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LA - UNIDADE 01 COMPREENDER A RELAÇÃO ENTRE A LINGUAGEM E A MENTE

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LINGUÍSTICA AVANÇADACOMUNICAÇÃO E PORTUGUÊS JURÍDICO
UNIDADE 1 – LINGUÍSTICA AVANÇADA
TRILHA DE APRENDIZAGEM
· Compreender a Relação entre a linguagem e a mente
· O papel da mente nos estudos da linguagem
· A hipótese de SAPIR-WHORF
· A Revolução Cognitiva dos anos 60
· Analisando aspectos cognitivos das práticas de sala de aula
· Alunos que pensam, sentem e agem
· Problemas de aprendizagem
· Identificando e solucionando problemas relacionados a dificuldades de aprendizagem
· Como agir diante de distúrbios cognitivos
· Planejando aulas com base nos estudos cognitivos
· Os documentos curriculares no Brasil
· Um exemplo de plano de aula
EBOOK
SLIDES
MAPA CONCEITUAL
COMPREENDER A RELAÇÃO ENTRE LINGUAGEM E MENTE: ao término deste capítulo você será capaz de entender a relação entre linguagem e mente. Este conhecimento é fundamental para a prática pedagógica. Professores sem o devido embasamento podem não saber abordar os aspectos mentais do desenvolvimento linguístico ou agravar problemas pré-existentes.
Já parou para pensar sobre o significado da palavra “mente”? O que queremos dizer quando nos referimos à “mente humana” e seus mistérios?
Muitas vezes, usamos a palavra “mente” como sinônimo de “cérebro”. Com os avanços da ciência, descobrimos que este órgão atua de forma integrada com os demais sistemas do corpo humano.
Sabia que, além dos cinco sentidos mais comuns – visão, audição, olfato, paladar e tato, há aqueles que captam as sensações internas do corpo e regulam nossos movimentos? Informam, por exemplo, sobre dores de estômago e perdas de equilíbrio. O cérebro também organiza este tipo de informação.
Podemos dizer que o cérebro é como o processador central de um grande e complexo computador – o corpo -, funcionando a partir do que é relevante para nossa operação cotidiana no mundo.
Surgem, então, as perguntas: Quem dá ordens a esse computador? Será que ele trabalha de forma autônoma? Como aprende o que tem de fazer?
Neste ponto, você poderia responder: “Ora, eu penso, sinto, decido minhas prioridades e meu cérebro trabalha de acordo com elas”. Bem, pode ser, mas, então, onde está localizado esse “eu” que pensa, se não no cérebro?
O PAPEL DA MENTE NOS ESTUDOS DA LINGUAGEM: não existe uma única resposta para essa pergunta. A Filosofia, as Ciências e até mesmo as religiões vêm tentando, há muito tempo, explicar de onde vêm nossos pensamentos. É aí que surge o conceito de mente.
Exemplo: em todas as religiões humanas, vemos referências à mente como “espírito ou como ‘alma’ – algo que teria propriedades especiais e que continuaria subsistindo mesmo após a nossa morte” (TEIXEIRA, 194, p.5).
Mas não precisamos falar de religião para nos depararmos com fenômenos complexos, como os pensamentos e as emoções humanas. Descrevê-los não é nada fácil, mas seu impacto afeta, diariamente, o trabalho de todos nós.
Conceito de Mente: neste contexto, podemos definir “mente” da seguinte maneira:
“Mente” se refere ao estudo de fenômenos invisíveis e impossíveis de serem medidos totalmente. “A inacessibilidade dos fenômenos mentais torna-os essencialmente subjetivos ou privados” (TEIXEIRA, 1994, p.6).]]
Do ponto de vista científico, os fenômenos mentais são difíceis de investigar, porque não conseguimos mapeá-los, como já fazemos com a ação dos neurônios – as células nervosas do cérebro.
Exemplo: pesquisadores conseguem mapear distúrbios cerebrais que afetam a aprendizagem, mas não têm como saber o que um aluno específico está pensando sobre sua aula. Caso este aluno não esteja participando, não há como dizer, de imediato, se está distraído, com preguiça ou, de fato, apresenta distúrbio localizável. Ele pode, inclusive, estar afetado por mais de um desses fatores.
Como vimos, nem tudo se resolve no cérebro. Isso não significa que devamos abandoná-lo! Sabemos que há ligações diretas entre o que ocorre no cérebro e as capacidades de falar, comer, se locomover, se concentrar, etc.
Exemplo: retomando a situação anterior, o diagnóstico de qualquer distúrbio que afete a aprendizagem de nosso aluno pouco participativo teria de ser feito por uma equipe multidisciplinar de profissionais, atentos não apenas ao cérebro, mas ao fenômeno mental como um todo.
Muitos pesquisadores, interessados em entender como os seres humanos aprendem, adotaram a seguinte metodologia: partindo dos estudos sobre o cérebro, geravam hipóteses e faziam teste. Depois, inferiam se suas hipóteses para as questões mentais estavam corretas.
Como mente é um fenômeno amplo, é comum em pesquisas relacionadas que se utilizem conhecimentos de muitas áreas diferentes, como faríamos caso estivéssemos buscando um diagnóstico para o nosso aluno imaginário.
Exemplo: para diagnosticar se o seu aluno desinteressado sofre de Transtorno do Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH), sua observação em sala seria o primeiro passo, mas a equipe multidisciplinar envolvida precisaria incluir um psicólogo, um psiquiatra e um neurologista. Isso porque, o TDAH pode surgir a partir de alguma má formação, ser hereditário, mas também pode estar associado a hábitos e estilo de vida. Fonte: htttps://tdah.org.br (Acesso em 29/10/2019)
Áreas que se dedicam ao estudo dos fenômenos mentais são conhecias como ciências cognitivas.
Quer se aprofundar neste tema? Recomendamos o acesso à seguinte fonte de consulta e aprofundamento: Artigo – “Ciências Cognitivas” (COSTA & DUQUE, 2009) acessível pelo link http://bit.ly/2sAz9mi (Acesso em 30/10/2019).
A Linguística e os fenômenos mentais: a linguística foi uma das ciências que se expandiu para incorporar a influencias dos fenômenos mentais ao escopo de suas investigações.
“A Linguística estuda a linguagem. Como vários dos termos empregados na Linguística, linguagem, o objeto da disciplina, tem uso também no dia a dia. Linguagem, para a Linguística, é sempre singular, porque refere uma faculdade humana. Como tal, está radicada na mente/cérebro. Nessa perspectiva, [...]a Linguística é uma ciência cognitiva” (ROSA, 2010, 9. 15, grifos da autora).
Estudos avançados em Linguística deram origem a diferentes subáreas de pesquisa. Veja algumas a seguir:
	LINGUÍSTICA
	NEUROLINGUÍSTICA
	PSICOLINGUÍSTICA
	BIOLINGUÍSTICA
Graças às aplicações dessas ciências, professores e alunos têm conseguido explorar as relações entre pensamento e linguagem de forma cada vez mais produtiva para o ensino-aprendizado.
Você já se perguntou sobre a relação entre o pensamento e a linguagem? Será que pensamos primeiro e, depois, produzimos frases? Se for assim, por que, muitas vezes, parecemos “pensar frases” em nossa língua materna? Será que ela determina a forma como pensamos?
Perguntas como essas deram origem a um dos primeiros estudos influentes sobre a relação entre pensamento e linguagem, que ficou conhecido como a “hipótese de Sapir-Whorf” (LYONS, 2010, p.225).
A HIPÓTESE DE SAPIR-WHORF
Edward Sapir (1844-1939) foi um grande linguista e antropólogo norte-americano que acreditava bastante na “diversidade linguística e cultural” (LYONS, 2010, p. 225).
Benjamin Lee-Whorf (1897-1941) foi um de seus discípulos e a hipótese que vamos apresentar agora tem esse nome, pois partiu do estudo desses dois pesquisadores.
Em uma formulação mais completa, ela diz o seguinte:
“(a) Nós estamos, em todo o nosso pensamento e para sempre, ‘à mercê da língua determinada que se tornou o meio de expressão para a [nossa] sociedade’, porque só podemos ‘ver e ouvir e experimentar de outras formas’ em termos das categorias e distinções codificadas na linguagem; (b) as categorias e distinções codificadas em um sistema são exclusivos àquele sistema e incomparáveis aos de outros sistemas” (LYONS, 2010, p. 226)
Parece complicado? Nem tanto! O texto que você acabou de ler é uma recomposição da hipótese dos dois pesquisadores e foi escrito por um famoso linguista histórico, chamado John Lyons (1932-)
Lyons incluiu trechos de Sapir e de Whorf na tentativa de nos ajudar a ter uma visão mais completa do que propunham. Bacana, não é? Agora, vamos destrinchar esse parágrafoa partir de alguns exemplos.
Você, provavelmente, nasceu e se tornou falante de língua portuguesa. Caso seja bilíngue ou tenha nascido em outro país, pense sobre as línguas que considera maternas. Mesmo que você aprenda outros idiomas, pode ser difícil “pensar neles”, por mais que os professores insistam para a gente fazer isso. Mesmo que você se torne fluente, algumas coisas nunca soam da mesma forma em línguas aprendidas como estrangeiras ou posteriormente. Mais que isso, algumas palavras não nos atingem da mesma maneira. Pense sobre palavrões: é a mesma coisa xingar em sua língua nativa e xingar em uma língua estrangeira aprendida?
Está vendo as ligações? Os exemplos dão uma boa ideia do que o texto quer dizer com “estamos, em todo o nosso pensamento e para sempre, ‘à mercê da língua determinada que se tornou o meio de expressão para a [nossa] sociedade’” (LYONS, 2010, p. 226).
Mas e a questão das categorias exclusivas de cada sistema? Para entender melhor porque isso se tornou tão importante para Sapir é bom nos lembrarmos de que ele era antropólogo, além de linguista.
Ou seja, estava acostumado a investigar comunidades, às vezes muito afastadas dos grandes centros urbanos, cujo modo de vida era tão diferente que nem dava para categorizar usando a língua que ele falava – no caso, o inglês.
