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e s t u d o s d o A A coleção Estudos do Lazer destina-se a publicar pesquisas, relatos de experiência e propostas de atividades embasadas teoricamente que envolvam a manifestação humana lazer, seus diversos conteúdos culturais, nas suas relações com a sociedade, incluindo políticas de intervenção, com ênfase na realidade brasileira. www.atomoealinea.com.br V I S IT E N O S S O W E B S I T F, ISBN 978-85-751.6 7 8 8 5 7 5 Nelson Carvalho Marcellino | org. LAZER 4 E S O C I E D A D E M Ú L T I P L A S R E L A Ç Õ E S i 3 rai_ o £ TJ LU \ / x O conteúdo desta obra vem sendo aplicado nas disciplinas de Sociologia do Lazer e Lazer e Sociedade, em cursos de Ciências Humanas, Administração, Turismo, Educação Física, específicos da área, dentre outros. Tem como objetivo fornecer elementos para a compreensão das relações possíveis entre a manifestação humana Lazer e aquelas ocorridas nas áreas das obrigações como o trabalho, a família, a educação e a religião, bem como suas vinculações com aspectos sociais importantes como saúde, inserção social, e relações interpessoais, abordando questões como fases da vida, gênero e qualidade de vida. O lazer, cada vez mais, ganha, na sociedade contemporânea, status de direito social e importante elemento de inserção social. É uma manifestação ligada ao prazer, à saúde, à qualidade de vida e é fundamental na construção da cidadania. Pela amplitude e complexidade da temática, tal empreendimento não poderia ficar sob a responsabilidade de um único autor. E, por isso, estendemos o convite a um grupo de pesqui- sadores, de diferentes áreas, para darem, cada um a partir do seu campo de atuação, suas contribuições. As matrizes teóricas dos trabalhos também são diferenciadas, o que poderá fornecer aos leitores uma gama variada de tendências na abordagem das questões referentes ao lazer em relação à sociedade. i e s t u d o s do Lazer e s o c i e d a d e m ú l t i p l a s r e l a ç õ e s organizador Nelson Carvalho Marcellino Alínea E D I T O R A A T Y Alínea DIRETOR GERAL Wilon Mazalla Jr. COORDENAÇÃO EDITORIAL Willian F. Mighíon COORDENAÇÃO DE REVISÃO Helena Moysés REVISÃO DE TEXTOS Vera Luciana Morandim R. da Silva EDITORAÇÃO ELETRÔNICA Fábio Cyrino Mortari Fábio Diego da Silva Tatiane de Lima Warsten Mazalla CAPA Ivan Grilo Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Lazer e sociedade: múltiplas relações / organizador Nelson Carvalho Marcellino. - - Campinas, SP: Editora Alínea, 2008. - - (Coleção estudos do lazer) Bibliografia 1. Lazer 2. Turismo 3. Turismo - Aspectos sociais 1. Marcellino, Nelson Carvalho. II. Título. III. Série. 08-07681 CDD -306.3 índices para Catálogo Sistemático 1. Sociologia do turismo 306.3 ISBN 978-85-7516-283-5 Todos os direitos reservados à Editora Alínea Rua Tiradentes, 1053 - Guanabara - Campinas-SP CEP 13023-191 - PABX: (19) 3232.9340 e 3232.2319 www.atomoealinea.com.br Impresso no Brasil Conselho Editorial Prof. ür. Edmur Antônio Stoppa - USP Prof. ür. Helder Ferreira Isayama - UF1V1G Prof. ura. Maria Cristina Rosa - UFOP Prof. ür. Nelson Carvalho IVlarcellino - UN1MEP Prof. ür. Ricardo Ricci Uvinha - USP Prof. ür. Victor Andrade de Melo - UFRJ SUMARIO Apresentação 7 Capítulo l Lazer e Sociedade: algumas aproximações / 11 Nelson Carvalho Marcellino Capítulo 2 v Trabalho e Gestão de Pessoas: o que lazer tem a ver com isso? 27 Valquíría Padilha Capítulo 3 Lazer e Educação: desafios da atualidade 45 Leila Mirtes Santos de Magalhães Pinto Capítulo 4 Lazer e Religião: algumas aproximações 63 Oldrey Patrick Bittencourt Gabriel Capítulo 5 O Lugar da Família nas Políticas de Lazer 83 Patrícia Zingoni Capítulo 6 Lazer e Saúde: a sociedade e o social 105 Yara M. Carvalho Capítulo 7 Estrutura Política Excludente, Práticas Culturais Normalizadoras, Políticas de Alívio à Pobreza: o lazer em questão. Flávia Faissal de Souza Capitulo 8 Gênero e Lazer: um binômio instigante. Tânia Mara Vieira Sampaio .121 .139 .155 Capítulo 9 O Lazer e as Fases da Vida. Hélder Ferreira Isayama Christianne Luce Gomes Capítulo 10 Lazer e Qualidade de Vida: a corporeidade autônoma. Wagner Wey Moreira Regina Simões Sobre os Autores 193 .175 APRESEMTAÇÃO O entendimento do lazer de modo isolado, sem considerar as mútuas influências que podem ocorrer, e certamente ocorrem, com as várias esferas da vida social, tem provocado uma série de equívocos quando se estuda a questão. Quanto mais complexa se toma a sociedade, maiores são as necessidades de inter-relações entre os vários componentes da vida social para o seu entendimento. Não é diferente no caso do lazer, que guarda estreitas ligações com o terreno das ações sociais ligadas ao campo das obrigações por exemplo, e, na nossa sociedade, historicamente situada, podemos dizer que o trabalho é a principal delas. Embora não exista um consenso entre os vários autores que estudam o assunto, a maioria concorda que o período de consolidação dos processos de industrialização/urbanização é o que marca com contornos mais nítidos os campos das obrigações, sobretudo do trabalho e do lazer. É nesse cenário que devemos entender o lazer, tal como se apresenta aos nossos olhos na vida social contemporânea. A observação da prática do lazer na sociedade contemporânea é marcada por fortes componentes de produtividade. Valoriza-se a performance, o produto e não o processo de vivência que lhe dá origem; estimula-se a prática compulsória de atividades denotadoras de moda ou status. Além disso, o caráter social requerido pela produtividade confina e adia o prazer para depois do expediente, fins de semana, períodos de férias ou, mais drasticamente, para a aposentadoria. No entanto, isso tudo não nos permite ignorar a ocorrência historie? do lazer, inclusive como conquista da classe trabalhadora. O lazer é uma problemática tipicamente urbana, característica das grandes cidades, porém ultrapassa suas "fronteiras", uma vez que os grandes centros urbanos levam essa problemática com as mesmas características, por meio da mídia, para outras regiões do país, nem tão grandes, nem tão urbanizadas. Entender o lazer como um campo específico de atividade, em estreita relação com as demais áreas de atuação humana, não significa deixar de considerar os processos de alienação que ocorrem em quaisquer dessas áreas. Entender o lazer como espaço privilegiado para manifestação do lúdico, na nossa sociedade, não significa absolutizá-lo ou, menos ainda, considerá-lo como único. A meu ver, esse entendimento parece ser uma postura que contribui para abrir possibilidades de alteração do quadro atual da vida social, tendo em vista a realização humana, a partir de mudanças no plano cultural. Entretanto as transformações sociais não afetaram somente as relações trabalho x lazer, mas também as outras esferas de atuação humana como a família, a religião, a educação, que sofreram e sofrem transformações profundas e rápidas com a vida moderna. Por outro lado, é preciso ter presente que a prática das atividades de lazer não é fruída da mesma forma pelos diferentes segmentos da sociedade. Sempre tendo como pano de fundo as condições socioeconômicas, podemos verificar a existência de um todo inibidor para o seu desenvolvimento, constituído de barreiras interclasses sociais (econômicas, sociais, de instrução), e intraclasses sociais (faixa etária, gênero, violência, acesso a equipamentos, estereótipos e outras). Longe de constituir uma manifestação supérflua, o lazer cada vez mais ganha seu status de direito social, e seu papel privilegiado, porque ligado ao prazer, de elemento importante de qualidade de vida, e de construção de cidadania, de saúde, em sentido amplo e de inserção social. O objetivo deste livro é fornecer elementos para a compreensão das relações possíveis entre a manifestação humana Lazer e aquelas ocorridas nas áreas das obrigações como o Trabalho, a Família, a Educação e a Religião, bem comosuas vinculações com aspectos sociais importantes como a saúde, a inserção social e as relações interpessoais, abordando questões como fases da vida, gênero e qualidade de vida. Pela amplitude e complexidade da temática, tal empreendimento não poderia ficar