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Autores: Profa. Adriana Taveira da Cruz Peres Prof. Alexandre Torchio Dias Profa. Gabriela Pintar de Oliveira Colaboradores: Prof. Flávio Buratti Gonçalves Profa. Marília Tavares Coutinho da Costa Patrão Bioengenharia e Biotecnologia Aplicada à Biomedicina Professores conteudistas: Adriana Taveira da Cruz Peres / Alexandre Torchio Dias / Gabriela Pintar de Oliveira Adriana Taveira da Cruz Peres Licenciada em Ciências e bacharela em Ciências Biológicas, em 2007 e 2008, respectivamente, pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. Mestre (2010) e Doutora (2015) em Ciências pelo programa de pós-graduação de Microbiologia e Imunologia da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), com doutorado sanduíche na Queen’s University, Kingston Canadá (2012). Professora titular na Universidade Paulista (UNIP). Alexandre Torchio Dias Doutor em Ciências na área de Citogenômica pelo Programa de Patologia pela FMUSP (2015); especialista em Administração Hospitalar pelo IPESSP/Unicid (2011); especialista em Genética Médica e Citogenética pelo IAMSPE (2004); graduado em Ciências Biológicas/Modalidade Médica (Bacharel em Biomedicina) pela Universidade de Mogi das Cruzes (2002). Professor titular da Universidade Paulista (UNIP). Gabriela Pintar de Oliveira Graduada em 2008 em Ciências Biológicas, modalidade médica, pela Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). Doutora em ciências (2014) na subárea Neurociência pela Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP). Pós-doutora na área de Neurociência (2016) pelo A.C. Camargo Cancer Center. Desde 2016, professora titular na Universidade Paulista (UNIP). © Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida ou transmitida por qualquer forma e/ou quaisquer meios (eletrônico, incluindo fotocópia e gravação) ou arquivada em qualquer sistema ou banco de dados sem permissão escrita da Universidade Paulista. Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) P437b Peres, Adriana Taveira da Cruz. Bioengenharia e Biotecnologia Aplicada à Biomedicina / Adriana Taveira da Cruz Peres, Alexandre Torchio Dias, Gabriela Pintar de Oliveira. – São Paulo: Editora Sol, 2021. 260 p., il. Nota: este volume está publicado nos Cadernos de Estudos e Pesquisas da UNIP, Série Didática, ISSN 1517-9230. 1. Biotecnologia. 2. Nanotecnologia. 3. Bioinformática. I. Peres, Adriana Taveira da Cruz. II. Dias, Alexandre Torchio. III. Oliveira, Gabriela Pintar de. IV. Título. CDU 663.1 U510.83 – 21 Prof. Dr. João Carlos Di Genio Reitor Prof. Fábio Romeu de Carvalho Vice-Reitor de Planejamento, Administração e Finanças Profa. Melânia Dalla Torre Vice-Reitora de Unidades Universitárias Profa. Dra. Marília Ancona-Lopez Vice-Reitora de Pós-Graduação e Pesquisa Profa. Dra. Marília Ancona-Lopez Vice-Reitora de Graduação Unip Interativa – EaD Profa. Elisabete Brihy Prof. Marcello Vannini Prof. Dr. Luiz Felipe Scabar Prof. Ivan Daliberto Frugoli Material Didático – EaD Comissão editorial: Dra. Angélica L. Carlini (UNIP) Dr. Ivan Dias da Motta (CESUMAR) Dra. Kátia Mosorov Alonso (UFMT) Apoio: Profa. Cláudia Regina Baptista – EaD Profa. Deise Alcantara Carreiro – Comissão de Qualificação e Avaliação de Cursos Projeto gráfico: Prof. Alexandre Ponzetto Revisão: Giovanna Oliveira Jaci Albuquerque Kleber Souza Sumário Bioengenharia e Biotecnologia Aplicada à Biomedicina APRESENTAÇÃO ......................................................................................................................................................9 INTRODUÇÃO ...........................................................................................................................................................9 Unidade I 1 FUNDAMENTOS DA BIOTECNOLOGIA ...................................................................................................... 11 1.1 Histórico da biotecnologia ............................................................................................................... 11 1.1.1 Biotecnologia antiga (pré-1800) ...................................................................................................... 12 1.1.2 Biotecnologia clássica ........................................................................................................................... 14 1.1.3 Biotecnologia moderna ........................................................................................................................ 17 2 PRINCÍPIOS DA BIOTECNOLOGIA MOLECULAR E ENGENHARIA GENÉTICA............................. 18 2.1 Tecnologia do DNA recombinante ................................................................................................. 18 2.1.1 Enzimas de restrição .............................................................................................................................. 22 2.1.2 Vetores para clonagem: plasmídeos, bacteriófagos, cosmídeos e cromossomos artificiais ................................................................................................................................... 36 2.1.3 Inserindo o DNA na célula .................................................................................................................. 51 2.1.4 Mecanismo de seleção .......................................................................................................................... 60 2.1.5 Bibliotecas de genes .............................................................................................................................. 71 2.1.6 A tecnologia do DNA recombinante e o cotidiano ................................................................... 76 2.1.7 CRISPR/Cas 9 ............................................................................................................................................ 81 3 MÉTODOS DE PURIFICAÇÃO E SEPARAÇÃO DE PROTEÍNAS RECOMBINANTES ..................... 85 3.1 Centrifugação ........................................................................................................................................ 86 3.1.1 Salting-out ................................................................................................................................................ 92 3.2 Cromatografia ........................................................................................................................................ 97 3.3 Eletroforese em gel ............................................................................................................................106 3.4 Eletroforese bidimensional (ou eletroforese-2D) ..................................................................114 4 CULTURA DE CÉLULAS, CÉLULAS-TRONCO E OGM .........................................................................117 4.1 Cultura de células ...............................................................................................................................117 4.1.1 Cultura de células aderentes e não aderentes .......................................................................... 118 4.1.2 Cultura de células primárias ............................................................................................................ 120 4.1.3 Células tumorais ................................................................................................................................... 124 4.1.4 Linhagens celulares ............................................................................................................................. 126 4.2 Células-tronco .....................................................................................................................................128 4.2.1 A biologia das células-tronco ......................................................................................................... 130 4.2.2 A divisão funcional das células-tronco........................................................................................1314.2.3 As células-tronco de pluripotência induzida (iPSC) .............................................................. 135 4.2.4 Ensaio de formação de teratoma .................................................................................................. 137 4.2.5 Diferenciação dirigida ........................................................................................................................ 137 4.2.6 Célula-tronco como modelo para teste farmacológico ....................................................... 138 4.2.7 Terapia com células-tronco ............................................................................................................. 138 4.3 OGM .........................................................................................................................................................139 4.4 Biossegurança em biotecnologia .................................................................................................152 4.4.1 Biossegurança relacionada aos microrganismos geneticamente modificados .......... 157 Unidade II 5 VACINAS E NANOTECNOLOGIA ................................................................................................................164 5.1 Vacinas ....................................................................................................................................................164 5.1.1 Tecnologia da produção de soros e vacinas .............................................................................. 164 5.1.2 Mecanismos do sistema imune inato .......................................................................................... 169 5.1.3 Mecanismo da imunidade adaptativa ......................................................................................... 172 5.1.4 O que é vacina? .................................................................................................................................... 