Pesquisadores da Universidade de Portsmouth (Reino Unido) e da Universidade Federal de Rondônia deram início a pesquisas em 2011 junto à tribo dos Amondawa aqui no Brasil e descobriram que esses indígenas não categorizam o tempo como nós. Eles não mencionam idades (apenas mudam de nome ao mudarem fisicamente) e não apresentam construções linguísticas referentes ao pretérito e ao futuro (Fonte: BBC News Brasil. Disponível em: https://bbc.in/2r3jg7k Acesso em: 30/10/2019.
Lembre-se de que o foco da hipótese de Sapir-Whorf era estabelecer as bases da relação entre linguagem e pensamento. Sendo assim, poderíamos dizer, por exemplo, que comunidades que não categorizam o tempo como nós em suas falas não trabalham com esse conceito.
Podem apenas não utilizar o conceito – pode não fazer sentido para eles – ou podem nem mesmo saber que o tempo existe como nós o categorizamos.
Isso, sem dúvida, dá muito que pensar! E há vários exemplos semelhantes.
Neste vídeo do canal Enchendo Linguística, criado por um grupo de pesquisa da Universidade Federal de Minas Gerais, dois jovens pesquisadores explicam a hipótese de Sapir-Whorf analisando o filme A Chegada (EUA, 2016), além de vários outros exemplos. Vale conferir: http://bit.ly/2S4HlWl
Hoje em dia, há aspectos da hipótese de Sapir-Whorf que já não são mais tão discutidos. Isso porque alguns dos exemplos que lhe deram origem foram questionados em sua validade.
Para entender isso melhor, podemos resumir a hipótese a duas frases da seguinte maneira:
A hipótese de Sapir-Whorf é normalmente apresentada a partir de duas frases: 1. “A linguagem determina o pensamento” (determinismo linguístico) e 2. “Não há limites para a diversidade estrutural das línguas” (relativismo linguístico) – (LYONS, 2009, p. 225)
À primeira vista, parece haver uma contradição em termos, não é? Como poderia a linguagem determinar e, ao mesmo tempo, abrigar uma diversidade estrutural?
Se não quiséssemos ser especialistas no tema, nem precisaríamos nos preocupar com isso. Muitos brasileiros acreditam que não conseguem “sair das construções do português” para pensar e, ao mesmo tempo, que as línguas apresentam possibilidades ilimitadas de expressão, por mais incoerente que isso possa soar.
Porém, como a ideia é nos especializarmos, é melhor entendermos bem as diferenças entre determinismo e relativismo linguístico. Vamos lá?
Mitos do Determinismo Linguístico
Hoje em dia, dizer que a língua determina a forma como pensamos tornou-se algo ultrapassado ou, ao menos, pouco relevante em termos científicos.
Com o surgimento das ciências cognitivas, exemplos de determinismo linguístico vêm sendo desmistificados.
Quer se aprofundar neste tema? Recomendamos o acesso à seguinte fonte de consulta e aprofundamento: Artigo – “A Linguagem molda o pensamento?” (COSTA & DUQUE, 2009), acessível pelo link http://bit.ly/2sBmYpc (Acesso em 30/10/2019).
Muito do que se compreendia como relacionado ao pensamento é, hoje em dia, relacionado a fatores culturais. Esses fatores explicariam a diversidade estrutural das línguas, proposta pelo relativismo linguístico presente na hipótese.
Se acreditarmos no determinismo linguístico – também conhecido como versão forte da hipótese de Sapir-Whorf –, podemos chegar à conclusão de que americanos não sentem saudade como nós. Este tipo de raciocínio não tem comprovação científica e gera uma série de preconceitos.
Como professores e pesquisadores, não estamos isentos de preconceitos. Todo professor é um pouco antropólogo ao observar seus alunos e julgar sua maneira de falar ou de se comportar. Devemos ter cuidado para não aplicar nossas próprias formas de categorização do mundo à realidade daqueles que soam diferentes de nós. Será que um aluno que usa um palavrão é alguém que “pensa menos”, “tem menos cultura” ou “é menos inteligente”? E se o palavrão for usado como forma de demonstrar intimidade – hábito comum entre millenials e membros das novas gerações?
No que diz respeito aos estudos cognitivos, a hipótese de Sapir-Whorf nos ajuda a desconstruir um mito central de nossa sociedade – o de que existe uma relação direta entre linguagem e pensamento.
Pode não parecer, mas este mito ainda é muito influente e atua em práticas profissionais diversas, incluindo as pedagógicas.
Este é apenas um dos motivos pelos quais o avanço das ciências cognitivas, e a consequente derrubada do determinismo linguístico como proposta viável, tornou-se tão relevante.
O relativismo linguístico – expresso na frase “Não há limites para a diversidade estrutural das línguas” (LYONS, 2009, p. 225) – segue válido como proposta de investigação. As explicações sócio-culturais para fenômenos linguísticos foram estudadas por uma área conhecida como Sociolinguística, que estudaremos no capítulo quatro esta disciplina.
A REVOLUÇÃO COGNITIVA DOS ANOS 60
Tudo bem, então. Já vimos que o cérebro pode ser estudado, mas que fenômenos mentais são mais amplos e não podem ser inteiramente mapeados. Já vimos que a linguagem não determina o pensamento. E vimos que, mesmo assim, as ciências cognitivas seguiram avançando. Entre elas, a Linguística.
Neste ponto, você poderia estar se perguntando: O que, então, eles estudaram? Afinal, não sobrou nada de muito concreto para se apegar, né?
Pois bem. Antes de revelar a resposta, vale a pena revisarmos aquele conceito de mente, lá do início do nosso percurso. Desta vez, vamos expandir um pouco, também nas palavras de John Lyons:
“O seu sentido [da palavra ‘mente’], na linguagem do dia a dia, é mais restrito – é próximo ao de ‘intelecto’, ‘razão’, ‘compreensão’, e ‘juízo’ – do que o sentido mais ou menos técnico que tem na filosofia da mente e (para os psicólogos que utilizam o termo) em psicologia. Neste último sentido, mais técnico, ele engloba não apenas a faculdade humana do raciocínio, mas também os seus sentimentos, a sua memória, as suas emoções e a sua vontade” (LYONS, 2009, p. 179)
Lembrar-nos deste conceito é importante para que possamos compreender como as ciências cognitivas se constituíram.
Isso porque, no século XX, novas áreas de estudo – como o campo da inteligência artificial – enfatizavam a necessidade de se analisar fenômenos mentais como faculdades humanas, ou seja, capacidades inerentes ao homem.
Imagine que você deseja construir um robô ou mesmo um computador que realize algumas tarefas humanas mais complexas – como a produção de textos. Antes mesmo de conseguir materiais ou de começar a programá-lo, você teria de analisar e listar todas as ações que você mesmo faz ao realizar essas tarefas, não é? E aí? Sabe quais são?
Normalmente, ao escrevermos um texto, não paramos para pensar sobre todas as tarefas envolvidas em sua consecução. Vocêpoderia dizer: “Ah, eu vou lá, ligo o computador, abro o processador de textos e saio digitando. O difícil é saber o que escrever, né?” Bem, mais ou menos…
Este tipo de raciocínio é o que chamamos de “engenharia reversa” (PINKER, 1998) e foi fundamental na construção de computadores. Busca entender como algo funciona – desconstruindo sua operação em passos menores – para aplicar esse procedimento em outro lugar.
Computadores são processadores de informações que nos desobrigam de fazer tudo sozinhos – como nossa mente/ cérebro. Para programá-los, foi necessário gerar hipóteses bem práticas sobre como essa mente/cérebro funciona. O teste final era a programação: se o computador funcionasse, alguma coisa estava certa!
Atualmente, ainda não existem computadores capazes de produzir textos de forma autônoma, mas há experimentos bastante avançados na produção de respostas a outros textos. O GPT-2, criado pela Open-AI (São Francisco, EUA) “é treinado com um objetivo simples: prever a próxima palavra, considerando todas as palavras anteriores em algum texto”. Com isso, consegue responder a entradas como “Miley Cyrus foi pega roubando na loja Abercrombie e Fitch em Hollywood Boulevard”, produzindo o seguinte texto: “A cantora de 19 anos foi vista pela câmera sendo levada para fora da loja por seguranças. Ela usava um moletom de capuz preto com a frase ‘Blurred Lines’ na frente e ‘Fashion Police’ nas costas” (Fonte: Revista Galileu. Disponível em: https://glo.bo/2PxR7yz Acesso em 30/10/2019.
Como você já deve ter imaginado, muitos cientistas ficaram entusiasmados com os primeiros avanços na área computacional. Eles ofereciam uma forma de trabalhar para entender a mente humana por tentativa e erro, resolvendo inúmeros problemas cotidianos.
E sem depender de crenças e conjecturas filosóficas! Por isso, em meados dos anos 50, pesquisadores de diferentes áreas começaram a juntar esforços na tarefa nada nova de responder questões sobre “a natureza do conhecimento, suas fontes, seu desenvolvimento e sua utilização” (GARDNER, 1985, p. 6). Era o início das ciências cognitivas.
A Linguística como ciência cognitiva
E o que muda para a Linguística nesse panorama? Bem, para começar, o objeto de estudo, ou seja, aquilo a que ela se dedica enquanto ciência cognitiva.
É bem verdade que cada subárea influenciada pelos estudos cognitivos vai adequar sua abordagem teórico-metodológica àquilo que mais lhe interessar, mas todas têm ao menos um aspecto em comum: encaram a linguagem como uma faculdade ou capacidade humana.
Isso pode não parecer muita coisa, mas modifica bastante a forma como nos relacionamos com as línguas e como trabalhamos com elas.
É bem verdade que cada subárea influenciada pelos estudos cognitivos vai adequar sua abordagem teórico-metodológica àquilo que mais lhe interessar, mas todas têm ao menos um aspecto em comum: encaram a linguagem como uma faculdade ou capacidade humana.
Isso pode não parecer muita coisa, mas modifica bastante a forma como nos relacionamos com as línguas e como trabalhamos com elas.
Se a linguagem é uma faculdade humana, todos nascemos competentes, ou seja, “programados para” utilizá-la de alguma maneira. Isso não significa que todos teremos o mesmo desempenho ao fazê-lo, mas que temos, em potencial, a capacidade de nos expressarmos por meio de sistemas linguísticos.