sob a responsabilidade de um único autor. E, para isso, estendemos o convite a um grupo de pesquisadores, de diferentes áreas, para darem, cada um a partir do seu campo de atuação, suas contribuições. As matrizes teóricas dos trabalhos também são diferenciadas, o que poderá fornecer aos leitores uma gama variada de tendências na abordagem das questões referentes ao Lazer em relação à Sociedade. O conteúdo da obra vem sendo trabalhado nas disciplinas Sociologia do Lazer e Lazer e Sociedade, em cursos de Ciências Humanas, Administração, Turismo, Educação Física e específicos da área, entre outros. Esperamos que este livro possa contribuir com o debate. O organizador Capítulo 1 LAZER E SOCIEDADE Algumas aproximações Nelson Carvalho Marcellino Quando se trabalha, dentro de uma mesma área, por mais de três décadas, é praticamente impossível estabelecer novas relações dentro dela, sem recorrer a trabalhos anteriores, sob pena, de não o explicitando, faltar à verdade com aqueles quem nos lêem ou ouvem. Dessa forma, correndo sempre riscos, e o que aqui se apresenta é o de ser repetitivo, vou retomar, nesta fala, as conclusões de minha dissertação de mestrado (Marcellino, 2004) e da tese de doutorado (Marcellino, 2005) e, a partir delas, estabelecer algumas relações, entre lazer e sociedade. Ainda julgo ser necessário, nos meus escritos e falas, explicitar o conceito de lazer, com o qual trabalho, para evitar mal entendidos na sua discussão. Cada vez que o faço, acrescento novas explicações, em decorrência de questionamentos que recebo, por ocasião de suas colocações. Muitas vezes o que constato é que se busca uma definição. No entanto, trabalho com um conceito operacional do lazer historicamente situado. Deve-se salientar que, se originalmente lazer e recreação apresentavam-se de forma distinta - o primeiro visto como o tempo quando a segunda ocorria -, hoje, a recreação é um componente do lazer - criar de novo, dar vida nova, com novo vigor, como pode ser, também, de outras esferas de manifestação humana (Dumazedier, s/d.). 12 Nelson Carvalho Marcellino Dessa perspectiva, a consideração da recreação/lazer, cada vez mais em nossa sociedade, deve levar em conta os seguintes pontos: 1) Cultura vivenciada (praticada, fruída ou conhecida), no tempo disponível das obrigações profissionais, escolares, familiares, sociais, combinando os aspectos tempo e atitude. Digo, do concreto da sociedade contemporânea - como é, e não do devir - como deveria ser, inclusive numa sociedade que eu próprio considere mais justa. Quando me refiro à cultura, não estou reduzindo lazer a um único conteúdo, vendo-o a partir de uma visão parcial, como geralmente ocorre quando se utiliza a palavra 'cultura', quase sempre restringindo-a aos conteúdos artísticos, mas aqui abordando os diversos conteúdos culturais. E, finalmente, quando digo vivenciada, não estou restringindo o lazer à prática de uma atividade, mas também ao conhecimento e à assistência que essas atividades podem ensejar, e até mesmo à possibilidade do ócio, desde que visto como opção, e nem confundido com ociosidade, sem contraponto com a esfera das obrigações, no nosso caso, fundamentalmente, a obrigação profissional; 2) O lazer gerado historicamente e dele podendo emergir, de modo dialético, valores questionadores da sociedade como um todo, e sobre ele também sendo exercidas influências da estrutura social vigente. A relação que se estabelece entre lazer e sociedade é dialética, ou seja, a mesma sociedade que o gerou, e exerce influências sobre o seu desenvolvimento também pode ser por ele questionada, na vivência de seus valores; 3) Um tempo que pode ser privilegiado para vivência de valores que contribuam para mudanças de ordem moral e cultural, necessárias para solapar a estrutura social vigente. A vivência desses valores pode se dar numa perspectiva de reprodução da estrutura vigente, ou da sua denúncia e anúncio - pela vivência de valores diferentes dos dominantes - imaginar e querer vivenciar uma sociedade diferenciada; La/er e Sociedade 13 4) Portador de um duplo aspecto educativo - veículo e objeto de ducação, considerando-se, assim, não apenas suas possibilidades de descanso e divertimento, mas também de desenvolvimento pessoal e social. E aqui não se está negando o descanso e o divertimento, mas simplesmente enfatizando a dimensão menos considerada do lazer, a de desenvolvimento que o seu vivenciar pode ensejar. Volto a repetir, como em outros escritos, que o lazer é entendido, portanto, como a cultura, compreendida em seu sentido mais amplo, vivenciada no tempo disponível. É fundamental como traço definidor o caráter "desinteressado" dessa vivência. Ou seja, não se busca, pelo menos basicamente, outra recompensa além da satisfação provocada pela própria situação. A disponibilidade de tempo significa possibilidade de opção pela atividade ou pelo ócio (Marcellino, 2004). É importante ressaltar, também, que o entendimento do lazer não pode ser efetuado "em si mesmo", mas como uma das esferas de a Ison Carvalho Marcellinos ituada. Outras opções implicariam a colocação apenas parcial e abstrata das questões relativas ao lazer. É impossível, por exemplo, abordar as questões do lazer isoladas das questões do trabalho, da educação etc. A polêmica verificada quanto ao conceito permanece quando se examina a questão da ocorrência do lazer na vida social, do ponto de vista histórico. Alguns autores consideram que, se os homens sempre trabalharam, também paravam de trabalhar, existindo assim um tempo de não-trabalho, e que esse tempo seria ocupado por atividades de lazer, mesmo nas sociedades tradicionais. Para outros, o lazer é fruto da sociedade moderna urbano-industrial. Não há, a rigor, um caráter de rejeição entre as duas correntes, mas sim enfoques diferentes. A primeira aborda a necessidade de lazer, sempre presente, e a segunda se detém nas características que essa necessidade assume na sociedade moderna. Assim, o lazer sempre existiu, variando apenas os conceitos sobre o que era e quais os seus significados. Em outros tipos de organização social, o que se verifica é o não isolamento das atividades obrigatórias, das lúdicas, o que de modo 14 Nelson Carvalho Marcellino algum significa a não existência do lúdico. E mais ainda, o que não nos permite prever se essa divisão, verificada atualmente na sociedade moderna, urbano-industrial, permanecerá efetivamente ou não. Entender o lazer como um campo específico de atividade, em estreita relação com as demais áreas de atuação do homem, não significa deixar de considerar os processos de alienação que ocorrem em quaisquer dessas áreas. Entender o lazer como espaço privilegiado para manifestação do lúdico na nossa sociedade não significa absolutizá-lo ou, menos ainda, considerá-lo como único. A meu ver, esse entendimento parece ser uma postura que contribui para abrir possibilidades de alteração do quadro atual da vida social, tendo em vista a realização humana, a partir de mudanças no plano cultural. O fator econômico é determinante desde a distribuição do tempo disponível entre as classes sociais, até as oportunidades de acesso à escola, e contribui para uma apropriação desigual do lazer. São as chamadas barreiras interclasses sociais. Sempre tendo como pano de fundo esse fator econômico, podemos distinguir uma série de aspectos que inibem e dificultam a prática do lazer, fazendo com que se constitua em privilégio. São chamadas de barreiras intra-classes sociais. Uma delas é o gênero e, nesse aspecto, as mulheres são desfa- vorecidas comparativamente aos homens, ou pela rotina do traba- lho doméstico, ou pela dupla jornada de trabalho e, principalmente, pelas obrigações familiares decorrentes do casamento, numa socie- dadeque, apesar dos avanços nesse sentido, continua machista. Outra delas é a faixa etária. Aqui as crianças e os idosos são os esquecidos. A criança, por não ter ainda entrado no "mercado produtivo", não é considerada como a faixa etária que deve ser vivenciada, mas apenas como uma etapa de preparação para o futuro. O idoso, por já ter saído do mesmo "mercado", também tem dificuldades de participação nas atividades de lazer. Além disso, no