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Helen Morgan - Explorando o racismo (1)

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EXPLORANDO O RACISMO: UM EXEMPLO CLÍNICO DE UM COMPLEXO CULTURAL – Helen 
Morgan1 
 
 
Introdução 
 
Em um artigo sobre o racismo para o jornal Guardian, no dia 4 de março de 2000, C. Grayling 
escreveu: 
 
É uma ironia que, embora o racismo seja uma realidade, e uma realidade dura, 
a própria raça seja completamente ficcional. Ela não tem base genética ou 
biológica. Todos os seres humanos estão intimamente relacionados uns aos 
outros e, ao mesmo tempo, cada ser humano é único. Não apenas o conceito de 
raça é inteiramente artificial, mas também é novo; ainda assim, em sua curta 
existência, como a maioria das mentiras e absurdos correntes entre nós, ele 
causou uma montanha de danos (Grayling 2000). 
 
Desenvolvimentos recentes na análise de DNA confirmaram o que se suspeitava: o termo "raça" 
é completamente vazio enquanto sistema de categorização. Contudo, o racismo é uma dura 
realidade que continua a causar sua "montanha de danos". Em um artigo que escrevi alguns 
anos atrás chamado " Between Fear and Blindness: the White Therapist and the Black Patient” 
[Entre o medo e a cegueira: o terapeuta branco e o paciente negro], tentei explorar uma 
compreensão analítica desse fenômeno usando alguns exemplos clínicos (Morgan, 1998). O 
conceito de projeção foi central em minha consideração – especialmente da projeção de sombra 
sobre o "outro". Ainda considero que esta é a melhor explicação de como o racismo tem seu 
efeito, mas ela falha em fornecer uma resposta suficiente para suas razões e tampouco elucida 
por que essa divisão particular surgiu em primeiro lugar. 
Este capítulo, portanto, constitui uma tentativa de pensar sobre como e por quê. Para 
fazer isso, retornei à vinheta clínica que apresentei no artigo anterior – meu trabalho com Dee, 
uma mulher negra que acompanhei de três a quatro vezes por semana durante alguns anos. 
 
1 Capítulo 14 do livro The cultural complex: contemporary jungian perspectives on psyche and society , 
organizado por Thomas Singer & Samuel L. Kimbles. Tradução: Daniel Françoli Yago. 
Neste material, há dois pequenos "lapsos" que continuam a me interessar. É como se dois 
pequenos buracos se abrissem no solo da consciência egoica, de modo que aqui quero cavar 
mais a fundo nestes espaços criados para ver se eles podem ajudar a iluminar o que poderia ser 
chamado de camadas racistas da psique inconsciente. 
 
