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ÉTICA - Neri Demetrio - Filosofia Moral

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FILOSOFIA MORAL
MANUAL 1NTRODUTIVO
F
Demetrio Neri
FILOSOFIA MORAL
MANUAL INTRODUTIVO
Tradução
Orlando Soares Moreira
Tilulo original
filosofia moral? — Manual? inlwdulíivo
O 1999 Ediziom Angelo Guerini e Associai i SpA
viale Filippetti, 28 — 20122 — Milano
ISBN: 88-7802-986-6 SUMÁRIO
INTRODUÇÃO
TEORIA
Edições Loyola
Rua 1822 n" 347 - Ipiranga
04216-000 São Paulo, SP
Caixa Postal 42.335 - 04218-970- São Paulo, SP
.£:(()**! l) 6914-1922
&:(()**! I) 6163-4275
Home page e vendas: www.loyola.com.br
Editorial: loyola@loyola.com.br
Vendas: vendas@loyola.com.br
Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta ohm
pode ser reproduzida ou transmitida por qualquer forma
e/ou quaisquer meios (eleírônico ou mecânico, incluindo
fotocópia e i>ra\'a('ão) ou arquivada cm qualquer sistema
ou hanco de dados sem permissão escrita da Editora.
ISBN: 85-15-02826-3
© EDIÇÕES LOYOLA, São Paulo. Brasil, 2004
CAPITUIU PRIMHR": A ÉTICA E O SEU OBILTO 19
1. Questões te r rn ino ióg icas e d e f i n i d o r a s 19
2 Moral, imoral e não moral 21
3. A evolução histórica da moralidade 23
CAPÍTULO sa;iiNi... A ÉTICA DESCRITIVA 27
1 . A ética e o papel das ciências humanas e sociais 27
2. Ética, psicologia e ciência cognitiva 29
3. Ética e desenvolvimento morai 3 1
CAPÍTULO TiiwKiku: A METAÉTICA 35
1. A "guinada linguística" 35
2 Linguagem moral e linguagem comum 36
3. Os termos morais 37
4, O problema do significado 40
CAPÍTULO QUANTO: A ESTRUTURA TEORÉTICA DA ÉTICA NORMATIVA 47
1. As duas formas lundamentais de teoria ética 47
2. Éticas teleológicas 50
3. Éticas deontológicas 52
4. A doutrina do "duplo eleito" 57
5. A intenção 59
, APíTui o OIIIMTO: O PROBLEMA DO FUNDAMENTO
l. Considerações gerais
2 O raciocínio de Sócrates
3 Ontologia e gnosiologia em ética
CAPÍTULO SIXTO: AS VIAS DO FUNDAMENTO
1 O bupenialurali.smo
2 O naturalismo
3. Outras formas de naturalismo
4 O reducionismo e o problema cia autonomia da ética ....
5. O não-naturalismo
CAPÍTULO SFTIMO: O NÃO-COGNITIVISMO
l Realismo, cognitivismo e não-cognitivismo
2. A "lei de Hume"
3. Objetivismo e subjetivismo em ética
4. O relativismo
CAPÍTULO OITAVO: OS "PRECONCEITOS" TEORÉTICOS EM ÉTICA
1. A ant i teoria
2. O preconceito antropocêntrico
3. O preconceito de geração
4 O preconceito sexista
M.CIUNDA 1'ARl'i
HISTÓRIA
CAPÍTULO NONO: AS ORIGENS
1. A moral entre mito, poesia e textos sagrados .
2. O primeiro milénio a.C. no longínquo Oriente
3. O primeiro milénio a.C. no Oriente próximo ...
CAPITULO DÉCIMO: A ÉTICA GREGA
1. Características gerais
2. Os sofistas
3. Sócrates e Platão
4. Aristóteles
69
. 69
71
74
77
7«
83
«3
«5
89
95
99
99
102
105
108
l 13
l 13
115
117
l 19
l 19
120
123
125
5. Estoicismo e epicurismo
6. Os desenvolvimentos da ética grega
CAPITULO DhCIVIO PKIMl.lko: A ÉTICA CRISTÃ
1. O cristianismo e a herança grega
2. Santo Agost i n ho
3 De santo Agostinho a santo Tomás
4. Santo Tomás
5. Os desenvolvimentos da filosofia crislã
CAPÍTULO DLCIMO SL.c.DNDO: A ÉTICA NA ÉPOCA DA SECULAR1ZAÇÃO
1. Referências históricas
2. O jusnaturalisrno moderno
3. Descartes e Spinoza
4. O Iluminismo europeu e lean-lacques Rousseau
5. Emanuel Kant
<CKIKO: A ÉTICA INGLESA
NOS SÉCULOS XVII E XVIII
Hobbes e Locke
As teorias do "sentido moral"
David Hume
O utilitarismo e os seus desenvolvimentos
132
135
CAPÍTULO DLCIMO QUARTO: A ÉTICA NO SÉCULO XIX
1. O idealismo alemão
2. Schopenhauer, Nietzsche e a ética dos valores
3. O positivismo europeu e a ética evolucionista
CAPÍTULO DL.CIMO QUINTO: O PANORAMA DA ÉTICA NO SÉCULO XX
1. Considerações gerais
2. A primeira metade do século: neo-idealismo,
pragmatismo e existencialismo
3. A psicanálise
4. O lugar da razão em ética
5. liirgen Habermas e a ética do discurso
6. O neocontratualismo
7. A sociedade justa de Rawls
8. O prescritivismo universal de l lare
9. As éticas dos direitos
7
141
144
147
152
157
157
159
162
164
167
175
175
179
183
185
195
195
198
201
205
205
206
210
212
213
214
216
218
220
"C.""
t M > | [ Í I I . , hi., i M,, M,XTO. A í.TICA APLICADA..
l O nascimento (ia élica aplicada
2. Ét ica dos negócios e das profissões
l Ética do ambiente
4 Ética para os animais não humanos
^ A bioélira
BIBLIOGRAFIA
223
225
227
231
232
249
INTRODUÇÃO
/•""""x s filósofos moralistas costumam dizer que a disciplina cle-
\ lês se ocupa de problemas morais de "segundo nível" Os
'v~.-'' problemas morais de "primeiro nível" são aqueles com os
quais todos nós estamos ou poderíamos estar comprometidos em
nossa concreta experiência moral. Por exemplo, fazemos muitas
vezes juízos morais sobre pessoas ou ações, sobre práticas sociais
(como a política fiscal do governo ou a questão do aborto], ou sobre
ideais de vida. Às vezes, esses juízos diferem dos de outras pessoas,
e pode acontecer de nos envolvermos numa discussão com os ou-
tros na qual exigimos, ou exigem de nós, que se just i f iquem os
juízos, ou seja, que se ofereçam razões convincentes pelas quais
fizemos certa avaliação. Pode se dar também o caso de o juízo não
se referir ao que já aconteceu, mas dizer respeito a uma escolha
que devemos fazer; também nesse caso sentimos às vezes a necessi-
dade de justif icar a ação que estamos por realizar. Naturalmente
isso não acontece sempre, uma vez que, em geral, o código moral
e os modelos de comportamento que adquirimos mediante os
usuais processos educativos permitem que nos orientemos de modo
sat isfatór io na vida moral comum. Há ocasiões, porém, em que
ficamos em dúvida sobre o que a moral exige seja feito. Pode ser
que as circunstâncias específicas do caso sejam tais que não fica
claro para nós qual das possíveis condutas convém mais a nosso
dever. Pode acontecer também de não conseguirmos identificar
exatamente que dever temos naquele caso, ou de as modalidades
de cumprimento do dever, no caso específico, darem lugar a conse-
quências que nos parecem contradizer outros nossos deveres ou
crenças morais. Enfim, pode se dar o caso (para sorte nossa, muito
raro) em que nenhuma das possíveis soluções indicadas pela mo-
ral comum consiga salvar todos os valores em jogo, e a escolha,
que, aliás, pode ser inevitável, pareça ameaçar nossa própria inte-
gridade moral.
Em todos esses casos (cuja frequência, convém reafirmar, não
deve ser exagerada) as pessoas podem se ver desenvolvendo um
trabalho de reflexão "moral" com o qual o trabalho do filósofo —
que podemos chamar de reflexão "ética" (no capítulo primeiro, § l,
vamos esclarecer o uso desses adjetivos) — está em continuidade
direta, ainda que seja, como se dizia, num segundo nível. Se a re-
flexão moral comum diz respeito ao que fazer aqui e agora, a refle-
xão ética procura responder às mesmas perguntas, mas de forma
mais geral e abstrata ("o que, em geral, se deve fazer e por quê1-1) e
com instrumentos conceituais mais refinados, elaborados no de-
curso da longa história dessa disciplina. O filósofo examina, por
exemplo, a natureza do raciocínio moral e o significado dos termos
usados e se pergunta o que significa justificar um juízo moral ou
uma ação moral; indaga a natureza dos métodos de justificação
para eventualmente estabelecer quais são apropriados e quais não
o são e de que, em última análise (ou seja, no nível do último
fundamento), depende a validade deles. Nessa linha, chega tam-
bém (sobretudo em períodos de grandes mudanças) a levar em
consideração até mesmo os códigos morais para verificar critica-
mente seus pressupostos, a estrutura e os valores que eles incor-
poram, para ver se são adequados às mudanças a que as sociedades
humanas estão sempre sujeitas e se oferecem respostas plausíveis
a essas mudanças; as quais, por sua vez, às vezes, derivam do
surgimento de situações que anteriormente estavam fora do con-
trole humano (por exemplo, as possibilidades que hoje nos ofere-
10
cem os desenvolvimentos da pesquisa científica no campo da bio-
logia) e, portanto, não punham o problema de "o que fazer".
O ponto de partida da reflexão ética é, pois, a experiência moral
concreta,e as teorias éticas têm sentido como reflexo (precisamente
por isso, de "segundo nível") da prática individual do raciocínio
moral, que visa justificar ações e juízos, e da prática social da dis-
cussão pública sobre os problemas morais. O ponto de chegada é
matéria de controvérsia: para alguns, o filósofo moralista deveria
se abster de oferecer soluções para os problemas morais, limitan-
do-se a um trabalho de esclarecimento conceituai, ou, no máximo,
apresentando e analisando os argumentos pró e contra as diversas
soluções que o problema possa ter-, para outros, porém, isso seria
apenas um fútil exercício intelectual, uma vez que o objetivo da
ética é precisamente o de orientar e guiar a ação. Há boas razões
contra e a favor de cada uma das duas perspectivas e provavelmen-
te a verdade esteja no meio-, de um lado, não é provável que o
filósofo examine um problema moral com a mesma indiferença e
desinteresse com que examinaria, por exemplo, um problema de
lógica simbólica; de outro, a finalidade diretiva da ética não com-
porta certamente que o filósofo assuma o papel do moralista ou do
pregador, ou seja, de quem se propõe recomendar e promover a
observância de um certo código moral ou até de dizer ao povo o
que deve ou não deve fazer, em casos concretos e específicos.