O impacto dessa noção é gigantesco! Há uma série de situações cotidianas em que julgamos nossa própria capacidade e a de outras pessoas para realizar tarefas linguísticas.
Imaginar que fomos projetados para o uso de línguas, certamente, ajuda a rever alguns conceitos e preconceitos.
Uma visão de linguagem baseada em engenharia reversa busca entender como a adquirimos e processamos – Como produzimos frases? Como as estruturamos? Como identificamos frases gramaticais e agramaticais? Onde o processo começa? O que o dificulta?
Descobertas neste campo têm sido muito úteis para professores de língua materna e estrangeira. Combinados com os estudos sobre aspectos sociais da língua, oferecem-nos um bom panorama sobre como abordar nossa prática de ensino.
Nos próximos capítulos, vamos nos aprofundar nelas. Porém, antes disso, vamos ver como podemos aplicar o que vimos até aqui.
Quer se aprofundar neste tema? Recomendamos o acesso à seguinte fonte de consulta e aprofundamento: Artigo – “Cognitivismo e Estudos da Linguagem: Novas perspectivas” (COSTA & DUQUE, 2009), acessível pelo link: http://bit. ly/2S6Teen (Acesso em 30/10/2019).
E então? Gostou de aprender mais sobre as relações entre mente/cérebro e linguagem? Vamos checar o que você entendeu? Para termos certeza de que você realmente assimilou os pontos mais importantes deste capítulo, vamos resumir tudo o que vimos. Começamos diferenciando mente e cérebro, lembra? No campo dos estudos cognitivos, você deve ter visto que o termo “mente” se refere a fenômenos mais amplos, difíceis de medir ou mesmo ver, tais como o pensamento. Aliás, também vimos que o termo “cognitivo” se refere a ciências interessadas em estudarem o conhecimento, seus elementos constitutivos e suas formas de atuação – aquisição e processamento. Caindo em nossa área, descobrimos que a Linguística é uma ciência cognitiva e que, mesmo antes de que ela fosse reconhecida assim, já havia linguistas pensando sobre a relação entre pensamento e linguagem, como Sapir e Whorf. Hoje em dia, uma parte de sua proposta já não faz sentido – aquela que diz que a língua determina o pensamento, também conhecida como determinismo linguístico. Até porque, com a constituição e os avanços das ciências cognitivas, muito inspirados pela lógica computacional, aprendemos a considerar a linguagem como uma faculdade ou capacidade humana. E você, com certeza, notou como isso foi importante: paramos de julgar as capacidades linguísticas de cada ser humano com base em crenças e especulações. Deste ponto em diante, dedicamo-nos a resolver problemas de desempenho linguístico, com auxílio de muitas áreas interessadas no tema.
Analisando aspectos cognitivos das práticas de sala de aula
Lendo o capítulo um, é bem possível que você tenha imaginado algumas conexões entre os fenômenos mentais e certas práticas de sala de aula.
Chegamos a sugerir alguns pontos de encontro, mas, neste capítulo, vamos analisar, mais detalhadamente, o que os conceitos básicos da Linguística, como ciência cognitiva, podem nos dizer sobre a atuação de professores.
Imagine que você já está dando aulas de português ou inglês para uma turma de escola pública ou particular em sua cidade. O ano/ série escolar também pode ficar a seu critério. Considerando o que vimos até aqui, qual seria o seu perfil de aluno ideal? Como ele se comportaria? Como demonstraria seu conhecimento?
Alunos que pensam, sentem e agem
Durante muitos anos, o foco da escolarização previa a ‘transmissão de conhecimentos’ – do professor ao aluno – por meio de uma exposição ordenada de conceitos, seguida por exemplificação e exercícios práticos ou modelagem de comportamentos.
Em muitos lugares, este tipo de prática ainda é a única metodologia utilizada para apresentar um conteúdo. Mas, considerando tudo o que vimos até o momento, será que professores conseguem mesmo ‘transmitir conteúdos’?
Determinismo Linguístico e a sala de aula
Como vimos no tópico um, os fenômenos mentais são invisíveis, imensuráveis e englobam aspectos relacionados ao raciocínio, a sentimentos, à memória, às emoções e à vontade humana. Ter isso em conta, em sala de aula, é fundamental.
Além disso, vimos que a linguagem não determina o pensamento. Vamos relembrar algumas aplicações disso para a sala de aula?
Acreditar que podemos medir o conhecimento de um ser humano a partir de suas formas de expressão linguística é aderir a uma forma de determinismo linguístico. Embora esta hipótese tenha sido refutada, seus efeitos persistem em diferentes práticas pedagógicas.]]
No exemplo da aula sobre o verbo “to be”, o professor requisitou um comportamento específico dos alunos – que eles repetissem as formas doverbo oralmente ou por escrito.
É provável que, caso o fizessem de acordo com suas expectativas, os alunos ganhassem sinais de correto em seus exercícios. Talvez até alguns pontos extra para a média, em se tratando de um trabalho especial ou teste.
Sorte a deles? Talvez! Porque a pergunta que fica é: Como o professor pode ter certeza que o conteúdo com que trabalhava foi ‘transmitido eficientemente’?
Lembre-se de sua própria experiência como aluno. Pode ser relacionada ao aprendizado de língua materna ou estrangeira. Ao preencher lacunas de exercícios, copiar frases do quadro ou repetir as frases de seu professor, você sempre sabia do que se tratavam? Agia de forma mecânica? Esses conhecimentos ficaram? De que forma?
Se não existe relação entre linguagem e fenômenos mentais, a resposta à pergunta que fizemos anteriormente é: O professor não pode garantir nenhum tipo de ‘transmissão de conhecimentos’, por mais que o sistema escolar tradicional pareça estar construído sobre este princípio.
Exemplo: Os sistemas tradicionais de escolarização são baseados em notas, conceitos e outros tipos de métrica, cuja premissa básica é a de que podemos calcular o nível de conhecimento adquirido em cada fase da aprendizagem. Se os fenômenos mentais não são mensuráveis, tampouco podemos medir conhecimento.
É, este tópico dá mesmo o que pensar! Até hoje, ainda não conseguimos substituir, de maneira eficiente, muitos dos parâmetros avaliativos baseados em notas e similares.
No entanto, conseguimos adaptar quase todas as disciplinas de forma a requerer dos alunos mais do que comportamentos repetitivos e ampliar o conceito do que entendemos por conteúdo.
Hoje em dia, já temos experiências em escolas brasileiras, dedicadas a expandir a importância dos aspectos cognitivos no processo de ensino-aprendizagem.
Assista a este vídeo do canal Educa Play, em que se relata a experiência do Colégio Estadual Barão do Cerro Azul, na cidade de Ivaiporã (PR), com a implementação de jogos cognitivos envolvendo professores de várias disciplinas e alunos de diferentes anos. Disponível em: http://bit.ly/2PTO0QC
Você se lembra de que o cérebro funciona como um grande processador central até onde conseguimos perceber? E que ele administra dados do corpo inteiro? Pois bem! Se não podemos ver emoções, pensamentos e outros fenômenos mentais, tampouco podemos localizá-los ou saber o que acessaremos com cada atividade pedagógica.
A participação ativa dos alunos – lidando com as próprias emoções, fazendo escolhas e administrando os próprios pensamentos – faz parte do processo de ensino-aprendizado.
Figura 6
Fonte: Freepik
Como professores, não acessamos os aspectos subjetivos de processos mentais por mais que redações bem escritas ou modelagens fieis do nosso comportamento nos deem esta sensação.
Se isso é verdade, então sempre precisaremos não apenas engajar os alunos em atividades que envolvam todos os seus sentidos, mas também estabelecer uma comunicação aberta com eles, de forma a entender os momentos de processo pelos quais estão passando. Mais do que perguntar se estamos sendo “bons” ou “maus” professores, teremos de discutir como o processo está sendo para eles.
Mesmo assim, você poderia pensar: “Tudo bem! Mas, em aulas de inglês, por exemplo, pensar em português influencia alunos brasileiros!” Talvez, a hipótese de Sapir-Whorf não esteja tão errada assim!
E você tem razão em pensar assim. Veja o que já foi pesquisado sobre o assunto:
Em uma aula de língua estrangeira, “(i) as categorias gramaticais e lexicais de uma língua podem forçar um determinado modo de pensar no momento da fala; (ii) ao falar e adequar sua linguagem às exigências formais da língua (marcação de número e gênero, por exemplo), o indivíduo é obrigado a relembrar (ou vivenciar) a experiência relatada; e (iii) algumas características da língua podem fazer com que um falante lembre-se mais e melhor de alguns fatos do que de outros (noções de quantificação, por exemplo) – (GUMPERZ; LEVINSON, 1996 apud TILIO, 2007, p. 112)
Ficou confuso? Não tem problema! Vamos exemplificar:
Exemplo: Em uma aula de língua estrangeira, (i) um aluno pode insistir em inserir o “the” para marcar o lugar onde o artigo de sua língua materna (o, a, os, as) estaria diante de nomes próprios, por exemplo; (ii) tentando se lembrar de que, na terceira pessoa do presente do indicativo em inglês se utiliza o “does”, o aluno pode acabar se perdendo (porque se lembra de como geralmente fala sobre o assunto em português); e (iii) um aluno pode ter dificuldades em lidar com o fato de que “peixe” (comida) é incontável em inglês. Em português, isso também ocorre: na linguagem culta, diz-se “três postas/porções de peixe” e contam-se apenas os peixes (animais) em um lago. Porém, como esse aspecto não é muito estudado em aulas de língua portuguesa, o aluno pode ter dificuldades de lidar com isso e evitar utilizar essa forma completamente.
Com certeza, nossa língua materna exerce grande influência sobre nossos processos de aquisição de línguas estrangeiras. No entanto, sempre vale lembrar que existe uma diferença bem grande entre ‘determinar’ e ‘influenciar’.
Se achássemos que a língua materna ‘determina’ a forma como pensamos, valeria a pena estudar outros idiomas? Ou melhor, valeria a pena imaginar que algum dia poderíamos ser fluentes neles?
