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REVISTA CIENTÍFICA ELETRÔNICA DE PSICOLOGIA - ISSN 1806-0625 PUB L I CA Ç Ã O CI EN T Í F I CA DA FA C ULD A DE DE C IÊ N C I A S D A SAÚ DE DE GA RÇ A/FASU – MA N T I DA PE LA AS S OC IA Ç Ã O CULT U R AL E EDU C A C I ON AL D E GA R ÇA AN O I I I , N Ú ME RO , 05 , NO VE MB R O DE 2005. PER I ODI C ID AD E : SE ME STRAL _______________________________________________________________________________________ RESENHA DO LIVRO MELANIE KLEIN – ESTILO E PENSAMENTO DE ELISA MARIA ULHOA CINTRA E LUÍS CLÁUDIO FIGUEIREDO Autor da resenha: Sidney da Silva Pereira Bissoli RESUMO Esta resenha move-se em três direções. Pretende-se, não necessariamente nesta ordem: (1) apresentar uma visão panorâmica deste livro; (2) destacar algumas releituras do texto kleiniano, que se configuram em pontos altos da obra; (3) apresentar ligações entre alguns dos conteúdos debatidos aqui, e as considerações feitas em Palavras Cruzadas entre Freud e Ferenczi (1999), de autoria de um dos membros da dupla que assina este livro. Palavras-chave: psicanálise; Melanie Klein. ABSTRACT This review moves towards three directions. It aims, not necessarily in this sequence: (1) to present a panoramic view about this book; (2) to detach some re-readings of kleinian´s text which represents highlights of the work; (3) to present bindings between some of the contents discussed here, and the considerations made in Palavras Cruzadas entre Freud e Ferenczi (1999), whose author is one of the members of the couple that signs this book. Key-words: psychoanalysis; Melanie Klein. Para quem tem acompanhado, nestes últimos anos, embora não tão exaustivamente, o pensamento de Luís Cláudio Figueiredo (psicanalista, livre docente – USP, professor dos programas de pós- graduação da PUC-SP e USP-SP), este livro é, no mínimo, 2 surpreendente. Explico. Um dos aspectos mais nítidos do pensamento deste autor é a tentativa de apresentar uma visão complexa do dualismo pulsional freudiano. Até onde posso rastrear, essa tentativa parece ter começado em Palavras Cruzadas entre Freud e Ferenczi (1999). Nesta época, partindo da contribuição de Sándor Ferenczi, em Thalassa (1924) – que pretende que o ‘retorno a um estado anterior de coisas’, de Freud, não seja atribuído apenas à pulsão de morte, como também à libido, e, no limite, formando uma pulsão independente, denominada por Ferenczi como ‘pulsão de regressão’ – Figueiredo procura fazer uma desconstrução do texto freudiano Além do princípio de prazer (1920), a fim de apresentar uma leitura diferente do dualismo pulsional daquela que vinha sendo feita pela escola kleiniana e pela escola francesa encabeçada por Jean Laplanche, dentre outras leituras. Talvez suas idéias acerca do conceito de pulsão de morte estejam melhor sintetizadas em Psicanálise: elementos para a clínica contemporânea (2003), quando Figueiredo afirma que a pulsão de morte busca, não apenas: (1) a descarga (violenta) a qualquer preço, como também; (2) a afirmação de si mesmo, à revelia do outro, e, não só, mas também; (3) um objeto vivo e saudável e a restauração dos objetos danificados ou mortos. Em outras palavras, isso equivale a dizer, dentre outras coisas, que, para além da destrutividade, há um caráter eminentemente vitalizante no conceito de pulsão de morte, em Figueiredo. Difícil imaginar um paradoxo maior do que esse. Mas, sendo assim, como conciliar uma visão, como essa, tão complexa de um conceito que, por si só, já é extremamente complexo, como o conceito de pulsão de morte, com a interpretação kleiniana da pulsionalidade, na qual, de acordo com os próprios autores, há uma separação metodológica radical entre as pulsões de vida e de morte, a 3 primeira sendo a fonte do amor e da criatividade, a segunda sendo a fonte do ódio e da destrutividade, e assim por diante? E, jogando ainda mais lenha na fogueira, vale a pena dizer – retomando o livro de Figueiredo de 1999 – que, neste, em uma nota de rodapé, o comentário acerca de Klein e dos kleinianos não é dos mais elogiosos: “Equívoco apenas em termos de “leitura de Freud”, mas não estamos no momento de ajuizar acertos e erros teóricos ou clínicos de Melanie Klein e seus seguidores, que, obviamente, não podem ser reduzidos a maus leitores!” (p. 35). Sendo que, no livro que pretendo comentar nesta resenha, os comentários giram na direção contrária: “(...) as observações clínicas de Melanie Klein e uma cuidadosa leitura desse texto freudiano (Inibições, sintomas e angústia), além da contribuição das idéias de Ferenczi, abriram acesso a uma nova concepção do Complexo de Édipo” (p. 67). Ou, ainda, nesta página: “Podemos conjeturar que a sua [de Melanie Klein] falta de formação