Este trabalho tem a proposta de apresentar ao leitor um mapa
sistemático e, quanto possível, completo dos modos como os filó-
sofos moralistas enfrentaram os tipos de problema acima lembra-
dos e dos resultados aos quais eles chegaram com suas pesquisas,
no decurso da longa história desse setor da filosofia.
A estrutura expositiva do livro está dividida em duas partes. À
primeira delas, intitulada simplesmente "Teoria", refere-se em par-
ticular a imagem do mapa sistemático acima usada. A esse propó-
sito é bom frisar que não se tem a pretensão de que a primeira
parte do livro constitua uma exposição exaustiva da estrutura teó-
rica da ética, ou, como às vezes se diz hoje, da "epistemologia" da
ética. Em geral, a epistemologia é a doutrina do conhecimento (do
grego epislcme = ciência, e logos = discurso) e sua tarefa é a de estu-
dar o modo como se estruturam os diversos campos do saber do
ponto de v is ta de seus instrumentos linguísticos e conceituais, das
metodologias de pesquisa e dos instrumentos de prova e de veri-
f icação admissíveis. Falar, portanto, de uma epistemologia da ética
implicaria oferecer uma definição da disciplina, indicar seu âmbito
de competência e determinar seus métodos característicos de pes-
quisa; em essência, significaria assumir um específico ponto de
vista, ao passo que nossa tarefa é de responder a pluralidade dos
pontos de vista. Realmente, embora tenha estado muitas vezes
presente no debate contemporâneo a exigência de que também a
ética tenha uma sua estrutura epistemológica bem definida, as
soluções que se apresentam são de tal forma díspares que a sim-
ples tentativa de reduzi-las a um denominador comum teria signi-
ficado excluir setores inteiros da pesquisa ético-fi losófica.
Pode-se acrescentar também que a ausência de uma estrutura
epistemológica bem precisa e unívoca, ou, pelo menos, amplamente
partilhada, não é um grande ma ; também a filosofia no seu todo
procura há mais de dois mil e quinhentos anos ter uma estrutura
epistemológica definida, mas o fato de não a ter encontrado não
foi grande empecilho para seu desenvolvimento. Pelo contrário, os
riscos maiores para o pleno florescimento da pesquisa fi losófica
verif icaram-se quando um estilo fi losófico (ou uma concepção do
que é a f i losof ia) tentou ou conseguiu se impor, felizmente por
breves períodos, como o único estilo admissível.
Todavia, a tarefa, mais modesta, que a primeira parte do tra-
balho pretende realizar é a de expor a articulação interna do pen-
samento ético em seus aspectos formais e estruturais, com o obje-
tivo primário de oferecerão leitor uma espécie de vocabulário básico
dos termos e dos conceitos usados nas teorias éticas e nos discur-
sos morais. Para retomar a imagem do mapa, digamos que as no-
ções que vamos identificar e ilustrar nesta parte do livro devem ser
entendidas como cartazes indicadores dos grandes rumos de pen-
samento assumidos pelas teorias éticas; os resultados específicos
a que, ao longo desses rumos, as teorias éticas chegaram, em ter-
mos de conteúdo, serão objeto da segunda parte do trabalho.
Vejamos agora a segunda parte do livro, que se int i tu la "His-
tória" e pretende apresentara história da f i losof ia moral do ponto
de vista dos conteúdos. O leitor verá ogo, todavia, que o método
expositivo é apenas em parte cronológico e, de resto, aspectos de
natureza histórica estão contidos também na primeira parte, so-
bretudo no caso de correntes ou fi lósofos do século XX que se
destacam não tanto pelos conteúdos de suas doutrinas quanto
pelos aspectos teoréticos.
A história da ética será exposta aqui em linhas essenciais e
nos momentos mais relevantes do ponto de vista teorético. Com
efeito, basta ver o volume que têm algumas das poucas histórias
da ética que se encontram na Itália (Bourke, 1972; Rohls, 1995) para
compreender por que foi descartada logo a ideia de dar espaço a
todos os filósofos que construíram e defenderam teorias éticas; pro-
vavelmente surgiria uma espécie de galeria de personagens e de
informações, frequentemente repetitivas (e às vezes, infelizmente,
não se pôde evitar isso), que teria impedido de percebera emergên-
cia das estruturas fundamentais do pensamento ético. Preferiu-se,
portanto, renunciar a uma impossível (e, afinal de contas, inútil)
completude, para privilegiar a possibilidade de dar o sentido da
continuidade no tempo dos principais modelos de pensamento
ético, com a percepção das mudanças paradigmáticas, ou seja, as
que determinam as linhas de desenvolvimento nas quais, pelo me-
nos por um certo período, se desenvolveu a pesquisa ética.
A esse propósito é importante ressaltar um ponto. Como se
disse, as teorias éticas partem da vida moral concreta e tematizam,
portanto, ainda que num nível mais abstrato e geral, o mesmo tipo
de perguntas que homens e mulheres, nas diversas épocas e cultu-
ras, se fizeram e se fazem em sua conduta prática. É claro, portan-
to, que, embora no nível de abstração que se destina a uma pes-
quisa filosófica, a ética tem sempre como ponto de referência as
mudanças da vida moral e, por sua vez, induz mudanças, mesmo
com o único feito de legitimar fi losoficamente as novas respostas
que às vezes o povo dá aos problemas morais concretos. Isso sig-
nifica que uma história da ética não pode ignorara natureza dessas
mudanças; mas, ao mesmo tempo em que busca identificar as for-
mas históricas que essas mudanças assumiram nas várias épocas
e nas várias culturas, deveria fazer pesquisa nas obras dos litera-
tos, dos juristas, dos historiadores etc, mais que nas dos filósofos
(Sichirollo, 1985). Por certo não era possível desenvolver esse tra-
balho num texto como este. Limitamo-nos a apresentar, quando
necessário e de modo sumário, as mudanças das diversas épocas,
aquelas em que a mudança do quadro histórico é, por assim dizer,
macroscópica e determina alterações no quadro teórico, induzindo
os filósofos a encontrar novas respostas ao problema de qual é o
contexto teórico mais adequado para a interpretação das mudan-
ças reais. Naturalmente não se deve pensar numa mecânica corres-
pondência entre mudanças reais e mudanças teoréticas. Trata-se
de processos muito lentos, dificilmente perceptíveis a quem os vive
por dentro: afinal de contas, a grandeza de um filósofo consiste
também na sua capacidade de perceber antes dos outros a nature-
za das mudanças e em saber notá-las, muitas vezes precedendo a
lenta maturação dos tempos.
Temos, enfim, de deixar claro um último ponto. A parte histó-
rica abre-se com um capítulo dedicado às grandes tradições mo-
rais, muitas vezes com fundamento religioso, que informaram, e
substancialmente ainda informam, a moralidade como forma con-
creta de vida de uma grande parte da humanidade.Essas referên-
cias, muito raras, servem apenas para convidar o leitor a levar se-
riamente em consideração a ideia de que o mundo dos homens e
das mulheres não se exaure na parte dele em que por acaso nos foi
dado nascer e viver. Isso — em segundo lugar — tem uma particu-
lar importância para os estudantes do curso de licenciatura em
ciências da educação, que em seu currículo já enfrentam as temá-
ticas abrangidas pelo nome de pedagogia intercultural (Sirna, 1997),
uma nova disciplina destinada a aproximar os futuros educadores
de uma realidade agora inevitável, ou seja, o fato de que nós vive-
mos em sociedades que são agora e mais ainda no futuro serão
pluriétnicas e multiculturais. Uma ação educativa que ignorasse
ou subestimasse isso correria o risco de separar-se mais ainda da
realidade social.
14
Poderia parecer em contraste com o que foi dito o fato de que,
em nossa reconstrução histórica, haja um capítulo dedicado aos
desenvolvimentos filosóficos da ética cristã, ao passo que nada do
género aconteça com as outras tradições morais. Isso depende, em
parte, dos limites de espaço impostos a um texto como este e, em parte,
da pouca competência no assunto por parte de quem escreve: enfren-
tara filosofia oriental (que existe e que, em certas épocas, influenciou
a filosofia ocidental) e identificar nela uma parte especificamente
dedicada à ética teria provavelmente significado aplicar a ela os
esquemas de pensamento próprios da filosofia ocidental, com o
risco de mal-entendidos e equívocos.
Dirige-se o livro principalmente aos estudantes que, em seu
plano de estudos, têm pela frente a filosofia moral e aos docentes
dessa disciplina que muitas vezes são obrigados a dedicar a pri-
meira parte do já reduzido tempo didático a uma ilustração sumá-
ria das noções básicas da filosofia moral. Esse objetivo didático
levou-nos a não tornar pesada a exposição com a citação das nu-
merosas notas que teriam sido necessárias; indicaremos, porém,
as fontes principais na seção "Bibliografia", à qual poderá recorrer
quem eventualmente se sentir estimulado pela leitura do livro a
aprofundar as questões tratadas. Onde possível, deu-se preferên-
cia às obras acessíveis ao leitor brasileiro e nas quais se oferecem
mais informações bibliográficas.
O autor, todavia, alimenta também a esperança de que o livro
possa servir a um público mais amplo que queira ter os primeiros
instrumentos para se orientar no debate ético atual. Muitos notam
hoje um renascimento do interesse pela ética que — inclusive por
causa da complexidade e às vezes novidade dos problemas que se
nos apresentam, por exemplo, no campo da medicina e da pesquisa
científica — parece envolver um público cada vez mais vasto e aten-
to, que deseja entender para ser capaz de formar a própria opinião
e, no caso, de assumir com maior consciência as próprias decisões.
