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Textos do professor sobre contemporaneidade

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Textos sobre contemporaneidade 
Por: Euclides Guimarães Neto 
Os sete textos que se seguem foram publicados originalmente 
em sete números da revista Sagarana entre 1999 e 2006. São 
conjecturas de um sociólogo sobre aspectos da 
contemporaneidade. 
 
I 
 
NO MUNDO ESTETIZADO EM QUE VIVEMOS 
Por: Euclides Guimarães 
Para o no 6 da revista SAGARANA, 1999 
 
Há mais de 150 anos aparecia, nos centros comerciais das metrópoles européias, 
em meio a um grande pacote de novidades, a “vitrine”. A que tipo de situação, 
desde então, vem nos submetendo essa sedutora parede de vidro? Diante de uma 
vitrine temos total acesso àquilo que nos espreita do outro lado, mas se trata de 
um acesso restrito ao campo visual. Do ponto de vista tátil a vitrine é uma 
parede, visualmente é uma tela. O objeto assim emparedado deve seduzir por sua 
aparência, que envolve algo além de sua presença como objeto visível, mas todo 
um aparato de decoração e luz que, como nos oratórios e vitrais das velhas 
catedrais, produz um efeito sacralizador. Com o advento da vitrine o comércio dá 
um passo definitivo em direção ao grande jogo que antes da modernidade servia 
tão somente à produção da fé, e que agora passa a produzir relações de consumo: 
o jogo da sedução pela imagem. 
 
No mesmo pacote de novidades aparece a fotografia, pouco depois o cinema, o 
outdoor, e se incrementam mecanismos de apelo visual, o cartaz, o panfleto, a 
revista, o jornal ilustrado e o folhetim, a litografia, a água forte, a xilogravura, a 
estampa, a embalagem. Somando-se os letreiros, os luminosos, a sinalização de 
trânsito e os ícones de uma arquitetura decorativa, a segunda metade do Século 
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XIX põe em cena os dispositivos de uma nova civilização, uma “civilização das 
imagens”. O contato corpo a corpo do homem com seus objetos materiais passa 
então a conviver com um universo crescente de objetos exclusivamente visuais. 
 
Parte substancial da tecnologia que se desenvolve no século seguinte, o XX, 
intensifica exponencialmente esse processo de estetização do cotidiano. Além da 
televisão e do aprimoramento gigantesco das máquinas óticas, surge a tecnologia 
digital, com a qual se faz possível a imagem de síntese. Esse tipo de tecnologia 
não provém obrigatoriamente de uma captação de imagem/modelo como a 
fotografia, mas de relações numéricas processadas em computador. Sustentadas 
em todas essas tecnologias, telas incontáveis se espalham, ampliando a oferta de 
estímulos visuais. As galerias dão lugar aos shopings, que são grandes caixas 
fechadas, repletas de imagens por todos os lados, onde a vitrine e a tela 
encontram uma morada definitiva. Uma parafernália visual torna-se assim a 
grande vedete do mundo contemporâneo, atingindo todos os campos e negócios. 
Na medicina, a plástica, a prótese e os anabolizantes, o culto à beleza física, ao 
corpo atlético, a toda uma gama de produtos dietéticos, vêm trazer promessas de 
saúde e beleza. Academias de ginástica brotam por todos os lados, a aparência é 
cultivada nos exames de seleção para admissão de funcionários, grandes grifes se 
estabelecem vendendo fundamentalmente estilos, símbolos, imagens. Todos 
precisam ter sua logomarca, sua homepage, sua fachada. 
 
Uma polêmica paira no ar quando voltamos os olhos para as incríveis proporções 
que tal processo atinge em nosso tempo, polêmica que ainda se recrudesce 
quando a questão se remete ao futuro. Estaríamos no limiar de um tempo em que, 
cada vez mais, se esfumam as fronteiras que separam o atual do virtual e, por 
conseqüência, o real do fictício ou o verdadeiro do falso? 
 
Tenho defendido, como fiz no número passado desta revista, a tese de que, 
malgrado a força autonomizadora das imagens, que permite a elas ir muito além 
da mera representação de objetos, ou da mera simulação de coisas e situações do 
“mundo real”, produzindo formas, luzes e cores exclusivas para as telas onde se 
projetam, resta quase sempre a marca de uma fonte primária, um lugar, um 
objeto, uma pessoa. 
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Muitos dos intelectuais contemporâneos desprezam a importância dessa relação, 
supondo que o universo das imagens se autonomiza ao ponto de romper 
definitivamente com a referência da realidade que um dia as inspirou. Creio, 
diferentemente, que uma outra face se revela na relação entre o real e o 
simulacro: a mistificação ou poder de sedução que uma imagem transfere para 
seu modelo, ou seja, o desejo de contato com o real que o contato com o 
simulacro produz. Evidência disso está na expansão do turismo como uma das 
mais rentáveis e emergentes indústrias do momento. A intensificação do hábito 
de viajar e todo um deslocamento humano em proporções inusitadas - justamente 
num tempo em que é possível visitar o mundo sem sair de casa - explica-se 
basicamente por essa mistificação. 
 
Não pretendo, no entanto, negar por completo as concepções, como a de 
Baudrillard ou Virilio, que percebem uma substituição do real pelo simulacro. É 
visível a força e a autonomia que as imagens revelam em nosso tempo. Olhando 
para a civilização norte-americana, por exemplo, somos automaticamente 
induzidos a pensar sobre tal enfoque, já que por lá se inventou uma indústria 
peculiar para o turismo onde, em vez de se divulgar belezas naturais ou 
históricas, criam-se, de forma totalmente artificial, as localidades que se 
destinam ao entretenimento. Esse artificialismo dos parques temáticos ( cujo 
mais tradicional é a Disneylândia), revelou-se assombroso aos olhos desses 
intelectuais, em sua maioria europeus, acostumados com referências tão sólidas 
quanto seus castelos medievais, suas fortificações romanas e suas acrópoles 
milenares. 
 
