá a alegria de ser avô. 
O objetivo de todos os nossos esforços, segundo essa 
filosofia básica, é criar pessoas saudáveis, socialmente 
ajustadas e felizes em seus relacionamentos pessoais. O 
desenvolvimento neurótico, o desajuste social, a excen-
tricidade e o relacionamento familiar atípico devem ser 
evitados e combatidos. Se a pessoa não se torna feliz e 
normal nesses termos, presume-se que algo de errado deve 
ter ocorrido na infância. Se educadas "adequadamente" as . , 
crIanças tornam-me adultos equilibrados e felizes. Deve-
se estar atento para que o desenvolvimento transcorra de 
acordo com esses conceitos amplamente aceitos, com ou 
sem o assentimento do indivíduo. 
À primeira vista, parece inquestionável que tal filo-
sofia, aqui apresentada de forma um tanto simplificada, 
14 
devesse ser a pedra fundamental de nossas ações. Mas a 
filosofia de "normalidade e ajuste social" nem sempredes-
frutou sua atual predominância. Os cristãos primitivos e 
medievais, por exemplo, tinham um ponto de vista bastan-
te diverso. Seu alvo primordial não era produzir pessoas 
saudáveis, não-neuróticas e socialmente ajustadas, mas 
salvar suas almas e ajudar os outros a alcançar ° Reino 
dos Céus. Conceitos como emocionalmente sadio ou não, 
socialmente ajustado ou desajustado, relações interpes-
soais, independência em relação aos pais etc. ou tinham 
um papel muito secundário ou não tinham mesmo papel 
algum. O modo pelo qual um cristão, até a Idade Média, 
procurava a salvação de sua alma hoje seria considerado 
como parcialmente neurótico e socialmente desajustado. 
Os modelos prevalecentes eram os santos, pessoas que 
nada temiam em sua tentativa de chegar a Deus por seu 
próprio caminho. Havia, por exemplo, os assim chamados 
estilitas ou santos do pilar, piedosos cristãos do Oriente 
Médio que procuravam servir a Deus passando a maior 
parte da vida no topo de uma montanha. Estes, assim 
como certos homens de Deus que viviam como eremitas 
no deserto, não eram por certo muito bem ajustados ou 
socialmente integrados. Os santos que distribuíam todos 
os seus bens materiais aos pobres e viviam como mendi-
gos seriam, de .acordo com o artigo 370 do Código Civil 
Suíço, postos sob tutela por se colocarem em condições 
de infortúnio e destituição. Segundo nossa filosofia de 
normalidade e ajustamento, os ascetas que jejuavam e se 
mortificavam seriam quando muito vistos como excêntri-
cos infelizes, ou então como doentes mentais necessitando 
de tratamento. 
Quando o Cristianismo assumiu sua forma medieval, 
muitos não puderam esposar seus princípios predominan-
tes. Para estes, havia outros valores importantes além da 
salvação da alma no sentido cristão - atitude esta que 
15 
em muitos casos se tornou fatal. Em certos momentos e 
sob certas circunstâncias, aqueles que assim recusavam 
os padrões coletivos ou advogavam uma diferente hierar-
quia de valores eram perseguidos, martirizados e mortos 
pela Igreja oficial. Hoje a palavra "inquisição" tem uma 
conotação sinistra. Mas os inquisidores cristãos podiam 
justificar seus feitos com absoluta convicção e eram tidos 
como bem-intencionados tanto a seus próprios olhos como 
pela sociedade. Certos cristãos proeminentes tinham 
absoluta certeza de que seu entendimento sobre a salva-
ção da alma era o único correto. Nesse sentido, os inquisi-
dores tinham uma dupla missão: por um lado, proteger a 
sociedade como um todo de perigosas heresias tidas como 
o mais grave perigo para a alma, e por outro proteger os 
hereges de sua própria e iminente danação. Mediante o 
choque da prisão e da tortura, estes eram forçados a per-
ceber que suas almas precisavam de salvação. O perigo 
para a ~ociedade era eliminado queimando-se a pessoa em 
questão. Mesmo se admitisse diante das chamas o erro de 
seu modo de agir, o relapso herege seria da mesma forma 
queimado para salvar-se de eventuais recaídas - receben-
do, porém, em tempo a mercê do estrangulamento. Assim 
a tarefa básica da Inquisição não era nem perseguir, nem 
torturar, nem matar; seu sublime objetivo consistia em 
proteger e ajudar a humanidade em geral e o indivíduo 
em particular. E os inquisidores acreditavam que todos 
os meios possíveis se justificavam para promulgar a 
doutrinaoficial, a única correta. 
Não se pode evidentemente afirmar que o serviço 
social de hoje descende da Inquisição medieval; a fogueira 
e a tortura já não são mais usadas. Procura-se comba-
ter situações familiares não ~audáveis, corrigir estru-
turas sociais insatisfatórias, ajustar os desajustados 
- em suma, procuramos impor aquilo que consideramos 
"correto" para os outros. E freqüentemente tentamos 
16 
fazê-lo até mesmo quando nossa ajuda é rejeitada pe-
los interessados. Em geral, impingimos certa concepção 
de vida, quer os outros concordem ou não. Preferimos 
não reconhecer o direito à doença, à neurose, a relações 
familiares não saudáveis, à degeneração social e à excen-
tricidade. 
Os paralelismos entre a Inquisição e o serviço social 
não devem ser tomados de modo excessivamente literal. 
O que quero dizer é que manipular nossos semelhantes 
contra sua vontade, mesmo quando isso nos parece a única 
via adequada, pode ser altamente problemático. Nunca se 
pode saber ao certo qual o sentido real de uma vida huma-
na individual. O objetivo da individuação e dos esforços 
coletivos aparece sob um ângulo distinto para diferentes 
pessoas em diferentes épocas. Nossos valores atuais não 
são únicos nem definitivos. Talvez daqui a duzentos anos 
eles sejam vistos como primitivos e ridículos. Atualmente, 
existem certos movimentos no interior da sociedade oci-
dental que desprezam e combatem os valores de normali-
dade e ajustamento social. Os hippies, com todas as suas 
variações e subgrupos, são um bom exemplo. Os andarilhos 
cabeludos que partem em peregrinação até a Índia, man-
tendo-se à base de trabalho ocasional ou mendicância e 
encontrando a felicidade no haxixe, por certo não encaram 
a normalidade social como alvo de sua vida. 
A consciência do caráter questionável de nosso siste-
ma de valores deveria nos tornar mais cautelosos quando 
tentamos impingi-lo aos outros. A esse respeito, os inqui-
sidores eram bem pouco escrupulosos. Em retrospecto, 
achamos que teria sido melhor se eles tivessem se apro-
fundado um pouco mais nas motivações que orientavam 
suas ações. Ao estudar a Inquisição hoje, dificilmente se 
pode deixar de suspeitar que os impulsos psicológicos que 
motivavam eSses santos cruzados não eram tão puros 
quanto pretendiam e declaravam; parece-me claro que 
17 
por trás havia muita crueldade inconsciente e um enorme 
desejo de poder. . 
Para muitos de nós, a Inquisição medieval representa 
o epítome de uma ânsia· de poder sádica e oficialmente 
sancionada. No serviço social moderno, nossos motivos 
por certo são melhores quando às vezes impomos a um 
indivíduo algo que ele próprio rejeita. Ou será que não? 
Durante vários anos de trabalho analítico com assistentes 
sociais notei repetidas vezes que, quando algo deve ser 
imposto pelaforça, a motivação consciente e inconsciente 
das pessoas envolvidas é multifacetada. Um sinistro desejo 
de poder furtivarpente espreita por trás das aparências; 
sonhos e fantasias revelam motivos que a consciência pre-
fere ignorar. Determinado assistente social, por exemplo, 
sonhou que passava com seu carro por cima de uma pessoa, 
a qui:lm, na verdade, havia imposto certas coisas. No sonho 
ele temia que descobrissem a intencionalidade de sua ação. 
E nem mesmo as emoções abertamente expressas durante 
a psicoterapia indicavam um puro desejo de ·ajudar. 