176 5.1.5 Tipos de imunização ........................................................................................................................... 178 5.1.6 Tipos de vacinas .................................................................................................................................... 179 5.1.7 Por que usar um adjuvante para algumas vacinas? .............................................................. 182 5.1.8 Desenvolvimento de vacinas ........................................................................................................... 183 5.1.9 Vacinas terapêuticas ........................................................................................................................... 186 5.1.10 Desenvolvimento de soros ............................................................................................................. 187 5.2 Nanotecnologia ...................................................................................................................................188 5.2.1 História e desenvolvimento de nanomateriais ........................................................................ 189 5.2.2 Os nanomateriais e seu uso na área da saúde ......................................................................... 190 5.2.3 Lipossomos ............................................................................................................................................. 192 5.2.4 Nanopartículas lipídicas sólidas ..................................................................................................... 195 5.2.5 Micelas ..................................................................................................................................................... 196 5.2.6 Nanopartículas poliméricas ............................................................................................................. 196 5.2.7 Nanopartículas de albumina ........................................................................................................... 197 5.2.8 Nanopartículas em cosméticos ...................................................................................................... 197 6 SEQUENCIAMENTO AUTOMATIZADO DE ÁCIDOS NUCLEICOS: A REVOLUÇÃO DA BIOTECNOLOGIA E A COMPREENSÃO DETALHADA DAS FERRAMENTAS “OMICS” .................199 6.1 Métodos de sequenciamento de ácidos nucleicos ...............................................................201 6.1.1 Sequenciamento capilar – método de Sanger .........................................................................201 6.1.2 Sequenciamento genético de segunda geração ..................................................................... 203 6.1.3 Sequenciamento genético de terceira geração ....................................................................... 204 6.2 Aplicações do sequenciamento genético em humanos, plantas e microrganismos .......................................................................................................................................205 6.2.1 O microbioma intestinal e a saúde humana ............................................................................. 205 6.2.2 O uso do DNA fingerprint na identificação humana ............................................................ 206 6.2.3 O câncer e os novos testes genéticos .......................................................................................... 208 6.2.4 Farmacogenômica e os fármacos inteligentes ......................................................................... 211 6.2.5 A nutrigenética e a nutrigenômica a serviço da saúde ........................................................214 7 A BIOINFORMÁTICA E O ESTUDO DAS VARIANTES GENÔMICAS ...............................................218 7.1 Como realizar a análise de uma variante em bancos de dados genômicos?.............221 7.2 Tipos de bancos de dados genômicos ........................................................................................222 8 A BIOTECNOLOGIA NO PROCESSAMENTO DE BIOMATERIAIS E EQUIPAMENTOS BIOMÉDICOS .....................................................................................................................227 8.1 Equipamentos biomédicos, a interface laboratorial e a gestão da informação laboratorial ..........................................................................................................................228 9 APRESENTAÇÃO Este livro-texto possui um texto didático dirigido primordialmente para a fundamentação básica do estudante, objetivando proporcionar o uso racional de horas de estudo, consolidação dos conhecimentos teóricos que servirão de subsídio para outras disciplinas a serem cursadas adiante no curso. A organização do presente material segue uma estrutura de apresentação de conceitos de forma a facilitar o aprendizado, obedecendo também àquela utilizada nas aulas presenciais. Os tópicos contemplam os aspectos que envolvem conceitos fundamentais em bioengenharia. Dessa forma, primeiramente falaremos sobre histórico e definição de bioengenharia. Depois, serão abordados aspectos básicos sobre engenharia genética, cultivo de células e transgenia. Adiante, o estudo estará mais voltado para células-tronco e os aspectos de biossegurança relacionados à utilização de ferramentas de bioengenharia. Além disso, serão exibidos os conceitos e métodos de fabricação de soros e vacinas. Por fim, serão tratados temas como sequenciamento genético, aplicações desta técnica na saúde, técnicas de nanotecnologia e produção de biomateriais. Desta forma, ao final da leitura deste livro-texto, você, aluno, deverá ser capaz de compreender os principais conceitos envolvendo DNA recombinante, cultura celular, técnicas de transgenia, vacina e sequenciamento. Além disso, você, estudante, deverá estar a par dos principais aspectos referentes à biossegurança e produção de biomateriais, assim como desenvolver habilidades dentro do campo da bioinformática, uma vez que esta vem sendo utilizada como ferramenta valiosadentro da biotecnologia. Boa leitura! INTRODUÇÃO Reparou quantos temas relacionados à bioengenharia fazem parte do nosso cotidiano? Isso engloba desde algumas medicações produzidas por tecnologia do DNA recombinante, como a insulina humana recombinante utilizada para tratamento de pessoas com diabetes, até os produtos contendo plantas transgênicas nas prateleiras do supermercado. Podemos citar, ainda, as vacinas utilizadas para prevenção de diversas doenças e os testes diagnósticos que são realizados utilizando sequenciamento de nova geração. Vamos estudar esses temas nesta disciplina, cujo objetivo é apresentar conceitos básicos relacionados à bioengenharia e biotecnologia. O desafio principal é aplicar os conceitos aprendidos em biologia molecular, para que então seja possível entender os avanços alcançados nesta grande área. A aplicabilidade do conhecimento científico associado ao avanço tecnológico permitiu o desenvolvimento de estratégias que foram cruciais para o aumento da expectativa e melhoria na qualidade de vida dos indivíduos. O presente material de estudo foi produzido considerando a profundidade necessária e suficiente para, além de fornecer um alicerce adequado à formação de estudantes que exercem pensamento crítico, instigar neles a curiosidade em relação aos novos desafios da sociedade que poderão ser solucionados com a aplicação do conhecimento da biotecnologia. 11 BIOENGENHARIA E BIOTECNOLOGIA APLICADA À BIOMEDICINA Unidade I 1 FUNDAMENTOS DA BIOTECNOLOGIA O termo biotecnologia se refere ao uso de sistemas biológicos, tais como células ou tecidos, e moléculas derivadas, como as enzimas, para produção de produtos comerciais. Ela modificou a forma como nos alimentamos, produzimos medicamentos, organizamos indústrias e nos relacionamos com os animais. Também permitiu a criação de alternativas para uma forma de vida mais sustentável e menos agressiva para o meio ambiente. 1.1 Histórico da biotecnologia A biotecnologia se desenvolveu a partir de observações e das aplicações destas observações em um cenário prático, conforme as necessidades das pessoas em um determinado contexto, com intuito de solucionar problemas e contribuir com a melhoria de produtos e serviços. O aumento de sua complexidade se deu com a evolução de novas tecnologias associada à expansão do conhecimento científico. Embora o termo biotecnologia tenha sido cunhado pela primeira vez em 1919, pelo engenheiro agrônomo húngaro Karl Ereky, e se popularizado posteriormente, técnicas de biotecnologia já haviam sido registradas séculos antes. A história da biotecnologia pode ser dividida em três grandes categorias – antiga, clássica e moderna – organizadas de acordo com a tecnologia e conhecimento científicos vigentes. Como toda a transição histórica, é difícil determinar um único evento que marca a mudança da biotecnologia antiga para biotecnologia clássica e sucessivamente da clássica para moderna, sendo estas resultado de acúmulo de eventos importantes. Difícil prever Projeto genoma humano Clonagem Transgênicos PCR Anticorpos monoclonais Estrutura do DNA Genética, vacinas e antibióticos Fermentação, domesticação de plantas e animais Aonde chegaremos? Antiga Clássica Moderna Categorias Ev en to s Figura 1 – História do desenvolvimento da biotecnologia. Algumas descobertas importantes da biotecnologia estão representadas na imagem, com a possibilidade de crescimento ilimitado no futuro 12 Unidade I 1.1.1 Biotecnologia antiga (pré-1800) A base da biotecnologia antiga está sedimentada nas observações da natureza, que podiam ser colocadas em teste e levar à melhoria da vida. Alimento, vestuário e abrigo correspondiam às maiores necessidades dos seres humanos, independentemente do local em que vivam. O homem primitivo era caçador-coletor, no entanto, há cerca de 10 mil anos, estes começaram a dedicar tempo e esforço para cultivar e criar espécies de