Histórico clínico 
 
Dee era a mais velha de quatro irmãos que vieram de uma família religiosa em que uma 
disciplina rigorosa foi imposta a todos os filhos. Esta disciplina era às vezes dura e muitas vezes 
vivenciada como arbitrária, ao que Dee respondia recuando para seu mundo interno de fantasia, 
distante de sua família. Foi só na adolescência que descobriu que ela tinha sido adotada quando 
tinha 6 meses de idade. Sua mãe biológica engravidou ainda jovem e o bebê tinha sido adotado 
pela irmã que acabava de se casar. As pessoas, portanto, que Dee cresceu acreditando serem 
seus pais, eram, na verdade, sua tia e seu tio. A mãe biológica sumiu após ter perdido qualquer 
contato e o casal que adotou Dee teve três filhos por conta própria. A identidade do pai biológico 
não era conhecida pelos pais adotivos. 
Por alguns meses em terapia, Dee era educada e se esforçava para agradar, mas não 
parecíamos estar realmente contectadas uma na outra. Foi somente após uma primeira longa 
pausa que alguma negatividade surgiu quando ela começou a perder sessões ocasionais. Isso foi 
interpretado como uma expressão de raiva e uma reconstituição de seu "desaparecimento" da 
família quando criança, mas isso permaneceu como um entendimento teórico que não foi 
sentido por nenhuma de nós. Gradualmente, fiquei ciente de um sentimento em mim nas suas 
sessões que queria que ela partisse. Um dia, quando olhei para ela no divã, a frase "um estranho 
no ninho" [a cuckoo in the nest] veio à minha mente. Percebi que o pensamento mais particular 
era de que ela era uma "estranha no meu ninho" e eu não queria que ela estivesse lá. 
Os pensamentos negativos sobre pacientes geralmente são aceitos, até mesmo bem-
vindos, como respostas de contratransferência, e úteis, portanto, por iluminar o que pode estar 
acontecendo. Desta vez, o pensamento foi experimentado como intrusivo, externo e indesejável 
e era difícil para mim sustentá-lo. Depois de um tempo, eu disse que parecia haver um desejo 
na sala para que não estivéssemos juntas. Dee ficou claramente aliviada e começou a falar sobre 
o seu crescente senso de que ela não pertencia a mim, que estar em terapia era uma traição de 
si mesma e que talvez não fosse certo para ela. Durante as próximas semanas, ela atacou 
verbalmente a terapia de forma desdenhosa, descrevendo-a como tirânica e contra o 
pensamento das pessoas. Em um ponto, ela estava dizendo como ela temia que eu fosse 
“embranquecê-la” [whitewash] 2, quando ela queria ter dito "fizesse lavagem cerebral" 
[brainwash]. 
Para Dee, a perda precoce da mãe e tenuidade tardia sentida no vínculo com sua mãe 
adotiva era a dor que se encontrava no centro de dela mesma. Ela era, em muitos sentidos, a 
estranha no ninho e não uma parte real da família; ela não era consciente da razão disso. Ela 
tinha que ser boa para manter o amor de sua mãe, mas continuava sendo espancada por crimes 
que ela frequentemente não entendia. Sua raiva não tinha expressão e ela precisava se defender 
contra pensamentos de irritação e destruição no caso de ela ser completamente rejeitada. Ela 
podia lidar com a situação apenas recuando para um mundo de fantasia e para ideações 
suicidas, pois sua única maneira de fazer sentido era imaginar que havia algo de 
fundamentalmente errado com ela. 
A rigorosa cultura religiosa desta família em particular implicou que a ilegitimidade de 
Dee fosse considerada como um pecado ocultado pela adoção do bebê por parte da tia. Diante 
disso, pode-se especular sobre como os pais adotivos se sentiram em relação a essa criança, 
produto de vergonhosa penetração, especialmente após o nascimento de seus próprios filhos. 
Mas acredito que meu pensamento e o ato falho de Dee digam respeito à rejeição inconsciente 
que esse bebê sofreu e ao sentido por trás de seu sentimento de estar sempre errada, bem 
como do medo de que sua "reabilitação" lhe exija um clareamento que alveje sua singularidade. 
Dessa forma, então, estavam dois indivíduos juntos em uma sala no noroeste de Londres 
ao final do século XX. Ambas foram bem-educadas e acostumadas ao multiculturalismo de um 
mundo encolhido pelas telecomunicações e pela migração, ambas se descrevendo como liberais 
de pensamento. Nesta relação, dois pensamentos pequenos e malformados seguiram seu 
caminho, cada um indesejado a seu modo, mas cada um sucedendo em passar por defesas e 
 
2 A tradução deste ato falho (de “whitewash” para “brainwash”) para o português certamente não soará 
tão fluída como no original em inglês. Whitewash é um termo anglófono corrente nos estudos sobre 
racismo e diz respeito a ações de “embranquecimento” de pautas, vivências e opressões específicas da 
negritude, isto é, ações que desconsideram ou distorcem a existência de especificidades sócio -culturais 
do lugar de fala das pessoas negras. Também alude, embora menos frequentemente, ao caráter político 
de práticas estéticas de embranquecimento de pele para fins de passabilidade branca. Em um sentido 
puramente literal, como o texto mostrará a seguir, “to whitewash” pode significar alvejar ou até quarar, 
ambos verbos relacionados a tornar um objeto, como um tec ido, mais branco, assim como “whitewash”, 
enquanto substantivo, significa cal (N. do T.). 
rachaduras da consciência do ego de cada pensadora. Como foi abordado, cada ideia, uma 
falada e outra apenas pensava, informou uma compreensão mais profunda das vicissitudesparticulares da psique pessoal de Dee e também da relação inconsciente de transferência-
contratransferência entre nós. 
No entanto, o que estou interessada em explorar aqui é se esses dois medos – do 
estranho e do branqueamento – nos dizem algo sobre uma dinâmica maior dentro do quadro 
social e histórico do qual fazemos parte. Uma pista significativa para isso reside no fato de que 
nós duas buscamos inicialmente rejeitar essas ideias que surgiram inabaláveis em nossas 
mentes. Era como se cada uma tivesse irrompido em nosso relacionamento, estragando 
enquanto surgiam, a visão benigna e esclarecida que mantínhamos sobre nós mesmas e sobre 
a outra. Aparentemente, em um nível pré-racional mais profundo e mais bruto, houve um medo 
de uma pela outra. O fato de que a outra foi vista como uma ameaça era o mesmo para ambas, 
mas a forma com que cada ameaça assumia diferiu, de maneira que uma ampliação dessas 
imagens específicas pode lançar luz sobre essa relação inconsciente e assimétrica entre "negro" 
e "branco". 
 