"Estávamos sentados frente a frente e ela insistia 
em me contradizer. Tive vontade de lhe mostrar no fim 
das contas quem é que mandava. Ela não percebia que 
não podia fazer nada contra a minha vontade." Declara-
ções desse tipo, por parte de assistentes sociais, descrevem 
com bastante precisão a situação emocional subjacente. 
Freqüentemente, o problema em questão parece ser não 
o bem-estar do protegido, mas o poder do protetor. A im-
posição de uma medida criteriosamente justificada contra 
a vontade do interessado costuma produzir profunda 
satisfação no profissional que trata do caso - a mesma 
que sente um menino de escola que consegue bater em 
outro e provar sua força, pensando: "Agora ele aprendeu 
que é melhor não se meter comigo". 
Outro fenômeno psicológico muito interessante me 
impressionou. Quanto maior sua contaminação por mo-
18 
. i~ 
.<., 
tivações obscuras, mais o profissional parece apegar-se 
a uma suposta "objetividade". Nesse caso, a discussão 
sobre que atitudes tomar torna-se deslavadamente dog-
mática, como se só pudesse haver uma solução correta 
para o problema. Um assistente social muito inteligente 
que fazia análise comigo certa vez declarou: "Sempre que 
consigo provar a meus colegas que determinada medida 
impositiva é tão absolutamente certa como dois e dois são 
quatro, tenho sonhos desagradáveis à noite e as opiniões 
divergentes se transformam em ataques pessoais". 
Todos os que atuam nas profissões sociais, trabalhan-
do para "ajudar a humanidade", apresentam motivações 
psicológicas extremamente ambíguas para as suas ações; 
Em sua própria consciência e diante do mundo, o assisten-
te social vê-se forçado a encarar o desejo de ajudar como 
sendo sua motivação primordial. Mas nas profundezas de 
sua alma o oposto simultaneamente se constela _. não o 
desejo de ajudar, mas o de ter poder e sentir alegria em 
despotencializar o "cliente". .... . 
Especialmente nos casos em que o assistente social é 
forçado a operar contra a vontade do interessado, a análise 
cuidadosa das profundezas do inconsciente revela que o 
desejo de poder é um fator extremamente importante. De 
modo geral, este pode agir livremente quando acobertado 
pela fachada de retidão moral e objetividade. A crueldade 
chega ao extremo quando as pessoas fàzem dela um ins·-
trumento para assegurar o "bem" . Na vida cotidiana, a 
consciência nos incomoda quando nos entregamos além 
da conta ao desejo de poder. Mas o sentimento de culpa 
desaparece por completo da consciência quando nossas 
ações, ainda que inconscientemente motivadas pelo de-
sejo de poder, são conscientemente justificadas por algo 
supostamente correto e bom. 
O problema da "sombra do poder" é, portanto, de 
suprema importância para o assistente social, o qual por 
19 
vezes se vê obrigado a tomar decisões fundamentais con-
tra a vontade dos indivíduos diretamente interessados. 
Mas neste ponto seria bom evitar equívocos, pois ninguém 
age por motivos completamente puros. Mesmo os feitos 
mais nobres se baseiam em motivações ao mesmo tempo 
puras e impuras', luminosas e sombrias. Por causa disso, 
muitas pessoas e suas ações são injustamente ridicula-
rizad,as ou mal entendidas. O filantropo generoso quase 
sempre é motivado, dentre outras coisas, pelo desejo de 
ser respeitado e honrado pela generosidade que ostenta. 
N em por isso sua filantropia tem menos valor. Analoga-
mente, um assistente social movido pelo desejo de poder 
pode ainda assim tomar decisões úteis para um cliente. 
Mas existe um grande perigo: quanto mais este se iludir 
que opera exclusivamente a partir de razões altruístas, 
mais sua sombra de poder se tornará influente, acabando 
por traí-lo E( levando-o a tomar decisões altamente ques-
tionáveis. 
N a Suíça, há quem advogue a extensão do Código Pe-
nal do Menor para além dos 20 anos. Pode-se questionar se 
esse ponto de vista, como outros similares, não seria uma 
expressão da sombra de poder do assistente social (que 
naturalmente também se encontra em profissões afins, 
como o promotor público, o juiz de menores delinqüentes 
etc.). O Código Penal do Menor impede a aplicação de uma 
penalidade formal sobre o jovem contraventor, enfatizan-
do a necessidade de re'educação ou reabilitação. Mas ao 
mesmo tempo - e isso é inevitável- submete-o à vontade 
mais ou menos arbitrária das autoridades competentes. 
Se esse Código passasse a abranger pessoas até a idade 
de 25 anos, por exemplo, um jovem de 22 que cometesse até 
mesmo uma leve infração não poderia meramente pagar 
por seu crime, mas seria forçado a aceitar um programa 
de reabilitação mais longo e duro que apunição corres-
pondente para adultos estabelecida pelo Código Penal , 
20 
normal. Em lugar de sujeitar-se à penalidade estipulada 
por lei, o jovem estaria pedagogicamente à mercê das 
autoridades, que presumivelmente procurariam forçá-lo 
a mudar por meio da reeducação. 
Aqui se podem dar asas à imaginação. Numerosos 
assistentes sociais e alguns juristas interessados vêm pro-
pondo que o Código Penal como um todo seja reformulado, 
eliminando-se por completo as penalidades específicas 
e mantendo-se unicamente as medidas educativas. Em 
vez de punido, o infrator seria reeducado para tornar-se 
socialmente ajustado. Isso significa que qualquer cidadão 
que violasse a lei poderia ser examinado no que concerne 
a seu caráter e suas atitudes sociais; caso fosse apurado 
que seu caráter não corresponde aos padrões e valores de 
seus examinadores, ele poderia ser forçado a receber uma 
educação que o transformasse interiormente. Formulando 
mais precisamente a questão: sob certas circunstâncias, a 
violação de uma norma de estacionamento público poderia 
levar a vários anos de reabilitação! O assistente social 
encarregado de encaminhar ou executar tais medidas es-
taria de posse de inigualável poder. Por essa razão é que 
sugeri acima que essas propostas de reforma poderiam 
em parte expressar a existência de uma sombra de poder 
generalizada. 
Volta e meia me impressiono com a dificuldade que 
assistentes sociais dedicados têm em aceitar a forte pro-
teção que cerca o direito dos pais. Na Suíça, mesmo que 
as autoridades acreditem como algo evidente que certas 
crianças estão sendo mal-educadas por seus pais e que 
com toda a probabilidade terão sérias dificuldades no 
futuro, só se pode intervir quando se trata de um caso de 
patente negligência ou maus-tratos. "Mas isso não faz o 
menor sentido", sustentam inúmeros assistentes sociais. 
"Deveria ser possível brecar os pais antes que arruínem 
os filhos!" 
21 
Novamente surge a questão de saber se por trás 
dessa'eloqüente reivindicação de uma chance de intervir 
não se esconde a sombra de poder do assistente social. 
Uma profissional se empenhou bastante em afastar uma 
criança de seus pais, por ela considerados completamente 
inadequados, fracassando por falta: de base legal. Ao me 
relatar tal fato, ela disse com admirável ingenuidade: 
"A coisa mais forte que sinto agora é fúria e ódio desses 
pais. Gostaria realmente de lhes dizer umas boas!" Sua 
frustração por não ter podido mostrar-se mais forte 
que os pais 'era muito maior que sua pena por não ter 
podido ajudar a criança. 