Ora, a Disney já chegou ao nosso dia-a-dia. Acredito que o futuro do turismo, ou 
pelo menos de um turismo que não se reduz ao mero entretenimento, é mais 
propenso ao natural e ao histórico, até porque o irreal já se espalha pelo cotidiano 
do cidadão contemporâneo. O descanso, que muitas vezes exige um providencial 
distanciamento da rotina e dos objetos que a povoam, convida mais para viagens 
no tempo e no espaço, sugere o reencontro do rústico e do natural. 
 
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Eis aqui o diferencial que justifica todo o empenho em potencializar a indústria 
do turismo no Brasil, especialmente em Minas. Nota-se que, nesse sentido, o 
Brasil se vê em dupla posição de vantagem quanto ao potencial turístico no 
panorama ocidental. Em relação aos norte-americanos, o que temos é natureza, 
história e costumes em muito diferentes do modus vivendi das grandes cidades 
contemporâneas; em relação aos europeus, nosso não-tão-velho-mundo 
permanece praticamente inexplorado. Resta lutar para que o processo de 
viabilização desse potencial não se dê da maneira predatória e irracional que sói 
caracterizar os impulsos do desenvolvimento no Brasil. 
 
 
II TRILOGIA DO LAZER E DO CONSUMO 
 
 
O LAZER E O SENTIDO DA VIDA 
Por: Euclides Guimarães 
 
Vivemos na civilização do culto ao trabalho. Provavelmente em nenhuma outra 
época ou situação histórica o trabalho foi tão valorizado. Em outros tempos 
trabalhar era uma necessidade, um meio para se alcançar resultados na 
dominação que a cultura exerce sobre a natureza, mas na tecnocracia de nosso 
tempo, de meio o trabalho se converte em fim, o que se traduz imediatamente 
numa mudança de sentido para a atuação profissional: se outrora a profissão 
definia como alguém ganha a vida, hoje em muito se refere ao próprio sentido da 
vida. 
 
Há muito já nos vemos mergulhados num contexto histórico em que a 
racionalidade e a prática coordenam o espetáculo social, a bem dizer desde as 
remotas origens da Revolução Industrial, mas apenas nos últimos 20 anos 
configurou-se de fato a máxima importância da produtividade, a máxima 
valorização da capacidade de trabalho e uma certa apologia da empregabilidade. 
A meu ver, dois fatores colaboram especialmente para isso:as novas tecnologias 
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que, além de possibilitar uma racionalização e controle cada vez maiores da 
produção, deslocam o fervor da concorrência para o campo da informação e a 
emergência de uma mentalidade imediatista, voltada para os resultados práticos, 
praticamente isenta dos grandes valores que, em outros tempos, eivavam de 
abstrações o sentido da vida. 
 
Ingressar na engrenagem da contemporaneidade significa sobretudo mostrar 
capacidade de trabalho, de forma que o herói de nosso tempo passa a ser definido 
essencialmente por seu profissionalismo e, consequentemente, por seu sucesso no 
mercado. Ocorre que, sendo meio e fim em si mesmo, o trabalho exige cada vez 
mais energias de seu praticante e o mundo do mercado se faz cada vez mais 
estressante, de sorte que o descanso acopla-se como contraface necessária, 
repositório de energias, momento em que se renovam as forças para a volta à 
lida. Mas é nessa hora que se fecha um circuito onde o produtor se transmuta em 
consumidor e o lazer se torna a gratificação que justifica os esforços. É portanto 
na condição de consumidor que o produtor ratifica o papel preponderante do 
trabalho no sentido da vida. 
 
Na reflexão que estou aqui a propor é preciso deixar claro que o trabalho 
compreende praticamente todo o âmbito da produção, ao passo que o lazer não 
pode ser considerado mais que uma entre as tantas faces do consumo. Embora a 
escolha não esteja ausente de nenhuma dessas esferas da ação, é no consumo que 
estamos sempre a fazer escolhas. No entanto, de todas as faces do consumo, o 
lazer constitui-se no campo de excelência da escolha, na medida em que não se 
pauta pela obrigação nem pela necessidade, mas exclusivamente pela combinação 
da vontade com a possibilidade. Podemos então inferir que, entre as tantas 
esferas da ação humana, o lazer é o grande tempero, campo em que se delineiam 
estilos nos comportamentos de pessoas e grupos, ocupando assim um papel 
central na edificação do sentido da vida. 
 
Essa forma de colocar a questão do lazer em muito ultrapassa o que podem 
alcançar as duas formas mais tradicionais com que o tema é tratado, uma que o 
reduz à mera condição de descanso, outra à de diversão ou entretenimento. 
Certamente o trabalho e o lazer permanecem como faces de uma mesma moeda, 
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sendo fontes e manifestações interdependentes da produção de sentidos. Nota-se 
que por muito tempo as interpretações acerca da modernidade, sempre marcadas 
por essas visões tradicionais, seja em leituras constatativas, seja em leituras 
críticas, mantiveram noções reducionistas das significações do lazer no mundo do 
trabalho. Uma leitura crítica notável que exalta essa ótica é a dos 
“situacionistas”, pensadores radicais dos movimentos sociais que tiveram lugar 
na Paris de 1968. Com vistas à total ruptura com a ordem vigente, rotulada 
capitalista, alienante, espetacular, doentia, procuraram demonstrar que, nessa 
ordem, o tempo livre não passa de um “tempo pré-fabricado”. Com isso 
perceberam a íntima contraface que liga e opõe o trabalho ao lazer, mas não 
chegaram a contribuir para um avanço no entendimento do papel crucial do jogo 
entre tais esferas da ação no sentido da vida. 
 