plano cultural, uma série de preconceitos restringe a prática do lazer aos mais habilitados, aos mais jovens e aos que se enquadram nos padrões estabelecidos de "normalidade". Dessa forma, a classe social, o nível de instrução, a faixa etária, o gênero, entre outros fatores, limitam as oportunidades de prática do lazer. São indicadores indesejáveis e necessitam ser Lazer e Sociedade 15 atacados por uma política que objetive a democratização do lazer (Marcellino, 2006). Democratizar o lazer implica democratizar o espaço. Muito embora as pesquisas realizadas na área das atividades desenvolvidas no tempo disponível enfatizem a atração exercida pelo tipo de equipamento construído, deve-se considerar que, para a efetivação das características do lazer, é necessário, antes de tudo, que ao tempo disponível corresponda um espaço disponível. E se a questão for colocada em termos da vida diária da maioria da população, não há como fugir do fato: o espaço para o lazer é o espaço urbano. Se procedermos à relação lazer/espaço urbano, verificaremos uma série de descompasses, derivados da natureza do crescimento das nossas cidades, relativamente recente, e caracterizado pela aceleração e imediatismo. O aumento da população urbana não foi acompanhado pelo desenvolvimento de infra-estrutura adequada, gerando desníveis na ocupação do solo e diferenciando marcadamente, de um lado, as áreas centrais, ou os chamados pólos nobres, concentradores de benefícios, e de outro a periferia, com seus bolsões de pobreza, verdadeiros depósitos de habitações. Mesmo quando nesses espaços estão localizados equipamentos tais como shopping centers, a população local, geralmente, não tem acesso privilegiado a eles. Constata-se, principalmente, a centralização de equipamentos específicos (teatros, cinemas, bibliotecas etc.),1 ou a sua localização em espaços para públicos segmentados, o ar de "santuário" de que ainda se revestem um bom número deles e as dificuldades para utilização de equipamentos não-específicos - o próprio lar, bares, escolas etc. Requixa (1980) enfatiza a necessidade de integração, dentro de uma política de lazer, de equipamentos privados e públicos, de um lado, e de outro, de equipamentos específicos e não-específicos. Como equipamento não-específico entende os que, em sua origem, não foram construídos para a prática das atividades de lazer, mas que depois tiveram sua destinação específica alterada, de forma parcial ou total, criando-se espaços para aquelas atividades. O autor coloca que hoje os espaços das cidades precisam ser aproveitados de modo a se tornarem polivalentes Entre esses equipamentos não específicos estão: o lar, a rua, o bar, a escola etc. Já os equipamentos específicos são construídos com essa finalidade, podendo ser classificados pelo tamanho, atendimento aos conteúdos culturais ou outros critérios. 16 Nelson Carvalho Marcellino Essa situação é agravada sobretudo se considerarmos que, cada vez mais, as camadas mais pobres da população vêm sendo expulsas para a periferia e, portanto, afastadas dos serviços e dos equipamentos específicos; justamente as pessoas que não podem contar com as mínimas condições para a prática do lazer em suas residências e para quem o transporte adicional, além de economicamente inviável, é muito desgastante. Nesse processo, cada vez menos encontramos locais para os folguedos infantis, para o futebol de várzea, ou que sirvam como pontos de encontro de comunidades locais. Assim, aos espaços destinados ao lazer pouco restou. O lazer também passou a ser visto pelos grandes investidores como uma mercadoria. Há muito a cidade deixou de ser basicamente um espaço público, neutro, sem querer chamar a atenção. A própria cidade é um produto a ser vendido para o desenvolvimento de atividades lucrativas (Sassen, 2000, p. 120). É preciso que o poder municipal entenda a importância dos espaços urbanos de lazer nas cidades, antes que empresas os transfor- mem em produtos acessíveis somente a classes sociais mais altas. Se o lazer é colocado pela sociedade capitalista enquanto um momento de consumo, o espaço para o lazer também é visto como um espaço para o consumo. A constituição dos núcleos é primordialmente assentada em interesses econômicos. Foram e são concebidos como locais de produção, ou de consumo (Marcellino, 2006, p. 25). Dessa forma, também os equipamentos de lazer, os espaços de convívio, seguem uma tendência à privatização, incluindo aí as áreas verdes que, como o próprio lazer, passam a ser "mercadorias". Somos partidários da opinião de que a bela cidade constitui o equipamento mais apropriado para que o lazer possa se desenvolver. É aí onde se localizam os grandes contingentes da população, que a produção cultural pode ser devidamente estimulada e veiculada, atingindo um público significativo. O crescimento desordenado, a especulação imobiliária, enfim, uma série de fatores vem contribuindo para que o quadro das nossas cidades não seja dos mais promissores, quer na defesa de espaços, quer em termos da paisagem urbana, quando se fala da contemplação Lazer e Sociedade 17 estética. Em nome da economia e da funcionalidade, muito se tem feito "enfeiando" a paisagem urbana. Mas, não somente a urbanização é regida pelos interesses imediatistas do lucro. A visão utilitarista do espaço é determinante também nos processos de renovação urbana, ou seja, nas modificações do espaço já urbanizado, ditadas pelas transformações verificadas nas relações sociais. Além da alteração da paisagem, fato mais facilmente observado e que, pela ausência de critérios, geralmente contribui para a descaracterização do patrimônio ambiental urbano e a conseqüente perda das ligações afetivas entre o morador e o hábitat, há diminuição dos equipamentos coletivos e o aumento do percurso casa/trabalho, enfim, o favorecimento de pequenos grupos sociais em detrimento dos antigos moradores. É relativamente recente a preocupação com os efeitos nocivos causados pelo processo de urbanização crescente para a estrutura de nossas cidades. A ação predatória, motivada pelos interesses imediatistas, ocasiona problemas muito sérios, que afetam a qualidade de vida e o lazer das populações, contribuindo com a violência e a falta de segurança, inclusive. Todas as pesquisas dão conta de que a grande maioria da população desenvolve suas atividades de lazer, prioritariamente, no ambiente doméstico. O lar é o principal equipamento não específico de lazer, ou seja, um espaço não construído de modo particular para essa função, mas que eventualmente pode cumpri-la. Nessa mesma categoria figuram os bares, as ruas, as escolas etc. Quanto ao lar, ainda que possa oferecer condições satisfatórias para uma minoria de privilegiados, constitui um dos poucos equipamentos, disponíveis para grandes parcelas da população, "empurradas" para dentro de suas casas, no tempo disponível para o lazer. Exatamente essas pessoas são as que menos têm condições para o desenvolvimento de lazer nas suas habitações. O espaço é exíguo, quer se considerem as áreas construídas, ou os quintais e áreas abertas coletivas, quando existem. Na maioria de nossas cidades há favelados em barracos e também nas favelas de alvenaria, formadas pelas autoconstruções de fins de semana, ou pelos cubículos dos programas de habitação popular. 