Para ilustrar esse ponto de modo ainda mais claro, 
gostaria de voltar ao caso de Ana. Naquela ocasião, fa-
zia-se necessário um exame completo de nossas próprias 
motivações. Talvez não se tivesse tanta certeza assim 
de que algo benéfico resultaria da separação. Reconhe-
cidamente, ela e a mãe tinham um relacionamento pouco 
sadio. Mas podia ser que nossa interferência forçada fi-
zesse mais mal do que bem. Como já tentei indicar, nossas . 
idéias de saúde e normalidade podem não representar a 
sabedoria absoluta. Não poderia a filha viver uma vida 
significativa mesmo ligada à mãe? Seríamos nós mais 
capazes do que elas de vislumbrar o que viria a ser uma 
vida "significativa"? Queríamos realmente ajudá-las? Ou 
nos havíamos tornado vítimas de nossos próprios impul-
sos inconscientes de poder? Eu até iria mais longe: por 
que estávamos tão certos de que seria absolutamente 
correto prolongar a tutela dajovem para além dos 20 anos 
para salvá-la da prostituição? Poderíamos de fato saber 
se colocá-la em tal posição não acabaria lhe causando um 
grande mal? Na verdade, nem a tutela prolongada nem 
um ano num reformatório. mudaram seu comportamento. 
Os assistentes sociais costumam lamentar que as pessoas 
só procuram as autoridades competentes quando já estão 
22 
com a corda no pescoço. E então, ao receber orientação, 
escutam atentamente e depois fazem tudo ao contrário, 
só voltando. quando suas ações acabam criando uma 
situação calamitosa. Ficam então furiosos com esse 
comportamento, deplorando a inexistência de meios que 
garantam a obediência a seus conselhos. Mas serão essa 
raiva e essa queixa realmente uma expressão de eros 
social, ou apenas uma pretensão frustrada de poder? 
O verdadeiro eros não tem nada a ver com a vontade 
de impor nosso próprio plano e nossas próprias idéias 
sobre os outros. 
A presença de um problema de poder no campo dó 
serviço social é também confirmada pelo seguinte: a 
estrutura básica da maioria das profissões é refleti da 
pela opinião pública. Existem pontos de vista coletivos 
bastante definidos sobre o caráter profissional de assis-
tentes sociais, médicos, padres, advogados, políticos etc. 
A imagem coletiva é usualmente dúplice, com um lado 
sombrio e outro luminoso. Em geral, a imagem coletiva 
negativa de uma profissão particular é mais unitária e 
padronizada que. sua contrapartida positiva. Os padres 
são vistos como hipócritas, os professores como infantis 
e fora do mundo, os médicos como charlatães e assim 
por diante. Naturalmente, essas imagens positivas e 
negativas devem ao menos em parte ser encaradas como 
preconceitos. Mas, se examinadas com cuidado, muitas 
vezes essas idéias coletivas revelam reflexões válidas, 
ainda que distorcidas, das profissões em causa. 
O problema da sombra de poder, desempenha um 
papel proeminente na imagem coletiva negativa do assis-
tente social. Nela este aparece como alguém que interfere 
sempre que possível, forçando sua vontade sobre os outros 
sem de fato entender o que se passa, procurando pôr tudo 
nos eixos segundo padrões estreitos, moralistas e burgue-
ses, alguém movido por um desmedido gosto pelo poder, 
23 
" que se sente insultado e pode se tornar malévolo se este 
não for reconhecido. 
Concretizada numa situação, essa "mitologia ne-
gativa" do assistente social seria algo mais ou menos 
assim: às dez da manhã ela (ou ele) bate à porta de um 
apartamento; entra, bisbilhotei a um pouco e observa se 
as camas estão feitas e a louça da noite anterior lavada. 
A dona da casa ainda não está arrumada; de penhoar, ela 
apenas inicia sua faxina diária. Com base nessa visita, 
a assistente social conclui que a família em questão não 
está suficientemente ajustada para manter o filho adoti-
voo Este, amado com paixão pelos pais adotivos, é levado 
embora para ser colocado numa casa burguesa adequada. 
A opinião da assistente social é negativa devido não só à 
desordem que viu, mas também porque a dona da casa 
rejeitou sua interferência e de início até se inclinava a 
não deixá-la entrar. 
Neste ponto, talvez se objete que o que foi dito até 
aqui se aplica quando muito ao profissional antiquado e 
tradicional, que de fato pode ter tido grande sombra de 
poder, mas que o problema é muito menos agudo no serviço 
social moderno. O profissional de hoje, esclarecido e psi-
cologicamente treinado, procura compreender e ajudar os 
outros com base em seu conhecimento psicológico - tanto 
que suas atitudes básicas e as do psicoterapeuta já nem 
diferem tanto. Segundo minha experiência, entretanto, 
conhecer um pouco de psicologia pode refinar o problema 
de poder, mas de modo algum eliminá-lo. Com efe'ito, tal 
conhecimento pode em larga medida ser colocado a ser-
viço da sombra de poder, criando uma situação na qual o 
cliente é destituído do controle de sua própria alma. Não 
apenas a situação social 'e financeira do cliente mas sua 
própria psicologia tornam-se transparentes e manipuláveis 
pelo assistente social. E quando os testes psicológicos são 
adicionados à sua bateria de instrumentos, o infeliz cliente 
24 
se vê totalmente impotente. Apenas muito vagamente 
pode ele então perceber que sua alma foi radiografada e 
que, indiretamente, o mais íntimo de seu ser foi revelado 
àqueles que supostamente irão ajudá-lo. O assistente 
social torna-se assim capaz de dizer a uma mulher que 
diz amar seu filho que na verdade ela nem se liga a ele. 
Como poderádizer a urnjovem que desesperadamente vem 
resistindo a vários anos de reabilitação que na verdade ele 
gosta de ter certas limitações. O indivíduo em questão já 
não tem mais nada a dizer, pois o raio X do assistente social 
enxergou através dele. . 
Este ponto já toca nos problemas de sombra de outra 
profissão, a do psicoterapeuta, na verdade o foco deste 
livro. Voltaremos ao assunto no próximo capítulo. Antes 
disso, porém, gostaria de acrescentar algumas reflexões 
num tom menos negativo. 
As pessoas escolhem a difícil e responsável profissão 
de assistente social por várias razões psicológicas que 
diferem de um indivíduo para outro. Apesar do acaso 
também ter um papel, há certas motivações comuns que 
levam a essa escolha. Não me refiro aqui aos que exercem 
essa profissão cinicamente, apenas como um meio de ga-
nhar a vida. Para estes, de qualquer forma, o problema 
da sombra de poder não é especialmente agudo. Os assis-
tentes sociais assíduos, entusiásticos e verdadeiramente 
devotados é que costumam tornar-se vítimas da sombra 
de poder. O indivíduo cínico e indiferente simplesmente 
desempenha suas tarefas de modo formal e correto, não 
se sentindo atingido pelos aspectos positivos ou negativos 
de seu trabalho. 
O que leva uma pessoa a se in~eressar pelo lado 
escuro da vida social? O que é que lhe torna possível li-
dar dia após dia com pessoas infelizes, desafortunadas e 
desajustadas? O que tanto lhe fascina nesse lado depri-
mente da vida? Em última análise, essa pessoa deve ser 
25 
r 
~ , 
de um tipo espeçial. O indivíduo medianamente "sadio" 
prefere ignorar e esquecer os infortúnios e sofrimentos de 
seus semelhantes quando não se encontra diretamente 
envolvido, ou talvez olhar para eles esporadicamente, 
de uma boa distância, por meio do jornal e da televisão. 
Somente uns poucos procuram expor-se diariamente aos 
problemas alheios; a maioria das pessoas se limita a seus 
próprios. Dizer que os assistentes sociais são pessoas 
abençoadas com um amor pelos semelhantes maior que o 
normal não nos leva a parte alguma, pois não é verdade. 
Tampouco são eles cristãos fervorosos para quem o amor 
ao próximo, expresso no ato de ajudar os desafortunados, 
é o mandamento supremo de Deus. Ao mesmo tempo, não 
devemos encarar o desejo de ajudar como apenas uma 
racionalização do lado sombrio da profissão ou seia do , ' ~ , 
desejo de poder. E sem dúvida muito tentador reduzir algo 
admirável a algo nem tanto. Vários estudos psicológicos 
têm procurado demonstrar que uma expressão de eros, 
por exemplo, não passa de sublimação de algum instinto 
menos elevado. Dessa perspectiva, :0 pintor não passa de 
um rabiscador infantil, o professor de um sedutor de crian-
ças reprimido, o psicoterapeuta de ·um voyeur etc. 