A maior contribuição da hipótese de Sapir-Whorf, como vimos no capítulo um, está em sua proposta para o relativismo linguístico – a diversidade estrutural ilimitada das línguas.
Relativismo Linguístico e a sala de aula
O relativismo linguístico nos ajuda a pensar sobre o impacto da cultura em situações pedagógicas, especialmente na sala de aula de língua estrangeira.
Já se pegou achando que alguma coisa não fazia sentido até perceber que, na verdade, era você quem não a entendia? Às vezes, alunos insistem em dizer, por exemplo, que não faz sentido colocar os marcadores de tempo verbal (como do, did, etc.) na frente das frases interrogativas. Ou que não faz sentido colocar pontos de interrogação invertidos diante de perguntas, como fazem em língua espanhola. Mas será que não avisar ao leitor sobre a entonação da frase a ser lida/falada, como fazemos em português, faz mas sentido? É mais lógico?
Na verdade, não podemos julgar a estrutura de uma língua comparando-a com a de outra em termos de “melhor” ou “pior”.
É comum que alunos de língua materna e estrangeira tragam este tipo de questionamento, uma parte produtiva de seu processo de aprendizagem. Em língua materna, alunos questionam classificações, procedimentos, etc.
Alguns professores podem se sentir incomodados com este tipo de colocação, mas ele é útil e relevante, já que abre as portas para a adaptação dos esquemas cognitivos já existentes aos novos conhecimentos disponíveis.
Esses comentários enfatizam a relação entre a cultura em que nos inserimos – e que é parte de nossas formas de pensar, sentir, atuar – e a linguagem que empregamos, sem ‘determinar’ que estamos, para sempre, limitados às mesmas formas de conhecer e falar.
Quando falamos de ‘cultura’ não estamos nos referindo a noções de senso comum como cultura nacional ou cultura jovem. Não é porque somos identificados como parte de algum grupo que podemos ser rotulados e caracterizados como iguais a todos os seus membros. “Um outro equívoco que envolve o conceito de cultura é a crença em que toda cultura é cultura com ‘c’ maiúsculo (Kramsch, 1988; Abbud, 1998). Existe Cultura e cultura. Ou melhor, Culturas e culturas. Cultura com ‘c’ maiúsculo dá conta do entendimento nas áreas de História, Artes, Literatura, Política, Religião, além de algumas instituições, práticas sociais, significados e valores. Tal conceito de cultura é válido; no entanto, não é único.” (TILIO, 2007, p. 117)
Estamos falando de uma cultura plural, fortemente ligada ao conceito de identidade (TILIO, 2007, p. 118). São os aspectos cognitivos – o que conhecemos sobre nós mesmos e sobre o mundo – que constituem nossa noção de quem somos. E tudo isso está intimamenterelacionado à linguagem.
Podemos dizer que, na aula de língua estrangeira, há várias culturas afetando os processos cognitivos que ali se constroem. Cada uma delas traz esquemas cognitivos próprios, ou seja, várias formas de conhecer o mundo coexistem.
“Baseado em Kramsch (1988), podemos ressaltar que um ambiente pedagógico de ensino de língua estrangeira é o produto de pelo menos seis culturas: C2, a cultura da língua ensinada; C1, a cultura do aprendiz; a cultura do livro didático e do país onde foi publicado; a cultura da sala de aula; a cultura da instituição de ensino; e a intercultura, ou seja, os estágios de aquisição da C2” (TILIO, 2007, p. 120).
Veja como o termos ‘intercultura’ foi utilizado. Ele se refere aos momentos em que estamos adquirindo contato com novos conhecimentos. Coisas bem interessantes se produzem neste processo, exclusivas dos ambientes em que se desenvolvem!
Exemplo: Já usou ‘portuguish’, ‘portunhol’, ou cantou em ‘gromelô’? Gromelô é um conjunto de sons inventados, imitando uma língua, quando você ainda não sabe como falá-la. Todos esses processos fazem parte da aprendizagem, por mais que alguns professores não gostem muito deles. Em algumas turmas, o ‘portuguish’ pode ganhar gosto de ‘piada interna’, envolvendo situações que apenas o professor e os alunos têm como entender.
Os momentos ‘intercultura’ também envolvem falar frases compostas metade em uma língua e metade em outra, por exemplo. Nesses momentos, há total engajamento cognitivo por parte dos alunos.
Mais do que ficarmos irritados com a falta de produção perfeita na língua que estamos trabalhando, podemos, como professores, perceber que essas são atividades bem-vindas como sinais de sistemas cognitivos em expansão.
de aula de língua estrangeira, observe como os conceitos também podem ser aplicados ao ensino de língua materna. Para alunos acostumados com registros informais da língua, o registro formal é uma nova cultura. O impacto dos materiais didáticos e da instituição também é relevante. Além disso, há uma série de procedimentos interculturais que ajudam os alunos de língua portuguesa a processarem o conhecimento relacionado à norma culta.
Veja alguns exemplos de atividades interculturais comuns em sala de aula de língua portuguesa:
Exemplo: Já criou construções meio formais e meio informais ao falar? Já ‘traduziu’ um texto literário para sua versão ‘menos culta’, utilizando gírias ou simplificações, como forma de entendêlo melhor ou se aproximar dele? Já cantou todas as preposições para não se esquecer delas no dia da prova?
Como vimos, o relativismo linguístico também nos ajuda a lembrar de que a língua portuguesa não é um construto único. Há língua(s) portuguesa(s) e aquela proposta pelo ambiente escolar costuma ser diferente da que os alunos conhecem a partir de suas vivências culturais.
Quer se aprofundar neste tema? Recomendamos o acesso à seguinte fonte de consulta e aprofundamento: Artigo – “A evolução da teoria da relatividade lingüística e a interface língua-cultura no ensino de línguas estrangeiras” (TILIO, 2007), acessível pelo link http://bit.ly/2M6Ynzj (Acesso em 31/10/2019).
Competência linguística e a sala de aula
Como vimos, a Linguística, influenciada pelos estudos cognitivos, deu origem a várias subáreas de conhecimento: a Psicolínguistica, a Biolinguística, a Neurolinguística, etc.
Você se lembra do que todas elas têm em comum?
Todas as áreas da Linguística dedicadas aos estudos cognitivos encaram a linguagem como uma faculdade ou capacidade humana. Isso significa que todos nascemos competentes, ou seja, “programados para” utilizá-la de alguma maneira. Não quer dizer que todos teremos o mesmo desempenho ao fazê-lo.
Em relação aos detalhes de como isso funciona, há controvérsias. Cada área aborda o problema de acordo com suas próprias hipóteses.
Há quem acredite que a faculdade da linguagem é totalmente autônoma; outros defendem que essa capacidade é integrada às demais faculdades humanas.
Mas, para o que nos interessa aqui, é importante entender direitinho como funciona essa noção de faculdade ou competência.
No dia a dia, usamos a palavra ‘competência’ para dizer que alguém é muito bom ou eficiente no que faz. Então, você poderia perguntar: “Por que é mesmo que eu estudei tanto Português na escola se já nasci competente?” Dúvida, aliás, muito comum entre seus futuros alunos!
“Qualquer criança falante do português, ao iniciar seus estudos, já adquiriu um certo tipo de conhecimento de sua língua que permite a ela construir uma sentença impessoal como: (1) Tinha uma jaboticabeira no quintal da minha avó.” Depois do processo de escolarização, ela passa ser capaz de produzir frases adaptadas à gramática normativa como “(2) Havia uma jaboticabeira no quintal da minha avó” (NEGRÃO, SCHER, VIOTTI, 2002, pp. 95-96).
Repare que, ao produzir a frase (1), a criança já demonstra uma série de conhecimentos. Veja:
Exemplo: Essa criança “sabe que é possível, nessa língua, construírem-se sentenças sem sujeito. Sabe, também, que essa possibilidade se restringe a sentenças construídas a partir de certos verbos e não de outros. Ela também sabe construir formas interrogativas e negativas relativas a uma sentença como (1). Nada disso vai precisar ser ensinado na escola” (NEGRÃO, SCHER, VIOTTI, 2002, p. 96).
Mesmo adultos demonstram um tipo de conhecimento linguístico – baseado na criatividade – que não pode ser facilmente explicado a menos que essa capacidade tenha nascido com eles.
Já reparou que, a todo momento, criamos frases inteiramente novas, ou seja, não repetidas? Pense sobre esta última frase que acabamos de escrever aqui. É provável que ela nunca tenha sido escrita, exatamente desta maneira, antes. Também podemos criar frases como “flores carram cinco juízes”, transformando o substantivo “carro” em verbo, por exemplo. Ou frases como: “fazedor vou carros ontem”, mesmo que não tenham sentido.
Se tudo o que produzíssemos fosse aprendido – adquirido depois que nascemos e não parte de uma faculdade humana inata –, como seríamos capazes de produzir sentenças inteiramente novas? Ou de criar sentenças sem sentido aparente? Como faríamos isso, se não houve modelo dessas sentenças?
A primeira pessoa a reparar nesses fenômenos e estabelecer um método para estudá-los cientificamente foi o linguista norteamericano Noam Chomsky (1928-). Ele formulou os conceitos de competência linguística (a capacidade/potencial com que todos nascemos) e desempenho linguístico (a produção real ou performance que cada um tem no mundo a partir desse potencial, influenciada por fatores sócio-culturais).
Note que o que Chomsky chamou de competência linguística é bem diferente da forma como utilizamos a palavra ‘competência’ no dia a dia.
Para Chomsky, uma pessoa que tenha dificuldades de se comunicar – de ordem neurofisiológica, como a dislexia, ou de ordem psicológico-motora, como certos tipos de gagueira – não é menos competente linguisticamente, pois todos o somos, de nascença. Esses distúrbios são da ordem do desempenho/ performance linguística.
Já discutimos o quão importante essa concepção foi para a história das ciências, em geral, e da Linguística em particular. Vamos ver, mais atentamente, como essa noção pode afetar o espaço de sala de aula.
Pessoas surdas já foram adoradas como deuses, no Egito Antigo, mas também já foram consideradas incapazes de aprender, na Grécia Antiga, por conta da crença de que não possuíam linguagem. Acreditando na relação direta entre linguagem e pensamento, os gregos achavam que pessoas surdas não eram capazes de raciocionar (Fonte: Portal da Educação. Disponível em: http://bit.ly/2PzEF1x Acesso em: 31/10/2019.