A estranha no ninho [The cuckoo in the nest] 
 
A conhecida frase "estranho no ninho", em inglês “cuckoo in the nest”, literalmente “cuco no 
ninho”, refere-se ao atributo pelo qual o cuco é bem conhecido: o parasitismo das crias. O cuco 
não constrói seu próprio ninho, mas coloca seus ovos isoladamente nos ninhos de outras 
espécies de aves. Os ovos são então incubados e inconscientemente criados pelos pais adotivos. 
De acordo com a Enciclopédia Britânica, diversas adaptações aumentam as chances de 
sobrevivência do ovo. São elas: 
 
Mimetismo do ovo, em que o ovo do cuco se assemelha ao do hospedeiro, 
minimizando assim a rejeição pelo hospedeiro; remoção de um ou mais ovos de 
hospedeiro pelo cuco adulto, reduzindo tanto a competição de hospedeiros 
quanto o perigo de reconhecimento pelo hospedeiro de que um ovo foi 
adicionado ao ninho; a expulsão de companheiros de ninho, em que o cuco 
jovem lança para fora do ninho os ovos do hospedeiro e sua ninhada. 
 
Não se pode deixar de sentir pena pelo pobre pássaro hospedeiro. Ele trabalha arduamente para 
construir esse ninho para sua prole e então diligentemente incuba os ovos até que estejam 
prontos para a eclosão. Ele não está ciente de que tem um estrangeiro, um intruso entre seus 
tesouros. Talvez um dos seus próprios já tenha até mesmo sido arremessado para abrir lugar 
para este intruso. Talvez ainda não tenha sido destruído por este pseudoirmão. O cuco é o 
parasita preguiçoso e inútil penetrando o ninho quando a mãe-hospedeira não está atenta e 
explorando seus esforços e sua inocência. 
O ninho é um lugar de retiro, nossa casa confortável, o lugar onde pertencemos. Nós 
"construímos nosso próprio ninho" e lá estabelecemos aquilo pelo que trabalhamos e salvamos, 
o nosso bom e pequenino ovo. Ouçamos a retórica atual do Reino Unido em relação aos 
requerentes de asilo e poderemos escutar o medo do pássaro em seu ninho. Os britânicos vivem 
com o privilégio de uma prosperidade a qual se agarrar, temerosos dos intrusos que os roubarão 
e dos ataques invejosos do outro. A introdução da noção do "falso" requerente de asilo em 
oposição ao "genuíno" legitima esse medo e, ao mesmo tempo, permite que os britânicos 
mantenham uma percepção de si mesmos como generosos e hospitaleiros para aqueles 
considerados dignos de sua aceitação. A imagem do "falso" convoca a farsa, o impostor que 
poderia explorar a inocência do povo e induzi-los a compartilhar suas tão suadas riquezas ao 
menor sinal de relaxamento da vigilância. Este intruso pode contaminar o ninho, usurpar o filho 
legítimo e substituí-lo pelo estrangeiro. A ganância do bebê é um abuso da beneficência da mãe 
e, como tal, é um sacrilégio. Ele vai engolir os batalhados recursos do povo enquanto falam sobre 
trabalho para alimentar esse impostor e parecer tolo. 
Quando colocamos os elementos projetivos desse medo sob este prisma, eles se tornam 
evidentes. Se há um estranho que entrou no ninho do outro, saqueou seus recursos, se 
alimentou de suas terras e deslocou seus filhos, este estranho é o povo europeu. Parte 
substancial da construção deste ninho passou pela exploração dos países em desenvolvimento. 
A prosperidade que desfrutamos no Ocidente foi grandemente saqueada das colônias, da 
escravidão e da exploração e continua através da manutenção da desigualdade pelas relações 
econômicas atuais. Mas ainda mais profundo que isto é o privilégio da pele branca em si. Parece 
ser um grande privilégio de fato, e deve, consequentemente, estar guardado no fundo dos 
reinos seguros do inconsciente. 
Por que o fato aparentemente trivial de nascer com a pele de um matiz mais leve 
constitui tal privilégio? Como essa situação foi criada? A história do racismo é a história da 
construção de uma ideia, de uma maneira de fazer divisões, de categorizar, que então se tornou 
tão presente em nossos modos de perceber o mundo que faz parecer que nenhuma outra visão 
seja possível. O conceito de "raça" em si, a divisão da humanidade em grupos que podem ser 
definidos pela aparência, é apenas uma ideia, mas passou a ser talvez a mais poderosa das 
implicações que a mente humana já concebeu. A história desta ideia mostra que é uma 
concepção da mente europeia que, em seu domínio, assegurou o direito de dizer como o mundo 
deveria ser dividido e, ao fazê-lo, atribuiu-se da supremacia. Como Joel Kovel observa: 
 