plantas e animais. A revolução agrícola permitiu uma maior abundância de grãos e carnes à medida que o homem preparava o solo, espalhava sementes, aguava plantas, arrancava ervas daninhas e conduzia ovelhas a pastos escolhidos. O cultivo do trigo possibilitou maior quantidade de alimento por unidade de território e favoreceu o crescimento populacional. Enquanto o homem aprendia técnicas relacionadas à domesticação de plantas e animais, acumulou conhecimento que foi necessário para o desenvolvimento da biotecnologia. Fatores como água, luz, estações do ano, período lunar foram reconhecidos como importantes no crescimento de plantações, e o cruzamento específico entre certos animais acarretava linhagens mais saudáveis ou com alguma característica desejável. É provável que os seres humanos tenham mudado a constituição de rebanhos conforme conduziam uma seleção mais cuidadosa das ovelhas para adaptá-las às suas necessidades. Animais mais agressivos, magros e desobedientes eram abatidos primeiro, e a cada geração as ovelhas se tornavam mais gordas e submissas. Paralelamente, foram criados métodos para armazenamento e preservação de alimentos, envolvendo desde a criação de recipientes até a utilização de cavernas frias. Os queijos podem ser considerados um dos primeiros produtos derivados da biotecnologia. O período e o local exato de sua produção não são conhecidos, mas possivelmente coincidem com a domesticação de animais produtores de leite, primariamente, as ovelhas, entre 8.000 e 10.000 anos atrás. A sua fabricação é mencionada na mitologia grega, e registros de sua manufatura foram encontrados em murais de túmulos egípcios que datam de mais de 4.000 anos. É provável que os queijos tenham sido descobertos acidentalmente pela prática de armazenar leite em recipientes feitos de estômago de animais. No estômago de ruminantes encontra-se o coalho, contendo enzimas que promovem a coagulação do leite, separando-o em coalhada e soro, processo fundamental na produção deste alimento. Outras explicações para a descoberta do queijo envolviam o hábito de salgar o leite fermentado, com objetivo de conservação, ou a adição de sucos de frutas ácidas, que também resultaria em coagulação. Observação O coalho é a denominação utilizada para as enzimas obtidas do quarto estômago de ruminantes. Neste extrato animal existem duas enzimas principais: a quimosina (também conhecida como renina) e a pepsina. A quimosina apresenta ação proteolítica capaz de hidrolisar ligações peptídicas da caseína do leite, promovendo a sua coagulação. Este processo é utilizado na produção do queijo, no entanto, a quantidade de enzima que se consegue obter dos bezerros é inferior às exigências de mercado. Atualmente, técnicas de manipulação genética possibilitaram a 13 BIOENGENHARIA E BIOTECNOLOGIA APLICADA À BIOMEDICINA introdução de genes de ruminantes em microrganismos (Kluyveromyces lactis, Aspergillus niger var awamori, Escherichia coli) que funcionam como verdadeiras fábricas na produção da quimosina. A origem do pão, assim como do queijo, também não é precisa, sendo a primeira mais antiga que a segunda. Evidências sugerem que a preparação de produtos semelhantes ao pão por caçadores-coletores natufianos remontam a 4.000 anos antes do surgimento do modo de vida agrícola neolítico. Ancestrais selvagens dos cereais domesticados e tubérculos possivelmente constituíam sua matéria-prima. A massa resultante do preparo era aquecida em rocha ou nas brasas de uma fogueira. Inicialmente, não se utilizava leveduras na confecção, resultando em um pão achatado (flatbread), denso, difícil de mastigar e digerir. Refeições à base de cereais, como pão, provavelmente se tornaram comuns quando os agricultores neolíticos começaram a cultivar extensamente espécies de cereais domesticadas para sua subsistência. Aos egípcios são creditados os primeiros pães feitos com levedura. A fermentação alterou completamente seu caráter, deixando-o macio, leve e cheio de ar. Considera- se que esporos de leveduras oriundos do ar tenham caídona massa do pão. A levedura consome os açúcares presentes na massa com intuito de produzir energia (ATP) e, como subproduto deste metabolismo, libera gás carbônico e álcool. O gás carbônico promove o crescimento da massa enquanto o álcool é evaporado durante o processo de aquecimento. Os egípcios também construíram os primeiros fornos, necessários para assar o novo pão aerado. Os princípios da fabricação deste produto são utilizados até hoje. Figura 2 – Etapas envolvidas na fermentação alcóolica de Saccharomyces cerevisiae. As enzimas da via, assim como seus intermediários, estão destacados na figura. No final do processo, ocorre liberação de etanol e gás carbônico (CO2). Este último é o responsável pelo crescimento do pão 14 Unidade I A levedura é um dos microrganismos mais explorados pelos seres humanos. Tem sido utilizado amplamente para produção de pão, vinagre e outros produtos de fermentação, que incluem as bebidas alcoólicas como vinho, saquê e cerveja. Historicamente, o vinagre tinha uma importância significativa, devido ao seu baixo pH (acidez), era usado para preservação de alimentos. Outras fermentações microbianas foram empregadas para tornar certas plantas comestíveis. A fermentação da semente de cacau promove a liberação de produtos microbianos que conferem o sabor do chocolate. As descobertas e benefícios em relação à fermentação levaram as pessoas a trabalharem em melhorias adicionais, ainda que os princípios científicos que regiam este processo fossem desconhecidos. Em relação aos animais, um dos exemplos mais antigos de cruzamento para o benefício dos seres humanos é a mula. Esse mamífero foi empregado para transporte e agricultura, quando não havia tratores ou caminhões. Mulas são provenientes do cruzamento entre um burro macho e uma égua. 1.1.2 Biotecnologia clássica A biotecnologia clássica compreende entre 1800 até aproximadamente metade do século XX. Enquanto a biotecnologia antiga foi fundamentada em observações empíricas e suas aplicações, a biotecnologia clássica desenrolou-se em um período em que foram estabelecidas explicações científicas para diversos fenômenos, contribuindo para a melhoria dos produtos e serviços até então desenvolvidos. Por exemplo, os processos de fermentação foram elucidados, sendo possível alcançar níveis industriais. Além disso, o conhecimento gerado permitiu o desenvolvimento de novos produtos que mudaram a história, como as primeiras vacinas e antibióticos. Louis Pasteur, um renomado cientista francês, em 1857, determinou que microrganismos eram responsáveis pela fermentação. Este achado permitiu o estabelecimento de indústrias biotecnológicas, no início dos anos de 1900, que usaram a fermentação na manufatura em larga escala de produtos relacionados com alimentos, como ácido láctico a partir de laticínios, e etanol a partir da cerveja. Produtos químicos orgânicos, não relacionados com a indústria alimentícia, como acetona e butanol, também foram produzidos. Chaim Weizmann, um químico nascido na Rússia, na tentativa de resolver os problemas de escassez de munição sofridos pela Inglaterra durante a Primeira Guerra Mundial, descobriu como produzir acetona a partir da fermentação do amido. A acetona foi usada como matéria-prima para produção de produtos explosivos. Depois da Guerra, este processo forneceu meios para fabricação de solventes usados nas tintas da crescente indústria automobilística. Durante a Segunda Guerra Mundial, técnicas sofisticadas de fermentação em massa foram usadas na produção da penicilina. O primeiro antibiótico produzido por processos de biotecnologia do mundo, a penicilina, foi descoberta ao acaso, pelo bacteriologista Alexander Fleming, ao identificar que placas de Petri contaminadas com fungo impediam o crescimento de bactérias. Após isolar o fungo e identificá-lo como pertencente ao gênero Penicillium, Fleming obteve um extrato, nomeando seu agente ativo de penicilina. Ele determinou que a substância tinha um efeito antibacteriano nos estafilococos e outros patógenos gram-positivos. Embora Fleming tenha publicado a descoberta da penicilina no British Journal of Experimental Pathology em 1929, a comunidade científica recebeu seu trabalho com pouco entusiasmo. Além disso, 15 BIOENGENHARIA E BIOTECNOLOGIA APLICADA À BIOMEDICINA Fleming achou difícil isolar esse precioso extrato em grandes quantidades. Alguns anos depois, dois cientistas, Howard Florey e Ernst Chain, desenvolveram formas de cultivo e purificação em larga escala. A cooperação sem precedentes dos Estados Unidos e da Grã-Bretanha para a produção de penicilina foi incrivelmente bem-sucedida. Em 1941, os Estados Unidos não possuíam estoque para tratar um único paciente. No final de 1942, a penicilina estava disponível para tratar menos de 100 pacientes. Em setembro de 1943, no entanto, o estoque era suficiente para satisfazer as demandas das Forças Armadas Aliadas. Os três cientistas foram laureados com o prêmio Nobel, em 1945. Figura 3 – Método de purificação da penicilina. Alguns fungos produzem substâncias capazes de matar bactérias. A descoberta destas substâncias, assim como o desenvolvimento de métodos de purificação em larga escala, revolucionaram a medicina. Em A, estão representadas as principais etapas do processo de purificação da penicilina a partir do cultivo do Penicillium. Em B, é mostrado um biorreator de 1957, usado para o cultivo do mesmo fungo para extração do antibiótico, em exposição no Museu de Ciências, em Londres A descoberta ao acaso do Fleming só foi possível porque anteriormente a ele outros cientistas determinaram como cultivar colônias de bactérias no laboratório. Estes microrganismos já eram cultivados em meio líquido, no entanto, o cultivo em meio sólido possibilitou a formação de estruturas visíveis, individuais, com características precisas e homogênias (as colônias), que foram essenciais ao desenvolvimento da microbiologia. Em 1881, Robert Koch, um médico alemão, descreveu que as colônias podiam crescer em fatias de batata. Ela foi considerada o primeiro meio sólido para o isolamento de bactérias. Walter Hesse, um de seus colegas de trabalho, descobriu que o emprego ágar, que se tornou um dos componentes mais usados para a solidificação dos meios, era extremamente eficiente no cultivo das colônias. O ágar é extensamente usado até hoje nos laboratórios do mudo todo. Outra descoberta importante na área da microbiologia durante este período foram as vacinas contra a varíola e raiva desenvolvidas respectivamente por Edward Jenner, um médico britânico, e Louis Pasteur, o mesmo que determinou que os microrganismos são responsáveis fermentação. A elucidação das bases da hereditariedade foram crucias para o desenvolvimento da biotecnologia. Alguns fundamentos da genética foram descritos a partir das observações feitas por Gregor Mendel em seu trabalho com ervilhas (Pisum sativum). O seu rigor metodológico e a quantificação de seus resultados o levaram a postular duas leis básicas da genética, atualmente conhecidas como leis de Mendel. 