18 Nelson Carvalho Marcellino No que diz respeito aos bares, muito preconceito ainda existe, ligado ao consumo de bebidas alcoólicas. Por via de regra, o bar vem perdendo a sua característica de ponto de encontro, muito embora algumas iniciativas ocorram, no sentido de suatransformação em espaço alternativo para outras atividades, como exposições, lançamentos de livros, músicas ao vivo etc. A maioria dessas iniciativas fica restrita aos chamados "barzinhos" e cafés freqüentados por jovens, quase que na totalidade estudantes. Os tradicionais "botequins", onde se "jogava conversa fora", são substituídos, nas áreas "nobres", pelas lanchonetes, onde o consumo rápido desestimula a convivência. As escolas contam com grandes possibilidades para o lazer, em termos de espaço, nos vários campos de interesse: quadras, pátios, auditórios, salas etc. Deve-se considerar, ainda, seus períodos de ociosidade, em férias e fins de semana, e a existência de vínculos com a comunidade próxima. No entanto, a tão propalada "abertura comunitária" desses equipamentos não vem se verificando, talvez pelo temor dos riscos de depredação. Já tive oportunidade de desenvolver atividades de lazer em escolas, em trabalhos comunitários e, ao contrário do que se possa imaginar à primeira vista, uma ação bem realizada nesse sentido, só contribui para aumentar o respeito das pessoas pelo equipamento, uma vez que, à medida que o utilizam, vão desenvolvendo sentimentos positivos, passando a colaborar na sua conservação. No entanto, o que se verifica, na maioria das vezes, é a "abertura" desses equipamentos apenas para "festas", cujo objetivo principal é a arrecadação de fundos para a sua manutenção. Com relação às ruas, e mesmo que se considerem as praças, quase sempre são concebidas como locais de acesso, de passagem. Transitá-las é uma aventura. Algumas iniciativas são tomadas por grupos de moradores "fechando" espaços para festas juninas ou "ruas de lazer". Mas são atitudes raras e efêmeras. A precariedade na utilização dos equipamentos não específicos coloca-nos três questões igualmente importantes: l. A necessidade de desenvolvimento de uma política habi- tacional, que considere, entre outros aspectos, também o espaço para o lazer - o que não é fácil num país como o Lazer e Sociedade 19 nosso, com alto déficit habitacional, e que deve estimular alternativas criativas em termos de áreas coletivas; 2. A consideração da necessidade da utilização dos equipa- mentos para o lazer, por meio de uma política de animação; 3. A preservação de espaços urbanizados "vazios". Se o espaço para o lazer é privilégio de poucos, todo o esforço para a sua democratização não pode depender unicamente da construção de equipamentos específicos. Eles são importantes e sua proliferação é uma necessidade que deve ser atendida. Mas a ação democratizadora precisa abranger a conservação dos equipamentos já existentes, sua divulgação, "dessacralização", e incentivo à utilização, com políticas específicas, e preservação do patrimônio ambiental urbano (Marcellino, 2006). Mesmo quando superados todos os entraves para a participação da população em atividades realizadas nos equipamentos específicos e, particularmente, naqueles dirigidos às áreas de interesses intelectuais e artísticos, caso de bibliotecas, museus, galerias de arte, teatros etc., freqüentemente essa participação é dificultada e inibida pelo ar de santuário de que se revestem as construções e sua sistemática de utilização, principalmente, quando são mantidos pelo poder público. Talvez por nossa falta de tradição, fruto de uma história ainda recente, e marcada por longo período de colonialismo, e ultimamente do consumismo das obras da indústria cultural que, em última análise, também representa uma forma de colonialismo, a necessidade de preservação de bens culturais, até bem pouco tempo atrás, atingia um pequeno número de especialistas e cultores, os quais, não raro, adotavam atitudes que, aos olhos da maioria, assumiam características de esnobismo. Outro fator deu uma parcela bastante significativa, nesse sentido: a crença na impossibilidade de conciliar tradição e progresso, e a própria idéia do que seriam essa tradição e esse progresso. Até bem pouco tempo era difundida uma falsa noção de memória cultural, de sentido muito restrito e embebida na ideologia dominante. Essa noção estava ligada ao conceito clássico de patrimônio histórico e artístico, tal como definido no decreto de criação do Serviço de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. 18 Nelson Carvalho Marcellino No que diz respeito aos bares, muito preconceito ainda existe, ligado ao consumo de bebidas alcoólicas. Por via de regra, o bar vem perdendo a sua característica de ponto de encontro, muito embora algumas iniciativas ocorram, no sentido de sua transformação em espaço alternativo para outras atividades, como exposições, lançamentos de liwos, músicas ao vivo etc. A maioria dessas iniciativas fica restrita aos chamados "barzinhos" e cafés freqüentados por jovens, quase que na totalidade estudantes. Os tradicionais "botequins", onde se "jogava conversa fora", são substituídos, nas áreas "nobres", pelas lanchonetes, onde o consumo rápido desestimula a convivência. As escolas contam com grandes possibilidades para o lazer, em termos de espaço, nos vários campos de interesse: quadras, pátios, auditórios, salas etc. Deve-se considerar, ainda, seus períodos de ociosidade, em férias e fins de semana, e a existência de vínculos com a comunidade próxima. No entanto, a tão propalada "abertura comunitária" desses equipamentos não vem se verificando, talvez pelo temor dos riscos de depredação. Já tive oportunidade de desenvolver atividades de lazer em escolas, em trabalhos comunitários e, ao contrário do que se possa imaginar à primeira vista, uma ação bem realizada nesse sentido, só contribui para aumentar o respeito das pessoas pelo equipamento, uma vez que, à medida que o utilizam, vão desenvolvendo sentimentos positivos, passando a colaborar na sua conservação. No entanto, o que se verifica, na maioria das vezes, é a "abertura" desses equipamentos apenas para "festas", cujo objetivo principal é a arrecadação de fundos para a sua manutenção. Com relação às ruas, e mesmo que se considerem as praças, quase sempre são concebidas como locais de acesso, de passagem. Transitá-las é uma aventura. Algumas iniciativas são tomadas por grupos de moradores "fechando" espaços para festas juninas ou "ruas de lazer". Mas são atitudes raras e efêmeras. A precariedade na utilização dos equipamentos não específicos coloca-nos três questões igualmente importantes: l. A necessidade de desenvolvimento de uma política habi- tacional, que considere, entre outros aspectos, também o espaço para o lazer - o que não é fácil num país como o Lazer e Sociedade 19 nosso, com alto déficit habitacional, e que deve estimular alternativas criativas em termos de áreas coletivas; 2. A consideração da necessidade da utilização dos equipa- mentos para o lazer, por meio de uma política de animação; 3. A preservação de espaços urbanizados "vazios". Se o espaço para o lazer é privilégio de poucos, todo o esforço para a sua democratização não pode depender unicamente da construção de equipamentos específicos. Eles são importantes e sua proliferação é uma necessidade que deve ser atendida. Mas a ação democratizadora precisa abranger a conservação dos equipamentos já existentes, sua divulgação, "dessacralização", e incentivo à utilização, com políticas específicas, e preservação do patrimônio ambiental urbano (Marcellino, 2006). Mesmo quando superados todos os entraves para a participação da população em atividades realizadas nos equipamentos específicos e, particularmente, naqueles dirigidos às áreas de interesses intelectuais e artísticos, caso de bibliotecas, museus, galerias de arte, teatros etc., freqüentemente essa participação é dificultada e inibida pelo ar de santuário de que se revestem as construções e sua sistemática de utilização, principalmente, quando são mantidos pelo poder público. Talvez por nossa falta de tradição, fruto de uma história ainda recente, e marcada por longo período de colonialismo, e ultimamente do consumismo das obras da indústria cultural que, em última análise, também representa uma forma decolonialismo, a necessidade de preservação de bens culturais, até bem pouco tempo atrás, atingia um pequeno número de especialistas e cultores, os quais, não raro, adotavam atitudes que, aos olhos da maioria, assumiam características de esnobismo. Outro fator deu uma parcela bastante significativa, nesse sentido: a crença na impossibilidade de conciliar tradição e progresso, e a própria idéia do que seriam essa tradição e esse progresso. Até bem pouco tempo era difundida uma falsa noção de memória cultural, de sentido muito restrito e embebida na ideologia dominante. Essa noção estava ligada ao conceito clássico de patrimônio histórico e artístico, tal como definido no decreto de criação do Serviço de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. 