Naturalmente, o estudo da ética não faz os homens melhores
e, de resto, todos nós conhecemos pessoas moralmente íntegras
que jamais leram um livro de filosofia moral. Aristóteles, no final
15
de urna das obras ma i s importantes da h is tór ia da é t ica , já se per-
g u n t a v a se os raciocínios f i lo só f i cos sobre coisas como a v i r t u d e , a
amizade e o prazer eram "su f i c i en te s para nos t o r n a r pessoas de
bem"; se isso fosse verdade, concluía ele , então os raciocínios " t ra-
r iam mui tas e grandes recompensas e seria necessário fazer provi-
são deles" (Anstóteles , 1983, p. 269), t:, recentemente, a l g u n s f i l ó -
sofos chegaram até a dizer que a f i losof ia f a r i a me lhor em se abster
de construir teorias éticas que, al iás , ao querer pôr ordem na ma-
téria t ra tada, são sempre excessivamente s i m p l i f i c a d o r a s e não
conseguem quase nunca perceber i n t e r n a m e n t e a complexidade e
heterogeneidade da experiência moral concreta. Isso pode ser ver-
dadeiro, mas seria erróneo c o n c l u i r daí que o t r aba lho teórico seja
apenas um jogo in t e l ec tua l to ta lmente pr ivado de relação com a
práxis social, na qua l todos nós nos encontramos envolvidos e na
q u a l às vezes nos encontramos d ian te de problemas aos qua i s o
senso comum dá respostas insatisfatórias.
Que a j u d a podemos então esperar da f i l o s o f i a — sempre que
sent i rmos sua necessidade — para nossa vida moral concreta? O
quadro delineado por este livro não parece encorajador: há uma ampla
discórdia sobre grande parte das questões que pertencem à ética.
Poderíamos então dizer que não tan to uma específica teoria éti-
ca quanto o próprio empreendimento da reflexão ética em seu todo
podem nos a j u d a r na d i f í c i l tarefa de viver conscientemente nossa
vida moral .
P R I M E I R A PARTE
TEORIA
16
CAPITULO PRIMEIRO
A ÉTICA E O SEU OBJETO
l. Questões terminológicas e definidoras
este trabalho, os adjetivos ético e moral serão usados de
L maneira quase equivalente, com certa prevalência para o
4. primeiro, cjujmdp nos referirmos a aspectos formais e
teoréticosjda disciplina (falaremos de "teorias éticas" ou de "méto-
dos da ética"), ao passo que o segundo será utilizado de preferên-
cia em conexão com aspectos de conteúdo (uma norma ou um
princípio que indiquem o que se deve ou não se deve fazer serão
em geral chamados de "norma moral" e "princípio moral"). Esse
uso é justificado pela etimologia dos termos. O adjetivo ético de-
riva do grego ethos, que significajcostume, modo habitual de agir,
hábito; os jnesmos significados tem o termo latino moralis (de mós
= costume) empregado pelo escritor romano Cícero para traduzir o
termo grego, que, na forma plural, aparecia no título de duas im-
portantes obras de Aristóteles (Ética a Nicômaco e Ética a Eudcmo),
destinadas a tratar de "coisas referentes aos costumes, aos modos
habituais de agir". .;->'"
Desses adjetfvos derivam os substantivos ética e moral, Bam-
bem eles muitas vezes usados de modo equivalente na linguagem
comum, mas com várias diferenças dependendo dos contextos
l inguíst icos e cu l tu ra i s ; em ita iano, por exemplo, costumamos
empregar a pa lavra "mora l" para f a l a r do comportamento concreto
dos ind iv íduos e dos grupos sociais, mas também para i n d i c a r o
c o n j u n t o das normas e dos pr inc íp ios nos q u a i s se i n s p i r a a con-
duta e, e n f i m , para i n d i c a r o estudo do que se refere aos fatos
morais. Np_campo filosófico, tentou-se mui tas vezes i n t roduz i r dis-
tinções mais precisas entre o âmbi to da ética e o da mora l . Com
frequênc ia , todavia, essas distinções são plenamente compreensí-
veis somente dentro do sistema f i losóf ico no q u a l se s i t u a m , como
é, por exemplo, o caso da dist inção in t roduz ida pelo f i lósofo ale-
mão Georg W. F. Hegel (veja-se o capítulo décimo quar to , § l ) na
sua Filosofia dodireilo entre '[moralidade" como dimensão subje t iva
da conduta humana e "etjcidade" como conjunto das normas e das
inst i tuições em que se realiza objet ivamente o elhos de um povo e
que c u l m i n a no Estado (Hegel, 1974); ou pressupõem uma deter-
m i n a d a interpretação do desenvolvimento his tór ico da ética (que
obviamente não podemos pressupor a q u i ) , como acontece no caso
da proposta de usar o termo moralidade para indicar uma part icu-
lar d i m e n s ã o da é t ica , p róp r i a da c u l t u r a oc iden ta l moderna
( W i l l i a m s , 1987). Uma vez que não era possível levar em conside-
ração essas e outras propostas def in idoras no presente t r aba lho —
seguindo, a l i á s , um uso l inguís t ico bastante consolidado no deba-
te teórico —, ao estudo f i losófico do que consti tui o fenómeno
moral será reservado o termo ética (às vezes substituído por " f i lo -
sofia mora l" ) , ao passo que o objeto da ética será genericamente
indicado pelo termo moral idade, às vezes substituído por moral
em contextos nos quais esse substantivo é seguido de especi-
ficações, como, por exemplo, "a moral dos gregos" ou "a moral de
senso comum".
Não há uma especial razão para adotar essa te rminologia se-
não a simplesexigência de i n d i c a r o modo como um termo será
usado, sem preclusões preconceituosas a respeito do que entra na
constituição da ética ou da moral idade. É por essa razão que evi-
tamos f o r m u l a r ou adotar definições mais precisas. As definições
são convenções l ingu ís t i cas que servem para traçar f ron te i r a s , a
ponto de i d e n t i f i c a r o fenómeno de que se quer f a l a r , separando-o
de outros fenómenos: mas no nosso campo essa é exatamente a
p r i m e i r a questão controversa, uma vez que é o próprio fenómeno
de que nos ocupamos (seja ou não chamado de moral idade) que
escapa a uma precisa determinação, tanto no p lano teorético como
no plano histórico.
* 2. Moral, imoral e não moral
Consideremos a afirmação "esta é uma ação moral". Ela pode
ser entendida de dois modos. O primeiro é que com ela — como
acontece usualmente na linguagem comum — se quer exprimir uma
avaliação positiva da ação (em caso contrário teríamos dito "imo-
ra l " ) , usando, pois, moral como equivalente a "certo ou bom do ponto
de vista da moralidade". Esse uso não está errado, mas é evidente
que pressupõe como já resolvido o problema prior i tár io de saber
por que essa determinada ação cai no âmbito da moralidade.
Existe, com efeito, um segundo modo de entender essa ex-
pressão e com ele se quer simplesmente dizer que aquela ação
pertence ao âmbito da moralidade e, por isso, é susceptível de ser
avaliada do ponto de vista moral , avaliação que poderá, a l iás , ser
positiva ou negativa; com efeito, a ética se ocupa tanto da vir tude
como do vício, do bem como do ma l . O contrár io de moral usado
neste segundo modo é "não moral", que não quer dizer "negativo
do ponto de vista moral", mas simplesmente "não pertencente ao
âmbito do que é moral".
É possível i d e n t i f i c a r um critério unívoco que nos permita
identif icar o fenómeno moral como objeto de consideração da éti-
ca? A resposta a essa pergunta é negativa. Quase todas as teorias
éticas pressupõem a lgum critério, e isso não é estranho porque, na
realidade, toda a história da ética poderia ser reconstruída com
base nas respostas dadas a essa pergunta.
Por exemplo, a uma teoria, que sustentasse que em moral
temos de l i d a r com normas ou princípios relativos a condutas que
21
têm consequências sobre os outros, uma outra teoria poderia ob-
jetar que isso deixa de fora toda uma área da moralidade que diz
respeito à interioridade da pessoa ou, como se diz, os deveres para
consigo mesmo; e, às duas, uma terceira teoria poderia fazer a
observação de que, além das obrigações para com os outros e para
consigo mesmo, existem também as obrigações para com a divin-
dade. Às vezes se afirma que, para identificar o.âmbito do que é
moral, pode-se fazer referência a um elemento subjetiyo, ou seja,
à particular importância que as pessoas anexam a certas condutas
práticas ou normas ou valores. Essa importância acompanha a
consciência de se sentir alguém obrigado a um cumprimento, ao
passo que a transgressão gera sentimentos de culpa ou de remor-
so. A ideia descreve sem dúvida uma experiência que todos nós
podemos encontrar, mas é difícil assumi-la como critério geral, pois
faz referência a elementos subjetivos que não são susceptíveis de
grandes variações de indivíduo a indivíduo, para não falar da varie-
dade entre indivíduos pertencentes a diversas culturas ou socieda-
des. Nem podemos nos livrar do embaraço dizendo que o domínio
do que é moral assim identificado corresponde objetivamente ao
que, nas diversas épocas e nas várias culturas, foi sentido como tal.
Com efeito, é claro que essa reposta é apenas parcialmente
satisfatória. Ficaria sempre a pergunta: sentido por quem? Por toda
a sociedade, pela maioria de seus membros, ou pela classe domi-
nante? De fato, não parece plausível pensar que tenham existido
ou existam sociedades tão unitárias internamente que se possa
afirmar com segurança que esses critérios subjetivos acabem por
coincidir com os critérios objetivos em base dos quais considerar
uma certa conduta, ou norma, ou princípio, como pertencente ao
âmbito da moralidade e, portanto, susceptível de apreço ou de
reprovação moral. Se isso fosse aceitável, seria muito difícil expli-
car a própria evolução das formas de vida moral, em que a inova-
ção e o desenvolvimento são muitas vezes gerados por poucos
indivíduos cujo sentimento não era evidentemente conforme com
o sentimento comum.