acadêmica obrigou-a a dar valor aos instrumentos de que dispunha para trabalhar: um apaixonado interesse pelas questões psicanalíticas, um grande capacidade de leitura da obra de Freud, Abraham, Jones e Ferenczi, (...)” (p. 51). É claro que não pretendo afirmar que Figueiredo esteja desdizendo, neste livro, o que havia dito em 1999, pois não é esse o caso (embora, se assim o fosse, que problema haveria?). É óbvio também que, seguindo a lógica da posição depressiva, diferentemente da lógica do tudo ou nada da posição esquizo-paranóide, Melanie Klein poderia muito bem, aos olhos dos autores, ter sido uma leitora atenta de Freud em Inibições, sintomas e angústias (1926 [1925]), e desatenta em Além do princípio de prazer (1920). Também não podemos esquecer 4 que este livro foi escrito a quatro mãos. Elisa Maria Ulhoa Cintra, psicanalista, doutora pela PUC-SP, professora no Curso de Especialização em Psicologia Clínica da PUC-SP, apesar de ter sido citada tardiamente nesta resenha, nem por isso comparece neste livro com menor peso ou importância. O que pretendi mostrar, apenas, nestes comentários iniciais, foi a surpresa de quem se deparou com um conteúdo novo, após algumas leituras anteriores. De qualquer forma, a contradição, afinal de contas, não é tão grande como parece ser a princípio, uma vez que os próprios autores fazem uma releitura da obra kleiniana, de acordo com a qual, a partir das considerações de Klein sobre a inveja, em 1957, esta autora teve de repensar as relações entre pulsões de vida e de morte, embora isso não fique explícito nos textos da psicanalista representante da escola “inglesa” de Psicanálise (apesar de ser vienense). De acordo com Klein, a inveja está intimamente ligada à voracidade, e esta é colocada como uma manifestação das pulsões destrutivas. É neste ponto que os autores encontram uma brecha no pensamento kleiniano, e introduzem a noção de que a voracidade não pode estar apenas vinculada à destrutividade, uma vez que ela representa uma forma insaciável, desmedida, do desejar humano e, neste gancho apresentado pelo “desejar”, afirmam que há algo de libidinal na voracidade. A partir daí, fica fácil imaginar que também na inveja há algo de libidinal, uma vez que ela, por estar ligada à voracidade, também é fruto do desejo. Nas palavras dos autores: “Percebe-se que há uma distinção não plenamente formulada entre um aspecto mais benigno e um mais maligno da inveja: a voracidade, na condição de pura ânsia pelo absoluto, é a forma desmesurada da pulsão de vida, ao passo que o desejo de destruir, como manifestação da pulsão de morte, decorre do 5 sentimento de se ter sido lesado em termos de satisfação, sem que o sujeito se dê conta de que uma parte da frustração é continuamente criada por sua própria voracidade. Entretanto, os dois aspectos sempre se acham entrelaçados” (p. 129).Outro ponto alto do livro é quando os autores se dedicam a formular o que significa a idéia de agressividade inata no pensamento de Melanie Klein, idéia que foi tão enfatizada por Klein e, pela qual, ela foi tão criticada, também. De acordo com os autores, Klein não acreditava em uma herança genética direta para a agressividade e a inveja, como as palavras empregadas por ela parecem sugerir. O que acontece é que os bebês nascem com uma capacidade maior ou menor para tolerar frustrações e, de acordo com esta capacidade, conseguem usar em maior ou menor medida o seio, nos momentos que se seguem logo após períodos de frustração. E pode-se dizer que Luís Cláudio Figueiredo e Maria Elisa Ulhoa Cintra são bastante felizes nesta argumentação, ao apresentar uma citação da própria Melanie Klein (1959), que vai de encontro a esta interpretação: “Alguns bebês vivenciam um intenso ressentimento frente a qualquer frustração e o demonstram sendo incapazes de aceitar gratificação quando esta se segue à privação. Eu sugeriria que tais crianças têm uma agressividade inata e uma voracidade mais fortes do que aqueles bebês cujas explosões ocasionais de raiva logo cessam. Se um bebê mostra que é capaz de aceitar alimento e amor, isto significa que ele pode, relativamente rápido, superar o ressentimento em relação à frustração e, quando a gratificação é novamente proporcionada, recuperar seus sentimentos de amor” (p. 283). Em outras palavras, o que os autores querem dizer é que Melanie Klein teria sido mais feliz se, ao invés do termo agressividade inata, tivesse preferido a expressão, bem mais aceitável, “capacidade para tolerar frustrações”, pois, esta sim, pode ser constitucional, no sentido pleno da palavra. 