Em sala de aula, há uma série de fenômenos que são interpretados como questões de competência linguística (ou seja, de capacidade de alunos), quando, na verdade, tratam-se de questões de desempenho.
A diferença parece sutil, mas, para os alunos envolvidos, não é. Caso entendamos que o desempenho pode sempre ser trabalhado e, portanto, alterado, daremosmais atenção às dificuldades de aprendizagem trazidas por nossos alunos.
Exemplo: Você se lembra do nosso aluno desinteressado do tópico um? Imagine que ele é, na verdade, disléxico. Como professores, não temos condições de diagnosticar essa condição sozinhos, mas podemos estar mais atentos a essa possibilidade, fazendo, inclusive, indicações para diagnóstico, caso saibamos que seu desempenho linguístico sempre pode ser aprimorado.
Problemas de aprendizagem
Não à toa, as teorias de Chomsky deram origem a uma série de aplicações para o ensino de língua portuguesa e língua estrangeira, em especial no que diz respeito aos problemas de aprendizagem.
Para começar, podemos dizer que, se nascemos competentes, existe uma espécie de gramática internalizada dentro de nós, ativada quando entramos em contato com nosso meio sócio-cultural.
E o que isso pode dizer sobre a escolarização?
“Com o surgimento da gramática internalizada, não há mais noção de erro. O verdadeiro objeto da linguística passa a ser um componente do mundo natural (Costa, 1994: 83). O objetivo da educação linguística escolar passa a ser o desenvolvimento das habilidades de ler, escrever, falar e escutar que tem como base a concepção heterogênea da língua inserida em um processo ininterrupto e contínuo que se inicia na infância e institucionaliza na escola, quando o aluno entra em contato com as várias situações de uso da língua” (CRUZ, 2005, p. 1)
Entendeu? Se todos compreendemos princípios básicos de gramática de nascença – sem os quais não seríamos capazes de formular nem as frases mais simples –, então nossa noção de erro e a própria noção de gramática tende a mudar bastante.
Figura 7
Fonte: Freepik
Além disso, Chomsky acreditava que falantes de uma língua conseguiam intuir se uma sentença era gramatical ou agramatical. Simplificando, somos capazes de dizer se aquela frase é possível ou não de ser realizada em nossa língua.
Já reparou que temos uma boa noção do que ‘se diz ou não’ em português? E isso independe de nossas conhecimentos sobre a norma culta. Podemos não saber se a frase está correta ou não de acordo com a norma, mas, ao mesmo tempo, sabemos se ela ‘existe’ ou não em português, mesmo que fora dos padrões.
Essa noção de gramaticalidade, bem diferente da noção de certo e errado, também tem impactos no ensino de línguas.
“Sem essa noção de erro, o que entra em jogo é a dicotomia gramatical/agramatical [...]: todos os alunos falam sua língua [...], e eles são capazes de distinguir intuitivamente sentenças gramaticais como (a) quem comprou o jornal ontem? de sentenças agramaticais *o jornal ontem comprou quem?. É o que se chama de ciência intuitiva. Esse meio de investigar é também interessante porque todos os alunos sabem sua língua e não é preciso de laboratórios, grandes experimentos como em química, física ou biologia.” (CRUZ, 2005, p. 1)
Nos próximos capítulos, vamos nos aprofundar bastante na metodologia utilizada por Chomsky e aprender alguns de seus conceitos básicos. Porém, antes disso, vale lembrar que alguns problemas de aprendizagem são, também, condições clínicas.
As Ciências da Saúde também estudam a teoria chomskiana, com ênfase para a Fonoaudiologia, ao tratar distúrbios da fala.
Destacamos uma condição comum – a dislexia – que será apresentada a seguir, para que você seja capaz de identificar seus sinais e saber como agir caso tenha de lidar com alunos disléxicos em sua futura prática profissional.
Quer se aprofundar neste tema? Recomendamos o acesso à seguinte fonte de consulta e aprofundamento: Vídeo – “Noam Chomsky: O Conceito de Linguagem” (UWTV Classics, EUA, 1989), acessível pelo link : http://bit.ly/2PxQCof (Acesso em 31/10/2019).
E então? Gostou de analisar como os aspectos cognitivos influenciam as situações de sala de aula? Muito bem! Vamos a nosso resumo, incluindo os pontos mais importantes deste capítulo, para checar o que você entendeu. Começamos lembrando que alunos pensam, sentem e agem e não foi à toa! Com isso, enfatizamos que abordagens pedagógicas que considerem o desenvolvimento cognitivo dos alunos precisam incluir atividades propostas a partir de seu total engajamento, já que os fenômenos mentais não são facilmente mapeáveis e, além de tudo, são subjetivos. Com certeza, você se lembra de que versões de determinismo linguístico, podem gerar (e ainda geram!) uma série de problemas em sala, incluindo a confusão entre inteligência e produção linguística dos alunos. E deve se lembrar, também, de que a hipótese de Sapir-Whorf, quando aplicada ao ensino, nos ajuda a entender o impacto da(s) cultura(s) – do aluno, do professor, do material didático, da instituição escolar, da(s) língua(s) trabalhadas em sala – no processo de ensino aprendizagem. Melhor relativizarmos, então! Mas o salto em termos de compreensão dos processos cognitivos ocorreu quando entendemos, a partir das ideias de Chomsky, que todos nascemos com a capacidade de produzir linguagem (competência linguística), o que não quer dizer que todos vamos performá-la da mesma maneira – não teremos o mesmo desempenho linguístico, já que este é afetado por fatores sócio-culturais. Isso nos ajudou a entender uma série de problemas de aprendizagem, tais como a confusão entre norma culta e gramática internalizada (com a qual todos nascemos, né?) e como nossa intuição de falantes nos ajuda a perceber o que não ocorre (ou é agramatical de verdade!) na língua. A noção de erro mudou muito e, com isso, um estudo mais concentrado de problemas de aprendizagem, incluindo distúrbios da fala, tornou-se possível. Mas, com certeza, você pescou tudo isso, não é? Sei que sim! Se não, é hora de voltar e revisar antes de partirmos para o próximo ponto.
Identificando e solucionando problemas relacionados a dificuldades de aprendizagem
São muitos os problemas de aprendizagem relacionados à linguagem. Isso ocorre porque a linguagem é parte fundamental em todos os processos de aquisição de conhecimento.
A linguagem funciona como meio para a aquisição e processamento do conhecimento, ou seja, está presente em todas as práticas de aprendizagem, quer elas sejam pedagógicas ou não.
Na verdade, podemos dizer que a linguagem verbal ocupa posição de destaque em praticamente todas as atividades humanas que envolvem falantes/ouvintes.
Por isso, teorias da Linguística tornam-se úteis à compreensão de objetos de estudo em diferentes campos de pesquisa. Da mesma forma, há maior abertura, nos estudos linguísticos, para a incorporação de saberes de outras áreas.
A Psicolinguística e as dificuldades de aprendizagem
A Psicolinguística está entre as subáreas da Linguística que mais contribuem para a pesquisa aplicada a distúrbios da fala.
Seguindo versões da teoria de Chomsky, a Psicolinguística se apropria da metáfora da mente computacional e busca entender como operamos nossos sistemas relacionados à linguagem.
Podemos classificar as áreas de estudo da Psicolinguística de acordo com seus focos de interesse e com as questões a que busca responder.
Veja a seguir:
Figura 7 – Áreas da Psicolinguística – baseado em LEITÃO, 2009
Fonte: A autora
Confuso em relação aos termos? Não tem problema! Vamos revisar o que vimos sobre ‘aquisição’ até agora.
A expressão ‘aquisição de linguagem’ se refere ao estudo dos processos por meio dos quais adquirimos uma língua, ou seja, trata-se de uma investigação voltada para nossa competência linguística inata. Envolve, por exemplo, mapear os procedimentos programados em nossa gramática internalizada.
Conceitos relacionados à aquisição são fundamentais para a prática de ensino de línguas. Tanto que vamos dedicar um capítulo inteiro somente a eles.
Também utilizamos o termo ‘aquisição’ para falar sobre a aprendizagem de línguas estrangeiras. Embora haja questões específicas desse processo, nosso ponto de referência também é o da competência com a qual nascemos, já que partimos do princípio de que existe uma gramática internalizada.
Seria difícil imaginar que cada um de nós tem um tipo diferente de gramática interna,dependendo do país em que nasceu.
Exemplo: Um bebê que nasce no Brasil pode ser levado à Alemanha com poucos meses de idade e criado lá. Provavelmente, ele desenvolverá seu desempenho linguístico para a língua alemã e não para a língua portuguesa, a não ser que um de seus pais o exponha a esta língua.
Por agora, no entanto, a Psicolinguística Experimental é a área que mais pode nos ajudar. Vamos ver a que se dedica em detalhes:
A expressão ‘processamento de linguagem’ se refere ao mapeamento dos processos por meio dos quais utilizamos uma língua já adquirida, ou seja, trata-se de um estudo voltado para nosso desempenho/ performance linguística.
Pesquisadores interessados em processamento linguístico se utilizam de experimentos nos quais monitoram fatores diversos – como velocidade de processamento – para mapear como lemos, falamos, ouvimos e escrevemos.
No Brasil, há laboratórios dedicados a rastrear nosso foco de visão enquanto lemos um texto ou observamos uma figura para fornecer dados quanto à velocidade com que os processamos. O aparelho se chama “monitorador ocular” (eye tracker) – fonte: (LEITÃO, 2009, p. 232)
Este tipo de pesquisa contribui para o desenvolvimento e adoção de metodologias mais efetivas de ensino. Também contribui para a educação inclusiva, já que permite comparações entre alunos com e sem distúrbios de aprendizagem.
Quer se aprofundar neste tema? Recomendamos o acesso à seguinte fonte de consulta e aprofundamento: Artigo – “Cognitivismo e Estudos da Linguagem: Novas persp” (MENDES; MAIA; GOMES, 2010), acessível pelo link: http://bit.ly/2sDbbqn. Acesso em 01/11/2019.