Apenas entre os anos 80 e 90, especialmente nesses últimos, em parte pelo 
acirramento do culto ao trabalho, em parte pelo esgotamento das leituras 
tradicionais, começou-se a pensar o lazer de forma mais ampla. Na Europa, 
enquanto uma dura crise se abate sobre a velha industria colocando o 
desemprego na ordem do dia, surgem cursos e institutos voltados para a pesquisa 
e análise do lazer e do ócio. Sociólogos, psicólogos e filósofos debruçam sobre o 
tema. Novos negócios se abrem freqüentemente na indústria do entretenimento. O 
turismo, como uma das áreas de negócios mais promissoras do momento, coloca 
o lazer na mira de grandes investimentos. Também as indústrias da cultura, como 
o cinema e a televisão, as grandes novidades no campo das diversões noturnas, as 
diversões eletrônicas, mostram-se mais vigorosas do que nunca. Por que então, 
no auge da civilização do culto ao trabalho, restam presentes tão fortes reclames 
em nome do lazer? Cremos que tal indagação só se elucida, se esse pensar mais 
amplo incorporar à dialética produção x consumo, a questão de seus reflexos no 
sentido da vida. 
 
Em outros tempos grandes panacéias chamavam para si toda a responsabilidade 
sobre a produção de sentidos. Tendo na alça de mira propostas de “salvação”, 
“emancipação”, “evolução” ou “libertação”, tais panacéias costumavam deslocar 
o sentido para além da vida. Não podemos dizer que as panacéias estão mortas, 
mas a crise da pós-modernidade pôs em cheque a universalidade de cada uma 
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delas, deixando-nos assim relativamente órfãos de maiores razões para a 
existência. Ora, é nesse vácuo que os estilos de vida hoje se manifestam, algo que 
se torna tão visível nos espaços públicos ou semi-privados das grandes cidades, 
quanto no território virtual das cibervias. Visto como o campo aberto para as 
escolhas e, consequentemente, como espaço de configuração das identidades, o 
campo do lazer mostra-se seguramente o mais fértil para a observação das 
artimanhas da condição humana. É nessa hora que as pessoas se manifestam em 
seus gostos e preferências, deixando rastros profundos da maneira como, em 
última instância, encontram sentidos para suas vidas. 
 
 
 
 
 
O lazer e os estilos de vida 
 
Euclides Guimarães 
 
 
Na fauna urbana desse tempo de virada de milênio, as diferenças culturais 
tornam-se literalmente mais visíveis. Os grupos de identidade, que se auto-
rotulam “trups”, “gangues”, “tribos” ou “galeras”, revelam-se de antemão pela 
aparência. O “visual” tem sido, nesse contexto, o diferencial que demarca o lugar 
de cada tribo no cenário da cidade. Os carecas neo-nazistas, os punks neo-
anarquistas e os góticos com sua tradição dark-niilista herdada dos anos 80, se 
alimentam do nefasto astral de um suposto final dos tempos. O street-wear dos 
skatistas traz o apelo de uma nova civilização essencialmente urbana, que se 
desloca sinuosamente sobre suas próprias ruínas. Os esportistas radicais, que se 
embriagam de adrenalina trazem, desde o advento do surf way of life nos anos 
sessenta, toda uma fachada identitária, que inclui a adoção de estilo musical, 
cortes de cabelo, por vezes tatuagens, piercings e outros recursos visuais. Em 
torno do vestuário afirmam-se opções estéticas para as “tribos”, que funcionam 
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como referências imediatas: os iguais e os diferentes se atraem ou se repelem 
instantaneamente. 
 
Tal cenário vem se delineando desde os anos 50/60, quando, pela primeira vez, a 
juventude se afirmou como categoria social, mas, de lá para cá, a cada década, as 
identidades visuais se fazem mais evidentes. Nos anos 90, em face do advento de 
inusitadas dependências tecnológicas, fazem-se ainda mais claras as fronteiras 
que separam esses grupos comportamentais, na medida em que emergem as 
ciberculturas. Essas , que se anunciam preliminarmente pelo apelo estético de 
suas homepages, produzem o efeito de institucionalizar as tribos, posto que 
fundam sites e chats aptos a funcionar como centros de referência para a 
circulação dos ícones e símbolos legitimados no interior de cada grupo. A 
novidade é a velocidade com que o “local” se conecta ao “global”, produzindo 
efeitos comportamentais instantâneos em vários pontos diferentes do planeta. 
 
Tenho insistido em abordar por diferentes ângulos a questão da estetização da 
vida, que entendo como o processo mais conspícuo da sociabilidade em nosso 
tempo, e creio que essa ênfase no “visual”, tão imprescindível às subculturas da 
juventude contemporânea, é por si , outra gritante evidência desse mesmo 
processo. 
 
Muito bem, tudo isso nos remete às questões relativas ao mundo das escolhas, ao 
consumo e, em certo aspecto, ao campo do lazer.Filiar-se a uma ou outra dessas 
tribos é como optar por certos pratos de um grande cardápio onde , no fundo, o 
que está em jogo são sentidos que orientam a conduta e, em última instância, a 
própria vida. Significa escolher sua turma, seu espaço de relações sociais, o que 
de pronto reflete em sua discoteca, biblioteca, guarda-roupas, nos points que 
você irá freqüentar e nos arquivos que ficarão na memória de seu micro. Na 
decoração desses points, bem como no âmbito de seu estar íntimo, na porta de 
seu guarda-roupas, também estarão estampadas as marcas de sua identidade 
tribal. 
 