22
Um modo diferente de resolver o problema pode ser o seguin-
te. Não se deve exagerar o alcance das variações subjetivas e obje-
tivas em referência à distinção entre moral e não moral. Essas va-
riações existem, sem dúvida alguma, como nos ensinam as pesqui-
sas históricas e sócio-antropológicas, mas as mesmas pesquisas
mostram que essas variações acontecem num campo cujas frontei-
ras poderiam ser traçadas com o recurso a uma série de práticas
que se mostram universalmente importantes, como a disponibili-
dade para com os outros, a sinceridade, a manutenção dos acor-
dos, o não-matar, e assim por diante. Essa tese é uma versão
moderna de uma antiga teoria, segundo a qual todo homem pos-
sui por natureza algumas noções morais e nós podemos identificá-
las ao recorrermos ao "conselho das gentes". Embora atualizada,
com base nas pesquisas antropológicas que fizeram tal "consenso"
assumir uma dimensão transcultural, essa tese nos oferece uma
boa indicação de princípio, mas não pode funcionar como critério
unívoco para distinguir a área das práticas que pertencem à moral
da de outras práticas moralmente neutras ou indiferentes. Para nos
darmos conta disso, procuraremos agora oferecer uma caracteriza-
ção descritiva da evolução da moralidade, recomeçando da
etimologia. Como foi observado, uma palavra não se livra jamais
do modo como se formou: a ideia originária permanece, a despeito
das mudanças, das ampliações e dos acréscimos de significados.
3. A evolução histórica da moralidade
Numa época que se pode situar há cerca de dez ou doze mil
anos, o género humano começou a passar de formas de existência
migratória a formas associativas suficientemente estáveis num dado
território. Nas condições primitivas, uma vida associativa estável re-
quer grande coesão interna do grupo e é, portanto, aceitável pensar
que modelos de comportamento espontaneamente formados em
relação aos fins fundamentais da comunidade tenham sido pouco
a pouco consolidados, tornando-se usos, costumes e hábitos par-
23
tilhados que diziam respeito aos mais importantes, mas também
aos menos importantes, aspectos da vida associada/A moralidade,
como forma concreta da vida associada, constituída pelo conjunto
das regras e das representações dos valores do grupo, desenvol-
veu-se com base no desejo de manter e defender costumes sociais
.importantes, necessários para a consecução do equilíbrio social
interno e da defesa externa. As prescrições que visavam impedir as
violações dos costumes possuíam uma especial autoridade, prove-
niente de sua importância social, mas ulteriormente reforçada pelo
fato de fazer provir de uma fonte_di.vina essa. autoridade. _Nas ori-
gens, as estruturas da moralidade es tavam estrei tamente
entrelaçadas com as'esfruturas sociais e políticas e com as experi-
ências religiosas, constituindo um todo unitário que, pelo menos
nas culturas antigas, estava também integrado a crenças gerais sobre
a ordem cósmica e o lugar que o homem tem nessa ordem.
Esse caráter global do fenómeno moral refletiu-se logo na
própria estruturação teórica da ética. O filósofo grego Sócrates, a
quem se atribui ter dado início à reflexão ético-filosófica, punha no
centro dessa reflexão a pergunta "Como se deve viver?", que exigia
o esboço de um completo e onipresente ideal de vida. E Aristóteles,
que foi o primeiro grande sistematizador da ética, situava-a na fi-
losofia prática, ou seja, na parte da filosofia que se ocupa da práxis,
da ação humana nas três dimensões que Aristóteles via estreita-
mente entrelaçadas: ética, política e economia. Esse caráter unitá-
rio de aproximaçãoaos problemas da conduta prática (que, por
exemplo, na Alemanha, permaneceu no ensino universitário, pelo
menos até o final do século XVIII) passou, a partir da época moder-
na, por um processo de "especialização" e de recíproca "autono-
mização" dos âmbitos. Hoje, fazemos distinção entre o âmbito da
economia e da política e o âmbito da ética e, todavia, estamos con-
vencidos de que também nos dois primeiros âmbitos — embora
regidos por regras e por critérios internos — há problemas de natu-
reza moral: muitas vezes, por exemplo, nos perguntamos se determi-
nado ato legislativo é justo ou se certo modo de produzir bens (por
exemplo, fazendo as crianças trabalharem) é moralmente correto.
24
Mas o processo de "especialização" considerou também o
universo das normas, dos princípios e dos valores-, para retomar a
etimologia, nem todos os costumes e modelos habituais de conduta
(como, por exemplo, poderiam ser os relativos ao comportamento
à mesa ou aos modos de cumprimentar os superiores) são igualmen-
te importantes para a vida associada e, portanto, nem todos passam
a fazer parte do que hoje comumente chamamos de moralidade.
Isso se reflete, por exemplo, no fato de que uma transgressão ao
tipo de modelos de conduta acima lembrados pode provocar mau
humor ou mágoa, ou até desaprovação; mas, no plano intuitivo, nós
distinguimos a desaprovação por um ato de descortesia da desapro-
vação por um ato "moralmente" reprovável. É difícil, porém, indicar
esse limite em abstraio: atos que até há poucos anos suscitavam
uma forte reprovação moral (por exemplo, no campo da sexualidade),
hoje não a suscitam mais e, às vezes, quem se obstina em demonstrar
reprovação ou até atitudes de discriminação em relação a certas
práticas é que se torna objeto de censura.
Por outro lado, alguns hábitos de vida mostraram-se de tal
modo importantes que se pensou que a violação deles merecesse
algo mais que a simples desaprovação, ou seja, uma sanção legal.
O direito reúne e sanciona muitos desses hábitos, mas seu âmbito
não se sobrepõe ao da moralidade. As leis certamente são também
veículo de normas de valor moral, mas não se diz que tudo o que
pertence ao âmbito do que é moral deva se traduzir em leis; nem,
muito menos, que o que a lei permite ou veda se torne por isso
mesmo moral ou imoral. Se, por exemplo, num país onde o aborto
é permitido por lei, uma pessoa diz: "Aquela mulher tem o direito
de abortar, mas isso é moralmente errado", a sua asserção é perfei-
tamente compreensível, tem sentido completo. Isso torna evidente
a distância que existe entre moral e direito (que muitos, pelo me-
nos nas sociedades ocidentais, consideram uma coisa apreciável),
mas também a dificuldade de marcar limites nítidos entre os res-
pectivos âmbitos.
Como conclusão, parece que o âmbito da moralidade, em sen-
tido descritivo, apresenta uma grande variabilidade sob o perfil
25
•-•i
IÍOKIA
histórico e uma certa indeterminação intrínseca ou ambiguidade
sob o perfil da sua estrutura fotografada, por assim dizer, num dado
momento histórico. O que emergiu é, porém, um dado importante:
a ética tem que ver com um território que é objeto de estudo de
muitos outros campos do saber e, portanto, o primeiro problema
que se deve enfrentar é o de identificar a que tarefa específica a
ética se propõe ao tomar como objeto a conduta humana prática.
Como veremos logo, nem esse problema recebeu resposta unívoca
na história dessa disciplina. Para abordá-lo, vamos partir da divisão
interna do pensamento ético segundo a distinção, hoje tradicional,
entre ética descritiva, metaética e ética normativa.
CAPÍTULO SEGUNDO
A ÉTICA DESCRITIVA
1. A ética e o papel das ciências humanas e sociais
A
locução "ética descritiva" estabelece, no plano teórico, dois
diferentes problemas. O primeiro consiste em saber se, com
essa expressão, se quer indicar um primeiro nível da pes-
quisa ética, que vise o reconhecimento do sistema de crenças morais
(normas, princípios, valores e modelos de conduta) que os indiví-
duos ou os grupos sociais de fato possuem e segundo os quais
conduzem em geral sua vida, ou se essa expressão designa uma
autêntica forma de ética, capaz de exaurir totalmente as tarefas da
ética. O segundo problema diz respeito à relação entre ética e as
outras disciplinas ou ciências que se ocupam da conduta humana
e o papel que elas podem desempenhar na ética.
Quanto ao primeiro problema, deve-se observar que houve
épocas em que a filosofia ficou muito fascinada com o modo de
proceder das ciências matemáticas e das ciências naturais, e, so-
bretudo, com os resultados por elas obtidos. Assim, os filósofos
foram induzidos a pensar que, se a filosofia conseguisse imitar o
modo de proceder daquelas ciências, poderia acabar com as dispu-
tas sem fim que o panorama filosófico usualmente apresenta. No
século XVII, por exemplo, quando o modelo de ciência era a geo-
27
metria, era usual observar que, se não havia disputa sobre o que
era o triângulo, havia um grande desacordo sobre o que fosse o
bem Alguns filósofos (por exemplo, Hobbes e Spinoza) afirmavam
que também a ética podia ser construída com base no modelo da
geometria, na esperança precisamente de poder atingir nela a
mesma certeza irrefutável que as demonstrações geométricas apre-
sentavam. No século XIX, no âmbito da corrente do positivismo,
era a ciência natural desenvolvida a partir de Galileu que represen-
tava o modelo. Sustentava-se, então, que nela deviam se inspirar
as outras ciências e em particular a sociologia, a qual, segundo o
pensamento do fundador do positivismo, Augusto Comte (1798-
1 8 5 7 ) , devia fornecer as bases para a cr iação de uma nova
moralidade adequada à época da sociedade industrial. Enfim, na
primeira metade do século agora findo, o neopositivismo lógico
(de que falaremos logo) chegou mesmo a excluir a possibilidade
de a ética estar entre as disciplinas capazes de produzir conheci-
mentos verdadeiros, se não se reduzisse ao estudo psicológico dos
movimentos observáveis do comportamento humano ou à explica-
ção do modo como surgem e funcionam as crenças morais.
A ética, sendo descritiva, deveria se limitar, portanto, a estu-
dar a moralidade nas suas concretas formas históricas, dadas em
todas as sociedades e em todas as culturas, e em seu normal fun-
cionamento. Leva também em consideração, obviamente, os valo-
res e os fins, mas deve entendê-los como simples dados de fato, ou
seja, na medida em que a orientação aos valores representa um
aspecto importante da conduta humana social sobre o qual é pos-
sível realizar pesquisas empíricas que, como tais, excluem o recur-
so a juízos de valor. A sociologia, por exemplo, leva em considera-
ção esse aspecto da conduta humana e o estuda na sua dinâmica
fatual, ou seja, considerando que o ponto de vista orientado aos
valores produz mudanças na realidade social. Mas uma pesquisa
desse género deve se manter num plano "avaliatório", deixando,
portanto, cair as questões relativas ao por que se escolhem ou se
perseguem determinados valores mais que outros (Weber, 1958).