20 Nelson Carvalho Marcellino Assim, o decreto-lei n. 25, no seu artigo l, definia como patrimônio artístico nacional o conjunto de bens móveis e imóveis existentes no País e cuja conservação seja de interesse público, quer por sua vinculação a fatos memoráveis da história do Brasil, quer por seu excepcional valor arqueológico ou etnográfico ou artístico. Historicamente, entre estudiosos e instituições voltadas para a preservação, nota-se uma ampliação gradativa da abrangência do conceito, com a idéia de excepcionalidade dando lugar à noção de representatividade dos elementos a serem preservados. Dessa for- ma, evoluiu-se para o conceito de Patrimônio Ambiental Urbano, constituído por espaços, que inclusive transcendem a obra isolada e que caracterizam as cidades, pelo seu valor histórico, social, cultu- ral, formal, técnico ou afetivo. Congressos e seminários mais recentes vêm ampliando ainda mais a abrangência do conceito, incluindo usos e costumes. Para nós, importa destacar que, enquanto a primeira noção era baseada em atributos como a singularidade e a monumentalidade, o conceito mais recente reconhece, inclusive, os elementos afetivos como critérios para a preservação. Dessa perspectiva, a participação comunitária é fundamental para o conhecimento do valor do ambiente e da cultura, e para o incentivo a um comportamento destinado à preservação, à valorização e à revitalização urbanas. O lazer pode contribuir, de forma prazerosa, no processo de valorização e preservação do patrimônio, desde que entendido da perspectiva colocada anteriormente, e não como mero item da indústria cultural. Cumpre importante papel, também, na revitalização dos espaços e equipamentos. Assim, é muito importante a consideração dos patrimônios artísticos, arquitetônicos e urbanísticos, que fazem parte da memória das cidades como elementos de enriquecimento da paisagem urbana. Esse Patrimônio Ambiental Urbano, desde que preservado e revitalizado, pode e deve se constituir em novos equipamentos específicos de lazer. Além disso, contribui de maneira significativa para uma vivência mais rica da cidade, quebrando a monotonia dos conjuntos, estabelecendo pontos de referência e mesmo vínculos afetivos. Outro aspecto, não menos importante, é que preservando-se a identidade dos locais, pode-se manter e, até mesmo, aumentar o potencial turístico de nossas cidades. Lazer c Sociedade 21 Toda essa questão do acesso aos equipamentos e espaços de lazer deve ser vista não somente no âmbito municipal, com a formação das chamadas Regiões Metropolitanas, em muitas áreas do país. O termo "megalópole" é usado principalmente para designar um fenômeno preponderante contemporâneo. Baseia-se na superposição e interpenetração de áreas metropolitanas anteriormente distintas, formando um setor urbanizado contínuo. Onde havia cidades menores, forma-se uma área urbanizada maior, na qual os centros metropolitanos são as unidades básicas (Santini, 1993, p. 41). Diante do novo quadro urbano que se desenha no país, com a concentração das populações em regiões metropolitanas, e tendo em vista que o lazer se configurou, historicamente, como uma problemática essencialmente urbana, é imperioso que se trabalhe em políticas públicas na perspectiva dessas regiões-consórcios. É impossível ficar restrito aos âmbitos municipais, inclusive com a série de impactos que políticas de lazer podem trazer para regiões inteiras. A Pesquisa de Informações Básicas Municipais (IBGE, 2001) aponta que em quase metade da Região Metropolitana de Campinas. (RMC) não há espaços culturais e de lazer construídos, embora o perfil apresentado para a região esteja acima da média brasileira em oferta de serviços de lazer e cultura. Ainda assim, as cidades periféricas da região conseguem ter algum serviço de qualidade em lazer, quando eles são da natureza, como lagos e cachoeiras. Mas, mesmo aqueles mais democráticos, como parques, também são muito pobres nas periferias. Dos municípios que integram a RMC apenas um não tem clube ou associação recreativa e somente dois não têm estádio ou ginásio poliesportivo, mas a pesquisa constata a alta concentração dos serviços na cidade sede. Segundo Rinaldo Bárcia Fonseca, coordenador do Núcleo de Economia Social, Urbana e Regional (Nesur), do Instituto de Economia, da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), esses dados refletem o perfil tradicional das regiões metropolitanas, que são caracterizadas por centro e periferia, onde a oferta de serviços de qualidade está no centro (Costa, 2002). 22 Nelson Carvalho Marcellino r Lazer e Sociedade 23 Partimos do pressuposto de que o que ocorria antes com a concentração dos equipamentos de lazer, no centro das cidades, e que, com o decorrer do processo de urbanização e especulação imobiliária, deslocou-se para outras áreas urbanizadas, hoje se dá com relação ao centro de regiões metropolitanas, em relação às cidades periféricas, dificultando o acesso da população. Mesmo para os municípios sede das regiões metropolitanas, onde há mais facilidade de acesso aos equipamentos, é preciso verificar o grau de :'sacralização" de que muitas vezes eles são revestidos, como fatores inibidores, do seu efetivo uso democrático por parte da população. Por outro lado, ao examinar as relações Lazer e sociedade, é preciso verificar quais as ideologias que sustentam as diferentes abordagens da questão. Comecei a estudar o assunto, por ocasião do meu trabalho de mestrado. Naquela ocasião, distingui várias nuanças de uma visão que poderia ser caracterizada como "funcionalista" do lazer, e destacava que em todas essas abordagens - romântica, moralista, compensatória, ou utilitarista - pode-se depreender uma visão "funcionalista" do lazer, altamente conservadora, que busca a "paz social", a manutenção da "ordem", instrumentalizando o lazer como fator que ajuda [...] a suportar a disciplina e as imposições obrigatórias da vida social, pela ocupação do tempo livre em atividades equilibradas socialmente aceitas e moralmente corretas (Marcellino, 2005, p. 38). Não é preciso muita perspicácia para perceber que é esta a concepção de lazer, muitas vezes oculta, que é hegemônica na orientação e formulação de políticas na área, ou a não formulação explícita, que, ao final, acaba dando o mesmo resultado. E tomem política de eventos: dia disso, dia daquilo, do desafio, de ações globais, de lazer, de recreação etc. Muito embora as experiências de administrações populares e democráticas tenham feito a diferença, com uma concepção crítico-criativa de lazer, orientando um modelo participativo de gestão. Na mesma ocasião, em Lazer e educação, chamava a atenção para a contraposição daquela visão de lazer que o concebe como instrumento de dominação, diferentemente da que o entende como gerado historicamente e do qual emergem valores questionadores da sociedade como um todo, e sobre o qual são exercidas influências da estrutura social vigente. Assim, a admissão da importância do lazer, na vida moderna, significa considerá-lo como um tempo privilegiado para a vivência de valores que contribuam para mudanças de ordem moral e cultural. Mudanças necessárias para a implantação de uma nova ordem social (Marcellino, 2004, p. 41). Mas é preciso que se fale de uma visão crítica"míope", também, que contribui para a manutenção do status quo que tenta criticar, uma vez que leva ao imobilismo. Trata-se de uma visão crítica fechada e cínica, como alguns estudiosos pregam: "Lazer e capitalismo são incompatíveis", "A felicidade não está nem no trabalho, nem no lazer, no nosso modo de produção" etc. E daí? Vivemos o aqui e agora. O que fazer? Esperar a situação ideal para agir? E enquanto isso não ocorre? A psicanalista Maria Rita Kekl (2000), analisando o filme Cronicamente inviável, de Sérgio Bianchi, faz uma interessante reflexão sobre o pacto do cinismo da sociedade brasileira contemporânea. O raciocínio caminha pela geração da cumplicidade, devido ao "excesso de compreensão". Maria Rita conclui que há uma passagem quase imediata da "realidade" ao "cinismo". Em seguida, e completando seu belo raciocínio, contrapõe o filme de Bianchi, à montagem de Marco Antônio Braz, de Bonitinha