O mundo não é nem preto nem branco, mas colorido. As pessoas de cor clara – 
auxiliadas talvez por fantasias derivadas de sua cor de pele – vieram a dominar 
o mundo inteiro e, no processo, se definiram como brancas. O processo que 
gerou esse poder branco também gerou medo e terror pelo negro. (Kovel 1988: 
95) 
 
É comum para muitas culturas que a noção de "branco" carregue consigo pensamentos de luz, 
pureza, inocência e divindade. "Negro", por outro lado, é frequentemente associado ao escuro, 
à merda, à sujeira e ao diabo. Uma vez que os corpos claros se definiram como brancos e os 
negros como negros, as respectivas associações foram apropriadas e ligadas aos povos. Como 
Hillman (1986) explora detalhadamente em seu artigo "Notes on White Supremacy" [Notas 
sobre a supremacia branca], o branco e o preto não são opostos em si mesmos, mas foram 
criados desta maneira pelo branco: "O branco projeta sua própria sombra branca". Essa 
conclusão poderia ser melhorada ao dizermos: "o branco vê sua própria sombra no negro", não 
porque se oponham inerentemente, mas porque está arquetipicamente dado que a 
branquitude imagine através de oposições. Digamos novamente: a supremacia do branco 
depende da imaginação oposicional (Hillman 1986: 13). 
Ao definir branco e preto, uma oposição é criada. Ao associar o bem com um e o mal 
com o outro, ao corporificar a diferença fixando-a na natureza inalterável de nossos envoltórios, 
a supremacia branca tornou-se estável e inatacável. Dessa forma, justificou-se também a 
dominação do outro, o estabelecimento do privilégio branco. A filosofia, a religião e a ciência 
têm sido empregadas para reforçar esse privilégio, a ciência assegurando-nos de que a 
fisionomia e a frenologia nos dizem que somos aquilo que aparentamos, a superficialidade, 
define não só quem somos e quem não somos, mas também uma hierarquia de qualidade e, 
portanto, de privilégio justificado. 
A religião também teve um papel importante na afirmação da supremacia branca. Uma 
pequena história no Antigo Testamento da Bíblia adquiriu uma grande significação neste tópico. 
Esta história conta como Ham falhou em cobrir seus olhos e viu seu pai, Noé, nu e bêbado e, 
como consequência, Deus amaldiçoou os descendentes de Ham e de seu filho Canaã. A maldição 
condenou todas as gerações futuras da linha de Ham a servidão aos filhos dos outros filhos 
obedientes. Assim, a manutenção de escravos foi validada. Na verdade, ao ser endossada pelo 
próprio Deus, a escravidão tornou-se quaseum dever. 
 
O embranquecimento 
 
A história da supremacia branca não foi contada somente por brancos para brancos, pois foi 
essencial para que os negros aprendessem também suas histórias – e a aprendessem bem. O 
privilégio da pele branca e a inferioridade da pele negra é uma mensagem que vem através da 
mídia, através de nossas instituições, através de nossas profissões. A onipresença de tal 
mensagem penetra em todos nós, não deixando nem branco nem negro imunes a ela. Tal 
mensagem certamente terá seu preço, um preço a ser pago pelo indivíduo negro sobre o qual 
Frantz Fanon escreve: 
 
Quando começo a perceber que o negro é o símbolo do pecado, pego-me 
odiando o negro. Mas, então, eu reconheço que sou um negro. Há dois caminhos 
para resolver esse conflito. Ou peço aos outros que não prestem atenção à 
minha pele, ou então desejo que eles estejam cientes disso. Procuro, então, 
encontrar o valor para aquilo que é ruim – uma vez que reconheço 
inconscientemente que o homem negro possui a cor do mal. (Fanon 1986: 197) 
 
(Como um aparte – pois não é o foco deste capítulo – vale a pena notar como essa ideia de 
encontrar valor no que é ruim ecoa de uma forma que a linguagem seja continuamente 
derrubada pela cultura moderna e negra da juventude, segundo a qual termos como "perversos" 
[wicked] e "maus" [bad]3 são usados para expressar o seu oposto, algo que é de valor.) O livro 
 
33 Na comunidade LGBT anglófona, semelhantemente, o termo “queer”, l iteralmente “estranho”, mas 
frequentemente usado como uma ofensa homofóbica, ganhou uma ressignificação política positiva. Este 
processo de reapropriação positiva da injúria racial, sexual ou de classe ganha espaço e todo um campo 
de Fanon, do qual tiramos essa citação, é intitulado Pele negra, máscaras brancas. O conceito 
de máscara branca nos aproxima daquela do embranquecimento [whitewash]. De acordo com 
o dicionário Chambers, este termo é definido como: 
 
Cobrir com cal, caiar; dar uma aparência justa; tomar medidas para limpar a 
mancha de (uma reputação), encobrir (um delito oficioso) ou reabilitar (uma 
pessoa) no olho do público; vencer (um oponente) de forma tão decisiva em um 
jogo que ele ou ela não consiga pontuar. 
 