A pessoa que escolhe como trabalho de uma vida o 
confronto diário com algumas das polaridades fundamen-
tais da humanidade - ajustamento/desqjustamento, 
sucesso social/fracasso social, saúde mental/doença men-
tal- deve ser um tipo muito especial. Os que atuam nas 
profissões de ajuda certamente se sentem mais fascinaçlos 
por essas polaridades que todos os demais. 
26 
; L 
PSICOTERAPEUTA: 
CHARLATÃO E FALSO PROFETA 
A psicoterapia, na sua forma atual, é relativamente 
jovem. Os modelos em que se baseiam as atividades do 
terapeuta derivam de várias outras profissões e só podem 
ser compreendidos em relação a artes mais antigas. 
Quer se queira ou não, a psicoterapia de fato se liga à 
medicina. Os modelos profissionais e éticos que guiam o 
médico são em parte os mesmos do psicoterapeuta, assim 
como o lado sombrio do analista até certo ponto tem a ver 
com o caráter médico de seu trabalho. 
. O médico tem por objetivo ajudar os doentes e os 
que sofrem. O juramento de Hipócrates diz: "O regime 
que adoto será para o bem de meu paciente segundo 
minha habilidade e julgamento e nunca para lhe causar 
sofrimento ou dor ... Aonde quer que eu vá, irei para o 
bem do enfermo, afastando-me da corrupção e do mal. .. 
minha vida e minha arte serão sagradas para mim". Em 
suas linhas gerais, essa edificante concepção do médico 
é bastante difundida no Ocidente. 
O lado sombrio da atividade do médico não consta 
desse juramento. Esse aspecto foi habilmente caricatu-
rado por Jules Romain em sua peça· O Dr. Knock. Esse 
personagem não tem o menor desejo de curar os demais 
de modo desinteressado; usa seus conhecimentos médicos 
em proveito próprio, não hesitando em provocar doenças 
27 
r 
I; 
em pessoas até então sadias. Segundo sua filosofia "não 
há pessoas sadias, mas apenas doentes que ignora~ seu 
m~l". ~ Dr. ~ock é um charlatão. Esse termo, para 
mIm, nao desIgna alguém que use métodos não-ortodoxos 
ou extra-oficiais para ajudar os necessitados, mas sim um 
t~po de médico que na melhor das hipóteses engana tanto a 
SI como a seus pacientes, ou, na pior, apenas a seus pacien-
tes. Trata-se de um indivíduo que ajuda mais a si mesmo 
pelo dinheiro e prestígio que recebe, do que aos doentes qu~ 
procuram seus préstimos. Compreendidas nesse sentido 
as atividades de um charlatão podem, conforme o caso: 
ser benéficas, maléficas ou inteiramente neutras. 
O charlatanismo é um tipo de ~sombra que acompa-
nha permanentemente o médico. E um de seus irmãos 
sombrios e como tal pode viver dentro ou fora dele. Al-
guns médicos vêem essa sombra apenas na pessoa de um 
obscuro curandeiro, mas o fato é que, em sua maioria, 
acabam eles mesmos se tornando vítimas da sombra de 
charlatão 1;10 decorrer de suas atividades profissionais. 
Os próprios pacientes exercem considerável pressão para 
que o médico traia o modelo hipocrático e passe a agir 
como um Dr. Knock. Em geral, as infindáveis queixas 
de caráter indeterminado que o clínico geral ouve a cada 
dia, para as quais ainda não foi descoberta uma terapia 
genuína - fadiga crônica, certas dores nas costas e nas 
juntas, vagas perturbações cardíacas e estomacais, dor 
de cabeça permanente etc. -, costumam ser tratadas por 
meios não-científicos. À medida que deixa de esclarecer 
aos pacientes os componentes emocionais de males em 
grande parte psíquicos na origem, o médico comum acaba 
po:- ~stimulá-Ios a enfatizar ainda mais os aspectos so-
matIcos de seus problemas emocionais. Caso os sintomas 
aumentem, ele será visto como um grande médico; caso 
regridam, é óbvio que o paciente não soube observar suas 
instruções. 
28 
. " 
I 
As ponderadas recomendações de Arquimateu de 
Salerno, médico do século XI, nos fornecem um bom 
exem pIo histórico do modo como funciona essa sombra 
charlatã: "Ao paciente, promete a cura; aos membros 
de sua família, anuncia uma grave enfermidade. Se o 
paciente não se recuperar, dirão que previste sua morte; 
se alcançar a cura, teu renome crescerá". 
Apenas em parte, porém, busca o psicoterapeuta 
seu modelo no campo da medicina. Outra vocação, a do 
sacerdote, também influencia seus ideais. 
A imagem do homem de Deus sofreu várias mudanças 
no decorrer da história e não é sempre a mesma nas diver-
sas religiões. A mais importante para nossos propósitos 
é a do líder religioso na tradição judaico-cristã. Acredita-
se que este, pelo menos às vezes, entra em contato com 
Deus. Não se espera, é claro, que todos os clérigos, como os 
profetas do Velho Testamento, recebam sua vocação dire-
tamente da Divindade, mas que procurem honestamente 
agir em nome de Deus e conforme sua vontade. 
O lado sombrio dessa nobre imagem do homem de 
Deus é o hipócrita, aquele que prega não porque acredita, 
mas para ter influência e poder. Assim como no caso do 
médico e seus pacientes, com o clérigo também ocorre 
serem os membros de sua congregação os responsáveis in-
voluntários pela ativação do irmão obscuro, pois exercem 
considerável pressão para que ele desempenhe o papel de 
hipócrita. A dúvida é companheira da fé. Mas ninguém 
quer ouvi-la da boca de um sacerdote - as nossas já bas-
tam. Assim, este acaba não tendo outra alternativa a não 
ser tornar-se hipócrita de quando em vez, escondendosuas 
próprias dúvidas e mascarando um momentâneo vazio 
interior com palavras eloqüentes. Se seu caráter for fraco, 
este poderá tornar-se um traço habitual. 
Em termos ideais, o homem de Deus deve testemu-
nhar sua fé com seus próprios atos. O que ele prega não 
29 
pode ser provado. É por meio de seu próprio comporta-
mento que deverá surgir um fundamento para a fé que 
representa. E tal fato abre as portas para outro irmão do 
sacerdote - aquele que procura parecer ao mundo Ce a 
si próprio) melhor do que realmente é. 
A sombra do _falso profeta acompanha o sacerdote 
por toda a vida. Por vezes, ela aparece externamente, 
na figura do pregador de alguma seita obscura ou de um 
colega que se popularizou por meio da demagogia; por 
outras, é dentro dele mesmo que desponta. Hoje em dia, 
há muitos religiosos que temem essa sombra hipócrita de 
falso profeta. Recusam-se a ser vistos como "homens de 
Deus" a partir de traços interiores ou exteriores e fazem 
seus sermões sem nenhuma vestimenta especial, numa 
atitude de conversa social informal. 
Com bastante freqüência, nós analistas lidamos com 
distúrbios da saúde - neuroses e psicoses - para os 
quais, tanto em termos de tratamento como de uma possí-
vel cura, praticamente não existem controles experimen-
tais reconhecidos. É virtualmente imp·ossível acumular 
estatísticas de tratamentos bem-sucedidos desses males. 
O que vem a ser melhora ou recaída quando se trata 
desses problemas? Deveria o grau de ajustamento social 
ser tido como critério? Ou a capacidade de trabalhar? O 
que significam intensificação, diminuição ou superação 
de sintomas neuróticos? Os sentimentos subjetivos do 
paciente? O progresso no desenvolvimento psicológico, no 
processo de individuação, no contato com o inconsciente? 