mas, Ordinária, e especificamente à demonstração genial de Nelson Rodrigues de que o efeito de um discurso crítico fechado sobre si mesmo pode ser a socialização do que ele pretende demolir... desautoriza qualquer aposta em outra dimensão que não seja a canalhice (Kekl, 2000, p. 31). Que a análise da realidade e a tomada de conhecimento de sua mísera crueza não nos sirvam de álibis para cinismo e canalhice. Não que a crítica não deva existir, muito pelo contrário. É por ela que as construções do novo começam. Ou deveriam começar. E não dá para querer que se tenham as soluções prontas, acabadas, principalmente em questões macro. Trabalhamos com a cultura, 24 Nelson Carvalho Marcellino com a super-estrutura, e seria um absurdo irmos "para luta" com modelos no plano cultural, estabelecidos apriori. Isso deve ser uma construção coletiva. O sonho precisa virar utopia. Mas, parece-me que criticidade não deva ser desespero. E, muitas vezes, as críticas estão levando ao imobilismo, ao invés de mobilizarem. Há ainda no campo do lazer uma outra visão, ecológica ingênua, que crê que o simples vivenciar dos valores, principalmente os ecológicos, será suficiente para a mudança de situação não havendo, assim, necessidade de intervenção do Estado, com o estabelecimento de políticas públicas. O lazer abre múltiplas possibilidades. É preciso ações que se contraponham às da indústria cultural, na maioria das vezes, exploradora do lazer mercadoria, do entretenimento na sua pior conotação. Uma política setorial de lazer deve levar em conta as limitações estruturais, mas também deve crer na especificidade da ação no plano cultural como um dos instrumentos de mudança. Somos partidários de uma corrente, que pode ser denominada de crítico-criativa, que entende o lazer da perspectiva acima colocada. Lazer sim, mas não qualquer lazer. Não o mero entretenimento, não o "lazer-mercadoria". Cada vez mais, precisamos do lazer que leve à convivencialidade, mesmo, por paradoxal que isso possa parecer, sendo fruído individualmente. Convites à convivência significam, do meu ponto de vista, minimizar os riscos da exacerbação dos próprios componentes do jogo, tão bem colocados por Callois (1990), e aqui por mim retomados, em interpretação livre: a competição que não leve à violência, a vertigem que não leve ao risco não calculado de vida, a imitação que não promova o fazer de conta imobilizante da pior fantasia, sorte/azar que não provoque alheamento. E não se trata de censura, ou coisa que o valha, sobre o que fazer, mas posições, ou proposições, do como fazer. Praticamente todos os autores, ligados ao estudo do lazer, reconhecem seu duplo aspecto educativo. Trata-se de um posicionamento baseado em duas constatações: a primeira, que o lazer é um veículo privilegiado de educação; a segunda, que para a prática das atividades de lazer são necessários o aprendizado, o estímulo, a iniciação, que possibilitem a passagem de níveis menos Lazer e Sociedade 25 laborados, para níveis mais elaborados, complexos, com o rjqUecimento do espírito crítico, na prática ou na observação. Verifica-se, assim, um duplo processo educativo - o lazer como veículo e como objeto de educação. Tratando-se do lazer como veículo de educação, é necessário considerar suas potencialidades para o desenvolvimento pessoal e social dos indivíduos. Tanto cumprindo objetivos consumatórios, como o relaxamento e o prazer propiciados pela prática ou pela con- templação, quanto objetivos instrumentais, no sentido de contribuir para a compreensão da realidade, as atividades de lazer favorecem, a par do desenvolvimento pessoal, também o desenvolvimento social, pelo reconhecimento das responsabilidades sociais, a partir do agu- çamento da sensibilidade ao nível pessoal, pelo incentivo ao auto-aperfeiçoamento, pelas oportunidades de contatos primários e de desenvolvimento de sentimentos de solidariedade. Por outro lado, para o desenvolvimento de atividades no "tempo disponível", de atividades de lazer, quer no plano da produção, quer no plano do consumo não conformista e crítico, é necessário aprendizado. Entretanto, quando a análise é dirigida ao lazer como objeto de educação - o que implica a consideração da necessidade de difundir seu significado, esclarecer a importância, incentivar a participação e transmitir informações que tornem possível seu desenvolvimento ou contribuam para aperfeiçoá-lo, entra-se numa área polêmica e marcada por muitas interrogações. A principal delas talvez seja: como educar para o lazer conciliando a transmissão do que é desejável em termos de valores, funções, conteúdos etc., com suas características de livre escolha e expressão? Creio que a escolha será tão mais autêntica quanto maior for o grau de conhecimento que permita o exercício da opção entre alternativas variadas. Além disso, as barreiras impostas pelos preconceitos e pelas várias correntes ideológicas, verificadas no plano cultural, poderão ser relativizadas com mais facilidade, à medida que o lazer vá sendo convenientemente entendido em termos dos seus valores e funções. E tal fato contribuiria para que a expressão por meio das atividades de lazer adquirisse uma extensão muito maior. A própria passagem de níveis elementares para superiores teria condições de se concretizar 26 Nelson Carvalho Marcellino mais rapidamente, pela ação educativa para o lazer somada à sua vivência, do que se dependesse unicamente da participação nas atividades, ou seja, se se restringisse à educação pelo lazer. A educação para o lazer pode ser entendida também como um instrumento de defesa contra a homogeneização e internacionalização dos conteúdos veiculados pelos meios de comunicação de massa, atenuando seus efeitos, com o desenvolvimento do espírito crítico. Além do mais, a ação conscientizadora da prática educativa, inculcando a idéia e fornecendo meios para que as pessoas vivenciem um lazer criativo e gratificante, torna possível o desenvolvimento de atividades até com um mínimo de recursos, ou contribui para que os recursos necessários sejam reivindicados, pelos grupos interessados, junto ao poder público (Marcellino, 2006). Referências CALLOIS, R. Os jogos e o homens. Liboa: Cotovia, 1990. COSTA, M. T. Quase metade da RMC é carente de espaços culturais, 2002. Disponível em: <http://www.cosmo.com.br/diversaoarte/2002/12/21/ materia_div_4/131.shtm>. Acesso em: 21 dez. 2002. DUMAZEDIER, J. Questionamento teórico do lazer. Porto Alegre, GELAR, s/d. IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística). Pesquisa de Informações Básicas Municipais, 2001. Disponível em: <www.ibge.gov.br>. Acesso em: 10 dez. 2005. KEKL, M.R. O pacto do cinismo. Folha de São Paulo, Caderno Mais, 04 jun. 2000,30-1. MARCELLINO, N. C. Lazer e educação. 11. ed. Campinas: Papirus, 2004. . Pedagogia da animação. 1. ed. Campinas: Papirus, 2005. . Estudos do lazer: uma introdução, 4. ed. Campinas: Autores Associados, 2006. REQUIXA, R. Sugestões de diretrizes para uma política nacional de lazer, São Paulo: SESC, 1980. S ANTINI, R. de C.G. Dimensões do lazer e da recreação, São Paulo: Angelotti, 1993.SASSEN, S. A cidade e a indústria global do entretenimento. In: Lazer numa sociedade globalizada: Leisure in a globalized society, São Paulo: SESC/WLRA, 2000. Capítulo 2 TRABALHO E GESTÃO DE PESSOAS O que lazer tem a ver com isso? Valquíria Padilha Neste capítulo tratamos especialmente das relações existentes entre duas categorias sociológicas importantes que delimitam tempos e espaços distintos, nas sociedades contemporâneas industriais e capitalistas: o trabalho e a o lazer. Aparentemente antagônicas e independentes, são categorias profundamente interligadas, como pretendemos demonstrar neste texto (cf. Padilha, 2003, p. 243-6). Entendemos que o trabalho tem caráter plural e polissêmico que exige um conhecimento multidisciplinar. Além disso, a atividade laborai é fonte de experiência psicossocial, sobretudo dada a sua centralidade na vida das pessoas: é indubitável que o trabalho ocupa uma parte importante do espaço e do tempo em que se desenvolve a vida humana contemporânea. Assim, ele não é apenas valor econômico; é também meio de auto-estima, de desenvolvimento das