Na terapia com Dee, seu lapso inconsciente de "lavagem cerebral" [brainwash] para 
"embranquecimento” [whitewash] abriu espaço para a questão de seu relacionamento com a 
cor – tanto dela quanto a minha. Ela estava inicialmente chocada com a ideia de que estava se 
relacionando comigo através de um poder imperial e colonial que poderia tomar conta dela 
através da minha mente. Logo após isso, ela começou a expressar um desprezo pela negritude. 
Ela disse que esteve secretamente aliviada por eu ser branca quando ela me conheceu pela 
primeira vez por ter a sensação de que um terapeuta negro seria inferior e ela queria o melhor. 
Ela estava profundamente envergonhada com esses sentimentos enquanto uma mulher que era 
politicamente consciente e impassível com o mimetismo4 que ela via em alguns negros. 
 
de estudos nos anos 80 em diante nas ciências humanas pelos estudos queer, pós -coloniais, 
multiculturais, etc. (N. do T.) 
4 “Mimicry”, aqui traduzido como mimetismo, diz respeito ao comportamento, de forte implicação 
cultural e política, de “passar-se” por algo que não se é visando não se destacar por marcas sociais de 
identidade fora do que a norma social consi dera como superior ou simplesmente ideal. Vale recordar, 
contudo, que o termo “mimicry” foi consagrado como “mímica” em grande parte das traduções brasileiras 
de livros de teoria social crítica, mas querendo dizer algo oposto. Tanto para autoras como Luce Irigaray 
(no caso do feminismo), quanto para autores como Homi Bhabha (no caso do pós -colonialismo), a 
“mímica” difere do “mimetismo” por constituir uma estratégia de enfrentamento da norma, seja sexual, 
seja racial, ao invés de adquirir uma simples passabilidade a ela. O provável pai desta visão de mímica é o 
mesmo Frantz Fanon, já citado no texto, em Pele Negra, Máscaras Brancas e em Condenados da Terra . 
Entende-se que na “mímica” o comportamento de cópia é assumido não de forma acrítica e assujeitada, 
mas visando a paródia, a ironia, a subversão desde dentro, a salutar descontextualização, para resistir à 
norma, fornecendo outras possibilidades de criação cultural. No contexto das psicologias analíticas, a 
“mímica”, ao contrário da “mimetização”, é uma função trickster por excelência. (N. do T.) 
O fato de ser negra em uma sociedade branca deu forma ao seu sentido pessoal de não 
pertencimento. Suas experiências de racismo forneceram uma confirmação inconsciente de que 
ela era "má" e merecia punição. Apesar do alinhamento político com o movimento negro, seu 
sentido interno permaneceu o de ser uma estranha, de estar errada e de alguma forma suja. 
Branco significava pertencimento e branco significava que aquilo que ela não era: boa, bem-
sucedida e dotada de valor. Minha branquitude significava que ela poderia chegar perto da fonte 
do que era bom, mas que tinha de tomar cuidado para que ela não me antagonizasse com 
qualquer exposição de sua raiva "ruim". 
À medida que explorávamos a autoaversão inerente ao seu "secreto" desprezo pelo 
"negro", seus comentários mudaram de denigrir a negritude de si para denigrir a minha 
branquitude. Isso foi feito em grande parte por meio de suas narrativas sobre o racismo que 
experimentou. Ela parecia me desafiar a assumir uma posição. Eu estaria aliada a esses outros 
brancos ou eu me juntaria a ela em seu ataque e me tornaria negra como ela? O que não era 
permitido, ao que parecia, era a nossa diferença. Ou deveria estar com ela, ou contra ela. 
Essa atitude complexa para com ela e para mim estava claramente relacionada a sua 
história pessoal, mas também ilustra algo do dilema da pessoa negra em uma sociedade branca. 
Se o que se declara como bom é branco, então quanto mais claro alguém se torna, mais se pode 
ganhar aceitação. A mancha e a falta estão na negritude e, portanto, elas devem ser 
embranquecidas; entretanto, ao se alvejar, o indivíduo é perdido, assim como o próprio valor 
da negritude. Há uma erradicação, uma aniquilação da diversidade quando a camada de cal é 
espalhada. Neste jogo, o preto é combatido tão decisivamente pelo branqueador que "ele ou 
ela falham em pontuar". 
Para se salvar, necessita-se de um protesto, de uma resistência. Para se destacar, para 
se fazer notar. É o punho negro no ar, recusando o alvejamento. 
Quando colocamos esses dois medos um ao lado do outro, começamos a ver a natureza 
projetiva de ambas as fantasias, bem como a relação intrincada entre ambos. Em seu livro Taking 
the Group Seriously, Farhad Dalal afirma: 
 