16 Unidade I Ele determinou que unidades internas invisíveis eram responsáveis por características distinguíveis no vegetal, tais como: cor de flor, de semente, altura da planta, entre outras. Essas entidades, denominadas por ele de fatores, e posteriormente reconhecidas como genes, seriam transmitidas entre gerações, sendo responsáveis pelos atributos dos descendentes. Em 8 de fevereiro de 1865, Mendel apresentou seu trabalho à Brunn Society for Natural Science. Seu artigo, Experiments on Plant Hybridization, publicado no ano seguinte, foi praticamente ignorado por seus contemporâneos. Anos mais tarde, três pesquisadores, trabalhando de forma independente, redescobriram os princípios formulados por Mendel. Cada um deles, Hugo de Vries, Carl Correns e Erich von Tschermak, citou o artigo original de 1866, inaugurando o ramo da biologia conhecido como genética. Charles Darwin propôs, de forma independente,que as características seriam transmitidas às sucessivas gerações em pacotes os quais chamou de “gêmulas”. Ele também especulou que as gêmulas viajavam de todas as partes do corpo para os órgãos sexuais, onde seriam armazenadas. A característica mais notável das propostas de Mendel e Darwin é que nenhum dos dois cientistas conhecia os nucleotídeos ou possuía qualquer informação sobre a estrutura do DNA. Em 1869, o químico Johann Friedrich Miescher, trabalhando com curativos obtidos em um hospital de pacientes de guerra, isolou do pus humano (neutrófilos mortos) uma substância que ele chamou de nucleína. Em pouco tempo, esse componente passou a ser denominado ácido nucleico. Esta descoberta foi quase concomitante com aquela realizada um ano antes por Robert Brown sobre a existência do núcleo nas células. A teoria da herança cromossômica foi construída com base nas descobertas de vários pesquisadores trabalhando por um período de muitas décadas. As sementes dessa teoria foram plantadas quando Mendel e Darwin propuseram a existência de possíveis elementos físicos da hereditariedade. Walther Flemming descobriu o cromossomo e descreveu seu comportamento durante a mitose. Posteriormente, a pesquisa de Theodor Boveri e Walter Sutton reforçou a ideia de uma conexão entre cromossomos e elementos hereditários, até que experimentos realizados no laboratório Thomas Hunt Morgan com as drosófilas demonstraram explicitamente que estes elementos hereditários estavam fisicamente localizados nos cromossomos. Figura 4 – Ilustrações de cromossomos de lírios. Walther Flemming registrou com desenhos os cromossomos e seu comportamento durante a mitose. Os registros auxiliaram nos estudos da área devido à sua fidedignidade 17 BIOENGENHARIA E BIOTECNOLOGIA APLICADA À BIOMEDICINA O marco do trabalho de Morgan ficou conhecido como A teoria do Gene, em 1926. No entanto, antes desta publicação, o termo gene já havia sido cunhado por Wilhelm Johannsen, que o descreveu como elemento da hereditariedade. A este cientista também são creditadas as palavras genótipo e fenótipo. Genótipo descreveria a constituição genética de um organismo, enquanto fenótipo se referiria ao organismo como um todo. Estas descobertas ajudaram a germinar a era do DNA, que se tornou a base da biologia molecular moderna. No entanto, alguns reveses também se desenvolveram a partir de todos estes achados. À medida que a genética começou a ganhar importância, acabou contribuindo com o Movimento Eugênico nos EUA, em 1924, atualmente reconhecido como uma organização solidificada nas frágeis estruturas da pseudociência. Como consequência desta ação, a Lei de Imigração dos EUA foi usada para restringir o influxo de imigrantes com baixa escolaridade do sul e do leste Europa, com base em sua suspeita de inferioridade genética. Assim, a biotecnologia clássica foi marcada por grandes conquistas que mudaram a história com o desenvolvimento das vacinas, dos antibióticos e o nascimento da genética. Tais eventos contribuíram para o envelhecimento da população e configuraram a semente da nova era do DNA, que estava por vir com elucidação da dupla hélice e da tecnologia do DNA recombinante. No entanto, ao mesmo tempo, eles também fomentaram o discurso da superioridade genética baseada em conclusões infundadas de pessoas que manipularam as novas descobertas do mundo dos genes. 1.1.3 Biotecnologia moderna A Segunda Guerra Mundial tornou-se um grande impedimento para o desenvolvimento da ciência. Após o fim desta guerra, muitas descobertas cruciais foram relatadas, pavimentando o caminho da biotecnologia ao seu estado atual. Em 1953, Watson e Crick revelaram pela primeira vez a estrutura do DNA. O modelo da dupla hélice proposto foi capaz de explicar vários fenômenos relacionados à replicação do material genético e seu papel na herança. Mais tarde, Jacob e Monod (1961) determinaram como os genes em procariotos eram regulados em seus sistemas denominados operon, e Köhler e Milstein (1975), com o conceito de fusão citoplasmática, foram capazes de produzir os primeiros anticorpos monoclonais, revolucionando a área de diagnóstico. A esta altura, a comunidade científica era detentora de conhecimento sobre diversos fenômenos que aceleraram o caminho para importantes descobertas. Har Gobind Khorana foi capaz de sintetizar DNA in vitro. Kary Mullis agregou valor a esta descoberta, amplificando o DNA em um tubo de ensaio, produzindo uma quantidade mil vezes maior em relação ao material inicial. Usando este avanço tecnológico, outros pesquisadores puderam inserir um segmento de DNA de um hospedeiro em outro e ainda acompanharam a transferência deste DNA para as gerações seguintes. O efeito do HIV/Aids como uma doença mortal impulsionou a aplicação de várias descobertas científicas, muitas restritas ao ambiente das Universidades, para seu emprego no cotidiano. Nesse ínterim, Ian Wilmut, um cientista irlandês, teve sucesso em clonar um animal adulto, usando ovelhas como modelo, resultado no nascimento da “Dolly”. Craig Venter, juntamente com outros cientistas, em 2000, foi capaz de sequenciar o genoma humano; a primeira sequência disponível foi obtida de 18 Unidade I amostras de DNA do Watson (aquele mesmo que descobriu a estrutura da dupla hélice), e dele mesmo. Essas descobertas tiveram implicações e aplicações ilimitadas. Em 2010, Craig Venter teve sucesso em demonstrar que um genoma sintético poderia se replicar de forma autônoma. Isso deveria ser considerada uma nova possibilidade de criar vida em um tubo de ensaio, que poderia ser planejado e projetado por um ser humano usando uma caneta, lápis, computador e bioinformática como ferramentas? No futuro, poderemos produzir vida de acordo com nossa imaginação e caprichos? Este livro-texto abordará de forma detalhada algumas das descobertas citadas, além de tantas outras que abriram e expandiram a área da biotecnologia e mudaram a humanidade. 2 PRINCÍPIOS DA BIOTECNOLOGIA MOLECULAR E ENGENHARIA GENÉTICA 2.1 Tecnologia do DNA recombinante A tecnologia do DNA recombinante permite a combinação de sequências de DNA entre dois organismos diferentes, de forma que um gene (ou outra sequência qualquer) de um organismo da espécie A pode ser transferido ao genoma de um organismo da espécie B. Desta forma, é possível combinar o DNA de duas espécies completamente distintas, por exemplo, um gene de células eucariontes com o DNA de células procariontes (gene da insulina humana com plasmídeos bacterianos); ou um gene de células animais com o DNA de células vegetais (gene de camundongo com o genoma de uma planta). Em 1989, foi relatada a primeira transformação bem-sucedida de plantas de tabaco com DNAs complementares (cDNAs) das cadeias pesadas (H) ou leves (L) de imunoglobulina de camundongo. Foi ainda demonstrado que, ao fazer a polinização cruzada entre essas plantas, parte da progênie expressou as cadeias H e L, o que gerou anticorpo monoclonal de camundongo funcional. Estes foram secretados das células vegetais da mesma maneira como ocorre nas células do sistema imunológico do camundongo. Assim, atualmente é possível combinar o material genético de organismos tão diferentes de forma que tal evento dificilmente aconteceria em condições naturais. Mas por que seria desejável fazer este procedimento? A transferência de um gene permite que o organismo receptor seja capaz de produzir uma proteína que não fazia parte de seu repertório molecular, ou ainda leva à aquisição de alguma característica especial, condizente com o gene transferido. Lembre-se de que alguns genes são transcritos e traduzidos em proteínas e que estas proteínas desempenham alguma função importante, outros são apenas transcritos em RNAs com funções reguladoras, ou ainda a própria sequência transferida pode regular elementos do genoma da célula receptora. Portanto, a transferência de genes pode se dar com intuito de purificar um produto