Até mesmo os critérios são incertos, em visível contraste 
com um problema somático bem caracterizado, quando a 
medida inequívoca de sucesso do tratamento é dada pela 
recuperação de um funcionamento adequado. No caso de 
problemas emocionais, incluindo os males psicossomá-
ticos, os resultados são sempre insatisfatórios, qualquer 
que seja o critério utilizado. Mesmo usando amplas amos-
30 
tragens estatísticas, é muito difícil fazer julgamentos qua-
litativos sobre o desenvolvimento dos distúrbios em questão, 
quer sejam eles tratados com psicoterapia intensiva, tran-
qüilizantes, quer sejam simplesmente ignorados. . 
Talvez os critérios que melhor indiquem o sucesso da 
psicoterapia sejam o grau de proximidade ou distância 
com relação ao "si-mesmo" ou ao "sentido da vida" ou o 
tipo de contato estabelecido com o inconsciente. Mas como 
medir e estudar estatisticamente esses fatores? 
Qualquer profissional poderá registrar um trata-
mento bem-sucedido se por acaso for procurado na hora 
certa, se puder trabalhar com o paciente por temp? sufi-
ciente e se este for alguém que de fato procurava ajuda e 
que teria melhorado de qualquer jeito, segundo os critérios 
que enumeramos. Nesse caso, a sombra de ch~rlatão da 
dimensão· médica do arialista pode operar maIS ou me-
nos livremente. Além disso, termos como doente e sadio, 
necessitado ou não- de tratamento etc.- costumam ser 
muito mais difíceis de aplicar ao estado emocional de uma 
pessoa do que à sua condição física. O desenvolvimento 
psíquico de um indivíduo é altamente complexo e somos 
todos de alguma forma neuróticos. O psicoterapeuta que 
agisse como o Dr. Knock poderia, sem maior dificuldade, 
provar para meio mundo que todos precisam fazer uma 
longa análise. A coisa pode ser levada tão longe que quem 
nunca fez análise passa a se sentir meio doente,. ou pelo 
menos não completamente desenvolvido em termos psi-
cológicos. 
A sombra do analista se amplia ainda mais devido 
ao denominador comum existente entre o seu· ofício e 
o do sacerdote. Nós analistas, qualquer que seja nossa 
orientação, não defendemos uma fé específica ou uma 
religião organizada, mas, corrio o sacerdote, quase sempre 
recomendamos certa atitude básica diante da vida; Não 
representamos uma filosofia, mas uma psicologia que 
31 
abraçamos por convicção, visto que tanto em nossa vida 
como em nossa própria análise tivemos experiências que 
nos persuadiram e nos formaram em termos dessa psi-
cologia. O analistajunguiano, por exemplo, é alguém que 
viveu o profundo abalo produzido pela confrontação com 
o irracional e o inconsciente. Entretanto, poucos l,nsights 
psicolÓgicos podem ser estatisticamente provados no sen-
tido empírico, só podendo ser confirmados pelo testemu-
nho honesto e sincero dos que se empenham na mesma 
busca. Nossa única prova é nossa própria experiência e a 
de outros, uma vez que a realidade psíquica não pode ser 
apreendida estatística ou carnalmente como ocorre nas 
ciências naturais. Sob esse aspecto, encontramo-nos em 
posição similar à do sacerdote. Mas essa extremada con-
fiança na própria experiência pessoal ou alheia inevitavel-
mente dá rn'argema sérias dúvidas. E se nós mesmos, ou 
outros como nós, estivermos enganados? Afinal de contas, 
há muitos psicoterapeutas íntegros que defendem escolas 
de pensamento completamente distintas. Estariam todos 
se enganando? Seriam todos cegos? Ou talvez a situação 
seria como a descrita no romance de Mary McCarthy, O 
Grupo, por um psiquiatra decidido a abandonar a profis-
são e pesquisar a bioquímica do cérebro: "É por isso que 
eu estou caindo fora (da psiquiatria); quem ficar, que 
escolha entre ser um cínico ou um impostor ingênuo". 
Será que somos capaz~s de admitir essas dúvidas para 
nós mesmos e para o resto do mundo? Ou será que nós 
psicoterapeutas fazemos com nossas própr,ias dúvidas e 
medos o que faz o sacerdote, suprimindo-os e pondo uma 
pedra em cima? 
Da mesma forma que o sacerdote, trabalhamos çom 
nossa alma, nosso ser; os métodos, as técnicas e o aparato 
utilizado são secundários. Nós, nossa honestidade e au-
tenticidade, nosso contato pessoal com o inconsciente e o 
irracional- são esses os nossos instrumentos. É grande , 
32 
a pressão que sofremos para apresentá-los melhores do 
que são; mas, nesse caso, tornamo-nos vítima da sombra 
do psicoterapeuta. 
Há ainda outro paralelo com respeito ao padre: nós 
analistas somos de um modo geral impelidos a desem-
penhar um papel de onisciência. Trabalhamos com o 
inconsciente, com sonhos e com a psique, esferas em que 
se manifesta o transcendental- pelo menos na concep-
ção dos leigos e até mesmo de alguns terapeutas~Dessa 
forma, há toda uma expectativa de que o analista saiba 
mais sobre assuntos fundamentais do que o comum dos 
mortais. Se formos fracos, acabaremos por acreditar 
que estamos mais profundamente iniciados na vida e na 
morte do que nossos semelhantes. 
Não só imagens mais nobres da medicina e do sa-
cerdócio convergem sobre o analista, mas também seus 
aspectos sombrios, o charlatão e o falso profeta. 
O problema da sombra do analista se intensifica 
ainda mais devido a algo que lhe é peculiar e não neces-
sariamente vinculado aos modelos básicos das outras 
profissões. Trata-se do fato de que uma de suas tarefas 
consiste em ajudar os pacientes a se tornarem mais 
conscientes. 
Assim como o conhecimento de Deus desempenha 
um papel central no modelo ideal de sacerdote, e o de 
terapeuta altruísta ria imagem do médico, há no modelo 
de psicoterapeuta uma figura crucial que poderíamos 
vincular ao ato de criar consciência ou de lançar luz. Mas 
as imagens profissionais sempre têm um aspecto sombrio, 
o qual representa o oposto do ideal luminoso. A sombra 
profissional do analista contém não apenas o charlatão e 
o falso profeta, mas também a contrapartida daquele que 
ilumina, oU'seja, uma figura que vive imersa no incons-
ciente e visa sempre ao contrário do que conscientemente 
pretende o analista. Temos aí uma situação paradoxal, na 
33 
qual o analista é mais ameaçado pelo inconsciente que o 
não-analista. O psicoterapeuta honesto de vez em quando 
leva um choque ao descobrir que age inteiramente a partir 
do inconsciente em seutrabalho. 
Em geral, o analista não recebe aviso algum por par-
te de seu paciente de que inconscientemente está sendo 
destrutivo. É que o próprio paciente busca o charlatão 
e o falso profeta no analista e inclusive incentiva esses 
aspectos. Muita~ vezes o terapeuta tem a impressão de 
que seu trabalho vai indo às mil maravilhas, impressão 
tanto mais forte quanto mais tenha caído em sua própria 
somora. Assim como o médico é forçado por seus pacientes 
a desempenhar o papel de charlatão, e o sacerdote o de 
falso profeta por sua congregação, o analista é levado a 
esses papéis inconscientes por seus analisandos. 
Uma objeção importante poderia ser levantada aqui. 
O analista profissionalmente sincero se encontra em per-
manente contatocom seu próprio inconsciente, estudando 
cuidadosamente seus sonhos e quaisquer outras mani-
festações. Poder-se-ia pensar que isso com toda a certeza 
afastaria o 'papel de charlatão, falso profeta ou analista in-
conscientemente destrutivo. Mas não é assim. Assim como 
as demais pessoas, nós analistas também costumamos ter 
um ponto cego com respeito à nossa própria sombra. Não 
a vemos nem em nossos sonhos, nem em nossas ações. 
Freqüentemente, nem mesmo nossos amigos conseguem 
vê-la por algum tempo, tornando-se tão cegos quanto nós 
mesmos, o que acaba produzindo algo como uma folie à 
deux. Em tais casos os inimigos podem ser muito úteis e 
deveríamos sempre refletir sobre o que dizem. 