28
Segundo muitos f i lósofos moralistas, todavia, se a ética tives-
se de ser concebida dessa maneira, então não teria sentido mante-
la como discipl ina separada, pois o trabalho que ela deveria de-
senvolver já é desenvolvido por muitas outras discipl inas como a
his tór ia , a etnograf ia, a antropologia, a l inguística, a sociologia, a
psicologia etc. Não há dúvida — e, a respeito, veremos um exem-
plo mais adiante — de que essas discipl inas podem dar uma gran-
de contribuição a ética e ate se pue coiii força cada vez maior, no
debate mais recente, a exigência de dispor de boas pesquisas
empíricas sobre alguns dos mais importantes problemas que a ética
até agora enfrentou de maneira puramente especulativa. Mas, de
acordo com muitos, isso não implica que ela deva acabarem socio-
logia moral, em psicologia moral e assim por diante; ou deva, no
máximo, ser entendida como "técnica da conduta humana" e ut i l i -
zada para reforçar a estabilidade e a coesão internados grupos
sociais. São certamente valores importantes em todas as socieda-
des, mas quando se pergunta por que o são, ou se ja , com apoio em
que razões, é claro que se sai dos esquemas da ética descrit iva
2. Ética, psicologia e ciência cognitiva
A psicologia pode ser sumariamente definida como o estudo
dos processos psíquicos e mentais de tipo cognitivo (ou seja, refe-
rentes ao modo como funciona o conhecimento) e de tipo afetivo
(ou seja, referentes às emoções, às paixões, aos sentimentos etc.)
relativos à vida e à conduta humana individual. Os filosofeis deram
sempre grande atenção ao funcionamento da mente humana, às
suas faculdades e ao seu modo de operar e, especialmente em ética,
frequentemente estudaram as paixões e os sentimentos, em geral
para procurar estabelecer se são ou não impedimento ao agir moral
e como é possível neutral izar seus efeitos, mas às vezes também
para neles fundar o próprio agir moral. Além disso, em muitas teo-
rias éticas, exercem um papel importante noções como o egoísmo
e o altruísmo ou como a benevolência e a simpatia. Mas a dinâmica
psicológica a que remetem essas noções e o modo como elas influ-
enciam a conduta eram questões que os filósofos examinavam de
modo abstrato (referindo-se, por exemplo, a uma teoria geral da
natureza humana), ou nas quais se serviam de esporádicas obser-
vações que muitas vezes exprimiam mais as próprias convicções
pessoais sobre o que deve motivar a conduta do que as reais estru-
turas motivacionais do agir.
Desde quando nasceu a psicologia científica, somos capazes de
saber muito mais coisas sobre esses assuntos, e hoje as pesquisas
que dizem respeito a tais aspectos valem-se também da aproxima-
ção à "ciência cognitiva", que é constituída por um grupo de discipli-
nas (psicologia cognitiva, linguística, neurociência, inteligência arti-
ficial) unidas pelo objetivo de elaborar novos métodos científicos e
experimentais para estudar um dos mais importantes e tradicionais
problemas da filosofia, o do funcionamento da mente humana, in-
clusive em seus aspectos de mais estreita competência da ética.
Dessas pesquisas surgiram, por exemplo, resultados interessantes
sobre o modo como se formam as noções morais e sobre os tipos de
processo que dominam na formulação dos juízos morais; fizeram-
se pesquisas empíricas sobre o papel da empatia (ou seja, a capa-
cidade de assumir o ponto de vista de uma outra pessoa), que está
na base do comportamento altruísta e que determina a capacidade
dos indivíduos de aceitar os vínculos morais. Os filósofos moralistas
sempre se perguntaram se os seres humanos são de tal modo cons-
tituídos que sejam capazes de satisfazer as exigências da moralidade.
Essas pesquisas podem nos ajudar a compreender melhor quais
vínculos psicológicos uma teoria ética deve respeitar para estar ao
alcance dos seres humanos como realmente são.
A esse propósito, um psicólogo americano falou de um "princí-
pio de realismo psicológico mínimo", segundo o qual, ao elaborar
um ideal moral, é preciso fazer com que o modelo de comportamen-
to prescrito esteja ao alcance de criaturas como nós (Goldman, 1966).
Se tentássemos aplicar esse princípio às principais teorias éticas,
não seria difícil nos darmos conta de que elas exigem do homem
comum muito mais do que razoavelmente se deveria pretender.
3. Ética e desenvolvimento moral
Um segundo aspecto importante da relação entre teoria e
psicologia diz respeito ao elemento dinâmico do comportamento
moral. É certo que as nossas crenças morais comuns são condicio-
nadas pelo contexto no qual vivemos e do qual, no decurso do
processo educativo normal, aprendemos o conjunto dos valores e
dos modelos habituais de comportamento que depois usamos na
vida cotidiana. No processo educativo que normalmente é ofereci-
do por todas as formas de comunidades mediante a família, a es-
cola, a pertença a um credo religioso etc, o código moral é interio-
rizado por meio de procedimentos cujas modalidades foram, por
longo tempo, ignoradas ou, pelo menos, não suficientemente ana-
lisadas pelos filósofos moralistas. E também hoje, apesar dos es-
tudos sobre que vamos logo falar, emerge de muitas áreas da pes-
quisa ética — como lembrávamos — a exigência de desenvolver
um trabalho de pesquisa empírica mais cuidadosa sobre as estru-
turas do comportamento moral e sobre o papel que os traços da
personalidade podem ter na decisão moral e, portanto, no compor-
tamento. E como esses traços não são estáticos, ou seja, dados de
uma vez por todas, mas dinâmicos, porquanto resultam do proces-
so educativo e, todavia, em contínua evolução, há um forte interes-
se em saber como se une o desenvolvimento moral com o desen-
volvimento psicológico e cognitivo mais geral. Pioneiro nesse cam-
po de estudos foi o psicólogo suíço lean Piaget, que, já em 1932,
publicou um estudo (O juízo moral na criança) em que distinguia duas
grandes fases do desenvolvimento moral. A primeira fase é marcada
por um comportamento moral centralizado na noção de "respeito"
pelo adulto, em quem a criança deposita confiança: é uma moral
da obediência às ordens, e a noção de bem se identifica com a
execução das ordens. O respeito pela autoridade do adulto é uma
mescla de afeto e de temor e constitui a base da consciência moral,
cuja forma autónoma começa a se desenvolver a partir dos sete,
oito anos, no contexto de um processo de socialização cada vez
maior dos comportamentos. Com efeito, é no âmbito da comuni-
31
(Jade in fan t i l e do jogo que a criança começa a desenvolver o sen-
t imento das obrigações recíprocas e a ideia do agir com base em
regras por responsabilidade e não por coerção, iniciando assim um
processo de conquista da independência do juízo moral, estreita-
mente conexo com o processo de aperfeiçoamento das habil ida-
des cognitivas a respeito das quais Piaget oferece uma série de
interessantes considerações (Piaget, 1980).
Os estudos de Piaget e da sua escola foram depois retomados
e aprofundados, a partir dos anos 1960, pelo psicólogo americano
Lawrence Kohlberg, e foi sobretudo graças a esses estudos que as
questões do desenvolvimento moral entraram no debate ético atual.
O interesse por esse tipo de estudos é testemunhado, por exem-
plo, pela atenção que a eles dedica o fi lósofo John Rawls na parte
final de Uma teoria da justiça ( 1 9 7 1 ) , livro sobre o qual teremos oca-
sião de voltar, em que ele mostra como os processos de aquisição
do sentido de just iça, por parte dos membros da sociedade, são
essenciais — e devem, por isso, ser atentamente estudados — à
estabilidade de uma sociedade bem ordenada.
Os estudos de Kohlberg (oram depois amplamente utilizados
no contexto de uma recente e interessante aproximação à ética por
parte do filósofo lurgen Habermas, com a sua Ética do discurso ( 1 9 8 3 ) .
Portanto, é conveniente expor brevemente suas linhas fundamen-
tais. Kohlberg distinguiu três níveis do desenvolvimento moral, cada
um dos quais compreende duas fases, num total, portanto, de seis
fases ou estágios. Os níveis são chamados de pré-convencional,
convencional e pós-convencional, e constituem uma divisão mais
detalhada das fases identificadas por Piaget. No estágio l do pri-
meiro nível, por exemplo, a criança concebe a moralidade em ter-
mos de obediência à autoridade, que tende a evitar punições, e
isso parece corresponder ao comportamento moral das socieda-
des primitivas. O último estágio é o do pensamento moral abstrato
e universalista a que corresponde um comportamento moral autó-
nomo, orientado pela racional idade e pela noção de dever. O pon-
to interessante, mas também muito controverso e discutido, é que
Kohlberg estabelece não apenas um paralelismo entre desenvolvi-
mento psicológico-cognitivo e desenvolvimento moral (já identif i-
cado por Piaget), mas aprofunda essa tese sustentando que o de-
senvolvimento moral e cognitivo acontece segundo um invariável
movimento para o alto, e que os estágios são ordenados segundo
uma estrutura hierárquica, no sentido de que o estágio superior é
tambémo estágio mais adequado do ponto de vista do valor dos
comportamentos. O desenvolvimento acontece por meio da aqui-
sição da competência em resolveres conflitos e os dilemas morais,
e isso significa que, por meio de instrumentos de pesquisa empírica,
é possível verificar em que estágio um indivíduo parou ern seu
desenvolvimento moral: basta estudar o modo como ele enfrenta
os dilemas morais. Dado o paralelismo entre desenvolvimento
cognitivo e desenvolvimento moral, dever-se-ia deduzir de tudo isso
que, assim como se fala de déficit cognitivo, dever-se-ia falar tam-
bém de déficit moral. Por exemplo, um adulto cujas capacidades
cognitivas são iguais às de uma criança de cinco ou seis anos, tal-
vez não atinja o 4° estágio de desenvolvimento moral. Esse é um
dos pontos mais controversos e discutidos das pesquisas de
Kohlberg e foi particularmente criticado no âmbito da abordagem
"feminista" à ética (de que falaremos no capítulo oitavo, § 4). Inte-
ressa-nos aqui ressaltar que, para falar de déficit moral com refe-
rência, por exemplo, a quem enfrenta os problemas morais com a
aproximação própria do 5° estágio (que corresponde a uma moral
utilitarista) comparado com quem os enfrenta com a aproximação
do 6° estágio (que corresponde a uma moral dos deveres), é preci-
so considerar como óbvio que esse último tipo de moralidade é
superior ao primeiro. Kohlberg, com efeito, considera isso óbvio,
mas essa é uma avaliação pessoal dele sobre a qual não se pode
certamente dizer que haja uma convergência unânime no debate
ético. Em vez de se limitar a pôr em destaque as dinâmicas que
governam os comportamentos humanos, mediante o estudo de suas
condições psicológicas fatuais, Kohlberg pretendeu resolver, por
via psicológica, o problema do valor dos comportamentos morais
e das éticas que as inspiram (Kohlberg, 1981) . É claro, porém, que
isso extrapola os limites de uma disciplina como a psicologia.