O que os grupos marginalizados são então obrigados a fazer, como uma 
necessidade estratégica, é usar a mesma arma e afirmar um novo essencialismo 
nas margens... O ponto sobre estar à margem é que o centro dificilmente ouve, 
em parte devido à distância psicológica, em parte porque o que está sendo dito 
é inconveniente. E, portanto, os marginalizados são obrigados a gritar até 
ficarem roucos e podem acabar soando estridentes... Uma vez que a 
"branquitude" existe e é usada para organizar a ordem social, a negritude é 
forçada a existir. A forma e o significado que esta noção de negritude pode vir a 
assumir são limitados pelo que foi atribuído à branquitude. O poder da ideologia 
é tamanha que a "branquitude" como princípio organizador é inconsciente. Em 
outras palavras, a insígnia branca no centro é invisível, é somente a insígnia 
negra nas margens que pode ser vista. Assim, aqueles que estão no centro 
sentem-se inocentes e injustamente agredidos de fora. (Dalal 1998: 207) 
 
A insígnia branca é pintada contra um fundo branco e é, portanto, tornada invisível.Aqueles 
considerados não brancos, os "outros", são empurrados para as margens e enegrecidos. São 
aqueles no centro que se tornaram embranquecidos como pagamento pelo privilégio, enquanto 
as bordas negras são temidas como potenciais intrusos e ladrões de ninho. É, eu acredito, essa 
relação que os dois pensamentos indesejados, os meus e os de Dee, se referem. E, enquanto 
são pensamentos que lançam luz sobre o sistema de projeção e identificação projetiva vivem na 
esfera do inconsciente pessoal, meu argumento é que o sistema pessoal busca e é formado pela 
teia mais ampla de símbolos, mitos e línguas dentro do qual existe. 
 
Pensamento junguiano e racismo 
 
A questão que agora emerge se dedica a entender como esta rede pode atuar dentro da psique. 
Para os junguianos, o lugar óbvio para onde se voltar é o conceito de inconsciente coletivo e dos 
arquétipos, mas acho que devemos tomar cuidado. Pois é fácil nos e squecermos que os 
arquétipos são diretamente incognoscíveis e irrepresentáveis. Nunca vemos um arquétipo, 
podemos ver apenas a imagem; eles não são a mesma coisa. Como o próprio Jung diz: 
 
Repetidamente eu encontro a noção equivocada de que um arquétipo é 
determinado em relação ao seu conteúdo, ou seja, que é uma ideia inconsciente 
(se é que tal essa expressão é permitida). É necessário ressaltar mais uma vez 
que os arquétipos não são determinados em relação ao seu conteúdo, mas 
apenas no que diz respeito à sua forma e, ainda assim, apenas em um grau muito 
limitado. Uma imagem primordial é determinada quanto ao seu conteúdo 
somente quando ela se torna consciente e, portanto, preenchida com o material 
da experiência consciente. (Jung 1969: 79) 
 
Nas palavras de Anthony Storr: 
 
Esta formulação se livra da acusação às vezes trazida contra Jung de que ele era 
um lamarckiano, acreditando na herança das características adquiridas. O que é 
adquirido é uma predisposição, não uma ideia; uma predisposição para criar 
mitos significativos fora dos aspectos comuns da experiência do dia-a-dia... É 
verdade que, em outros contextos, Jung escreve como se acreditasse que a 
cultura afetasse essas predisposições; mais especialmente quando ele postula 
diferenças raciais no inconsciente coletivo: mas estes mais parecem ser 
acréscimos posteriores. (Storr 1986: 40) 
 