potencialidades humanas, de alcançar sentimento de participação nos objetivos da sociedade. Como exemplo, basta lembrar que a população de um lugar é objeto de classificação em função de sua situação laborai. Profissão (ainda) é senha de identidade. Compreendemos que as pessoas, apesar das transformações profundas que testemunhamos hoje no mundo do trabalho, continuam ancorando sua existência na atividade laborai, mesmo aquelas que se encontram em situação de desemprego. Na verdade, essas transformações (reestruturação produtiva, produção enxuta, terceirização, flexibilização da produção, inovação tecnológica, trabalho em domicílio, desemprego, dentre outras) (cf. Heloani, 28 Valquíria Padilha r 2002; Antunes; Silva, 2004; Sennet, 1999) estão provocando a necessidade de uma re-organização do tempo na vida das pessoas. A centralidade do trabalho dá-se não só na esfera econômica (o trabalho é a fonte de renda da maioria da população mundial) como também na esfera psíquica - o que, certamente, representa um paradoxo, uma vez que o trabalho ainda parece ser a principal fonte de saúde psíquica (tanto que sua ausência, seja pelo desemprego, seja pela aposentadoria é causa de abalos psíquicos) ao mesmo tempo em que se registram cada vez mais pesquisas que evidenciam o trabalho como causa de doenças física, mental e até de mortes (cf. Seligmann-Silva, 1994). Mas, é preciso perguntar: que tipo de trabalho adoece corpo e mente e até mata? Certamente, não é o tipo de trabalho que deveria ser central na vida das pessoas, para se manterem criativas, produtivas e mentalmente saudáveis. Quando afirmamos ser o trabalho central na vida das pessoas, estamos partindo primeiramente da compreensão de trabalho como atividade de transformação da natureza pelo homem para criar coisas úteis para a sociedade; trata-se do trabalho como ponte de relacionamento entre natureza e ser humano. Essa atividade não pode deixar de existir na vida das pessoas porque o humano do homem se realiza apenas quando ele é criativo e produtivo de coisas e idéias úteis socialmente.1 O trabalho não apenas coloca em relação homem com natureza mas também homem com outros homens. Historicamente, essa atividade laborai vai ganhando contornos diferentes, atrelados ao modo de organização da sociedade e da economia. Com o desenvolvimento do capitalismo nos últimos duzentos e cinqüenta anos, o trabalho deixou de realizar-se apenas visando suprir as necessidades pessoais e familiares e passou a ser propriedade privada dos donos dos meios de produção: os capitalistas. Assim, quem possui a capacidade de trabalhar, a mão-de-obra, passa a vendê-la em troca de salário. Poucos são os que podem comprar l. Marx (1989, p. 208) afirmou: "O processo de trabalho, [...], é atividade dirigida com o fim de criar valores-de-uso, de apropriar os elementos naturais às necessidades humanas; é condição necessária do intercâmbio material entre o homem e a natureza; é condição natural eterna da vida humana, sem depender, portanto, de qualquer forma dessa vida, sendo antes comum a todas as suas formas sociais". Trabalho e Gestão de Pessoas 29 trabalho e muitos são os que precisam vendê-lo para poder sobreviver. A história do capitalismo é basicamente a história da venda e compra do trabalho e da complexa rede de fenômenos que se tece a partir daí (cf. Albomoz, 1988; Sandroni, 1985; Catani, 1984). Com o capitalismo, o trabalho passa a ser alienado e alienante, pois os trabalhadores não mais produzem apenas por prazer ou por necessidade de usar o produto do seu trabalho. Os trabalhadores produzem objetos (e até mesmo idéias, como no caso de publicitários, professores e outras profissões) sob encomenda dos capitalistas e muito raramente vêem na sua atividade laborai oportunidade de ser criativo e autônomo. Assim, o trabalhador não se reconhece mais no produto do seu trabalho, pois ele não lhe pertence. Ele não mais se sente em casa no trabalho... Foi o desenvolvimento do trabalho industrial capitalista que separou o tempo e o espaço para trabalho e para lazer. Os trabalhadores da indústria perderam não só a autonomia da criação mas também o controle sobre seu tempo. Talvez o símbolo da Revolução Industrial tenha sido menos a máquina à vapor e mais o relógio e a imposição do tempo da máquina. Nesse sistema, o mundo é regido pela lógica financeira do lucro privado, ou seja, a racionalidade econômica é a razão que rege a existência humana social. Pensando com Latouche (2001), que afirmou ser o "homo oeconomicus um idiota racional", podemos perguntar: em busca desse comportamento racional que leva ao lucro máximo, o homem moderno, manipulando a natureza sem limites, está encontrando a felicidade para todos? Quando os princípios econômicos e financeiros passam a ser medida de todas as coisas em detrimento do social e do humano, como o é na sociedade industrial capitalista, que tipo de pessoas está sendo formado e que tipo de organização social elas estão ajudando a formar? Conforme declarou Maar (apud Padilha, 2005), vivemos uma situação paradoxal, pois até quem é desempregado vive num mundo que é medido em termos de tempo de trabalho. Nem o desempregado consegue fugir do peso da economia e do tempo fiscal. Maar cita uma expressão de Roberto Schwartz (1999) que disse que a maior parte da população brasileira é sujeito monetário desprovido de dinheiro. 30 Valquíria Padilha Trabalho e Gestão de Pessoas 31 Mesmo sem dinheiro para gastar, nós temos sujeitos monetários, ou seja, são pessoas completamente imersas num mundo de consumo, de produção, de interesses econômicos, de padrões fiscais e contábeis (Maar apud Padilha, 2005, p. 142). No capitalismo, grande parte dos trabalhadores pergunta se vive para trabalhar ou se trabalha para viver. Por que dedicamos tanto tempo e esforço para esse trabalho que não possuímos, cujo fruto não é nosso e que geralmente não nos dá prazer? Nesse sentido, vale perguntar: se nossa fonte principal e lícita de dinheiro não fosse o trabalho, estaríamos sujeitos a ele da mesma forma? Acreditamos que não... Na verdade, o trabalho aliado ao dinheiro é uma das principais razões para fazer dos trabalhadores pessoas alienadas, escravizadas, Sísifos da modernidade2. O trabalho deveria ser fonte de realização, prazer e criatividade, independentemente de ser fonte de dinheiro. Mas o capitalismo monetariza tudo e todos, condiciona todas as pessoas a quererem viver para e pelo dinheiro. Alguém consegue imaginar hoje como seria a vida sem o dinheiro permeando todas as nossas relações? Que outro(s) valor(es) poderia(m) estar em seu lugar? Temos como hipótese que é a necessidade de dinheiro criada pela lógica do capital que prende as pessoas à obrigação desse "trabalho dominado". É a grande indústria e sua racionalidade que torna o trabalho insuportável ao trabalhador (pelo menos a maior parte dos trabalhadores, uma vez que são exceções as pessoas que 2. "Sísifo. Filho de Éoloe rei de Corinto, na mitologia grega. Era arguto e suas artimanhas intrigavam até os próprios deuses. Certa vez venceu em argúcia o próprio Hades, deus dos mortos. O deus Zeus havia ordenado a Hades que punisse Sísifo por intromissão. Sísifo ludibriou Hades e amarrou-o com correntes. Ninguém morreria enquanto Hades estivesse acorrentado. O deus Ares libertou Hades e lhe deu o poder de atuar sobre Sísifo. Sísifo secretamente pediu a sua mulher que o enterrasse sem os ritos funerários usuais. Depois que morreu e se encaminhou para os infernos, queixou-se a Hades de que não havia sido sepultado corretamente. Pediu para voltar a fim de punir sua esposa. Depois que Hades lhe deu permissão para retornar à Terra, Sísifo se recusou a voltar para os infernos. O deus Hermes finalmente capturou Sísifo. Como castigo eterno, Hades ordenou a Sísifo que rolasse uma grande pedra ao topo de uma colina. Mas, cada vez que Sísifo atingia o topo da colina, a pedra caía de novo, e assim era obrigado a rolá-la outra vez para cima" (Enciclopédia Koogan-Houaiss Digital, 2002). podem dispor de trabalhos autônomos e criativos). Assim, o capitalismo cria uma rede de dependência do dinheiro: o trabalho vendido é insuportável mas é esse trabalho que possibilita ao homem