biológico (normalmente proteínas), ou de modularalguma atividade no organismo receptor para que este desempenhe uma nova função. Desta forma, é possível induzir a produção de insulina humana em uma bactéria, ou fazer com que uma planta seja capaz de produzir anticorpos monoclonais de camundongo. Nestes dois exemplos, a proteína gerada pelo gene inserido deverá ser coletada para posterior utilização; a insulina é utilizada como fármaco no tratamento do diabetes, enquanto um anticorpo monoclonal pode ser empregado na área de pesquisa básica para detecção de proteínas específicas ou ainda na terapia contra o câncer (imunoterapia). A transferência de genes pode ser utilizada ainda para 19 BIOENGENHARIA E BIOTECNOLOGIA APLICADA À BIOMEDICINA melhorar um determinado organismo, algo bastante utilizado hoje em dia na produção de alimentos com maior valor nutritivo (como o arroz dourado, golden rice) ou na síntese de bactérias que conseguem degradar contaminantes ambientais, em processos de biorremediação. O arroz dourado foi engenheirado geneticamente para produzir betacaroteno, um precursor da vitamina A. Por ser um alimento mundialmente consumido e de custo relativamente baixo, foi desenvolvido para suplementar a alimentação de pessoas que vivem em locais onde o consumo de alimentos ricos nesta vitamina é baixo. A deficiência da vitamina A durante a infância pode levar à cegueira noturna. É importante ressaltar que a tecnologia do DNA recombinante só é possível pois todos os seres vivos compartilham o mesmo tipo de material genético. Apesar das peculiaridades moleculares existentes, a estrutura bioquímica base do DNA é idêntica: seja o material genético proveniente da mais simples bactéria ou de um eucarioto complexo, DNA sempre é formado por nucleotídeos que se ligam por meio de ligações fosfodiéster (esta ligação ocorre entre a hidroxila do carbono 3’ – C3’ – do açúcar de um nucleotídeo com a hidroxila do grupamento fosfato do carbono 5’ – C5’ – do açúcar do nucleotídeo subsequente). Esta organização permite a formação de uma cadeia longa (polímero de desoxirribonucleotídeos) com terminações 3´e 5´ livres. Duas destas cadeias se unem formando uma hélice, pela interação mediada por ligações de hidrogênio entre as bases nitrogenadas complementares dispostas entre as fitas antiparalelas (adenina pareia com timina e citosina pareia com guanina). Figura 5 – Estrutura do DNA. A figura representa uma seção curta da dupla hélice. Os nucleotídeos estão ligados entre si covalentemente por ligações fosfodiéster (esta ligação ocorre entre o grupo hidroxila ligada ao C3’ do açúcar de um nucleotídeo com uma hidroxila do fosfato ligado ao C5’ do açúcar do próximo nucleotídeo). Assim, cada cadeia polinucleotídica tem uma polaridade química; isto é, suas duas extremidades são quimicamente diferentes. O final 5’ do polímero de DNA é por convenção frequentemente ilustrado carregando um grupo fosfato, enquanto a extremidade 3’ é mostrada com uma hidroxila. As fitas, dispostas de forma antiparalela, são mantidas unidas pelas ligações de hidrogênio que ocorrem entre as bases de cada uma delas. As ligações de hidrogênio embora sejam fracas, em grande número são capazes de estabilizar e manter a dupla fita unida. Em presença de altas temperaturas ocorre desnaturação da dupla fita. Legenda: A, T, C e G = bases nitrogenadas adenina, timina, citosina e guanina, respectivamente 20 Unidade I A tecnologia do DNA recombinante também é conhecida como clonagem molecular ou clonagem gênica. Apesar de existirem diferentes metodologias para se combinar o DNA de espécies distintas, normalmente todas elas seguem as seguintes etapas: Lembrete Clonar quer dizer “fazer cópias”. Clonagem molecular é fazer várias cópias de um determinado segmento de DNA. • O DNA do organismo doador é extraído, clivado enzimaticamente (cortado ou digerido) e ligado a outro DNA (por exemplo, com um DNA plasmideal que funciona como um vetor de clonagem), formando o DNA recombinante (o fragmento de DNA do organismo doador que é combinado com DNA de outra fonte é conhecido como DNA clonado, DNA alvo, ou simplesmente inserto). • Esta construção (vetor de clonagem + inserto) é transferida e mantida em uma célula hospedeira (quando o DNA recombinante é inserido em uma célula de bactéria este procedimento recebe o nome de transformação). • As células que de fato recebem o DNA recombinante são identificadas e selecionadas. • A proteína produzida pode ser purificada da célula hospedeira (o DNA recombinante pode ser construído de forma que a célula hospedeira seja capaz de produzir proteínas específicas). 21 BIOENGENHARIA E BIOTECNOLOGIA APLICADA À BIOMEDICINA Figura 6 – Visão geral da tecnologia do DNA recombinante. Etapas envolvidas na construção de uma célula recombinante e alguns exemplos de aplicação A tecnologia do DNA recombinante foi desenvolvida a partir de descobertas em diferentes áreas, como: biologia molecular, enzimologia e genética. O conhecimento sobre os vírus e bactérias, incluindo os bacteriófagos e os plasmídeos, também foi crucial nesta empreitada. No entanto, a tecnologia do DNA recombinante não seria possível sem o uso de enzimas que reconhecem sequências específicas do DNA, clivando as ligações fosfodiéster das duas fitas: as famosas enzimas de restrição. Lembrete Os bacteriófagos, ou simplesmente fagos, são vírus que infectam bactérias cujo material genético é o DNA. 22 Unidade I 2.1.1 Enzimas de restrição As enzimas de restrição fazem parte de um grupo de moléculas capazes de clivar DNA, conhecidas como nucleases. As nucleases que clivam o DNA a partir de suas extremidades livres (5’ ou 3’) são denominadas exonucleases, enquanto aquelas que clivam o DNA internamente são designadas de endonucleases. As enzimas de restrição fazem parte desta última categoria. As endonucleases são normalmente encontradas em células de bactérias e servem como sistema de defesa deste organismo contra ação de bacteriófagos. Elas reconhecem uma determinada sequência alvo e clivam o DNA do vírus. Ao quebrar o DNA, elas impedem que estes subvertam as células das bactérias para produção de novas partículas virais, ou seja, restringem a montagem de novos bacteriófagos. Este mecanismo foi responsável pelo nome da enzima – enzimas de restrição. Tal processo foi inicialmente reconhecido nos laboratórios dos cientistas Salvador Luria e Giuseppe Bertani, no início da década de 1950. Eles detectaram que bacteriófagos λ, que se multiplicavam normalmente na linhagem de bactéria Escherichia coli K tinham sua taxa de multiplicação reduzida quando infectavam a linhagem de Escherichia coli C. Na década de 1960, Werner Arber e Matthew Meselson demostraram que esta restrição no crescimento dos fagos λ era mediada pela ação de uma enzima capaz de clivar o DNA do vírus. A extração e purificação das enzimas de restrição a partir das bactérias permitiu a manipulação do DNA de qualquer organismo para a produção de DNA recombinante. O isolamento e a caracterização da primeira enzima de restrição, extraída da bactéria Haemophilus influenzae, foi realizada pelos pesquisadores Hamilton O. Smith, Thomas Kelly e Kent Wilcox, na década de 1970. Hoje em dia, mais de 3.700 enzimas de restrição com mecanismo de ação semelhante foram identificadas, sendo isoladas de diferentes bactérias. Conjuntamente, estas enzimas reconhecem cerca de 250 sequências alvo distintas. A nomenclatura das enzimas de restrição está relacionada com o organismo no qual elas foram purificadas, a linhagem ou o sorotipo e a ordem de sua descoberta. Por exemplo, a enzima EcoRI (leia-se “eco-erre-um”) é derivada da Escherichia coli, linhagem RY13, sendo a primeira endonuclease a ser descoberta neste organismo (portanto, o algarismo romano I). Assim, a primeira letra do gênero da bactéria da qual a enzima foi extraída deve ser maiúscula, seguida das duas primeiras letras do epíteto (indicativo da espécie) em minúsculo. A designação da cepa é ocasionalmente adicionadaao nome, como R em EcoRI, ou o sorotipo da bactéria como d em HindIII (Haemophilus influenzae). Os algarismos romanos são usados para designar a ordem de caracterização de diferentes endonucleases de restrição do mesmo organismo. Por exemplo, HpaI e HpaII são a primeira e a segunda endonucleases de restrição tipo II que foram isoladas de Haemophilus parainfluenzae, respectivamente. O quadro a seguir apresenta o nome de outras enzimas de restrição, assim como o sítio de reconhecimento no DNA de cada uma. 23 BIOENGENHARIA E BIOTECNOLOGIA APLICADA À BIOMEDICINA Quadro 1 – Enzimas de restrição Enzima Bactéria cuja enzima é isolada Sequência reconhecida Tipo de extremidade gerada após clivagem BamHI Bacillus amyloliquefaciens 5 G GATCC 3' 3 CCTAG G 5' ↓ ↑ ′ ′ … … … … Extremidades coesivas (extensão 5’ fosfato) EcoRI Escherichia coli 5 G AATTC 3' 3 CTTAA G 5' ↓ ↑ ′ ′ … … … … Extremidades coesivas (extensão 5’ fosfato) HaeIII Haemophilus aegyptius 5 GG CC 3' 3 CC GG 5' ↓ ↑ ′ ′ … … … … Extremidades cegas HindIII Haemophilus influenzae 5 A AGCTT 3' 3 TTCGA A 5' ↓ ↑ ′ ′ … … … … Extremidades coesivas (extensão 5’ fosfato) NotI Nocardia otitidiscaviarum 5 GC GGCCGC 3' 3 CGCCGG CG 5' ↓ ↑ ′ ′ … … … … Extremidades coesivas (extensão 5’ fosfato) PstI Providencia stuartii 5 CTGCA G 3' 3 G ACGTC 5' ↓ ↑ ′ ′ … … … … Extremidades coesivas (extensão 3’ hidroxila) XhoI Xanthomonas holcicola 5 C TCGAG 3' 3 GAGCT C 5' ↓ ↑ ′ ′ … … … … Extremidades coesivas (extensão 5’ fosfato) Para entender como as endonucleases do tipo II atuam, tomemos como exemplo a enzima de restrição EcoRI (foi uma das primeiras a ser caracterizada). Trata-se de uma proteína homodimérica (ou seja, possui duas subunidades iguais) que reconhece uma região específica do DNA constituída por uma sequência palíndromo de 6 pb. Os palíndromos representam sequências de nucleotídeos idênticas nas duas fitas quando lidas na mesma polaridade, ou seja, no sentido 5’ → 3’. Observação Na língua