CAPÍTULO TERCEIRO
A METAÉTICA
1. A "guinada linguística"
O
termo "metaética" foi cunhado pelo filósofo inglês Alfred ).
Ayer, por volta do fim dos anos 1940, para indicar o tipo de
aproximação à ética (de que ele próprio fora protagonista)
que se desenvolvera na Inglaterra, na primeira metade do século
XX, no âmbito de uma corrente filosófica mais geral denominada
"filosofia analítica" ou "filosofia linguística". Como tais locuções
dão a entender, essa corrente sustenta que os problemas dos quais
tradicionalmente tinha se ocupado a filosofia e sobre os quais os
filósofos tinham feito pesquisas sem fim (e sem solução) eram na
realidade, sobretudo, problemas de linguagem, criados por erros
ou equívocos puramente linguísticos e que, portanto, podiam ser
resolvidos (e até desfeitos), bastando para isso demonstrar sua
insensatez mediante uma cuidadosa análise da linguagem
(D'Agostini, 1997). Em ética, essa aproximação traduziu-se numa
exclusiva atenção à análise do significado e da função dos termos
(em especial "bom" e "correto") usados na linguagem moral, bem
como à pesquisa das regras lógicas que guiam seu uso. O objetivo
era ver se, pela análise da linguagem, seria possível compreender
o que é e como funciona a moralidade.
35
Na realidade, a atenção à linguagem não era certamente uma
novidade na fi losofia moral. Poder-se-ia dizer até que a f i losofia
moral começou — e logo veremos um exemplo em Sócrates —
com discursos centrados na análise do significado dos termos morais.
O que se chá ma de "guinada linguística" consiste (pelo menos na ética)
no seguinte: os filósofos moralistas anteriores pensavam na identi-
ficação do significado dos termos como num trabalho preparatório,
no sentido de que consideravam que não era possível pronunciar
discursos sensatos sobre o que é certo ou bom sem primeiro ter
indagado o significado desses termos; já os filósofos analíticos
consideraram que todo o trabalho filosófico em ética devia consistir
na análise linguística e que o filósofo moralista, como tal, devia ter
uma atitude de rigoroso desinteresse e de neutralidade com relação
ao plano das avaliações, abstendo-se de propor ou defender esta
ou aquela forma de moralidade, ou este ou aquele princípio moral.
Prometendo voltar mais tarde sobre os desenvolvimentos que a
queda desse desinteresse determinou na ética analítica, vamos nos
deter por ora na ideia que está na base da especial importância
atribuída à análise da linguagem moral.
2. Linguagem moral e linguagem comum
A ética se ocupa da conduta humana sob o aspecto segundo
o qual ela pode ser julgada certa ou errada, virtuosa ou viciosa, boa
ou má e, obviamente, não a examina em seu desenvolvimento
concreto e pontual, mas por meio das expressões linguísticas que
descrevem a conduta, avaliam-na e justif icam-na. Ora, os termos
usados nessas expressões linguísticas não são específicos e exclusi-
vos da linguagem moral. Usamos correntemente esses termos tam-
bém em contextos seguramente não morais, como ao dizermos "é
um bom relógio este", ou "Aleixo é a pessoa certa para aquele cargo".
Isso implica que a ocorrência num juízo ou num discurso de termos
como certo ou bom não significa necessariamente que nos encon-
tramos diante de um juízo ou de um discurso de natureza moral.
Mas vale também o contrário: o fato de num enunciado não aparecer
nenhum dos termos habitualmente usados nos discursos morais
não é por si prova suficiente de que se trate de um enunciado não
moral. Uma expressão como "você deixou aquela mulher morrer!"
não é seguramente entendida por quem a pronuncia como a simples
descrição de um evento.
Lembramos acima quão complicado é distinguir entre o âmbito
do que é moral e do que não é moral e agora podemos observar que
também, do ponto de vista linguístico, a moralidade se apresenta
como um fenómeno fugidio e ambíguo. Esse caráter de ambiguidade
da linguagem moral depende do que foi chamado "multifunciona-
lidade" das palavras morais, e corresponde, em geral, à multiplici-
dade ou polifuncionalidade dos usos da linguagem na comunicação
humana. Por meio da linguagem podemos comunicar fatos, descre-
ver ou avaliar eventos, dirigir orações ou fazer exortações, formular
ordens ou exprimir sentimentos, e assim por diante. Qual desses
atos linguísticos é apropriado para os discursos morais9 Uma vez
que é seguramente verdade que não existem específicas palavras
morais, o que acontece quando essas palavras são usadas nos
contextos morais9 Essas são algumas das perguntas às quais a ética
analítica procurou responder. Não poderemos falar aqui de modo
pormenorizado a respeito da grande quantidade de trabalho analí-
tico, muito sutil e, segundo alguns, às vezes até enfadonho que foi
realizado. Deter-nos-emos apenas nos resultados mais importantes,
sobretudo para mostrar a influência sobre os desenvolvimentos da
filosofia moral contemporânea.
3. Os termos morais
Os principais termos usados na linguagem moral dividem-se
em duas categorias. O adjetivo "bom" e o seu contrário "mau" ( j un -
tamente com outros termos, como virtuoso, vicioso, mas também
santo, pio, nobre e assim por diante) classif icam-se como termos
"axiológicos" (do grego axios = válido, digno). |á o adjet ivo "correto"
J
está no centro de uma série de termos (que compreende também
errado, obrigação, ordem ou verbos como "deve-se") que se defi-
nem "deônticos" (do grego áeon = "o que é devido"). A essa distin-
ção corresponde uma diferença nas funções fundamentais, ou seja,
nas tarefas características realizadas por esses termos na linguagem
(Kutschera, 1991). Os termos axiológicos têm a função primária de
exprimir avaliações, ao passo que os deônticos têm a função primá-
ria de exprimir prescrições ou comandos. Todos os termos podem
também ter, em certas condições, uma função descritiva e, enfim
(defendeu alguém, mas voltaremos a isso mais adiante), uma função
emotiva. Procuramos esclarecer esses pontos com exemplos muito
simples, que se referem a contextos seguramente não morais.
Suponhamos, por exemplo, que eu diga a alguém: "Acabei de
comprar um bom moduladorde frequência". Suponhamostambém
que a pessoa que me escuta não tenha nenhuma ideia do que seja
um modulador de frequência. Todavia, ela certamente entende que
estou exprimindo uma avaliação positiva, uma apreciação daquele
objeto. O primeiro e fundamental uso dos termos axiológicos é o
de avaliar positivamente (ou negativamente, se for o caso) aquilo
a que se aplicam. Essa função avaliativa é intrínseca a esses ter-
mos e se deduz isso do fato de meu interlocutor a compreender,
ainda que não saiba o que seja o objeto de que falo. Meu interlocutor
poderia depois me perguntar o que é um modulador de frequência
e por que penso que é "bom", e provavelmente eu (ou um técnico
ao qual poderíamos nos dirigir) responderia, indicando as proprie-
dades técnicas graças às quais esse objeto merece ser qualificado
como "bom" em seu género. Aqui o termo bom assume uma função
descritiva, que depende, porém, da existência de uma consolidada
convenção acerca das propriedades técnicas que fazem de um objeto
um bom objeto no seu género. Essas propriedades podem mudar
com o tempo, ainda que sempre se possam identificar padrões que
o termo "bom" resume. O que é importante, todavia, é que, se a
função avaliativa é intrínseca ao termo bom e é constante, a função
descritiva é adicional e não deve ser entendida no mesmo sentido
em que se diz que a proposição "a mesa é quadrada" é descritiva.
O porquê é facilmente previsível: "bom" pode ser também uma
propriedade, mas certamente não o é no mesmo sentido em que é
"quadrado". Enfim, podemos nos perguntar se o termo "bom" tem
também uma função prescritiva ou pelo menos diretiva, ou seja, se
quando julgamos alguma coisa como boa também a estamos reco-
mendando. Sobre esse ponto, como, aliás, sobre boa parte do que
estamos expondo, tem havido discussão, mas a tese mais difundi-
da é que essa função parece depender do contexto, ou seja, não é
uma função intrínseca aos termos axiológicos. No exemplo acima é
fácil argumentar que se o meu interlocutor pretende comprar aquele
objeto, minha avaliação positiva pode implicar uma recomendação.
Isso é particularmente evidente nos contextos morais-, se uso um
dos termos axiológicos para louvar o estilo de vida de São Francisco,
certamente não estou dizendo que pretendo recomendar ou pres-
crever a mim e aos outros esse estilo de vida.
Se nos voltarmos agora para a série de termos que têm "cor-
reto" em seu centro, é fácil ver que é a função prescritiva que deve
ser considerada como intrínseca. O termo "correto", justo, significa
precisamente "conforme uma regra", e as regras servem para pres-
crever ou até guiar certos tipos de comportamento. Quando dize-
mos "é correto atravessar um cruzamento somente quando o se-
máforo estiver verde", estamos prescrevendo esse comportamento
a todos os que se encontram nessa situação específica, e isso se vê
bem se substituirmos "correto" por "deve-se". É precisamente essa
possibilidade de substituir uma locução por outra que mostra a fun-
ção intrinsecamente prescritiva do termo "correto" e dos outros ter-
mos deônticos. Alguns deles podem também ser usados em função
avaliativa, mas isso, mais uma vez, depende do contexto e, nesses
casos, podem ser substituídos por termos axiológicos, o que seria
impróprio quando são usados em sua função prescritiva primária.