Seguimos certas regras para interpretar as manifes-
tações do inconsciente. Em última análise, porém, essa 
interpretação é mais uma arte que um ofíc~o e pode muito 
bem ocorrer que nossa própria equação pessoal nos leve 
a desprezar algo fundamental. 
34 
Além disso, há também o problema de que as mani-
festações do inconsciente, como as do Oráculo de Delfos, 
quase sempre são ambivalentes. O modo de compreen-
der o inconsciente acaba assim dependendo do ego. O 
que aconteceu com Croesus no Oráculo pode acontecer 
com qualquer um de nós; ou seja, podemos interpretar o 
inconsciente segundo os desejos do ego e dessa forma 
compreendê-lo mal. 
Antecipando algo que será desenvolvido mais adian-
te, gostaria neste ponto de lembrar o que acontece quando 
se cai sob o poder da sombra profissional. 
Exigimos sinceridade de nossos pacientes. Procura-
mos ajudá-los em sua confrontação com o inconsciente 
mediante nossas explicações, nossas interpretações de 
sonhos e, acima de tudo, nossas próprias atitudes. Ao 
olhar de frente nossa própria sombra profissional, mos-
tramos aos analisandos que os aspectos desagradáveis 
da vida ta.mbém devem ser reconhecidos. Como procu-
rei indicar, as figuras completamente inconscientes da 
sombra de charlatão e falso profeta desempenham um 
papel muito importante em nosso trabalho analítico e 
portanto em nosso relacionamento com os pacientes. Se 
estes forem atingidos por essa sombra, é fundamental 
para o progresso da terapia que sejamos capazes de 
admitir diante deles que escorregamos na sombra in-
consciente e profissional, por mais doloroso que possa 
ser reconhecer tal fato. O paciente, afinal de contas, 
tem de encarar certas revelações dolorosas. Ao procu-
rar detectar a cada passo a atuação de nossa sombra 
psicoterapêutica, apanhando-a com as mãos na massa, 
auxiliamos nossos pacientes em suas próprias confron-
tações com o irmão obscuro. Se deixarmos de fazê-lo, o 
paciente aprenderá apenas a enganar a si mesmo e ao 
resto do mundo, tornando-se assim altamente questio-
nável o próprio valor da análise. 
35 
o problema da sombra profissional se liga a outros 
aspectos fundamentais da atividade terapêutica. Na 
qualidade de anlillistas, defrontamo-nos constantemente 
com o sofrimento e com destinos trágicos e incomuns. 
Com bastante freqüência, o que temos a fazer é ajudar 
uma 'pessoa em dificuldade a compreender a si mesma 
tanto quanto possível, não só para que entre em contato 
com o inconsciente, mas simplesmente para que suporte 
os aspectos trágicos da vida em toda a sua incompreen-
sibilidade. Para ajudar uma pessoa que sofre devido a 
uma situação existencial trágica - que não se alterará 
mesmo que aumente o contato com o inconsciente - deve-
mos igualmente confrontar nossa própria situação trágica, 
expressa pelo fato de que quanto mais procuramos ser 
bon.,s psicotlerapeutas, ajudando nossos pacientes a am-
pliar sua consciência, mais nos ocorre cair no lado oposto 
de nosso luminoso ideal profissional. 
Em certo sentido, o destino dos que lutam por algo 
- e nossos pacientes são em geral pessoas desse tipo 
- tem uma dimensão inegavelmente trágica. É sempre 
o oposto do que se quer atingir ou evitar que acaba se 
constelando. Isso é verdade tanto em nível coletivo como 
individual. A Revolução Francesa pretendia libertar 
o homem e deu lugar à tirania napoleônica. No século 
XIX, vários suíços amantes do canto tentaram promo-
ver essa atividade fundando corais masculinos; mas, de 
fato, a existência de tais grupos destruiu vor completo o 
canto como passatempo popular, transformando-o em 
algo que precisava da estrutura organizada de um coral 
dirigido para acontecer. O Cristianismo, pregando a, paz 
e o amor, deu origem a cruzadas sanguinárias que no afã 
de conquistar a Terra Santa começaram por exterminar 
os judeus da Europa. Como sempre repetia C. Q-. Jung, 
sempre que um conteúdo luminoso se instala na cons-
ciência, seu oposto se constela no inconsciente e procura 
36 
, :: 
., 
. ~:. 
atrapalhar a partir dessa posição estratégica. O médico 
se torna um charlatão exatamente por querer curar o 
maior número possível de pessoas; o sacerdote se torna 
um hipócrita por querer converter as pessoas à verdadeira 
fé; e o psicoterapeuta se torna um charlatão e um falso 
profeta apesar de trabalhar dia e noite para ampliar sua 
consciência . 
Até aqui, minhas afirmações parecem um tanto 
pessimistas, como as de um pregador calvinista ou de 
um teólogo da velha Islândia - se é que havia teólogos 
* . naquele tempo. Odin faz o que pode, apesar de saber 
muito bem que as raízes de Iggdrasil, a árvore do mundo, 
estão sendo lenta mas inexoravelmente destruídas pela 
serpente. 
Mas a existência dessa sombra também tem aspectos 
menos trágicos. Nem sempre as ações de um terapeuta 
que trabalhe a partir da sombra são negativas. Freqüen-
temente os charlatães conseguem minorar o sofrimento 
muito mais do que médicos sérios e respeitáveis. E um 
terapeuta que temporariamente caia no inconsciente e 
trabalhe exclusivamente a partir da sombra pode, pelo 
menos por algum tempo, aparar as arestas mais agudas 
do sofrimento dos pacientes com base em sua precisão e 
segurança exterior. 
Um de meus analisandos teve certa vez o seguinte 
sonho: num jornal aparecia uma caricatura minha, no 
estilo de Daumier, com a seguinte legenda: "Infelizmente 
nosso colega Dr. A. G.-C. fez mau uso da nobre arte da 
medicina, portando-se como um charlatão em busca de 
vantagens" . 
Naquela ocasião, não pensei que o sonho de fato se 
referisse a 'mim e o interpretei como expressão de uma 
*Referência ao mito germânico. (N. do T.) 
37 
resistência do paciente baseada em preconceitos coletivos 
contra a psicologia, a psicoterapia e o inconsciente. Re-
jeitei a crítica que me era dirigida e o retrato de minha 
sombra profissional como uma caricatura à la Daumier, 
encarando-os como um problema subjetivo do paciente. No 
decurso da análise voltamos a esse sonho e percebemos 
claramente que ele se referia ao meu próprio problema 
de sombra profissional. Meu paciente disse que ficou 
contente por não termos conseguido compreender o so-
nho por completo naquela altura. A segurança com que 
lhe devolvi o sonho, apesar de este basear-se no meu 
próprio inconsciente, produziu um efeito tranqüilizador. 
Ele disse que naquela ocasião não teria suportado o peso 
de lidar ao mesmo tempo com os meus problemas de 
sombra e com os dele . 
. Posso bem imaginar u~a reação crítica às refle-
xões até aqui apresentadas. Não seriam elas talvez de-
masiadodestrutivas? Por que razão deveríamos tentar 
nos tornar mais conscientes, se estamos condenados a 
recair perpetuamente, nas mais desagradáveis formas 
de inconsciência? Por que não "viver e deixar viver" com 
alegria e inconsciência, simplesmente ajudando nossos 
pacientes com medicamentos? Para os que $e preocupam 
profissionalmente com a questão, o esforço de tornar-se 
mais consciente parece condenado a um trágico fracasso. 
Talvez tenham razão certas religiões orientais que 
procuram negar por completo as exigências e objetivos 
do ego, para que o indivíduo assim liberado de preocupa-
ções terrenas possa atingir o Nirvana. Os esforços, do ego, 
por mais bem-intencionados que sejam, acabam a longo 
prazo por atrÁpalhar. 
Mas os europeus não podem e não pretendem renun-
ciar ao ego, devendo lev'ar muito a sério seus esforços e 
objetivos. O si-mesmo - centro significativo mais profun-
do da psique, segundo Jung - em geral só pode apa 
38 
: .'" 
recer se o ego, em lugar de posto de lado e eliminado 
como algo insignificante, puder levar adiante o drama de 
seus envolvimentos. 