Vivemos assim em um mundo de imagens, onde transitamos conforme estilos de 
vida, sendo esses construídos quase com a mesma agilidade com que escolhemos 
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uma roupa ou qualquer objeto de uso pessoal, até porquê é já na prateleira do 
supermercado, ou nas mensagens, reclames e imagens que preenchem suas 
paredes, que se põem em oferta os próprios estilos de vida. O que 
invariavelmente está presente nessas ofertas é um apelo visual, de forma que o 
motor da escolha se aciona pela sedução. 
 
Contudo, é sempre bom lembrar que, por sob a fachada do visual, habitam muitas 
vezes velhas ou novas idéias, velhas ou novas formas de associação, velhas ou 
novas paixões, atrações, simpatias, empatias e idiossincrasias. É por essa 
perspectiva que o fenômeno estético torna-se uma das mais ricas fontes de 
pesquisa acerca das relações sociais hoje. 
 
Nos anos 50, um grupo de bancários mineiros que morava em São Paulo, do qual 
tenho notícia pelo fato de um deles ter sido meu pai, se divertiam na simplicidade 
de seus domingos regrados, observando os transeuntes e brincando de adivinhar-
lhes hábitos e ofícios. E consta que eram bons nisso. Certamente que, se fosse 
hoje, esses mesmos “antropólogos espontâneos” teriam muito mais pistas para 
sua diversão e, talvez por isso mesmo, já não mais pudessem se divertir tanto, 
posto que agora os costumes não mais se ocultam, ao contrário, se fazem notar 
explicitamente, a fim de subsidiar a sociabilidade. 
 
A diversidade de estilos visuais que se pode observar na grande cidade 
contemporânea é, portanto, o lado visível do emaranhado de sentidos que por ela 
circula. É a vida da cidade, sua pulsação, mundo de emblemas, multicampo do 
simbólico, hieroglífica malha de compromissos anônimos que caminha pelas 
coloridas pernas dos seus habitantes. Esses excêntricos urbanóides, em cujos 
adereços se espelha algo mais que vaidades ou delírios narcisistas, mas a maneira 
como se formam e se preservam os grupos sociais, como se tecem malhas 
relacionais, como se divulgam valores e ideologias, como cada um se inscreve na 
complexidade simbólica que, ao mesmo tempo, o insere na multidão e o livra do 
anonimato. 
 
 
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Euclides Guimarães é sociólogo e professor na 
PUC MG 
 
 
 
A VIAGEM E O CONSUMO 
POR: EUCLIDES GUIMARÃES/ PARA: SAGARANA N0 9 
 
Sabemos que a cidadania hoje encontra-se intimamente relacionada com o poder 
de consumo. A exclusão social é, ao mesmo tempo, a impossibilidade de exercer 
o direito de cidadania e de participar do consumo. Nesse sentido, podemos dizer 
que, em nosso tempo, as opções de consumo são também parte substancial das 
condições para o exercício das famosas “liberdades civis”, que são os direitos 
elementares do cidadão: liberdade de escolha, direito de esboçar opiniões e 
críticas, liberdade de crença e o direito de ir e vir. Nessa sociedade onde 
cidadania e poder aquisitivo se confundem, cada um desses direitos se concretiza 
na lógica do consumo: liberdade de escolha entre produtos ou serviços que 
concorrem no mercado; direito de esboçar opinião, revelando suas preferências e 
denunciando os mercadores e mercadorias enganosas; liberdade de crença, ou de 
optar entre várias religiões, cujos templos em muitos casos também funcionam 
como lojas; direito de ir e vir, isto é, transitar e viajar, ou em serviço, ou em 
férias, mediante pacotes executivos ou turísticos. 
 
É nesse mundo de escolhas pautadas pelo consumo que emergem as 
possibilidades de construção da identidade. Gostos, preferências e valores, em 
princípio atributos do indivíduo, freqüentemente assumem aspectos mais amplos, 
em torno dos quais se firmam grupos de identidade. Chamamos de “grupos de 
identidade” às confrarias que se formam por comunhão de gostos ou valores. 
Nessa sociedade globalizada, estetizada e mercantilista em que vivemos, a 
identidade do grupo, assim como a cidadania, apresentam-se como “nichos de 
consumo”. 
 
 
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As tribos urbanas, como as tratamos no artigo do número passado, são os mais 
visíveis entre esses grupos de identidade, oferecendo material seguro para a 
compreensão do processo pelo qual indivíduos e grupos produzem sentidos para 
suas vidas nas grandes cidades. Também o ciberespaço, que ocupa cada vez mais 
o tempo de cada vez mais pessoas na atualidade, funciona como veículo para a 
consolidação desses nichos. Mas onde se originam os valores e crenças que 
alicerçam os grupos de identidade? 
 
As origens nos remetem inevitavelmente a lugares. Os valores culturais que 
referenciam grupos de identidade formam-se em condições históricas e 
geográficas identificáveis. Cada tribo espalhada pelo mundo vê seus valores se 
firmarem a partir de acontecimentos e pessoas localizadas no espaço e no tempo. 
Esse “habitat de origem” muitas vezes se converte numa “meca” para os adeptos 
da tribo que ali se origina. De que outra maneira poderíamos entender a 
importância da Jamaica para quem se liga ao regae? E a importância de Londres, 
ou mais recentemente, de Seatle, para quem é da tribo do rock? E o Vale do 
Silício para os fãs de computadores? Ou o Havaí para os surfistas, a Índia e o 
Gangis para os yogs, o Rio para quem curte samba, Nova York para os yoops, 
Holywood para os cinéfilos e tantas outras localidades que se sustentam por seu 
valor simbólico? 
 