portuguesa, os palíndromos, ao serem lidos da esquerda para direita ou da direita para esquerda, refletem a mesma palavra, como, ama, radar, arara, Hannah ou ainda, a mesma sentença, como em socorram-me subi no ônibus em Marrocos. A EcoRI cliva duas ligações fosfodiéster, uma em cada fita, entre a guanina e adenina dentro da sequência alvo. Como resultado destas duas quebras, ocorre a separação dos nucleotídeos localizados entre os sítios de clivagem das duas fitas, que se mantinham unidos por ligações fracas de hidrogênio. As ligações de hidrogênio entre os 4 pares de nucleotídeos localizados entre os sítios de quebra não são suficientes para manter as fitas unidas, após a clivagem das ligações fosfodiéster pela enzima. Desta forma, são gerados dois fragmentos fita simples com extremidades 3’-OH e 5’-PO4 - livres. Uma vez 24 Unidade I que as bases das extensões são complementares, as ligações de hidrogênio podem ser reestabelecidas, caracterizando as extremidades coesivas. Figura 7 – Clivagem intercedida pela EcoRI. Na figura está representada a sequência de reconhecimento da EcoRI (tracejado azul), o local de clivagem da enzima (setas vermelhas) e o resultado da quebra, com os segmentos gerados e suas respectivas extremidades coesivas. Note as extremidades sobressalentes (fita simples), neste caso, correspondem à extremidade 5’ fosfato (extensão 5’). Legenda: P = grupamentos fosfato; S = açúcar (desoxirribose); A, T, C e G = bases nitrogenadas adenina, timina, citosina e guanina, respectivamente Antes de darmos continuidade, sugerimos a seguinte atividade: em um pedaço de papel escreva uma sequência de DNA qualquer, contendo a sequência alvo da enzima de restrição da EcoRI. Use uma tesoura para recortar toda a sequência de DNA previamente desenhada de forma que reste apenas uma tira de papel. Em seguida, identifique a sequência alvo e com uma caneta marque os locais de clivagem mediados pela enzima EcoRI. Neste momento, atente-se e lembre-se de como as enzimas de restrição agem. Elas são capazes de reconhecer uma sequência específica (no caso da EcoRI, esta contém 6 pb) e clivar as ligações fosfodiéster. No entanto, elas não cortam estas ligações covalentes na mesma posição em ambas as fitas. Recorte estes sítios mimetizando a ação da enzima. Apesar do corte, a tira de papel ainda se mantém unida. Esta união representa as ligações de hidrogênio estabelecidas entre os nucleotídeos das fitas antiparalelas que estão entre os sítios de clivagem. Como as ligações são fracas, e mediadas por apenas 4 pares de nucleotídeos, não conseguem manter as duas fitas unidas nesta posição. Faça um tracejado entre as ligações de hidrogênio e recorte-o. Agora restarão em mãos dois fragmentos de DNA, ambos contendo uma pequena sequência fita simples com extremidades livres que são complementares. Estas são as extremidades coesivas. 25 BIOENGENHARIA E BIOTECNOLOGIA APLICADA À BIOMEDICINA Figura 8 – Mimetizando a ação da EcoRI em uma folha de papel. Para entender como as extremidades coesivas são geradas após a clivagem mediada pela EcoRI, siga o passo a passo da atividade ilustrada. 1) Escreva em um papel uma sequência de DNA dupla fita, de forma a incluir a sequência de reconhecimento da EcoRI; 2) Recorte esta sequência, liberando-a em uma tira de papel; 3) Destaque com uma caneta ou lápis colorido a sequência alvo da EcoRI; 4) Marque o local de clivagem da enzima (ligações fosfodiéster entre os nucleotídeos 5’GA3’); 5) Recorte apenas no sítio de clivagem da enzima (setas azuis); 6) Faça uma marcação nas ligações de hidrogênio entre os quatro pares de nucleotídeos inseridos dentro dos sítios de clivagem; 7) Recorte nesta marcação; 8) Afaste os fragmentos gerados; e 9) Identifique as extremidades livres como 3’ ou 5’ e analise a sua sequência. Repare que elas são complementares Quando dois segmentos de DNA de fontes diferentes são clivados com uma mesma enzima de restrição, com as propriedades descritas anteriormente, são geradas extremidades coesivas compatíveis, ou seja, que podem se unir por complementariedade de bases. Assim, se os fragmentos gerados forem misturados, uma nova combinação de DNA pode ser formada como resultado do estabelecimento de ligações de hidrogênio entre as extensões compatíveis, produzindo moléculas de DNA recombinante. Não obstante, apenas as enzimas de restrição não são suficientes para a produção de DNA recombinante. Os fragmentos de DNA de organismos distintos não são mantidos unidos de forma estável considerando-se apenas as ligações de hidrogênio estabelecidas por poucos nucleotídeos (por exemplo, se a enzima de restrição usada for a EcoRI, a complementariedade entre as extremidades coesivas será formada entre apenas 4 pares de bases). Além disso, se os fragmentos de DNA de fontes diferentes forem misturados, uma grande parcela destes segmentos reestabelecerá as ligações de hidrogênio originais, voltando a formar o segmento de DNA precursor. Tal evento acaba diminuindo o rendimento da produção do DNA recombinante. A habilidade de unir diferentes moléculas de DNA também não possui função prática se esta molécula resultante não for capaz de se perpetuar em uma célula hospedeira. Assim, o DNA recombinante deve ter informação biológica que garanta a sua manutenção em uma célula. Diferentes estratégias foram criadas para solucionar os problemas levantados. Imagine que se deseje inserir uma sequência qualquer do DNA de um determinado organismo (hipoteticamente, chamemos de sequência A) em um plasmídeo. Os plasmídeos correspondem a DNA circular extracromossômico presente em algumas bactérias. Neste experimento, a escolha do plasmídeo foi feita com o intuito de usá-lo como veículo para “entregar” o DNA exógeno (sequência A) a uma célula de bactéria, além de permitir que esta sequência A seja transcrita e traduzida por este hospedeiro. De fato, os plasmídeos são frequentemente usados como vetores de clonagem. 26 Unidade I Vamos supor quea sequência A contenha a informação necessária para a síntese da proteína insulina humana. Logo, o desenho deste experimento consiste em criar um DNA recombinante, contendo uma sequência de DNA humano (da insulina) e o DNA bacteriano (plasmídeo), visando inserir este gene dentro da bactéria e usar esta célula para a produção da proteína insulina, com objetivo de purificá-la. Inicialmente é necessário isolar a sequência do DNA que contenha a informação para a síntese de insulina humana. O material de partida poderia ser o DNA de células humanas, pois estas possuem o gene da insulina. No entanto, lembre-se de que os genes eucarióticos apresentam sequências correspondentes aos íntrons e éxons (sendo estes últimos as sequências normalmente traduzidas em proteínas) e, portanto, estas regiões polinucleotídicas podem ser extremamente longas. Existe um limite do tamanho do DNA alvo capaz de ser inserido no plasmídeo. Assim, muitas vezes é preferível inserir no plasmídeo não a sequência do gene propriamente dita, mas a sequência do cDNA (DNA complementar). O cDNA é sintetizado a partir do RNA mensageiro (mRNA) através de uma reação de transcrição reversa. Em geral, o mRNA maduro não apresenta íntrons, pois estes foram removidos pela maquinaria de splicing. A transcrição reversa desta molécula produz DNA com tamanho muito menor que o gene original, sendo, assim, mais fácil manipulá-lo para inserção em um plasmídeo. Figura 9 – Síntese do cDNA. A figura ilustra as etapas envolvidas na síntese de cDNA a partir de um gene eucariótico. A enzima transcriptase reversa sintetiza uma fita de DNA a partir de mRNA molde, formando a primeira molécula de cDNA (repare que ela inicialmente corresponde a uma fita simples). Esta molécula de cDNA por sua vez serve de molde para a enzima DNA polimerase sintetizar seu complemento, originando a molécula de DNA dupla fita. A DNA polimerase requer a presença de iniciadores para catalisar a reação. Os fragmentos de mRNA digeridos funcionam como os iniciadores para esta reação, pois se anelam na primeira molécula de cDNA para que então a DNA polimerase consiga agir 27 BIOENGENHARIA E BIOTECNOLOGIA APLICADA À BIOMEDICINA A estratégia que será escolhida pelo pesquisador, ou seja, se o material inicial isolado será o DNA ou o RNA (para posterior síntese do cDNA), dependerá dos seus objetivos. Se o interesse for estudar regiões reguladoras do gene, o material de partida deve ser o DNA e não o cDNA. Todavia, se o interesse for a produção de uma proteína, o mRNA pode ser suficiente. No nosso exemplo, seria mais adequado então extrair o RNA, produzir o cDNA e em seguida fazer uma PCR (reação da polimerase em cadeia) com iniciadores (primers) específicos. A PCR produzirá uma grande quantidade de sequências codificantes para a insulina, otimizando a produção do DNA recombinante. Ao desenhar os iniciadores é necessário acrescentar nestes a sequência de reconhecimento da enzima de restrição. Assim, após a extração do RNA de células humanas produtoras de insulina e obtenção do cDNA, uma PCR com estes iniciadores é realizada, seguida de eletroforese em gel de agarose para isolamento e purificação do produto amplificado. Em um tubo adequado, este cDNA correspondente contendo a sequência para a produção da proteína da insulina humana será digerido com a enzima de restrição. A endonuclease irá clivar as extremidades do cDNA produzindo as extensões de fita simples livres. Neste protocolo é necessário garantir que a sequência do cDNA não apresente o sítio de reconhecimento da enzima, ou então, ele será interrompido (digerido pela enzima). Figura 10 – Inserção dos sítios de restrição de uma dada enzima no fragmento de cDNA capaz de sintetizar a insulina. Em A, o cDNA da insulina pode ser amplificado por PCR utilizando-se iniciadores que possuam nas extremidades sequências que são reconhecidas por uma determinada enzima de restrição. Em B, digestão do plasmídeo e do DNA de interesse com as mesmas enzimas de restrição gera