O Rei Édipo tentou desesperadamente viver e agir 
segundo a vontade dos deuses - ou seja, do inconsciente. 
Apolo lhe informou, por meio do oráculo, que derramaria 
o sangue do pai e desposaria a mãe. Para evitar tal even-
tualidade, o jovem. Édipo abandonou Pólibo, seu pai, e 
Mérope, sua mãe, sem saber que estes não eram seus pais 
verdadeiros, mas adotivos, pois estes nunca lhe haviam 
dito nada sobre sua linhagem. Mas, ao tentar evitar a 
horrível e maldita profecia, Édipo cai no pólo oposto. No 
fim da tragédia, autocondenado, ele se vê como· "o mais 
amaldiçoado dos homens, odiado por todos os deuses". Ao 
vazar os olhos, ele deplora: "Nada restou para ser visto ou 
ser amado. Nunca mais o som das saudações dará prazer 
aos meus ouvidos. Fora! Fora daqui, fora! Ao desterro, ao 
desterro!" 
Mas é exatamente a partir desse trágico esfacela-
mento de ego de Édipo que o si-mesmo, a centelha divina 
no homem começa a transparecer. Como em qualquer 
tragédia, percebe-se aqui um significado que j á não é mais 
orientado pelo ego. Algo análogo é sentido por qualquer 
analista - e por seus pacientes - que procure relacio-
nar-se com o inconsciente, vivendo tão conscientemente 
quanto possível e nesses termos exercendo sua profissão. 
E, ao fazê-lo, será inevitável que progressivamente caia 
na sombra'e muitas vezes desempenhe o papel de charlatão 
e falso profeta para seus pacientes. 
Até este ponto, talvez minhas considerações sobre 
o irmão sombrio dopsicoterapeuta tenham sido muito 
gerais. No capítulo seguinte voltaremos a essas figuras 
obscuras, observando em termos práticos o que acontece 
quando o psicoterapeuta cai no inconsciente. 
39 
o CONTATO INICIAL 
ENTRE ANALISTA E ANALISANDO 
Via de regra, o inconsciente do analista não se re-
laciona com seus próprios traços neuróticos. No decurso 
de sua análise de treinamento e de seu próprio trabalho 
analítico, os terapeutas sérios aprendem a não atrair os 
paciêntes para seus próprios mecanismos neuróticos - e 
também a reconhecê-los claramente, senão a superá-los. 
É de se esperar que uma análise que se estendeu por 
centenas de horas permita ao menos que se atinja esse 
ponto. . 
Enormes dificuldades surgem, porém, para o analista 
a partir de seu próprio desejo de ajudar. Elequer servir 
a seus pacientes, ajudá-los em seu sofrimento neurótico e 
estimular o desenvolvimento de sua consciência. Fazendo 
o melhor uso de seu conhecimento e de sua habilidade, 
pretende altruisticamente auxiliá-los. Mas esse des~jo 
consciente - sem o qual o analista não teria escolhido 
sua profissão - constela o pólo oposto no inconsc\ente e 
conjura o charlatão, ou seja, aquele que não trabalha 
para seus pacientes, mas para si próprio. Em parte, é esse 
o fenômeno psicológico que Jung costumava chamar de 
"sombra". Esse termo não deveria ser confundido com o 
inconsciente per se. Para Jung, "sombra" quer dizer o 
reverso dos ideais pessoais ou coletivos. Nesse sentido, a 
sombra sempre é um tanto destrutiva, agindo negativa-
40 
.: ./ 
mente sobre os ideais positivos esposados pela coletivi-
da de ou pelo indivíduo. Sua existência é extremamente 
desagradável e dolorosa para o ego, cujos objetivos são 
exatamente o oposto. A consciência, ou superego, é infor-
mada pelo ambiente imediato ou mais geral em termos 
dos ideais existentes. O ego tenta sempre cumprir as 
exigências do superego, ou ao menos aceitar alguns com-
promissos. O fato de haver um eterno desencontro entre 
valores conscientes e o poder da sombra interessada em 
destruí-los cria uma tensão dinâmica, mas também uma 
dolorosa insegurança. Todo analisando deve lidar inten-
samente com sua própria sombra e com os demônios que 
se agitam em seu interior, mesmo que deles não tenha 
consciência. 
Procuremos agora examinar a sombra do psicote-
rapeuta em termos concretos, descrevendo algumas de 
suas atitudes. Certos aspectos sombrios podem constelar-
se já no primeiro encontro entre terapeuta e paciente. 
Ao encontrar-se pela primeira vez, tanto um como outro 
têm certas intenções conscientes. O paciente deseja livrar-
se de seu sofrimento e de sintomas neuróticos, como 
compulsões, fobias, impotência, frigidez, depressão ou 
males psicossomáticos. Muito freqüentemente, o auxílio 
que busca diz respeito às dificuldades gerais da vida, a 
problemas matrimoniais ou com os filhos etc. Da mesma 
forma que o doente que procura um médico, o paciente 
psicoterap&utico quer livrar-se de seu sofrimento e de 
sua doença. Pelo menos, assim parece ser na superfície 
psíquica. Já as expectativas mais profundas costumam 
ser bastante diversas. Inconscientemente, ao menos em 
parte, o paciente quase sempre espera encontrar um re-
dentor que o liberte de todos os seus problemas e talvez 
até chegue a despertar nele capacidades sobre-humanas. 
Uma paciente minha extremamente inteligente, que 
além de uma grave neurose também sofria de constan-
41 
r
i! 
.I 
I 
l' 
i 
tes resfriados, confessou-me algum tempo depois de 
iniciar a análise que por intermédio da psicoterapia 
esperava imunizar-se contra todas as doenças físicas. 
Seus constantes resfriados eram um teste. No princípio 
da terapia ela fantasiou que, se estes desapareçessem, 
ela gradualmente aprenderia a usar seus poderes psí-
quicos para afugentar todos os males físicos. O paciente 
costuma recorrer ao psicoterapeuta para obter não só um 
efetivÇ> apoio em sua luta contra a neurose, mas também 
o acesso a um conhecimento secreto que lhe permitiria 
resolver todos os problemas da vida. 
Com muita freqüência, as pessoas casadas espe-
ram, no início da terapia, receber os instrumentos que 
lhes permitiriam penetrar no íntimo de seus cônjuges 
e assim levá-los à submissão completa. Lembro-me de 
uina~ mulher que buscava tratamento devido a crises 
neuróticas cíclicas e dores de cabeça crônicas. Em nossa 
segunda sessão ela declarou estar muito feliz por começar 
a perceber a' razão de seu sofrimento, pois assim ela logo 
poderia mostrar ao marido o quanto este era injusto e 
como a tratava mal. 
No início da terapia a relação entre terapeuta e pa-
ciente é muitas vezes similar 4 do feiticeiro e seu aprendiz. 
As fantasias que o paciente tem nesse sentido exercem um 
poderoso efeito sobre o terapeuta, em cujo inconsciente 
começa a constelar-se a figura do mágico ou do salvador. 
O terapeuta começa a pensar que é de fato alguém com 
poderes sobrenaturais" capaz de fazer maravilhas com 
sua mágica. 