Um dos mais comentados efeitos da globalização é a sensação de que o espaço 
está sendo comprimido. O fato de podermos estabelecer contatos em tempo real 
com qualquer parte do planeta, bem como o de podermos receber informações 
just in time de qualquer lugar, produz naturalmente essa sensação. De fato, desde 
a invenção da roda e dos sinais de fumaça, as tecnologias vêm cumprindo seu 
papel de encurtar percursos, seja pela velocidade, seja pela instantaneidade da 
comunicação à distância. Na história da velocidade, chegamos ao arrojo de 
termos praticamente todo o globo cortado por linhas aéreas. Pelo ar chega-se hoje 
em qualquer lugar do planeta em menos de um dia. Conquanto nada se compara 
em termos de fazer próximo o distante, ao que acontece nas redes informacionais 
de comunicação, dada a possibilidade de circulação e armazenamento de 
informações em grande quantidade. O hipertexto - nome dado ao 
assustadoramente crescente volume de informações que circula na rede - 
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encontra-se em vias de se tornar um banco de dados de proporções inusitadas, 
muito maior que as maiores bibliotecas e os maiores centros de documentação 
audiovisual. Essa grandiosidade por vezes sugere uma certa autonomia da rede 
frente às fontes que a alimentam. Mas onde se originam as informações que 
inundam o hipertexto? 
 
As origens nos remetem de volta ao local. No hipertexto as informações circulam 
em escala global, combinam-se nessa escala e podem se imiscuir de forma a se 
soltar facilmente das raízes que as geraram, mas em algum nível de profundidade, 
restará presente a marca de sua origem local. Das culturas às ciberculturas, tudo 
se liga às origens e, embora cada grupo adquira autonomia para funcionar em 
nível planetário, resta sempre presente a nostalgia tão plena de significados, que 
transforma o “lugar de origem” num valor simbólico de grande magia e sedução. 
 
Na história da cultura, freqüentemente caracterizada pela difusão intensa, o 
contato e a hibridização,sempre houve a influência do local na formação do 
geral, do telúrico na formação do nacional ou do regional na configuração do 
bem cultural industrializado e comercializado pelos meios de comunicação. Nem 
todos os produtos que chegam ao consumidor nesse “mercado de sentidos”, 
guardam referências com seus locais de origem, mas muitos guardam e, quando 
isso acontece, o global divulga o local. O local divulgado através desse valor 
simbólico que o define como “onde-tudo-começou”, torna-se invariavelmente 
objeto do desejo de turistas e viajantes. 
 
Os investimentos na área de turismo, que se pautam por desenvolver um mercado 
de consumo de bens culturais identificados por lugares, devem ter sempre em 
conta essa força simbólica que não apenas potencializa o desejo de visitar, como 
também possibilita um contato mais direcionado, uma classificação mais precisa 
do tipo de público que cabe a cada localidade, uma segmentação eficiente para a 
implantação de um mercado turístico qualificado. 
 
As Gerais de tantas faces, de tantas histórias e tantas culturas, de tantas 
influências e tanta biodiversidade, constituem-se naturalmente numa grande fonte 
de referência para sua divulgação como “lugar de origem”. Nossa arte e 
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artesanato, nossa cozinha, as festas e eventos populares, os costumes mais 
arraigados, os mistérios de nossos tantos interiores, a literatura e as paisagens 
naturais, tudo isso nos imerge num manto de sentidos, numa colcha de retalhos 
que transpira brasilidade em matizes e formas diferentes. Por certo temos aí 
fontes límpidas para a configuração de identidades. 
 
 
III TRILOGIA DA JUVENTUDE 
CONTEMPORÂNEA 
POR: Euclides Guimarães 
Publicados na revista sagarana n 22, 23 e 24 ( 2006/2007) 
 
 
 
UMA NOVA RELAÇÃO HOMEM X NATUREZA 
 
 
Foi preciso constatar que o ser humano tem mais poder destrutivo do que 
construtivo para que nascesse a consciência ecológica. Se muito, antes disso, a 
palavra tinha seu uso restrito ao campo da biologia. Esse antes pode vir de antes, 
mas os efeitos predatórios causados pelo progresso da civilização industrial só se 
fizeram notar nos anos seguintes à Segunda Guerra Mundial. Lá pelo final dos 
anos 50 aparecem os primeiros sinais do grande inconformismo que teria a 
juventude como protagonista, e que ficaria marcado por uma crítica radical à 
economia política e aos costumes vigentes. Em sua amplitude esta crítica também 
mirava a questão ecológica, anunciada como um conjunto de ameaças à 
manutenção da vida no planeta, causadas invariavelmente pela ganância 
característica do capitalismo industrial em seu estágio avançado de 
superprodução e superconsumo. 
 
Os anos 60, chamados “anos rebeldes”, não só viram brotar as mais radicais 
críticas às tradições e aos avanços da civilização industrial, como também viram 
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se a afirmar seu protagonista definitivo, a juventude. Desde então a juventude 
deixou de ser apenas o que é inevitavelmente, uma faixa etária, convertendo-se 
em uma categoria social. Desde então a surpresa, a combatividade, as energias 
utópicas, as manifestações artísticas contraculturais, as ousadias estilísticas e 
tudo o que de alguma forma possa ser associado a atitudes radicais é coisa de 
jovem. Desde então o desejo de mudança, latente ou manifesto, tem na juventude 
seu esteio natural. 
 