Esses “acréscimos posteriores" não devem levianamente descreditados na medida em que eles 
mostram como até mesmo o criador de uma ideia pode usá-la mal para reafirmar um 
preconceito. O próprio Dalal escreveu um intenso texto originalmente chamado de "The Racism 
of Jung", em que ele examina muito do que Jung escreveu sobre os chamados "primitivos" 
(Dalal, 1988). Michael Vannoy Adams também considerou este assunto importante em seu livro 
The Multicultural Imagination: "Race", Color and the Inconscious , e os convido a ler ambos, 
embora esta não seja uma experiência confortável (Vannoy Adams, 1996). 
O ponto aqui não é atacar Jung, mas imaginarmos nosso próprio silêncio em rel ação à 
natureza racista de grande parte do que ele diz sobre os outros dos europeus em particular e a 
questão da cor em geral. E para levantar a questão de saber se existem implicações para a teoria 
à qual subscrevemos. Jung foi bastante enfático sobre a psique do "primitivo", pois ele se 
perguntava sobre o perigo para o homem branco de "enegrecer" por meio de contaminação, o 
qual foi ligado por ele, em grande parte de seus pronunciamentos, ao inconsciente coletivo. 
Poderíamos deixar de lado o constrangimento das palavras de nosso fundador e chamá-lo de 
um homem de seu tempo, pois estaríamos realmente olhando para trás para um homem que 
fala desde a primeira metade do século XX a partir de um diálogo linguístico que já se alterou. 
Mas, ao fazê-lo, não estaríamos aceitando que o pensamento e a imagem são construídos, 
ambos contingentes e mutáveis? E como é que conseguimos unir isso à universalidade 
atemporal do arquétipo? 
 
O inconsciente cultural, social e coletivo 
 
Parece-me que o modelo junguiano da psique concebe uma grande brecha entre o inconsciente 
pessoal e coletivo – um espaço que pode ser preenchido com materiais questionáveis e até 
mesmo perigosos. Joseph Henderson (1990) introduziu a ideia do inconsciente cultural como 
uma camada adicional da psique. Adams assume essa ideia, exceto por ele acreditar que ele 
ainda é parte do inconsciente coletivo. No entanto, isso suporia que as culturas são entidades 
discretas, como se a nossa ideia de pertença a elas não fosse problemática, enquanto que, de 
fato, os grupos, as nossas culturas, com as quais identificamos e que determinam nossa 
identidade são muitos e eles geralmente se sobrepõem e podem ser conflitantes. 
Posso localizar minha cultura geograficamente na Grã-Bretanha, mas para que isso 
tenha algum significado, as questões de classe, gênero, cor, etnia e muitos outros devem ser 
instantaneamente levantados. O contexto determinará qual forma particular de identificação 
estará em primeiro plano. Cada forma de categorização traz um manto de homogeneidade 
sobre o "nós" e o "eles", de modo que, naquele momento, as diferenças entre aqueles do 
"nosso" grupo se perdem. Cada agrupamento tem suas próprias normas culturais e seu próprio 
inconsciente cultural. Em termos pós-estruturalistas, eles são discursos e todos nós 
pertencemos a uma multiplicidade de discursos, e não somente pertencemos como estamos 
neles e eles estão em nós. Nós definimos e somos definidos pela interação de um multiverso de 
discursos culturais. 
Dalal postula e desenvolve o conceito que ele chama de inconsciente social. Ele 
considera que ele: 
 
Inclui, mas é maior que, o que pode ser chamado de inconsciente cultural. E... 
Que estamos sujeitos a mais de um discurso por vez – nenhum de nós é 
monocultural. O inconsciente social, como eu o penso, inclui as relações de 
poder entre os discursos. Esta ordenação também é inconsciente. Isso dá ao 
inconsciente social a aparência de ser absoluto – o que não é, ele ainda é um 
discurso. (Dalal 1998: 212) 
 
Isso sugere uma maneira de pensar sobre a estrutura da psique inconsciente, segundo a qual 
pode-se dizer que o inconsciente coletivo inclui o inconsciente cultural dos discursos particulares 
que, por sua vez, está contido num nível social que ordena as relações de poder entre os 
discursos. Dalal discordaria, mas acredito que podemos considerar um estrato subjacente a esta 
das formas arquetípicas ou predisposições, e é à medida que o arquetípico se move através dos 
filtros sociais, culturais e pessoais do inconsciente que ele se preenche com uma imagem ou 
uma ideia que emerge na consciência. 
Manter uma insistência no arquétipo como "predisposição" pode nos ajudar a sustentar 
a experiência interna e a diminuir a probabilidade de sua projeção no objeto externo. Assim, 
retornando ao meu medo do estranho, do cuco, no ninho, a compulsão é culpar o outro como 
um objeto real que traz meu medo à existência. É o meu medo que é a experiência e o meu 
senso de privilégio inconsciente que sou obrigada a proteger, que invoca e dá forma à ameaça 
imaginada e chama isso de "cuco". Pode ser que esse medo seja arquetípico, como, talvez, seja 
o medo do embranquecimento. Ou melhor, talvez possamos vê-los como um par de medos que 
criam a ligação arquetípica nesse relacionamento entre o centro e as margens. 
É certamente possível que o medo de um retorno a um estado de espírito primitivo 
possa ser denominado como arquetípico, mas, para Jung, isso se tornou fixo a um objeto 
externo, ao negro africano moderno e ao risco que ele chamou de "enegrecer". Ele preenchia a 
"imagem primordial" com "o material da experiência consciente", com projeções culturais e 
pessoais e a usava como justificativa para seus próprios medos e fantasias. Infelizmente, ele 
também carregou suas conclusões sobre africanos, asiáticos, afro-americanos e outros com todoo peso de sua influência e da universalidade do arquétipo. 
A imagem não é o arquétipo. Se confundirmos os dois, cairemos na própria sombra de 
nossa teoria e, como Jung, nos apropriamos da ponderação dos arquétipos para justificar nossos 
preconceitos particulares. Ao fazê-lo, nós lhes emprestamos uma imutabilidade e uma certeza 
que ecoam o uso que certa vez foi feito da história de Ham e amplificamos nossas próprias vozes 
apropriando-se da voz dos deuses. Portanto, a fluidez do arquétipo se fixa na imagem, no 
modelo metálico e frio do estereótipo. 
 