A expectativa e a esperança do paciente de encontrar 
um feiticeiro poderoso também têm um papel na escolha 
do analista. Para este, é claro, é extremamente difícil 
não ser atingido por essa projeção do mágico. Na verdade 
ele até a estimula no paciente ao enfatizar seu próprio 
poder e seu prestígio. Quando o paciente lhe fala de seus 
42 
O;'. 
problemas, o analista deixa parecer que já compreendeu 
tudo. Mediante o uso de certos gestos, como um sábio 
balançarde cabeça, e de certas observações ambíguas 
em meio à fala do paciente, o analista cria a impressão de 
que, mesmo não estando preparado para expressar todo o 
seu conhecimento e suas profundas reflexões, já atingiu 
o fundo da alma do paciente. A pretensão de competência 
absoluta também faz parte da imagem do feiticeiro. Via de 
regra, os feiticeiros querem ser onipotentes e não costu-
mam tolerar colegas ou competidores. O relacionamento 
entre feiticeiros costuma ser uma luta de poder, consis-
tindo de magia e contramagia. Fascinado por essa figura 
interior do mágico, o analista gostaria que todos os que 
precisam de auxílio se voltassem exclusivamente para 
ele. Por mera falta de tempo ele poderá graCiosamente e 
às vezes encaminhar um caso a algum principiante, mas 
ainda assim procurará manter todos os fios em suas 
próprias mãos. Muitos analistas trabalham mais do que 
podem e falam com certo orgulho da longa lista de espera 
de futuros pacientes. A pretensão interior de poder abso-
luto e a fantasia de que é o mais poderoso dos feiticeiros 
impossibilitam-lhe enviar de bom grado certos casos a 
colegas de status equivalente e não apenas estudantes 
e principiantes. O analista não crê, como a madrasta de 
Branca de Neve, que "não há ninguém mais belo" do que 
ele em todo o reino; mas o demoníaco feiticeiro dentro 
dele leva-o a crer que é o único no país que realmente 
entende de análise. 
Muitas vezes o jogo de feiticeiro e aprendiz se man-
tém durante toda a análise e continua até mesmo depois 
de seu término. As análises didáticas estão particular-
mente sujeitas a esse perigo. O treinando pode conti-
nuar sendo um "aprendiz" pelo resto da vida, ou seja, um 
admirador e imitador do analista que o formou. Ou então 
tentará transformar-se ele próprio num mestre feiticeiro, , 
43 
o que leva a recrin;l.inações amargas e recíprocas entre 
velho mestre e ex-aprendiz; o analista mais novo abriga 
ressentimentos profundos contra seu colega mais velho, 
ao passo que este se sente traído. Os dois já não podem 
mais trabalhar juntos. De modo geral, não basta &pelar 
para uma projeção paterna mal resolvida para explicar a 
fricção entre o analista em formação e seus orientadores 
profissionais maduros. 
Seria conveniente esclarecer alguns pontos antes 
de continuar e~aminando o fenômeno da sombra na psi-
coterapia. Como vimos, a sombra do terapeuta e a do 
paciente afetam-se mutuamente e se relacionam inti-
mamente. Não se pode, portanto, examinar com pro-
priedade a sombra do primeiro sem levar em conta a do 
segun.do. A sombra profissional do terapeuta que pretende 
ajudar seus pacientes é o charlatão, o agente fraudulento 
que só busca satisfazer seus próprios interesses. Paralela-
mente, o paciente que procura tratamento para curar-se 
ou para promover seu próprio desenvolvimento psíquico 
apresenta uma força psíquica antiterapêutica, que luta 
contra o processo de cura ou desenvolvimento, comum ente 
descrita como "resistência". Este combatente a serviço da 
resistência interior é muito agressivo e não só resiste ao 
progresso da terapia, como procura destruí-la de modo 
ativo. No final deste livro tentaremos compreender em 
maior profundidade esse fenômeno. Por ora, observa-
remos apenas que a resistência do paciente estabelece 
uma aliança com a sombra de charlatão do terapeuta; 
ambas constelam-se mutuamente e às vezes só podem ser 
compreendidas a partir dessa reciprocidade. 
Sob vários aspectos, a situação terapêutica inicial 
presta-se bastante bem para constelar a sombra de char-
latão. O analist'a, por exemplo, pode ser levado a receber 
apenas clientes prósperos e proeminentes, capazes de lhe 
pagar elevados honoráriqs e cujos nomes conferem pres-
44 
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'.' 
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tígio. Essa tendência, por sua vez, é reforçada pelo fato 
de que certos pacientes gostam de proclamar que estão 
se tratando com um analista famoso. 
O charlatão no analista também usa o truque de dra-
matizar desnecessariamente uma situação. Um paciente 
neurótico será visto como portador de um "perigoso poten-
cial psicótico". O termo "psicose latente", que Jung costumava 
usar, pode facilmente ser mal interpretado nesse sentido. 
O perigo de uma crise psicótica pode ser exagerado para 
que o analista seja visto como salvador. Este fato, por· 
seu turno, satisfaz a necessidade desse tipo de paciente 
ver-se passivamente salvo, e de maneira atraente, de uma 
situação aparentemente sem saída. A situação é igual à de 
pacientes com problemas físicos que adoram dizer: "Todos 
os médicos desistiram do meu caso, mas daí consultei o . 
Dr. Curatudo e hoje sou um homem são". 
N o início do tratamento, o estabelecimento dos ho-
norários desempenha um papel não desprezível. Diante 
dessa questão, a atitude do analista quase sempre revela 
certo grau de charlatanismo. Éde se notar a freqüência 
com que os psicoterapeutas julgam necessário enfatizar 
que o pagamento é em si uma medida terapêutica que 
promove o processo de cura. Não seria esta, entre outras 
coisas, uma manifestação da sombra? Afinal de contas, 
os honorários não são uma "terapia"; são cobrados para 
que o terapeuta possa viver de forma compatível com seu 
nível de educação e treinamento. Neste caso, também 
encontramos a contrapartida do paciente. Ele aceita 
pagar elevados honorários porque isso lhe dá a impressão 
de que pode ,comprar o analista, o qual, na qualidade de 
seu empregado, lhe poupará o trabalho de um auto-exame 
honesto; ao mesmo tempo, como escolheu o analista mais 
caro, ele passa a acreditar que tudo no fim dará certo. 
45 
RELACIONAMENTO É FANTASIA 
A sombra de charlatão encontra diante de si um rico 
campo de 0l?eração no momento em que a análise se firma 
e as psiques do terapeuta e do paciente começam a se afe-
tar mutuamente. Mas, para poder discernir as evasivas 
que"podem ser utilizadas no caso, devemos descrever as 
características dessa influência psíquica mútua. Os ter-
mos transferência e contratransferência, que usaremos 
aqui, são em geral aplicados com sentidos extremamente 
discrepantes. 
Examinemos de início a transferência e a contra-
transferência comparando-as com encontro ou relacio-
namento. 
N a transferência, vê-se em outra pessoa algo que não 
existe, ou talvez só exista de forma latente ou nascente. 
Como se sabe, o paciente pode ver no analista um pai ou 
irmão, um amante, um filho ou filha, e assim por diante 
- quer dizer, ele pode transferir para o analista traços 
pertencentes aos personagens que tiveram um papel impor-
tante em sua vida. Pode-se também transferir para outrem 
a própria estrutura psíquica, vendo no outro aspectos que 
na verdade são problemáticos em nós. Costuma-sé usar o 
termo transfeIjência para descrever esses fenômenos. 
Em contraste, num relacionamento ou num encon-
tro genuíno o outro é visto como é. Ele é sentido, amado 
, 
46 
/ .;., 
ou odiado pelo que é; o encontro é com outra pessoa 
real. Como é natural, a transferência e o relacionamento 
costumam ocorrer simultaneamente, não podendo ser 
estritamente diferenciados num caso específico. Quando 
muito, a transferência se transforma em relacionamen-
to. Muitas amizades começam como transferência e só 
depois passam a constituir um relacionamento genuíno. 
N a minha opinião, é bastante destrutivo querer explicar 
um relacionamento sempre em termos de projeção e 
transferência, como costumam fazer os psicólogos.·A 
maior virtude de tal procedimento talvez seja lisonjear 
o ego do psicólogo, uma vez que acredita ter captado um 
dos fenômenos psicológicos mais misteriosos - o relacio-
namento - mediante a simples aplicação dos conceitos 
de transferência e projeção. 
O mistério do relacionamento só pode ser descrito em 
termos muito vagos, não se prestando a uma clara apreen-
são intelectual. Como já indiquei, relacionamento significa 
ver o outro como é, ou pelo menos em parte re-conhecê-Io 
como a pessoa que é. Além disso, significa ter prazer ou 
desprazer com essa pessoa real, sentindo-se bem

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