Muitos foram os caminhos trilhados pela combatividade jovem desde os 60 até 
nossos obscuros tempos de início do século XXI. Aquela juventude obviamente 
deu lugar a outras, assim como a ordem mundial contra a qual ela se rebelou, mas 
a questão ecológica manteve-se como pano de fundo o tempo todo. Muitos 
reflexos benéficos para o planeta derivam dessa consciência e de seu 
amadurecimento, mas nada pôde conter o avanço de uma civilização cada vez 
mais artificial, cada vez mais dependente da alta tecnologia e, embora de forma 
muitas vezes mais racionalizada, também predatória e gananciosa. A natureza, no 
entanto, nunca mais seria vista como uma mera fonte de recursos ou um conjunto 
de obstáculos a serem domesticados pela civilização. A própria artificialização 
crescente do cotidiano, á qual se soma toda uma parafernália imagética 
cenográfica por vezes denominada tele-realidade, produziu uma espécie de 
carência de real e de natural, de forma que a natureza se transforma cada vez 
mais em objeto de admiração e respeito. As ameaças à sobrevivência humana 
representadas pelo mundo selvagem cada vez mais se tornam desafios atraentes, 
sedutores convites à aventura, propostas irrecusáveis de visitação a um mundo 
real, simples, concreto e maravilhoso. Conseqüentemente a juventude de hoje 
encontra nesse contato uma colméia de sentidos que talvez nunca tenha sido 
experimentada antes. 
 
Os “esportes de aventura” hoje tão em voga, para os quais as paisagens mineiras 
se mostram sobremaneira convidativas, são evidências de como o espírito 
alternativo da juventude vem sendo encaminhado para o contato com a natureza. 
A isso se acresce uma série de mudanças que a modernidade vem sofrendo nas 
últimas décadas. Embora tenha encontrado condições para desfraldar a bandeira 
da ecologia, nos anos 60 a questão central era social, talvez fundamentalmente 
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moral. Aquela juventude tinha um inimigo muito bem perfilado para combater, 
valores que há muito vigoravam e que se apresentavam como verdades 
inquestionáveis, embora já houvessem sido antes questionadas. 
 
O desfecho da Segunda Guerra representou de imediato uma volta da moral 
vitoriana, dessa feita na forma de um ufanismo puritano adornado por uma 
parafernália de bens de consumo. Era a apoteose do grande vencedor da guerra, 
que assim se prontificou a estender ao mundo o american way of life. A 
juventude underground intentou romper com tudo o que de alguma forma a isso 
se associava, mal sabendo que o principal vício dessa ordem já a havia 
contaminado irreversivelmente. É claro que esse modus vivendi ganhou 
características diferenciadas em cada região onde se implantou, mas não há 
dúvidas de que a contemporaneidade veio acentuar algumas das mais decisivas 
marcas dessa expansão: consumismo, individualismo, avidez por novidades, 
influência constante das mídias, sedução pela imagem, estetização da vida. 
 
Os valores foram questionados e relativizados entre o tempo da Guerra Fria e o 
nosso, mas os costumes ali divulgados se fizeram cada vez mais arraigados. A 
primeira juventude radical deixou como herança a combatividade, a necessidade 
de o jovem se diferenciar da massa e a relativização dos valores puritanos que 
outrora controlavam nossas vidas, mas também, deixando de ser jovem, entregou-
se quase por completo às delícias e perversidades do consumismo e do hiper-
individualismo. 
 
Desde os anos 80, sem a clareza sobre o que realmente oprime, sem saber 
exatamente quais inimigos enfrentar, a juventude perambula em busca de formas 
alternativas de vida, assumindo atitudes que têm um fundo inconformista, mas 
que revelam muito mais a necessidade de extrair ordem do caos que a de produzir 
o caos contra uma ordem sufocante. É nesse embalo que ela se depara com a 
natureza. 
 
A fina ordem que perpassa o confronto das forças naturais, o fino equilíbrio 
ecológico que supõe uma sabedoria planetária, torna-se um dos atrativos mais 
incríveis e aprender a lidar com isso passa a ser de grande importância. O 
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movimento dos ventos com suas térmicas, as seqüências fractais das ondas do 
mar, as protuberâncias irregulares das pedras que formam uma parede, ou das 
águas que despencam de uma cachoeira, essa incrível complexidade se apresenta 
como um convite à aventura de decifrar, enfrentar os medos mais primais, 
superar o medo cósmico, desfrutar dos perigos e da beleza de um mundo real e 
corpóreo que, quanto mais falta ao cotidiano da urbanidade e da alta tecnologia, 
mais exuberantemente se mostra no mundo natural.TEMPOS NÔMADES 
 
É curioso, dir-se-ia tragicômico, que as últimas etapas da saga humana remontem 
um nomadismo apenas comparável ao das primeiras. Desde o neolítico, lá pelos 
7000 A.C. , boa parte da humanidade, já então espalhada por todo o planeta, 
havia desenvolvido técnicas que possibilitaram a vida sedentária. E devemos 
considerar que isso foi uma grande conquista, na medida em que a vida nômade 
pressupõe o mundo como um grande caos e nos mantém sob a égide de uma 
incômoda incerteza. Para nossos mais remotos ancestrais a vida se resolvia em 
um eterno presente, alegria e tristeza podiam se suceder a qualquer momento, 
pois tudo dependia de como a mãe natureza nos provia de dádivas ou de 
privações. Perambulávamos entre o sucesso e o fracasso, entre aventuras e 
desventuras. Era, contudo, uma vida intensa. 
 