Quando falamos sobre a habilidade da leitura, padrões de movimentação ocular são fundamentais na garantia de um processamento linguístico efetivo.
“Essa operação visual se dá assim: os olhos se movimentam da esquerda para direita mediante uns saltos rápidos denominados ‘movimentos oculares sacádicos’. No percurso da leitura, vamos alternando fixações e movimentos sacádicos e somente podemos ler e compreender o que lemos nos períodos em que nos fixamos” (MARTINS, 2019, p. 1).
Indivíduos com problemas de ordem linguístico-cognitiva tendem a apresentar padrões alterados de processamento. Mas o estudo deste tipo de padrão também contribui para a produção de diferentes materiais – dos didáticos aos de propaganda e marketing.
Assista ao vídeo do LAPAL (Laboratório de Psicolinguística e Aquisição de Linguagem da PUC-Rio) para ver um projeto cujo objetivo é quantificar o custo de processamento de sentenças e conhecer as contribuições desse tipo de pesquisa para a sociedade. Disponível em: http://bit.ly/38OwK80. Acesso em: 31/10/2019.
Pois bem! Só o fato de sabermos que a leitura depende dos momentos de fixação ocular, já pode nos ajudar a repensar algumas práticas pedagógicas.
Neste ponto, é bom lembrar que estamos falando não somente de textos escritos, mas também do processamento de textos visuais. O próprio processamento de textos escritos é visual, em parte, como vimos, mas imagens também fazem parte desse contexto.
Veja alguns fatores determinantes da duração e amplitude dos movimentos oculares:
“A duração e amplitude das fixações e a direção dos movimentos sacádicos não variam arbitrariamente, e sim, dependem de: a) as características do texto, b) a maturidade dos processos cognitivos do leitor, c) a visão, d) a fadiga ocular, e) a iluminação, f) a distância olho-texto, g) a postura do corpo e h) o tipo de letra e papel.” (MARTINS, 2019, p. 1)
Agora pense sobre o espaço escolar e, mais especificamente, sobre o espaço da sala de aula: os fatores mencionados anteriormente podem ser controlados/monitorados pelo professor?
Lembre-se de como eram suas salas de aula. Como era a iluminação? Com que postura você geralmente lia? Havia exigência de leituras consecutivas? Qual era o grau de dificuldade/ novidade dos textos apresentados? Como eram formatados: com letras grandes, pequenas, bem espaçadas?
Pois é! Não sabemos como foi sua experiência, mas a crítica de alunos em relação a alguns desses pontos, muitas vezes, não é considerada ou é entendida como preguiça.
Nem sempre temos como modificar todos os fatores impeditivos, mas podemos, ao menos, monitorar as condições em que se pedem tarefas de leitura (verbal, visual ou verbovisual) e buscar meios de equilibrar os esforços dos alunos.
Dito isto, vejamos o que a Psicolinguística e as ciências cognitivas de maneira geral têm a nos dizer sobre dificuldades mais específicas de aprendizagem.
Como agir diante de distúrbios cognitivos
Com base no tópico um, já podemos dizer algumas coisas:
Distúrbios cognitivos só podem ser diagnosticados por equipes de profissionais multidisciplinares, considerando a amplitude dos fenômenos mentais. Professores não podem diagnosticá-los, mas podem aprender a reconhecer sinais de alerta e fazer indicações para que distúrbios potenciais sejam devidamente tratados o quanto antes.
Mas, para que estejamos atentos a possíveis sinais de distúrbio, precisamos, antes de tudo, conhecê-los. Para professores, a atualização acerca deste tema é sempre fundamental.
Aqui, vamos apresentar, com mais detalhe, as características da dislexia. No entanto, partiremos de uma visão geral acerca de distúrbios relacionados à linguagem, para contextualizar nossa empreitada.
Figura 8 – Distúrbios relacionados à linguagem
 
Fonte: Baseado em GODOY e SENNA, 2011, pp. 38-42
Não se preocupe! A ideia não é decorar tudo isso. O interesse, aqui, é que você perceba o quão diferentes os distúrbios relacionados à linguagem podem ser e se interesse por seguir estudando.
Que o termo ‘neurodivergente’ foi, a princípio, cunhado para designar pessoas autistas? Isso ocorreu porque termos médicos – como as palavras ‘autista’, ‘retardado’, ‘deficiente’ e ‘depressivo/depressão’ – começaram a ser utilizados de forma indiscriminada no dia a dia, muitas vezes com o objetivo de ofender, ridicularizar ou diminuir as condições que eles representavam. Vale pensar que, com ou sem a intenção de ofender, o uso de palavras como essas e de expressões genéricas como ‘louco’ está sendo repensado, dado seu caráter de exclusão e descaso para com pessoas que apresentem padrões cognitivos diferenciados.
Ficam, então, três dicas importantes em relação a como agir diante de possíveis distúrbios cognitivos:
Além de 1) não presumirmos que podemos diagnosticar distúrbios cognitivos, devemos 2) aprender a observá-los e nos atualizar constantemente em relação ao assunto e 3) ter cuidado com a forma a partir da qual nos referimos a eles, como seres humanos conscientes e profissionais da educação.
A dislexia: tipos
Do ponto de vista linguístico, existem três tipos de pessoas disléxicas: os disléxicos superficiais, os fonológicos e aqueles que apresentam dislexia profunda.
Na dislexia superficial, a pessoa consegue ler qualquer palavra desde que “ela se ajuste às regras grafema-fonema” (GODOY; SENNA, 2011, p. 41). Simplificando: elas se apegam à correspondência entre letra e som para ler.
“[...] esses disléxicos são incapazes de distinguir os homófonos, como sexta e cesta, e convertem palavras em pseudopalavras (palavras que não existem em sua língua). Os psicolinguistas interpretam essas dificuldades como uma leitura ‘fonológica’, baseada nos sons da fala, que interfere no acesso às representações ortográficas das palavras” (GODOY; SENNA, 2011, p. 41).
Já os disléxicos fonológicos têm dificuldades com palavras que são visualmente parecidas – o mecanismo fonológico se perde, mas a parte de acesso aos significados e à representação gráfica segue intacta.
Exemplo: Disléxicos fonológicos “apresentam dificuldades para ler palavras infrequentes e pseudopalavras e cometem erros visuais que os obrigam a substituir a palavra escrita por outra, visualmente semelhante e usada com maior frequência: por exemplo, a palavra conceito pode ser substituída por conselho.” (GODOY; SENNA, 2011, p. 41).
A dislexia profunda implica erros tanto de ordem gráfica quanto de ordem fonológica, ou seja,este tipo de disléxico pode ter dificuldades para ler classes inteiras de palavras, além dos problemas anteriormente mencionados.
A dislexia pode ser congênita, ou seja, nascer com a pessoa, mas também pode ser adquirida em condições não ideais – tais como a falta acidental de oxigenação do cérebro. Além disso, pode ser causada por fatores externos, sócio-culturais, tais como a TPM e o estresse acumulado (VERAS, 2012, p. 12).
Como vimos, a dislexia é um quadro tão complexo que, talvez, seja melhor nos referirmos a ‘dislexias’, enfatizando sua diversidade de causas e formas de apresentação.
Um dos problemas comuns para seu diagnóstico e tratamento é a quantidade de visões equivocadas a respeito de como essa condição se desenvolve e atua no indivíduo.
Exemplo: Há uma visão bastante comum entre leigos que reduz a dislexia ao fenômeno de troca de letras, quando, na maioria dos casos, o indíviduo disléxico não identifica os códigos que compôem um texto (VERAS, 2012, p. 12).
A dislexia: recomendações para professores
A pergunta que fica é: será que pela descrição das causas e tipos de dislexia já te ocorreram ideias de atividades que poderiam ajudá-los a desenvolver seu desempenho linguístico?
Como poderíamos estimular a atenção aos códigos envolvidos na leitura, considerando seus aspectos gráficos e fonológicos?
Se você pensou em jogos cognitivos, é isso mesmo. Mas alguns tipos de jogos favorecem o trabalho com as associações entre a parte gráfica e a parte fonológica do sistema linguístico.
E o melhor: não têm contraindicações, ou seja, beneficiarão seus alunos quer eles tenham sido diagnosticados ou não.
Neste vídeo do canal NeuroSaber, você verá uma lista de atividades específicas para o estímulo de alunos disléxicos. Disponível em: http://bit.ly/2M6CVe0. Acesso em: 31/10/2019.
Qualquer atividade que demande ações improvisadas – cujo foco sejam associações dos campos gráfico e fonológico da língua – costuma ajudar alunos disléxicos a trabalharem tanto seu ritmo quanto sua adequação de respostas.
No entanto, vale lembrar que a dislexia costuma gerar muita ansiedade, uma vez que, além dos possíveis sofridos por conta dessa condição, haverá claras diferenças de desempenho linguístico entre os alunos da sala.
“A ansiedade é um processo que antecipa reações futuras”. Pode estar presente em casos de dislexia, depressão e abuso de cafeína, entre outros. Indivíduos disléxicos podem ter medo de ‘serem descobertos’ ou de não se adaptarem, o que pode gerar um transtorno de ansiedade – “esse medo não passa sozinho, sem atenção especial” (ARAÚJO; ASSUNÇÃO, 2017, p. 6).
O cuidado no trabalho com a competitividade, que, possivelmente, já faz parte da vida de muitos alunos, é fundamental para que o professor não acabe gerando novos bloqueios.
Você se lembra de que uma das causas da dislexia temporária é o estresse? Pois bem. Um professor despreparado também pode se tornar um agente causador!
Ao mediar qualquer tipo de jogo ou atividade pedagógica, o estabelecimento de um ambiente seguro, em que o espírito de aprendizagem seja mais importante do que o estabelecimento de rankings e vencedores já é um passo muito importante no apoio a alunos disléxicos.
Outro ponto importante é como lidar com seu papel de auxiliador no encaminhamento para um possível tratamento. Muitas vezes, o professor é aquele que vai perceber (e defender!) que um aluno seja propriamente diagnosticado.