extremidades coesivas 28 Unidade I O plasmídeo também deve ser digerido com a mesma enzima de restrição para que extremidades complementares ao inserto de interesse sejam geradas. Como o DNA plasmideal é circular, a clivagem mediada pela enzima o lineariza. No entanto, existe uma chance muito grande de recircularização do plasmídeo, visto que suas próprias extremidades são coesivas. Tal evento diminui as chances da formação do DNA recombinante quando esta molécula for misturada com o gene purificado. Desta forma, antes de misturar estes dois componentes, adiciona-se aos plasmídeos digeridos uma enzima denominada fosfatase alcalina. Ela remove os grupos fosfatos das extremidades 5’ necessários para ocorrer a ligação fosfodiéster. As ligações fosfodiéster entre os desoxirribonucleotídeos podem ser reestabelecidas em presença da enzima DNA ligase, que de fato é usada nas etapas seguintes deste protocolo. A enzima fosfatase alcalina pode ser purificada de bactérias ou do intestino de bezerros, a primeira é mais estável, porém menos ativa do que a segunda. Uma vez preparado o DNA plasmideal linearizado, este é misturado com o DNA do gene da insulina, na presença de uma DNA ligase. Esta enzima normalmente é extraída do bacteriófago T4. Lembre-se de que as ligações de hidrogênio entre as bases das extremidades complementares do plasmídeo e do gene de interesse não são suficientes para manter a molécula de DNA recombinante. Na presença de ATP, a DNA ligase de T4 é capaz de reestabelecer a ligação covalente entre os nucleotídeos adjacentes, garantindo a manutenção da molécula híbrida. Contudo, ela não pode unir as extremidades do plasmídeo linear desfosforiladas. Assim, apenas duas ligações fosfodiéster são formadas entre o DNA do inserto com o DNA do plasmídeo, e não quatro, como seria previsto se os grupamentos fosfato do vetor ainda estivessem presentes. Estas duas ligações fosfodiéster formadas são suficientes para manter as duas moléculas juntas, apesar da presença de duas incisões (ou nicks). Após a transformação, ou seja, quando o plasmídeo contendo DNA exógeno for colocado em uma célula de bactéria, esses cortes serão selados pela DNA ligase da célula hospedeira. 29 BIOENGENHARIA E BIOTECNOLOGIA APLICADA À BIOMEDICINA Figura 11 – Clonagem de um fragmento de DNA de interesse em um vetor plasmideal. Após digestão com uma dada enzima de restrição e tratamento com fosfatase alcalina, o plasmídeo é misturado com o DNA de interesse digerido previamente com a mesma enzima de restrição. Em presença de DNA ligase de T4, as ligações fosfodiéster entre as extremidades coesivas do plasmídeo e do inserto são reestabelecidas apenas nos locais cujas extremidades 5’ ainda apresentam o grupamento fosfato. Assim, são formadas duas ligações fosfodiéster e duas incisões. Esta configuração é estável e mantém as duas moléculas de DNA de origens diferentes covalentemente ligadas. Após a inserção desta construção em células hospedeiras, a maquinaria celular é capaz de reestabelecer as ligações fosfodiéster nas incisões remanescentes 30 Unidade I Um provável questionamento diz respeito ao fato de sabermos se as moléculas de cDNA do gene da insulina, após a digestão com enzimas de restrição, não poderiam se unir umas com as outras, pois também apresentam extremidades coesivas. A resposta para esta pergunta é sim. De fato, isso acontece dentro do tubo de ensaio. Todavia, esses produtos de ligação indesejados não contêm uma origem de replicação (segmento de DNA necessário para ocorrer a replicação do DNA, pois favorece a ligação dos componentes da maquinaria de replicação) e, portanto, não serão replicados após a introdução em uma célula hospedeira. Existem enzimas de restrição que clivam as ligações fosfosdiéter sem resultar em fragmentos com extremidades coesivas. Veja o exemplo da enzima HindII, constante a seguir, em que o sítio de clivagem promove a quebra do DNA, resultando em extremidades cegas(sem extensões fita simples). Para compreender melhor as extremidades cegas geradas por estas endonucleases, é possível fazermos uma atividade semelhante àquela apresentada na figura 8. Neste caso, basta trocar a sequência de reconhecimento da EcoRI pelo da HindII e seguir o passo a passo. Analise como são as extremidades resultantes. Figura 12 – Clivagem intercedida pela HindII. Na figura está representada a sequência de reconhecimento da HindII (tracejado azul), o local de clivagem da enzima (setas vermelhas) e o resultado da quebra, com os segmentos gerados e suas extremidades cegas. Legenda: P = grupamentos fosfato; S = açúcar (desoxirribose); A, T, C e G = bases nitrogenadas adenina, timina, citosina e guanina, respectivamente As enzimas de restrição que não produzem extremidades livres sobressalentes também podem ser usadas na clonagem molecular, porém aquelas que deixam pontas coesivas facilitam o processo. 31 BIOENGENHARIA E BIOTECNOLOGIA APLICADA À BIOMEDICINA As condições dos experimentos, usando cada uma destas endonucleases, são um pouco diferentes. Por exemplo, a reação da DNA ligase para unir moléculas de DNA de fontes distintas ocorre em baixas temperaturas e em longos períodos quando as extremidades dos produtos da digestão são coesivas. Isto garante que tais extremidades permaneçam pareadas (altas temperaturas desnaturam o DNA). Quando o experimento é realizado com moléculas de DNA cujas extremidades são cegas, são necessárias concentrações de 10 a 100x maiores da enzima DNA ligase T4. Nesta condição é difícil controlar a posição em que o inserto se associa ao plasmídeo, podendo ficar no sentido oposto àquele de leitura do vetor. Como consequência, o DNA de interesse desta construção pode ser incapaz de sintetizar produtos funcionais, como RNA e proteína. Para determinar qual foi a posição em que o DNA alvo entrou no plasmídeo, podemos recorrer às enzimas de restrição. Para tanto, basta analisar o perfil de separação em corrida eletroforética dos produtos desta digestão. Figura 13 – Detecção da orientação do inserto após ligação ao vetor, em um protocolo de clonagem realizado com enzimas de restrição que deixam extremidades cegas. Suponha que a soma do tamanho do plasmídeo + tamanho do inserto totalizem 5000 pb, e que apenas o inserto apresente 1000 pb. Considere que a inserção do DNA alvo ocorra a uma distância de 10 pb aquém ao sítio da EcoRI presente no vetor. Além disso, assuma que exista um sítio de reconhecimento para EcoRV que corta 190 pb bases a partir da extremidade 5’ da fita codificante do inserto. A digestão do DNA recombinante (plasmídeo + inserto), após a reação de ligação com a DNA ligase de T4, com as enzimas de restrição EcoRI e EcoRV sozinhas ou em conjunto, produzirá tamanhos de fragmentos distintos, a depender da orientação do inserto no vetor. Assim a parte de baixo da figura mostra o perfil de corrida da eletroforese esperado para os dois sentidos de inserção do DNA alvo, nas seguintes condições: sem digestão com qualquer enzima de restrição; com somente EcoRI; com somente EcoRV; e, com as duas enzimas simultaneamente. O resultado de uma dupla digestão EcoRI / EcoRV da construção em que o inserto se encontra no sentido esperado seria: fragmentos de 200 pb (10 + 190) e de 4800 bp (5000 – 200) (à esquerda). Se a inserção fosse na orientação reversa (à direita), os fragmentos seriam 820 pb (10 + 1000 − 190) e 4180 bp (5000 − 920). Repare que a digestão com apenas uma enzima de restrição leva apenas à linearização da construção e que a eletroforese da construção circularizada (primeiro poço, representado por nc) é diferente daquela do vetor linearizado. Legenda: nc = não cortado 32 Unidade I Uma vez inserido o DNA recombinante na célula hospedeira, é preciso garantir que ele não seja degradado e ainda apresente os elementos necessários para permitir sua replicação (produção de várias cópias do inserto) e transcrição (vital para a síntese proteica). Outros componentes, como genes de seleção são importantes, pois garantem ao pesquisador mecanismos de identificação das células que de fato incorporaram a construção. As enzimas de restrição possuem outro propósito bastante notável dentro da área da biologia molecular. Em 1971, Daniel Nathans e sua então aluna de graduação, Kathleen Danna, publicaram um artigo relatando os seus experimentos com estas moléculas. Eles mostraram que ao clivar o DNA do vírus símio 40 (SV40) com a enzima de restrição extraída de Hemophilus influenzae, eram gerados fragmentos de DNA constates quando analisados em eletroforese em gel de acrilamida. Estes resultados mostraram que as enzimas de restrição também são úteis em mapear o DNA, surgindo então as análises de mapas de restrição. Figura 14 – Fragmentos de restrição do DNA do SV40 gerados com endonuclease de Hemophilus influenzae. A figura mostra 11 fragmentos de DNA, nominados de A até K, gerados após longo período de digestão do DNA do SV40 com uma endonuclease extraída de Hemophilus influenzae. Cada banda possui tamanho distinto e por isso foram separados no gel de acrilamida Os mapas de restrição são mapas físicos que indicam as posições relativas dos sítios de clivagem de diferentes enzimas de restrição em um determinado segmento de DNA. Os mapas são construídos tratando a molécula de DNA individualmente com endonucleases de restrição e depois com combinações delas e em seguida analisando os fragmentos gerados pelas clivagens em separação eletroforética. Quando o DNA genômico apresenta vários sítios alvos para uma dada enzima de restrição (cortes frequentes), milhões de fragmentos de DNA são produzidos após sua quebra. A separação desses fragmentos em eletroforese não resulta em bandas discretas (mas forma-se um perfil de arraste de DNA no gel). Portanto, enzimas de cortes raros – aquelas cujo DNA alvo apresenta poucos sítios de reconhecimento para a enzima – são úteis para mapeamento do genoma, pois resultam em menor quantidade de fragmentos de DNA. Os mapas de restrição