Depois de 10000 anos de civilização, eis que nos vemos diante de nossos mais 
precários problemas. Todas as formas de controle sobre o futuro revelam-se 
precárias e, ainda que possamos nos apegar aos finos recursos da probabilidade, 
enobrecendo nossas incertezas com a premissa do risco calculado, do cálculo 
atuarial, das distribuições de probabilidade, das séries temporais e de outros que 
tais, somos, como nossos ancestrais, uma raça errante, incapaz de prever o dia de 
amanhã. 
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É certo que o futuro sempre foi incerto, mas em outros tempos pudemos contar 
com crenças e hábitos capazes de aplacar esse drama barroco. No que se refere às 
crenças, inventamos linhas, pêndulos e espirais para pensar o tempo. Com os 
hábitos demos operacionalidade a essas crenças e vimos gerações se sucederem 
em relações previsíveis, muitas vezes cruéis, mas previsíveis. Esses tempos 
passados têm profundas marcas fincadas no nosso, especialmente a modernidade 
com suas organizações pensadas, sua racionalidade cartesiana, seus saberes 
sofisticados e suas rígidas instituições disciplinares. No entanto, nem raízes 
podem manter sua solidez na fluidez generalizada da contemporaneidade. 
 
Talvez o nosso tempo venha a ser reconhecido como aquele em que as imagens 
tomaram o lugar das coisas e as pessoas passaram a viver como personagens, 
oscilando tropegamente entre paisagens e cenários, vestindo avatares e se 
amando ou odiando por seu intermédio, incapazes de separar o que é real do que 
é fictício. Talvez seja lembrado apenas como o momento da constatação de que 
tais fronteiras nunca existiram. 
 
Mais importante que o que sabemos ou o que sabemos não saber, é como agimos 
em face das orientações de conduta que essas ignorâncias nos indicam. Quando 
achamos que sabemos, seguimos ou questionamos valores e normas, criando 
nossos filhos de acordo com convicções, produzindo a própria vida como uma 
rotineira tarefa em que cada gesto se alinha aos comandos da “cartilha”. Quando 
sabemo-nos ignorantes, tendemos a proporcionar aos filhos não a ordem, mas o 
caos. Temos boas razões para considerar a juventude atual como os filhos do 
caos. 
 
No caos contemporâneo somos livres e solitários, temos amparo, mas estamos 
órfãos. 
 
Os jovens de hoje, bebês ou crianças no dia da queda do Muro de Berlin, 
cresceram nas inéditas condições do novo caos a que nos referimos. Criados 
menos pela escola que pelas mídias, em vez de cartilhas, tiveram canais. Em cada 
canal uma ética, em cada um uma estética, em cada site um insight, e apenas uma 
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sintonia comum a todos, a propaganda. Com ela somos levados a agir não pela 
norma, não pela imposição, mas pela sedução. Também com ela atingimos a auge 
de uma sociedade voltada para o indivíduo. Os bem e os mal sucedidos 
distinguem-se, sobretudo, pela capacidade e oportunidade de satisfazer seus 
próprios desejos, ou talvez não tão próprios, uma vez que se consubstanciam em 
produtos prontos, ofertados pelos tais canais estetizados das mídias, das 
embalagens, dos territórios virtuais, dos ritos modelares, dos supermercados. 
 
O indivíduo enfrenta então um desafio inédito: extrair ordem do caos. E se o caos 
está no mundo que o envolve, a ordem deve ser buscada no mundo interior. O 
nômade se olha, pois em si mesmo mora tudo o que de fixo lhe resta. Como o 
marinheiro, que era o único nômade em um mundo onde tudo o mais era fixo, ele 
se tatua. Tatuar é escrever no corpo com imagens que não podem ser apagadas, 
sua própria saga. O marinheiro tinha de fixo o seu corpo e nada mais. Em cada 
ancoragem uma história, um amor, uma trama. Não seria esta a sina do homem 
contemporâneo? 
 
Desde os anos 60 o jovem se difere por vários aspectos comportamentais. É claro 
que a primeira juventude de atitude influencia as demais, mas há traços bem 
específicos no comportamento do jovem contemporâneo, como a tatuagem e 
demais adornos corporais, a vida na tela, as organizações tribais e os esportes 
radicais. Nesses últimos se revela a relação mais conspícua de nosso tempo: o 
indivíduo em diálogo consigo próprio. 
 
Nos esportes tradicionais o jogador se depara com o talento de um adversário em 
iguais condições, nos esportes radicais, via de regra, o adversário está em si 
mesmo. É preciso vencer os próprios medos, superar suas limitações. Por esse 
caminho a adrenalina, até bem pouco tempo palavra adstrita ao jargão da 
medicina, vai se tornando uma meta, um gozo especial, ganhando sentidos para 
os quais devem se atentar os psicólogos, os sociólogos, ou quem mais se 
interesse por compreender esses estranhos caminhos da juventude. Na sistemática 
da navegação pelo caos, não é estranho que o estranho já não cause tanto 
estranhamento. 
 
 19
 
 
 
ARMADURAS DO SUJEITO 
 
 
Quando o mundo moderno se estabeleceu nos grandes centros urbanos do 
Ocidente, entre o séc. XIX e a primeira metade do séc. XX, alimentou-se a crença 
de que os acontecimentos futuros seriam engendrados por projetos funcionais, 
alicerçados em simulações precisas, monitorados por escolhas racionais e 
produzidos segundo planos bem detalhados. Acontece que a limpidez dos planos 
sempre se viu atropelada pela opacidade do real, cujas imprevisibilidades faziam 
brotar presentes bem menos animadores que as promessas, de forma que a 
modernidade foi se esgotando no bojo de suas próprias frustrações. 
 