 
Ponto final 
 
Obviamente, a própria psicologia analítica possui uma cultura ou um discurso particular. Eu não 
posso falar por outras organizações, mas dentro da minha própria referência os números de 
treinamentos de pessoas que são de minorias étnicas e negras são baixos e eu sugiro que é 
importante nos perguntarmos por quê. Importa não só porque podemos ser capturados em uma 
forma de racismo institucionalizado, mas porque pode significar que nós desenvolvemos e 
estamos em conflito com uma maneira de pensar sobre a psique humana que 
inconscientemente mantém uma supremacia eurocêntrica e branca. A abertura desta visão por 
meio do que é excluído tem possibilidades difíceis, mas interessantes. 
Um artigo de Bob Young sobre o quão pouco a questão do racismo é abordada nas 
organizações de treinamento é subtitulada "A Loud Silence" [Um silêncio ensurdecedor] (Young, 
1994). O centro não é apenas um lugar onde a insígnia branca é invisível, mas também é um 
lugar muito silencioso onde tudo o que pode ser ouvido é a confirmação daqueles que são 
considerados como "nós" e que o "nós" está certo. As perguntas desconfortáveis foram 
empurradas para as margens onde eles podem gritar com vozes estridentes, ou desistir, calar a 
boca e virar para outro lugar. É como se, para entrar no centro, um embranquecimento fosse 
necessário – e logo a seguir a questão evanesce contra o fundo branco. Assim, o ruído 
interessante vem das margens e só pode ser solicitado desde lá. Nós, no centro, precisamos nos 
manter calados e ouvir, nós talvez precisemos nos esforçar para ouvir e poderemos arriscar 
perder o privilégio do centro no processo, mas sugiro que um mundo mais interessante surge 
quando todas as vozes são permitidas. Talvez seja hora de aplicar a "talking cure" à cultura que 
é a nossa própria profissão. 
Esta é uma cura difícil de administrar, pois nossos próprios ninhos são importantes para 
nós e o medo do cuco é profundo. Não obstante, acho que o prêmio é a chance de tirar essas 
camadas de "branquitude" e "negritude" com as quais nos cobrimos, permitindo um mundo 
colorido. 
 
RECONHECIMENTOS 
 
Este capítulo foi primeiramente publicado (2002) no Journal of Analytical Psychology, 47 (4): 
567–581. 
 
REFERÊNCIAS 
 
Dalal, F. (1988) “Jung: A Racist”, British Journal of Psychotherapy, 4(3) : 263–279. 
—— (1998) Taking the Group Seriously, London: Jessica Kingsley. 
Fanon, F. (1986) Black Skin, White Masks, London: Pluto. 
Grayling, A.C. (2000) “The Last Word on Racism,” Guardian, March 4. 
Henderson, J. (1990) “The Cultural Unconscious,” In J. Henderson, Shadow and Self, Wilmette, 
IL: Chiron. 
Hillman, J. (1986) “Notes on White Supremacy: Essaying an Archetypal Account of Historical 
Events,” Spring, 46: 29–58. 
Jung, C.G. (1969) “Archetypes and the Collective Unconscious,” Collected Works, vol. 9, part 1, 
Princeton, NJ: Princeton University Press. 
Kovel, J. (1988) White Racism: A Psychohistory, London: Free Association. 
Morgan, H. (1998) “Between Fear and Blindness: the White Therapist and the Black Patient”, 
BAP Journal, 3(34): 48–61. 
Storr, A. (1986) Jung, Fontana Modern Masters, London: Fontana. 
Vannoy Adams, M. (1996) The Multicultural Imagination: “Race”, Color, and the Unconscious, 
London: Routledge. 
Young, R. (1994) “Psychoanalysis and Racism: A Loud Silence,” Mental Space, London: Process 
Press.

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