eram bastante usados para caracterizar genomas de organismos menores como vírus e bactérias (a digestão de genomas muito grandes produz muitas bandas, não distinguíveis no gel). Após a digestão, os fragmentos de DNA podem ser separados em gel de agarose usando uma técnica especial chamada eletroforese em gel de campos pulsados (PFGE, pulsed field gel electrophoresis). Essa técnica permite a separação de fragmentos de DNA com massa molecular elevada (com até 10 Mb). Na eletroforese em gel de agarose convencional, normalmente se separam fragmentos com até 40 kb. A eletroforese em campo pulsado utiliza um campo elétrico direcionado de forma alternada. Quando ocorre troca na direção do campo elétrico (inversão da polaridade), as moléculas de DNA são compelidas 33 BIOENGENHARIA E BIOTECNOLOGIA APLICADA À BIOMEDICINA à reorientação, para se posicionarem de forma paralela ao campo de força, antes de migrarem para a direção do polo positivo. Os fragmentos menores se reorientam com maior facilidade que os maiores, que demoram mais para se adaptarem à nova direção. A partir de 1984, vários protocolos surgiram com o intuito de otimizar a separação DNA de alto peso molecular utilizando este princípio. Figura 15 – Etapas envolvidas na construção de um mapa de restrição. Um segmento de DNA de 100 kb é digerido separadamente, em três tubos distintos, com as enzimas de restrição: SaII (leia sal-um); BamHI (leia bam-agá-um); e, ambas simultaneamente (SalI + BamHI). Os fragmentos gerados em cada uma das reações são separados em eletroforese em gel (de agarose) em campos pulsados (PFGE), na presença de marcador molecular. O marcador molecular possui segmentos de DNA com tamanhos conhecidos e serve como referência para estimativa do tamanho dos fragmentos de DNA das amostras. Após analisar os resultados da eletroforese, as posições dos sítios de clivagem podem ser deduzidas. Assim, é construído um mapa de restrição, indicando-se as posiçõesrelativas dos sítios de reconhecimento das enzimas de restrição. Montar mapas de restrições muitas vezes equivale a montar um grande quebra-cabeça 34 Unidade I Agora imagine que exista uma mutação no segmento de DNA analisado dentro da sequência de reconhecimento da enzima de restrição. Neste caso, a enzima não será capaz de clivar neste local e segmentos de tamanhos diferentes daqueles esperados serão produzidos, indicando a presença da mutação. Exemplo de aplicação A técnica “impressão digital” molecular (DNA fingerprint) foi desenvolvida por Sir Alec Jeffreys em 1984, na Universidade de Leicester, na Inglaterra, enquanto pesquisava a estrutura do gene da mioglobina (proteína que armazena oxigênio no tecido muscular). Ele identificou dentro de um íntron deste gene sequências que atualmente são conhecidas como VNTR (regiões em tandem de número variado). A VNTR corresponde a uma sequência curta de DNA que se repete várias vezes, uma seguida da outra (daí a designação em tandem). O número de vezes que este bloco de nucleotídeos sequenciais se repete, em uma determinada posição do genoma, pode variar entre os indivíduos. Por exemplo, o indivíduo A pode apresentar 10 repetições de uma VNTR, enquanto o indivíduo B demonstra 7, na mesma posição do genoma. Assim, a digestão do DNA com uma enzima de restrição que reconhece as “bordas” das sequências VNTR e cliva próximo a estes locais, gera segmentos de tamanhos distintos. No nosso exemplo, o fragmento gerado a partir da digestão do DNA do indivíduo A tem comprimento maior que aquele originado por meio da digestão do DNA do indivíduo B. A eletroforese em gel de agarose dos produtos da digestão mostrará então um perfil diferente para estes dois indivíduos. Para visualizar o padrão de migração eletroforética do DNA, é necessário transferi-lo do gel a uma membrana de nitrocelulose e, depois, incubá-la com sondas específicas. A sonda corresponde a um fragmento de DNA curto, complementar ao DNA de interesse marcado com alguma substância. Componentes radioativos são comumente usados para identificação das sondas (esta técnica é conhecida como Southern blotting). Agora amplie este exemplo de uma região para o genoma inteiro, em que temos várias destas sequências VNTR espalhadas. O padrão da migração eletroforética dos fragmentos produzidos entre os indivíduos acaba sendo único e funciona como uma “impressão digital” molecular. De fato, este é o princípio que norteia os exames de paternidade clássicos e a análise do DNA de suspeitos em uma cena de crime. Contudo, hoje em dia, testes mais atuais empregam metodologias de PCR, em virtude da praticidade de análise dos resultados. 35 BIOENGENHARIA E BIOTECNOLOGIA APLICADA À BIOMEDICINA Figura 16 – Impressão digital molecular (DNA fingerprint) Em A está representada a sequência utilizada para confecção de sonda empregada na detecção de VNTR. O primeiro íntron do gene da mioglobina possui quatro repetições da sequência mostrada (blocos contendo 33 pb cada). Dentro desta sequência existe um cerne de 13 pb (destaque em negrito) que se repete em outros loci (“locais” diferentes no genoma) de VNTR (além de estar presente na VNTR I, é encontrada na VNTR II e VNTR III). Em B, é mostrado o número de repetições nos três loci VNTR, em três indivíduos. O resultado da separação dos fragmentos do DNA digerido resulta um padrão diferente para cada indivíduo, configurando o DNA fingerprint de cada um. Em C, o DNA fingerprint de mancha de sangue de uma cena de crime é comparada com o DNA fingerprint de sete suspeitos. Você seria capaz de dizer quem estava na cena do crime? Reflita e diga-nos o resultado. Em alguns casos, uma endonuclease de restrição clivará uma sequência apenas se as citosinas do local de reconhecimento não forem metiladas, enquanto outra endonuclease de restrição cortará na mesma sequência somente se essas citosinas estiverem metiladas. Por exemplo, HpaII cliva apenas locais 5 C CGG 3' 3 GGC C 5' ↓ ↑ ′ ′ … … … … não metilados, e MspI, um isosquizômero de HpaII, corta nesta mesma sequência independentemente da metilação da citosina. Este par de endonucleases de restrição é frequentemente usado para determinar o estado de metilação do DNA genômico. Se uma molécula de DNA não 36 Unidade I for cortada por HpaII, mas for clivada por MspI, o local de reconhecimento é metilado. Se ambas as endonucleases de restrição clivam uma molécula de DNA, então o sítio não é metilado. Figura 17 – Enzimas de restrição utilizadas no estudo do estado de metilação do DNA. As enzimas mostradas reconhecem a mesma sequência alvo, porém HpaII não é capaz de clivar a sequência metilada (CH3), enquanto a MspI promove a quebra independentemente do estado de metilação 2.1.2 Vetores para clonagem: plasmídeos, bacteriófagos, cosmídeos e cromossomos artificiais Os vetores funcionam como veículos para entrega do DNA de interesse a uma célula. Além disso, possuem características que são essenciais para o processo da clonagem molecular: eles permitem a estabilidade do inserto, evitando a sua degradação e muitos deles, por apresentarem elementos reguladores, auxiliam na replicação e transcrição do DNA recombinante. Já foi mencionado que os plasmídeos podem funcionar como vetores. Eles correspondem a um DNA dupla fita, circular, extracromossômico e com capacidade de autorreplicação encontrado em bactérias. Figura 18 – Plasmídeos. Os plasmídeos são elementos genéticos independentes encontrados em células de bactérias 37 BIOENGENHARIA E BIOTECNOLOGIA APLICADA À BIOMEDICINA Os plasmídeos podem ser classificados de acordo com a função dos genes que carregam. Alguns deles apresentam genes que possibilitam a sobrevivência da bactéria em ambientes cuja concentração de um determinado antibiótico (como clorafenicol ou ampicilina) é considerada tóxica, por promover a produção de proteínas capazes de degradá-los. Esses genes são conhecidos como genes de resistência aos antibióticos e configuram os plasmídeos R (resistência). Outros, denominados plasmídeos degradativos, apresentam genes que conferem à bactéria a capacidade de metabolizar certos componentes incomuns (como tolueno ou ácido salicílico). Os plasmídeos F (fertilidade) possuem informação para a sua própria transferência a outras bactérias, enquanto os plasmídeos Col codificam para colicinas, proteínas capazes de matar outras. Os plasmídeos de virulência estão relacionados com a patogenicidade das bactérias que os possuem, os plasmídeos Ti (tumor-inducing) da Agrobacterium tumefaciens fazem com que estas promovam a formação de tumores em plantas, caracterizando uma doença conhecida popularmente como galha da coroa. Este plasmídeo é bastante utilizado na produção de plantas transgênicas. Figura 19 – Plasmídeos R. O plasmídeo R pRP4 possui três genes diferentes que conferem à bactéria E. coli resistência aos antibióticos tetraciclina, ampicilina e canamicina. Quando esta bactéria é cultivada em meio líquido em presença de qualquer um destes antibióticos, somente aquelas que apresentarem o plasmídeo serão capazes de crescer. Em contrapartida, as bactérias sem o plasmídeo só poderão crescer em meio sem a presença destes componentes 38 Unidade I Figura 20 – Plasmídeos F. O plasmídeo F é transferido entre bactérias por meio da conjugação. O pilus aproxima as células bacterianas, permitindo a transferência de DNA da célula doadora para a célula receptora Figura 21 – Galha da coroa. A figura mostra a galha da coroa, um tumor que se desenvolveu em uma roseira. Os plasmídeos TI presentes na Agrobacterium tumefaciens induzem este crescimento descontrolado nos tecidos vegetais infectados pela bactéria O tamanho e a quantidade (número de cópias) dos plasmídeos por célula são bastante variáveis e correspondem a um fator bastante importante durante a clonagem molecular. Neste procedimento, é desejável que a célula possua muitas cópias do plasmídeo, o que aumenta as chances de possuir também grande quantidade
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