Para a segunda metade do séc. XX os fatos expõem as feridas civilizatórias. 
Desde a bomba de Hiroxima e a constante ameaça de sua reincidência, a que se 
somam os primeiros sinais de esgotamento dos recursos naturais, os primeiros 
efeitos catastróficos da destruição ecológica e a revelação dos novos e imensos 
bolsões de miséria, vimo-nos estupefatos com o quanto nossa engenhosidade 
parece servir melhor aos propósitos destrutivos, que aos construtivos. 
 
A razão não desistiria de correr atrás de si própria, buscando uma precisão cada 
vez maior nos cálculos e uma sofisticação crescente em seus produtos mas, cada 
vez menos, nos sentiríamos seguros para contar com ela na procura de um mundo 
melhor. Digamos que a razão serviu muito bem às nossas demandas por 
eficiência, mas pouco pôde acrescentar aos nossos anseios por felicidade. Como a 
dependência tecnológica e a corrida pela eficiência mantêm-se fortemente vivas, 
também a razão prática permanece na ordem do dia. 
 
Fora da tecnocracia a insegurança, a impotência, a ambigüidade e a contradição 
passaram a (des)nortear as reflexões do homem pós-moderno e, nesse contexto 
inédito de ausência de convicções, nascem e crescem as novas gerações. Pais sem 
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convicções não são capazes de passar qualquer segurança aos filhos e assim, ao 
mesmo tempo em que se ganha uma grande liberdade, paga-se por ela o preço de 
uma triste orfandade. 
 
Embora cheio de recursos, trajando armaduras high tech, cercado de sofisticados 
instrumentos de navegação, o jovem contemporâneo não pode escapar da deriva. 
Ele navega num imenso oceano de sentidos, fazendo assim as vezes de um 
Odisseu contemporâneo, sujeito às mais sedutorasarmadilhas e aos percalços 
próprios de quem sai de uma para cair em outra. 
 
Obviamente, aprender a viver nesse caos, é o desafio que a juventude atual tem a 
encarar. Não surpreende o boom editorial dos livros de auto-ajuda, a oferta 
indiscriminada de orientadores pessoais, e as coisas se complicam ainda mais 
quando constatamos que as águas desse oceano estão em grande tormenta e seus 
movimentos não podem ser previstos matematicamente, a não ser, em alguns 
casos, por complexas seqüências fractais. Talvez a Odisséia de Ulisses não 
pudesse ter sido tão incerta, já que seus desafios podiam ser vencidos pela astúcia 
e o cálculo racional. Para o Odisseu do séc. XXI as coisas não são tão simples 
assim: além da razão e da astúcia, é preciso contar com o inefável, com a 
sensibilidade, com a intuição, coisas a que os velhos gregos não davam muito 
valor. É o feeling que orienta o surfista na escolha da onda certa, o snowboarder 
na escolha do seu traçado pela montanha, o executivo na hora de especular, os 
amantes na busca de seus parceiros ideais. O feeling vem gradativamente 
tomando o lugar do cálculo linear. Se este funcionava como o mote das formas 
modernas de interpretar e agir e, talvez por isso, a modernidade pôde tão 
veementemente se inspirar nos velhos gregos, a pós-modernidade não nos 
permite o luxo de procedimentos tão simples e desencantados. 
 
É a complexidade que cobra de cada um de nós uma sensibilidade que não se 
pode simplesmente aprender na escola, uma vez que não se pode apreender por 
fórmulas, nem compreender pelos tradicionais caminhos lógicos da dedução e da 
indução. Também não se pode prever pelo planejamento estratégico, pois o que 
se oferece à experiência não são dados de um passado que por sua regularidade, 
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se projetam no futuro e sim dados imediatos de um presente que jamais se 
rearranjará da mesma forma. 
 
A grande equação da vida para o Odisseu da pós-modernidade, reino da liberdade 
e da orfandade, passa a se pautar por dimensões antagônicas: a necessidade fluir 
agilmente e ao mesmo tempo de se ancorar. Pela fluidez ele quer ser livre e 
descompromissado, mas pela ancoragem, quer ter alguém em quem confiar, quer 
amar intensamente e busca no outro seu mais seguro porto. Pela fluidez quer uma 
vida intensa, de prazeres radicais e, para isso, se dispõe a enfrentar grandes 
perigos, mas pela fixidez está disposto a sacrifícios que atendam a promessa de 
uma vida longa. Pela fluidez está sempre a procurar novas aventuras, novas 
turmas e novas estéticas, pela fixidez está a procurar marcas perenes, registros 
inapagáveis de seu trajeto pela vida, como as tatuagens. Pela fluidez quer abraçar 
o mundo de uma vez, podendo estar sempre conectado, como promete seu 
celular, pela fixidez quer se isolar num canto, podendo sempre, mesmo quando 
acompanhado, contar com a possibilidade de se manter à parte. Isso também 
promete seu celular. 
 
Visível e invisível, presente e ausente, indumentado e nu, experiente e ingênuo, 
amadurecendo rapidamente, mesmo que apegado ao projeto inexeqüível de se 
manter eternamente jovem. É assim que o sujeito se manifesta e se contra-
manifesta no presente: oscilando entre o excesso e a falta, é ao mesmo tempo o 
risco e o agente de seguros de si mesmo.

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