Mas como? Veja esta série de perguntas que podem ajudálo a identificar crianças com tendências disléxicas:
“A criança movimenta os lábios ou murmura ao ler? A criança movimenta a cabeça ao longo da linha? Sua leitura silenciosa é mais rápida que a oral ou mantém o mesmo ritmo de velocidade? A criança segue a linha com o dedo? A criança faz excessivas fixações do olho ao longo da linha impressa? A criança demonstra excessiva tensão ao ler? A criança efetua excessivos retrocessos da vista ao ler?” (MARTINS, 2019, p. 1).
Vale lembrar que, em alguns contextos educacionais brasileiros, você trabalhará com alunos que, mesmo sob indicação, não terão condições sócio-econômicas de passar pelo processo multidisciplinar de diagnóstico.
Isso torna ainda mais importante que, em caso de dúvida, trabalhe-se com atividades que possibilitem o desenvolvimento integral desses alunos.
Segundo a ABD (Associação Brasileira de Dislexia), há ainda uma série de orientações para educadores no que diz respeito a como avaliar alunos disléxicos.
Você acha que seus professores foram justos com você em relação à metodologia que adotavam para avaliações? O que você gostaria de repetir em sua sala de aula? O que faria de forma diferente? Como faria isso?
Como vimos, os ritmos de processamento linguístico são diretamente afetados por diversos fatores. Em sala de aula, cada aluno terá um ritmo particular de processamento que não pode ser interpretado apenas como falta de disciplina ou falta de vontade de aprender.
Exemplo: Situações de prova costumam ser estressantes para a maioria de nós. O estresse envolvido pode gerar efeitos disléxicos temporários, representados em falas como “Eu não conseguia focar no texto”, “Não consegui entender nenhuma palavra” ou “Me perdia a cada parágrafo”.
Figura 9
Fonte: Freepik
Para alunos diagnosticados como disléxicos, contextos de prova e leitura em voz alta (monitorada pelo professor e por seus colegas) pode ser ainda mais estressantes.
No entanto, a aplicação de provas e tarefas em separado, com o intuito de respeitar as diferenças, pode acabar tendo efeito contrário ao desejado.
Segundo a ABD, o disléxico deve ser tratado com naturalidade, pois é um aluno “como qualquer outro; apenas, disléxico. A última coisa para a qual o diagnóstico deveria contribuir seria para (aumentar) a sua discriminação.” Fonte: ABD. Disponível em: http://bit. ly/2rPhEyE Acesso em: 01/11/2019.
Se pretendemos, por exemplo, dar mais tempo para a realização de certas atividades, por que não transformar esse tipo de preocupação em um debate aberto com a turma, envolvendo as necessidades cognitivas de todos os seus integrantes?
Se todos somos diferentes, em termos de processamento linguístico, professores poderiam conscientizar seus alunos, disléxicos ou não, de que essa diferença existe, faz parte do fenômeno humano, e organizar maneiras produtivas para que qualquer aluno possa solicitar mais tempo ou ter espaço para ser ouvido quanto a suas necessidades.
Isso pode ser feito com a construção de regras de convivência em sala, negociadas com os alunos, e de mil e uma outras maneiras criativas.
O importante é nos lembrarmos de que, da mesma forma que para alguns alunos, encarar um texto pode ser um desafio maior, para outros sempre haverá outras questões de ordem cognitiva modelando seu ritmo de aprendizado.
Revise sua trajetória escolar, considerando tudo o que leu até agora. O que você consegue intuir acerca de seu próprio desenvolvimento cognitivo em sala de aula? De que maneiras ele foi facilitado ou dificultado? Você se lembra de alguma experiência gratificante em que estivesse especialmente engajado? Como ocorreu? Consegue se lembrar de algum colega para quem a mesma experiência fosse altamente frustrante? Consegue imaginar o porquê?
Você se lembra do que comentamos lá na introdução deste capítulo? Dissemos que a atenção ao desenvolvimento cognitivo dos alunos é parte da proposta expressa nos documentos oficiais que descrevem o currículo brasileiro.
Entre eles, podemos citar os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN) e a Base Nacional Comum Curricular (BNCC), criados para orientar professores em seus planejamentos de aula.
Os PCN e a BNCC são fruto da colaboração entre muitos pesquisadores, professores e membros da sociedade civil. O primeiro, mais antigo, influenciou bastante a ampliação de estratégias para a produção de materiais didáticos e metodologias aplicadas à sala de aula. A segunda entrou em vigor recentemente e parte de sua elaboração foi baseada em críticas feitas ao documento anterior.
Os dois documentos podem nos ajudarbastante na compreensão de como elaborar aulas considerando os aspectos cognitivos que viemos estudando até o momento e vamos revisálos em nosso próximo tópico.
Mesmo assim, como você já deve saber, ainda há muitas escolas que não conseguem se adaptar a propostas pedagógicas menos tradicionais, por conta de suas difíceis condições infraestruturais e das múltiplas jornadas de trabalho de seus professores.
Qual seria o papel do professor diante de condições não ideais de trabalho? Como você reagiria a contextos em que o desenvolvimento cognitivo dos alunos não fosse (ou não pudesse ser) priorizado como deveria?
Não esperamos que nenhum professor resolva todos os problemas do sistema de ensino brasileiro, nem que atue além de suas capacidades profissionais e das limitações de seu próprio desenvolvimento cognitivo.
No entanto, ainda podemos fazer bastante com muito pouco: uma simples mudança de atitude, como vimos, pode nos fazer considerar o jogo da forca como um poderoso aliado em sala de aula!
Cabe a nós estudarmos, nos atualizarmos e buscarmos fazer o máximo que pudermos em cada contexto escolar, lembrando que nosso papel é fundamental para construirmos mudanças.
Quer se aprofundar neste tema? Recomendamos o acesso à seguinte fonte de consulta e aprofundamento: Artigo – “Como interagir com o disléxico em sala de aula” (ABD, 2016), acessível pelo link: http://bit.ly/2rPhEyE Acesso em: 01/11/2019.
E então? Como foi sua experiência aprendendo a identificar e colaborar com a solução de problemas de aprendizado? Vamos checar até que ponto você entendeu o que estivemos discutindo? Está na hora de resumirmos tudo o que vimos, destacando os pontos mais importante deste tema. Você deve se lembrar de que a Psicolinguística é uma das áreas que mais contribui para o entendimento de problemas de aprendizagem. Vimos que sua vertente desenvolvimentista dedica-se à aquisição (estudo da competência linguística inata) e sua vertente experimental dedica-se ao processamento linguístico (com foco em nosso desempenho, ou seja, em ações pós-aquisição). Também vimos que um dos modos de investigação da Psicolinguística Experimental é o rastreamento de nossos movimentos oculares, o que contribui bastante para a compreensão de como lemos e, além disso, ajuda-nos a entender como alunos com dificuldades de aprendizagem processam textos verbais, visuais e verbovisuais. Logicamente, a literatura técnica nesta área embasa boa parte das pesquisas sobre problemas cognitivos relacionados à linguagem como afasias, bifasias, neurodivergências e a dislexia. Você deve se lembrar de que nosso foco foi a identificação de padrões disléxicos em futuros alunos e as formas a partir das quais podemos trabalhar com eles em sala de aula. Para nossa sorte, boa parte das recomendações sobre como lidar com a dislexia em sala de aula são aplicáveis e favorecem o desenvolvimento cognitivo de qualquer tipo de aluno. Dentre elas, vimos a importância de jogos cognitivos – dos mais simples aos mais sofisticados – que estimulem as relações entre componentes gráficos e sonoros do texto e as práticas de improviso. Acima de tudo, destacamos a importância de um planejamento que considere os ritmos únicos de cada indivíduo no processamento linguístico, atitude prevista pelos documentos curriculares oficiais no Brasil. A partir dessa atitude, seremos verdadeiramente capazes de incluir nossos alunos, sejam eles disléxicos ou não.
Planejando aulas com base nos estudos cognitivos
Antes de começarmos a planejar aulas, implementando tudo o que vimos sobre desenvolvimento cognitivo e inclusão, precisamos conhecer os documentos que norteiam a prática docente no Brasil.
Esses documentos são conhecidos como currículos nacionais e o que os torna oficiais é o fato de terem sido emitidos pelo Ministério da Educação (MEC).
O estabelecimento de currículos nacionais não é uma invenção brasileira. Trata-se de uma prática comum, adotada por boa parte dos países no mundo.
Nosso foco, neste tópico, não será o de apresentar os documentos na íntegra, mas de ver o que eles têm a nos dizer no que diz respeito à implementação das teorias linguísticocognitivas na sala de aula.
Interessado? Pois, então, vamos lá!
Os documentos curriculares no Brasil
Em nosso país, existem dois documentos que orientam quanto ao currículo nacional a ser adotado por todas as escolas: os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN) e a Base Nacional Comum Curricular (BNCC).
Cada estado e município emite, periodicamente, documentos próprios de orientação curricular. Nem sempre esses documentos são metodológicamente afinados com a proposta das orientações nacionais.
Como as palavras “parâmetros” e “base” sugerem em seus títulos, cada documento traz orientações que devem ser adaptadas não apenas à realidade de cada região e cidade, mas também à realidade específica de cada escola.
A responsabilidade pela adaptação de currículos mais abrangentes à realidade de cada escola é do coordenador pedagógico. Você, como futuro professor, terá a responsabilidade de adaptá-los à realidade de cada turma em que lecionar.]]
Os PCN são, na realidade, compostos por uma série de documentos lançados ao longo de cinco anos. Em 1998, foram lançados os textos referentes ao terceiro e quarto ciclo da educação básica (do sexto ao nono ano). No ano 2000, foram lançados os primeiros textos referentes ao ensino médio.
Duas das inovações propostas pelos PCN foram: 1) a elaboração de um documento inteiramente dedicado a temas que deveriam ser trabalhados em conjunto por todas as disciplinas, incluindo a pluralidade cultural, que já discutimos aqui. Foram denominados de temas transversais; 2) a proposta de trabalho integrado em linguagens para o ensino médio, incluindo as disciplinas de Língua Portuguesa, Língua Estrangeira, Artes, Educação Física e Informática. Esta área foi denominada de Linguagens, Códigos e suas Tecnologias.