6 Enfim, há muitos pontos altos neste livro, que mereceriam destaque, mas, fazer jus a todos eles, seria escrever um novo livro sobre o livro que estou resenhando neste momento, o que de forma alguma é o objetivo. De qualquer forma, a título de apresentação do livro, é necessário que se dedique ainda mais algumas palavras. Eu poderia dizer que este livro é uma ótima introdução ao pensamento de Melanie Klein, mas não se trata exatamente de uma introdução, pois em muitos momentos os autores “ultrapassam”, se é que esta é a melhor expressão, o próprio pensamento de Melanie Klein, como procurei demonstrar acima, e como os próprios leitores terão a oportunidade de confirmar, em muitos outros trechos do livro. Mas, como não poderia deixar de ser, esta “ultrapassagem” é feita com base em uma apresentação sistemática das idéias desta controversa psicanalista, apresentação esta que é, ao mesmo tempo, crítica (como já foi salientado) e histórica. Essa apresentação histórica é feita com base em alguns marcos e divisões. A primeira divisão corresponde à década de 1920, na qual Melanie Klein interessou-se, fundamentalmente, pelas questões do conhecimento e da inibição intelectual. Ao final desta época, um primeiro sistema kleiniano já havia sido formulado. A idéia de uma precocidade do superego foi formulada (contrariando Freud) e os princípios da análise infantil foram, a grosso modo, delimitados. Após algumas considerações sobre o livro de 1932, A psicanálise de crianças, os autores passam a comentar textos da década de 1930, 1940 e 1950. Na década de 1930, os principais textos comentados são Uma contribuição à psicogênese dos estados maníaco-depressivos (1935) e O luto e suas relações com os estados maníaco-depressivos (1940). Neste período, a principal formulação kleiniana diz respeito à posição 7 depressiva. Na década de 1940, a atenção se volta para o importantíssimo trabalho Notas sobre alguns mecanismos esquizóides (1946), no qual o conceito de identificação projetiva é proposto pela primeira vez, e a posição paranóide transforma-se em posição esquizo- paranóide (por influência de Ronald Fairbairn, os autores não o dizem). Finalmente, representando a década de 1950, é comentado o livro Inveja e gratidão (1957), no qual há um aprofundamento da lógica da posição esquizo-paranóide, e uma revisão da teoria pulsional, como procurei mostrar. Na continuidade, os autores tratam de oferecer uma visão panorâmica do pensamento kleiniano, acrescida de contribuições originais, é preciso dizer, com base em um texto dirigido ao grande público, a saber, Nosso mundo adulto e suas raízes na infância (1959). Aqueles que se interessam prioritariamente pela clínica também não se sentirão frustrados, uma vez que é dedicado um capítulo exclusivamente a este tópico. São apresentadas as divergências clássicas entre Melanie Klein e Anna Freud; o impacto da teoria kleiniana, não apenas na criação da técnica de análise com crianças e psicóticos, mas também na modificação da técnica de análise com adultos neuróticos; a importância da transferência para a clínica de orientação kleiniana, dentro e fora da sala de análise. Também neste capítulo uma apresentação crítica é conduzida, uma vez que os autores previnem o leitor acerca dos maus usos da teoria e técnica kleinianos. E, por fim, toda essa apresentação é feita não se esquecendo da contextualização histórica, tanto em termos da biografia de Melanie Klein, quanto do próprio movimento psicanalítico internacional, na época. E, como se não bastasse, o capítulo final é dedicado a considerar de que forma a teoria kleiniana embasou algumas reflexões sobre a 8 cultura, conduzidas, obviamente, por seguidores, uma vez que a própria Melanie Klein parece não ter se interessado muito por essa problemática, diferentemente de Freud. Pelo exposto, pode-se afirmar, com segurança, que este livro é útil, não apenas para aqueles que desejam ter um primeiro contato com o pensamento de Melanie Klein, uma vez que é um dos objetivos dos autores tornar a teoria kleiniana mais compreensível (no que eles são muito bem sucedidos), como também para aqueles que já estão familiarizados com esta forma de pensar, já que os autores apresentam pontos de vista originais, em diversos momentos, que, infelizmente, só puderam ser parcialmente considerados aqui. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS Cintra, E. M. de U.; Figueiredo, L. C. (2004). Melanie Klein - estilo e pensamento. São Paulo: Escuta. Figueiredo, L. C. (2003). Psicanálise: elementos para a clínica contemporânea. São Paulo: Escuta. _____________. (1999). Palavras cruzadas entre Freud e Ferenczi. São Paulo: Escuta. Klein, M. (1959). Nosso mundo adulto e suas raízes na infância. In: ______. Inveja e gratidão e outros trabalhos (1946-1963). Rio de Janeiro: Imago, 1991.
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