Poder-se-ia pensar que essas distinções não são muito relevan-
tes na linguagem ordinária, em que termos como "correto" e "bom"
(mas, certamente não, "dever") são efetivamente muito usados de
modo intercambiável. Isso, porém, não significa que o sejam e, so-
bretudo, não significa que seus âmbitos de aplicação sejam conside-
38
rados, mesmo no uso comum, totalmente equivalentes e que pos-
sam se sobrepor. Há uma expressão corrente que soa "se o fim
jus t i f i ca os meios"; quando a pronunciamos, evidentemente
estamos nos perguntando se declarar alguma coisa como "boa"
implica que todas as ações voltadas para a obtenção dessa coisa
são corretas, e é claro que a pergunta tampouco seria feita se pen-
sássemos que "bom" e "correto" fossem equivalentes. Enfim, é pre-
ciso observar também que a substituição de uma linguagem de
tipo axiológico por uma de tipo deúntico não é uma simples ques-
tão terminológica; como veremos mais adiante, muda a própria
estrutura da ética e isso tem importância seja no plano histórico,
seja no plano teórico.
Ora, em linhas gerais e salvas algumas ulteriores distinções
que podemos deixar de lado, as três funções acontecem quando
esses termos são usados no âmbito moral. A discussão que se abriu
na primeira metade do século XX trata de dois pontos:
a) qual dessas funções deve ser considerada predominante ou
exclusiva na linguagem moral;
b) se a função exaure ou não o significado desses termos.
Deixaremos de lado a primeira questão, até porque seria muito
difícil resumir, sem banalizá-lo muito, o sentido das inumeráveis aná-
lises que sobre ela foram alinhavadas (Lecaldano, 1970). A segunda
questão, porém, diz respeito a uma história de notável interesse teó-
rico (inclusive, mas não só, pelos seus reflexos em referência ao modo
de entendera ética) e tem em seu centro os desenvolvimentos que,
nos primeiros anos do século XX, se registram no campo filosófico
sobre a noção de "significado de uma palavra". Embora sinteticamen-
te, é necessário reconstruir essa história, que tem como principal
protagonista o filósofo Ludwig Wittgenstein (1889-1951) .
4. O problema do significado
A primeira e mais antiga concepção do que é o significado é
aquela segundo a qual o significado de um termo consiste naquilo
40
a que ele se refere, ou seja, o conceito expresso pelo termo ou ideia a
que ele remete (às vezes se prefere indicar isso com o termo "sentido"),
ou o objeto real ao qual ele corresponde. Essa concepção é definida
teoria referencial da linguagem e, embora dê azo a algumas objeções,
parece será mais imediatamente sugerida pelo uso comum da lingua-
gem. Essa teoria tem consequências importantes com referência a
nosso problema: se o significado das palavras consiste em serem
sinais de objetos reais e, portanto, o discurso é signif icativo, pois às
palavras correspondem objetos, então as palavras morais são signi-
ficativas se as podemos referir a objetos reais, e o discurso moral
tem sentido porque afirma, e se afirma, alguma coisa desses objetos.
Essa era a concepção do significado que fundamentava o pen-
samento do filósofo inglês George E. Moore ( 1873-1 "^S), que, em
1903, publicou uma obra (Principia Elhica) com a qual se inicia a
corrente da ética analítica (Moore, 1964) A mesma concepção (em-
bora em bases f i losóficas diferentes) encontrou depois a sua mais
signif icat iva expressão no Traclalus logico-philosophicus, ( 1 9 2 1 ) , de
Ludwig Wittgenstein e tornou-se conhecida como teoria represen-
tativa da linguagem. Mas as consequências que, com referência a
nosso tema, os dois filósofos apresentam são radicalmente dife-
rentes. Moore sustenta que os termos morais referem-se a proprie-
dades reais (voltaremos mais adiante sobre essa tese) e, portanto,
que as proposições morais têm sentido porque descrevem essas
propriedades. |á Wittgenstein sustenta que a linguagem mora não
corresponde ao mundo, pois o mundo é constituído de objetos, do
que é, ao passo que a inguagem moral diz respeito a valores, ao que
deve ser e que, portanto, não se encontra no mundo dos objetos
empiricamente observáveis: de outro modo seria um fato e não
mais uma valor (Wittgenstein, 1995). A linguagem moral é, pois,
"insensata" e a ética é eliminada do território dos conhecimentos
significativos Para compreender precisamente o alcance dessa afir-
mação convém citar uma passagem de uma famosa Conferência sobre
a ética feita por Wittgenstein, em 1929, na Sociedade dos Heréticos,
em Cambridge:
Agora, diante dessa asserção, vejo logo com clareza, como na luz de um
relâmpago, não apenas que nenhuma descrição pensável por mim seria
apta a descrever o que entendo por valor absoluto, mas também que
rejeitaria qualquer descrição significante que alguém pudesse eventual-mente sugerir, ab initio, com base no seu significado. Ou seja, quero dizer
o seguinte: agora vejo como essas expressões sem sentido eram tais
não porque não tivesse encontrado a expressão correta, mas porque a
falta de sentido delas era a sua peculiar essência Porque, com efeito,
com elas eu me propunha justamente ir para além do mundo, ou seja, para
além da linguagem significante A minha tendência e, penso, a tendên-
cia de todos aqueles que jamais procuraram escrever ou falar de ética ou
de religião foi de se lançar contra os limites da linguagem. Esse atirar-
se contra as paredes da nossa prisão é perfeita e absolutamente deses-
perado. A ética, por surgir do desejo de dizer alguma coisa sobre o sig-
nificado último da vida, o bem absoluto, o absoluto valor, não pode ser
uma ciência. O que diz não acrescenta nada, em nenhum sentido, ao
nosso conhecimento. Mas é um documento de uma tendência do ânimo
humano que eu pessoalmente não posso deixar de respeitar profunda-
mente e que não gostaria realmente, a custo da vida, de pôr em ridículo
(Wittgenstein, 1967, p. 18).
A observação de Wittgenstein segundo a qual a ética, como
foi tradicionalmente entendida, não pode ser uma ciência encon-
tra imediata correspondência no âmbito da corrente filosófica do
"neopositivismo lógico", que desenvolve uma segunda concepção
do significado denominada verificacionista. Os expoentes do
neopositivismo lógico (que nos anos 1920 formaram o chamado
"círculo de Viena") sustentavam que qualquer proposição é signifi-
cativa somente se se pode demonstrar, mediante oportunos pro-
cessos de verificação, que ela é susceptível de ser julgada verda-
deira ou falsa. Segundo esses estudiosos, tais processos de verifi-
cação existem para as proposições da lógica e da matemática e
para as proposições que dizem respeito aos fatos do mundo
empiricamente observáveis. Uma vez que as proposições morais
não fazem parte, obviamente, da primeira categoria nem (como tinha
42
mostrado Wittgenstein) da segunda, não existe nenhum processo
de verificação que possa declará-las verdadeiras ou falsas. Portan-
to — uma vez que o fato de serem verdadeiras ou falsas é o critério
de significação —, a ética é literalmente "sem sentido", pelo me-
nos se julgada segundo o modelo das ciências empíricas e lógico-
matemáticas, que esses filósofos tendem a privilegiar como única
forma de verdadeiro conhecimento (Hahn el ai, 1979).
A consonância com as teses de Wittgenstein é evidente, mas
alguns expoentes dessa escola perguntaram-se que tipo de função
podem ter as proposições em que nós exprimimos avaliações
morais. Segundo Alfred J. Ayer (1910-1989), os juízos morais ser-
vem para exprimir as emoções de quem fala, e os termos morais
têm uma função exclusivamente emotiva Convém referir a esse
propósito uma passagem de Ayer:
A presença do símbolo ético na proposição não acrescenta nada ao seu
conteúdo fatual. Assim, por exemplo, se digo a alguém "Você agiu mal ao
roubar aquele dinheiro", não estou dizendo nada a mais do que se tivesse
dito simplesmente "Você roubou aquele dinheiro". Acrescentando que essa
ação é um mal, não faço nenhuma outra afirmação a propósito. Simples-
mente venho pôr em evidência a minha desaprovação moral do fato. É
como se tivesse dito "Você roubou aquele dinheiro" com um particular
tom de repugnância, ou o tivesse escrito com o acréscimo especial de
alguns pontos exclamativos. O tom de repugnância ou os pontos
exclamativos não acrescentam nada ao significado literal do enunciado.
Servem apenas para mostrar que, em quem fala, a expressão do enuncia-
do é acompanhada por certos sentimentos (Ayer, 1961, p. 107).
Não se trata, portanto, de autênticos juízos, pois não descre-
vem nada e, por isso, não tem sentido perguntar se são verdadei-
ros ou falsos.
É preciso ressaltar que na história da ética já existiam concep-
ções segundo as quais os juízos morais devem ser ligados ao sen-
timento de aprovação ou desaprovação: segundo Ayer, todavia,
nesses casos os juízos morais eram entendidos como uma descrição
43
do estado psicológico interno de quem fala, ao passo que Ayer
quer insistir sobre o fato de que os juízos morais não descrevem
nada, mas simplesmente exprimem esses sentimentos.
As teses de Ayer têm dado lugar a uma concepção da ética
denominada "emotivismo", que foi desenvolvida (e tornada menos
radical) por Charles L Stevenson (1908-1979) , o qual se referia,
porém, à teoria psicológico-causal do significado da linguagem
desenvolvida pelo pragmatismo americano. Essa teoria ressaltava
a função dinâmica da linguagem, ou seja, a sua capacidade de causar
certos processos psicológicos em quem fala e em quem escuta.
Com base nela, Stevenson sustentou que a característica primária
dos juízos morais não é a de descreveras crenças de quem fala ou os
seus sentimentos, mas a de exprimir e manifestar as suas atitudes e,
ao mesmo tempo, de influenciar as atitudes dos outros. Para os
emotivistas, uma proposição como "esta ação é boa" significa "eu
aprovo essa ação e te exorto a fazer o mesmo" (Stevenson, 1962).
Reconhece-se que o emotivismo teve o mérito de ter chama-
do a atenção sobre o caráter dinâmico da linguagem moral e sobre
o nexo entre discursos morais, escolhas e ações. Ao mesmo tem-
po, todavia, se ressaltou que esse caráter dinâmico é interpretado
pelos emotivistas de modo muito limitativo, ou seja, reduzindo-o
a um problema de técnicas de persuasão e de influência que não
permitiriam distinguir o discurso moral da propaganda ou das di-
versas formas de manipulação ou de persuasão mais ou menos
oculta. Esse é um modo muito limitado para entender a vida mo-
ral: se alguém me pergunta "que devo fazer?", não é necessário
pensarqueestá pedindo para ser influenciado ou manipulado. Para
os emotivistas, além disso, nem sequer existe — ou pelo menos
não tem o significado usual que nós lhe atribuímos — a experiên-
cia comum e concreta do desacordo moral: com efeito, dado que
as pessoas exprimem sinceramente os próprios sentimentos, tudo
se reduz a uma diferença de gosto moral, não a um desacordo real.