Como você já deve ter percebido, essas duas inovações estão alinhadas tanto às relações entre cultura e linguagem que estudamos anteriormente, quanto à necessidade que vimos de oferecer propostas integradas para estímulo do potencial cognitivo dos alunos.
Com a implementação dos PCN, começaram a surgir críticas, levadas em consideradas para a confecção da Base Nacional Comum Curricular (BNCC).
A crítica mais comum aos PCN da área de línguas era de que enfatizavam demais a modalidade escrita (ALMEIDA, 2012). Por isso, a BNCC traz objetivos detalhados e pontuais a serem trabalhados, em eixos relacionados às quatro habilidades comunicativas – fala, escuta, leitura e escrita – além de habilidades sócio-culturais.
A BNCC entrou em vigor em janeiro de 2019 e, embora seja o documento mais atual, não podemos desconsiderar o estudo dos PCN, uma vez que há muitas continuidades entre uma proposta e a outra.
A partir de agora, vamos ver como esses dois documentos podem nos ajudar a planejar aulas que respeitem o desenvolvimento cognitivo integral dos alunos.
Aspectos cognitivos nos PCN
Os PCN utilizam o termo ‘competência’ para se referir a conjuntos de habilidades que os alunos apresentam e/ou precisam desenvolver, assim como nos utilizamos para a organização de sua aprendizagem nesta disciplina. Este uso do termo ‘competência’ não deve ser confundido com a habilidade inata a que Chomsky se referiu quando descrevia sua ‘competência linguística’.
Um dos pontos em que os PCN se aproximam dos estudos linguístico-cognitivos é sua proposta para o lidar com a gramática.
Figura 10: Gramática nos PCN
Fonte: A autora
Você se lembra de como a noção chomskiana de competência linguística mudou nosso jeito de entender a gramática? Veja, então:
“Antes de abordar a questão do ensino de gramática, é preciso aceitar haver, pelo menos, duas noções diferentes de gramática. Uma, mais estática e externa ao indivíduo, que corresponde a ‘um conjunto de descrições a respeito de uma língua’ (LOBATO, 2003), e outra, dinâmica e interna ao indivíduo, que é capaz de explicar ‘o caráter criativo do uso das línguas naturais’(LOBATO, 2003) e corresponde ao conhecimento linguístico que o estudante traz como bagagem, isto é, como conhecimento prévio, para a escola” (VICENTE; PILATI, 2012, p.7).
Nos PCN, uma das indicações sobre o trabalho com gramática em língua portuguesa diz o seguinte:
“[...] aspectos gramaticais – e outros discursivos como a pontuação – devem ser selecionados a partir das produções escritas dos alunos [...]. Isso não significa que não é para ensinar fonética, morfologia ou sintaxe, mas que elas devem ser oferecidas à medida que se tornarem necessárias para a reflexão sobre a língua” (PCN, 2000, p. 90).
Você consegue imaginar a polêmica que este trechinho causou à época de seu lançamento? Não? Porque foi grande! Na verdade, até hoje, a visão proposta por este parágrafo ainda provoca acalorados debates.
O que você acha de um currículo que propõe que os aspectos gramaticais devem ser trabalhados a partir da produção dos alunos e à medida que se tornarem necessários? Acha radical demais? O que este trecho significa para você? Você acha que seus professores de língua portuguesa na escola adotaram a perspectiva dos PCN?
Muita gente entendeu (e ainda entende) este trecho como um convite a não ensinar a norma culta, embora os próprios autores digam que não é disso que se trata.
Talvez, a confusão esteja baseada no fato de que algumas pessoas não sabem a diferença entre gramática internalizada (competência linguística inata) e aquilo que estamos acostumados a chamar de gramática na escola (a língua/norma culta).
O convite implícito no texto apenas nos pede que repensemos a metodologia utilizada no ensino de língua portuguesa, ou seja, que os aspectos gramaticais sejam trabalhados considerando as necessidades de produção textual dos diferentes alunos presentes em sala e não apenas como uma lista descontextualizada de tarefas repetitivas que têm valor em si mesmas (conhecimento externalizado).
Se você acha que essa visão tem tudo a ver com o que estudamos nos tópicos anteriores, acertou em cheio!
A ideia é evitar tarefas repetitivas e memorização de estruturas, classificações, etc., focalizando a integração entre os conhecimentos que o aluno já tem e aqueles que precisa aprender.
Já reparou que, em âmbitos mais tradicionais de ensino, a aula de gramática parece estar ‘separada’ de alguma forma dos outros tipos de trabalho com as línguas? É como se ‘interpretação de textos’ fosse uma coisa, ‘redação’ fosse outra, ‘gramática’ fosse uma terceira coisa e, dependendo da escola, ‘literatura’ fosse uma quarta subárea. Mas qual é o objetivo da escola? Não seria que todos esses conhecimentos se integrassem para que os alunos falassem, ouvissem (interpretando), lessem e escrevessem textos melhor? Que se comuniquem melhor, de maneira geral?
Figura 11: Integração nas aulas de língua portuguesa
Fonte: A autora
Já sabemos que tarefas integradas – engajando o aluno e seus múltiplos sentidos – facilitam o desenvolvimento linguístico-cognitivo e que isso se aplica, também, a alunos com diferentes problemas de aprendizado.
O que fica faltando, para completar nosso raciocínio, é entender que um trabalho com a norma culta que desconsidere os conhecimentos prévios do aluno, incluindo sua gramática internalizada, dificulta o processamento cognitivo.
Leia este outro trecho, também extraído dos PCN:
“Com o deslocamento do eixo da investigação das questões do ensino para as questões da aprendizagem, foi possível compreender que as crianças sabiam muito mais do que se poderia supor até então, que elas não entravam na escola completamente desinformadas, que possuíam um conhecimento prévio” (PCN, 2000, p. 20).
É comum que, ao ler esse trecho, professores planejem suas aulas buscando conhecer melhor os alunos, saber de onde vêm, do que gostam e quais questões de identidade trazem para a sala de aula.
Tudo isso é muito bom e ajuda no trabalho com a linguagem. Mas, além desse tipo de aspecto cultural, devemos nos lembrar de que as crianças também trazem à escola suas próprias intuições sobre o que é ou não gramatical na língua.
E como um professor pode utilizar esse conhecimento? Como planejar aulas que contemplem a gramática internalizada com que todos nascemos?
O trecho de redação acima foi escrito por um aluno real, não identificado, e publicado por uma reportagem especial do jornal O Estado de São Paulo (01/10/2000). A matéria trazia uma compilação de redações sob o tema a “falta de base em português afeta tudo” (POSSENTI, 2009, pp. 96)
Também dizia que “Os meninos não sabem o que estão falando”, “Alguns reproduzem na escrita o som que escutam” e “Não se consegue entender o que eles escrevem, tal a confusão mental a que chegaram e a incapacidade de se expressarem de forma compreensível” (POSSENTI, 2009, pp. 96-97).
Releia a redação apresentada. Certamente, ela não está de acordo com o padrão da norma culta. Mas será que ela é incoerente? Indicativo de ‘confusão mental’? Este tipo de colocação não seria também uma forma de determinismo linguístico?
Podemos dizer que a redação acima se atém ao tema, defende seu ponto de vista a partir de trechos narrativos e ilustrações caprichadas. Está escrita em português, de forma que conseguimos compreendê-la sem grandes dificuldades.
O texto do aluno também demonstra que ele: 1) trabalha com a estrutura sujeito + verbo + objeto; 2) utiliza conectivos (‘Aí’, ‘e’); 3) sabe formar frases afirmativas, negativas e interrogativas; 4) sabe usar marcações de acento agudo; 5) opera os tempos verbais do pretérito e do presente; 6) utiliza o discurso direto, marcando-o com pontuação (: ) e flexões verbais
Considerando a proposta dos PCN e o que vimos em relação à competência linguística, podemos dizer que os aspectos gramaticais mencionados acima não precisam ser ensinados.
Exemplo: Se o aluno utiliza conectivos baseados em sua própria vivência cultural (‘Aí’, ‘e’), aproveitaríamos a oportunidade para apresentar outra opções de conectivo, como as conjunções associadas à norma culta, e discutir a diferença que fariam no texto. O mesmo valeria para adjuntos e outros recursos gramaticais de coesão. A frase ‘Aí ou tro tiro arma do bolso e atiro’ poderia ser reapresentada como ‘Então o outro tirou a arma do bolso e atirou’ ou em versões iniciadas por ‘Logo’, ‘Naquele momento’, ‘Foi nessa hora’, etc.
Obviamente, há muitos temas gramaticais que podem ser explorados a partir do texto apresentado.
Caberia a você escolher o foco, considerando seus objetivos para a turma como um todo, o currículo, entre outras questões de administração de seu tempo.
Exemplo: Dinâmicas a partir de trechos de textos dos alunos podem ser realizadas com envolvimento de toda a turma e não requerem nada mais do que as salas de aula normalmente disponibilizam. Os trechos podem ser escritos no quadro e escolhidos de acordo com os pontos que se deseja trabalhar.
Talvez você esteja pensando que os resultados desse tipo de proposta são de longuíssimo prazo e está certo em pensar assim.
Como você ‘daria a matéria toda’ se fosse se dedicar de forma tão pontual a contextualizar seus ensinamentos em gramática a partir dos textos de cada aluno?
Sabemos que, muitas vezes, professores são cobrados no sentido de ‘dar a matéria’ ou ‘terminar o livro’ por parte de seus superiores, dos próprios alunos e de seus pais. No entanto, pense sobre quantas vezes você estudou um conteúdo sem aplicá-lo (talvez passando em uma prova, mas não se lembrando dele depois). Não seria mais fácil envolver os alunos integralmente em reflexões sobre sua própria produção? Indo além, não é justamente disso que eles precisam, já que seu diagnóstico viria dos próprios textos deles?
Talvez, seja melhor desacelerarmos um pouco – o que combina bem com a noção de que cada aluno tem seu próprio ritmo de desenvolvimento cognitivo.
Em última análise, quando estamos em sala de aula, servimos aos alunos e o resto apenas apoia esse processo, não é? Falando em apoio, você reparou que há traços possivelmente disléxicos na redação que estávamos comentando?

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