Se eu digo "o aborto é uma coisa certa", e um outro diz "o aborto
é uma coisa errada", essas locuções equivalem a "viva o aborto" e
"abaixo o aborto": estamos simplesmente exprimindo os nossos
gostos morais e sobre gostos não se deve disputar para estabele-
cer quem tem razão e quem está errado É claro, enfim, que numa
concepção desse género não há lugar para argumentações ou para
discussões com base em critérios racionais e é sobretudo por isso
(ou seja, o fato de não atribuir à razão um lugar na ética) que o
emotivismo teve uma vida muito breve na história da ética. Depois
de Stevenson, com efeito, cuja obra principal é de 1944, tem início
um rapidíssimo declínio e, logo depois da Segunda Guerra Mundial,
o próprio Ayer modifica substancialmente suas ideias iniciais.
Enquanto o emotiv ismo viv ia sua breve época, Ludwig
Wittgenstein começava a desenvolver uma pesquisa (que haverá
de se concluir com as Pesquisas filosóficas, publicadas em 1953) que o
teria levado a repudiara sua concepção anterior da linguagem como
representação do mundo, de que, como haveremos de nos lem-
brar, nascia a tese da insignificância cognoscitiva da linguagem
moral, para passar a uma teoria mais complexa, que teve profunda
influência nos desenvolvimentos da ética analítica e, mais em ge-
ral, da reflexão filosófica. Segundo essa nova teoria, o significado
das palavras não pode ser considerado univocamente estabelecido
de uma vez por todas, como ele tinha sustentado com base na rí-
gida correspondência entre linguagem e objetos do mundo, mas
varia fortemente de acordo com os contextos e os objetivos pelos
quais é usado e coincide com o uso que nós dele fazemos nos
diversos âmbitos da vida. A linguagem é agora entendida como um
conjunto de diferentes "jogos linguísticos", uma noção que
Wittgenstein introduz para indicar o conjunto da linguagem e das
atividades, ou formas de vida, a que a linguagem é intrínseca e nas
quais as palavras assumem,pouco a pouco, um significado dife-
rente, de acordo com as regras próprias do jogo ou forma de ativi-
dade em que são usadas. Não é, pois, possível, por exemplo, esta-
belecer de uma vez por todas o que significa "bom", e tampouco
tem sentido tentar anal isá-lo em abstraio, isolando-o do jogo (ou
dos jogos) linguístico por cujas regras seu uso é determinado. Há
com frequência uma "semelhança de família" entre os usos de uma
palavra: mas se o jogo linguístico é o da moral, o significado do
termo deverá estar ligado às regras desse jogo, que cada um de nós
aprende a jogar na vida concreta e sobre o pano de fundo de uma
forma de vida comum (Wittgenstein, 1983).
Não é possível aqui aprofundar o discurso sobre a concepção
wittgensteiníana da ética (Donatelli, 1998) e sobre a importância
que as suas teses linguísticas tiveram no desenvolvimento da ética
analítica. Elas constituíram o fundo conceituai de uma nova época
da metaética, que já se inicia nos anos 1950 e se desenvolve com-
pletamente a partir dos anos 1960 com uma decidida ampliação do
horizonte de pesquisa. A teoria da linguagem como uso, por exem-
plo, permite procurar formas de ligação entre discurso moral eação
moral, diferentes das propostas pelos emotivistas e, desse modo,
restituirá razão um lugar na ética. Cai também a questão prévia da
"neutralidade"; por isso, o termo metaética é usado hoje para indi-
car a parte da reflexão ética que se ocupa não somente de ques-
tões semânticas (ou seja, relativas à análise do significado dos
termos) e lógicas, mas também de questões relativas aos proble-
mas da fundação e justificação da ética, à natureza dos códigos
morais e às razões que explicam sua obrigatoriedade. E o todo,
como trabalho preparatório à formulação de uma proposta ética
completa que contém não só uma teoria da ética, mas também a
que se convenciona chamar de "ética normativa", ou seja, a apre-
sentação e justificação de um modelo geral de conduta boa ou
correia. Esse, de resto, é o modo melhor para apreender o signifi-
cado mais geralmente atribuído à ética no decurso da história. De
agora em diante usaremos esse termo nesse sentido geral e consi-
deraremos a área descritiva e a metaética como partes de um mesmo
empreendimento filosófico.
CAPÍTULO QUARTO
A ESTRUTURA TEORÉTICA
DA ÉTICA NORMATIVA
l. As duas formas fundamentais de teoria ética
)
issemos na "Introdução" que um dos objetivos desta pri-
meira parte do livro é o de fornecer uma espécie de grade de
identificação ou classificação das teorias éticas mediante a
apresentação de algumas noções gerais de tipo estrutural. Não exis-
te, porém, um único modo (ou pelo menos um modo geralmente
aceito) para classificar as teorias éticas. Aqui nos serviremos de
um critério muito comum hoje e que foi utilizado pelo filósofo inglês
Henry Sidgwick (1838-1900) numa obra (The methods of ethics. 1874)
que exerceu uma profunda influência na pesquisa ética no perío-
do, já lembrado, em que se desenvolve a aproximação analítica e,
de particular modo, quando — deixada de lado a questão da neu-
tralidade — os filósofos moralistas voltaram a se confrontar com
as exigências de rigor metodológico, de precisão de pensamento e
de correto exame das várias posições em jogo que a obra de Sidgwick
tinha primeiro indicado como exigências fundamentais da filosofia
moral (Sidgwick, 1995).
Segundo Sidgwick, a ética, no seu primeiro período, o da filo-
sofia grega, apresenta-se como uma forma de pesquisa em cujo
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centro está a noção de bem, e a pergunta ética fundamental é "como
se deve viver para bern viver". É por essa razão que essa forma de
ética é chamada de ética do bem ou do valor (pois o bem é justamente
o que tem — ou a que é atribuído — valor) ou, ainda, ética do fim,
pois o bem ou valor é apresentado em geral na forma do bem su-
premo, como o fim a que deve ser orientada a conduta humana.
Essas éticas são também chamadas de éticas da auto-realização,
pois em geral estabelecem um ideal global de vida boa; seguindo-
o, toda pessoa pode se aproximar progressivamente da plena rea-
lização das suas potendalidades. Obviamente, qual bem ou ideal
se deve perseguir é uma pergunta que encontra diferentes respos-
tas nas várias doutrinas.
A segunda forma de ética é chamada de ética do dever e se dis-
tingue da primeira, que usa predominantemente uma linguagem
de tipoaxiológico, porque utiliza sobretudo uma linguagem de tipo
deôntico. Essa forma de ética nasce no seio da ética do bem e
desenvolve-se mediante um longo processo histórico que tem iní-
cio com o estoicismo (veja-se o capítulo décimo, § 5), fortalece-se
com o cristianismo e sua insistência sobre o Decálogo, para atingir
o seu ápice no pensamento de Emanuel Kant (veja-se o capítulo
décimo segundo, § 5), no qual a ética do dever se apresenta agora
totalmente desvinculada de todo discurso sobre o bem.
Na base desse processo (mas é preciso ressaltar que a pri-
meira forma de ética certamente não desapareceu do panorama
filosófico) pode-se identificar a exigência de "estabilizar os códi-
gos morais em correspondência à crescente complexidade das
formas de organização social e da progressiva perda de pontos de
referência unificantes (a pequena comunidade-estado da antiga
Grécia, o império, a Igreja universal), que gera o que foi chamado
de "esboroamento do valor". Na ética de Kant, o nexo entre o que
"se deve fazer" (que se torna agora a pergunta fundamental da
ética) e o bem que se deve perseguir é rompido e a linguagem
dos deveres, entendidos como a necessidade de um certo tipo de
ação em conformidade com uma norma, substitui a linguagem
dos valores. Isso, al iás, corresponde a uma intuição comum: o
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primeiro modo como nós experimentamos a ex is tênc ia da mora-
lidade é sob a forma de um conjunto de princípios ou normas das
quais derivam deveres, ou s e j a . algo que se impõe como vincu a-
tivo à nossa consciência.
Essas indicações gerais, que vamos enriquecer de detalhes na
continuação da exposição, não implicam, porém, que as éticas do
bem não dêem lugar à noção de dever ( ta lvez isso seja verdade
somente para a ética grega clássica) e, vice-versa, que as éticas do
dever não dêem lugar à noção de bem. Na realidade, toda teoria
ética contém uma doutrina do bem e uma doutrina do correto, e a
diferença nasce de qual doutrina (e relat iva linguagem) é conside-
rada primária e qual, secundária. Nas éticas do bem, primeiro se
estabele o bem para o qual a conduta humana deve se orientar e,
depois, tanto o que é correto fazer como o dever são definidos como
o que conduz ao bem. Nas éticas do dever acontece o contrário:
primeiro se estabelece o que é certo fazer sob forma de deveres (a
lei moral) , e o bem é definido em função do correto e até coincide
com o fazer a coisa correta. É exemplar, a propósito, o que escreve
Emanuel Kant na Crítica da razão prática ( 1788):
Não é o conceito do bem, como conceito de um objeto. que determina
e torna possível a lei moral, mas, ao contrário, é a lei moral que, em
primeiro lugar determina e torna possível o conceito do bem, na medi-
da em que ele merece de fato esse nome (Kan t , 1983, p 79).
Procuremos agora caracterizar melhora estrutura teórica des-
sas duas formas de ética, dirigindo a atenção sobre um problema
que podemos identificar com a seguinte pergunta: qual é o fator que
deve ser considerado determinante, ou pelo menos predominan-
te, para julgar a moralidade da conduta prática9 A diferença entre
essas duas formas de ética reflete-se também numa diferença subs-
tancial no modo como elas interpretam o agir moral, que, por sua
vez, se traduz num diferente modo de conceber o juízo moral
(Frankena, 1 9 8 1 )
2. Éticas teleológicas
As éticas do bem são também definidas como teleológicas
(de Idos — fim, e logos = discurso), pois sugerem um modelo de
conduta prática que visa a realização do bem, e sustentam que o
valor moral da conduta é dado pelo valor dos resultados bons ou
maus que ela produz na direção do bem. As estruturas do juízo
moral apontam,

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