ter dinheiro e é o dinheiro que faz do homem alguém visível aos olhos da nossa sociedade. Quanto mais dinheiro se tem, mais coisas pode-se comprar, mais visível se é socialmente. Marx, analisando a anatomia do dinheiro (a forma universal das mercadorias) no capitalismo, cita uma passagem de Sófocles, em Antígona: Nada suscitou nos homens tantas ignomínias como o ouro. É capaz de arruinar cidades, de expulsar os homens de seus lares; seduz e deturpa o espírito nobre dos justos, levando-os a ações abomináveis; ensina ao mortal os caminhos da astúcia e da perfídia, e o induz a realizar obras amaldiçoadas pelos deuses (Sófocles apud Marx, 1989, p. 147). É também por isso que Marx desejava ver o fim do capitalismo (e da propriedade privada) e a construção de uma sociedade em que as pessoas pudessem dispor livremente de seu tempo para viver. São suas as impactantes palavras: Fica desde logo claro que o trabalhador durante toda a sua existência nada mais é que força de trabalho, que todo seu tempo disponível é por natureza e por lei tempo de trabalho, a ser empregado no próprio aumento do capital. Não tem qualquer sentido o tempo para a educação, para o desenvolvimento intelectual, para preencher funções sociais, para o convívio social, para o livre exercício das forças físicas e espirituais, para o descanso dominical mesmo no país dos santificadores de domingo. Mas em seu impulso cego, desmedido, em sua voracidade por trabalho excedente, viola o capital os limites extremos, físicos e morais, da jornada de trabalho. Usurpa o tempo que deve pertencer ao crescimento, ao desenvolvimento e à saúde do corpo. Rouba o tempo necessário para se respirar ar puro e absorver a luz do sol. Comprime o tempo destinado às refeições para incorporá-lo sempre que possível ao próprio processo de produção, fazendo o trabalhador 32 Valquíria Padilha ingerir os alimentos, como a caldeira consome carvão, a maquinaria, graxa e óleo, enfim, como se fosse mero meio de produção (Marx, 1989, p. 300-1). Perceber o quanto trabalho, tempo e dinheiro estão relacionados sob a lógica do capital é fundamental pára a compreensão das idéias expostas neste capítulo. O controle do tempo no trabalho é muito mais que um mero detalhe e não pode passar despercebido nas reflexões que desenvolvemos nesse texto. Os relatos de Simone Weil, francesa, professora de filosofia que corajosamente optou trabalhar como operária na fábrica para sentir (literalmente) na pele o sofrimento do trabalhador3, descrevem sensações interessantes e muitas delas estão ligadas ao controle do tempo. Ela afirmou que o primeiro detalhe que, cada dia, torna a servidão sensível é o relógio de ponto. O caminho da casa à fábrica está dominado pelo fato de que é preciso chegar antes de um segundo mecanicamente determinado (Bosi, 1996, p. 157). Em outro momento disse que quem obedece assim se ressente então brutalmente por ver que seu tempo está incessantemente à disposição de outrem (Bosi, 1996, p. 159). A respeito do controle que o dinheiro exerce sobre nós na sociedade capitalista, Weil afirmou: todos nós sofremos uma certa deformação decorrente de nossa vida na atmosfera da sociedade burguesa, e até nossas aspirações em prol de uma sociedade melhor trazem a sua marca. A sociedade burguesa está atacada de uma mania única: a monomania da contabilidade. Para ela nada tem valor se não pode ser registrado em francos e centavos. Nunca hesita em sacrificar vidas humanas a cifras que 3. Respondendo a uma amiga porque ela se sujeitou ao árduo trabalho fabril, Weil afirmou que não poderia dizer nem metade do que dizia dos trabalhadores e da fábrica enquanto professora universitária se não tivesse vivido a experiência de ser operária. E ela explica o que a vida na fábrica fez com ela: "[...] E não creio que tenham nascido em mim sentimentos de revolta. Não, muito ao contrário. Veio o que era a última coisa do mundo que eu esperava de mim: a docilidade. Uma docilidade de besta de carga resignada. Parecia que eu tinha nascido para esperar, para receber, para executar ordens - que nunca tinha feito senão isso -, que nunca mais faria outra coisa. Não tenho orgulho em confessar isso. É a espécie de sofrimento de que nenhum operário fala; dói demais, só de pensar" (Bosi, 1996, p. 79). Trabalho e Gestão de Pessoas 33 impressionam no papel, cifras do orçamento nacional ou de balanços industriais. Todos nós sofremos um pouco do contágio dessa idéia fixa, deixamo-nos igualmente hipnotizar por números (Bosi, 1996, p. 137). Será que o fato de as empresas introduzirem práticas e espaços de lazer como política de Recursos Humanos (ou de gestão de pessoas) reflete uma tentativa de amenizar esse esforço e esse tempo perdidos pelos trabalhadores? Quando as empresas percebem que seus funcionários perdem a vida no trabalho tentando ganhar a vida procuram transformar o local de trabalho de modo a torná-lo, ao menos aparentemente, mais agradável? O que isso significa? Passamos a analisar as relações crescentes entre lazer na empresa e gestão de qualidade de vida no trabalho. Interessa-nos partir das condições de trabalho - que são: contrato, ambiente físico, ambiente social, segurança e higiene, tarefa, papel, processo, tempo, clima organizacional4 - para entender como mudanças nas condições de trabalho repercutem na vida cotidiana das pessoas e suas famílias conferindo novos significados à experiência laborai. Então, as condições de trabalho incidem sobre a qualidade de vida, saúde, bem-estar, motivação, satisfação, rendimento, disfunções organizacionais (acidentes de trabalho, absenteísmo, rotatividade). As políticas de gestão de pessoas afetam diretamente as condições de trabalho e o clima organizacional das empresas. Partimos da compreensão da empresa como uma organização que proporciona elementos de inteligibilidade do funcionamento do mundo do trabalho e da vida dos trabalhadores e vice-versa. Partimos também do princípio de que o tempo livre e o trabalho são, cada vez mais, estruturados-estruturantes (no sentido de Bourdieu, 4. 'Clima organizacional' é um termo da área da administração de empresas e é a percepção coletiva que as pessoas têm da empresa, através da experimentação de práticas, políticas, estrutura, processos e sistemas e a conseqüente reação a essa percepção. Para conhecer o clima organizacional de uma empresa faz-se uma pesquisa de clima, que é um instrumento voltado para análise do ambiente interno a partir do levantamento de suas necessidades. Objetiva mapear ou retratar os aspectos críticos que configuram o momento motivacional dos funcionários da empresa através da apuração de seus pontos fortes, deficiências, expectativas e aspirações. 34 Valquíria Padilha 1996) das experiências da vida humana nas sociedadesatuais e de que, por isso, a busca de suas relações pode ser fundamental para a compreensão, conhecimento e desenvolvimento de nossa sociedade e suas organizações em vários aspectos. Vale lembrar da experiência de pesquisa realizada por Jahoda, Lazarsfeld e Zeisel, em 1933 (apud Ribas, 2003). Quando se deu o fechamento de uma fábrica têxtil numa cidade da Áustria, esses pesquisadores estudaram o fenômeno do desemprego em massa causado na comunidade. Estudaram vários indicadores, desde taxas de matrimônios até cartas infantis ao Papai Noel. Observaram que o tempo livre desligado do trabalho não era utilizado pelos desempregados; eles nem mesmo conseguiam relatar o que faziam no seu tempo livre. Os resultados dessa pesquisa inédita nos anos 30 mostraram ainda que o desemprego no grupo investigado provocou queda no nível e qualidade de vida, empobrecimento da dieta alimentar, deterioração da saúde física, aumento de tensões intrafamiliares, aumento de taxa de transtornos psíquicos, diminuição dos interesses quanto a atividades sociais e culturais, desafiliação a partidos políticos e organizações sindicais e desestruturação do tempo cotidiano individual e familiar. Essa pesquisa nos mostra não só as profundas relações entre trabalho e lazer mas também a centralidade do trabalho na vida das pessoas. O termo "tempo livre" é entendido como o tempo em que as pessoas estão liberadas das atividades obrigatórias que não são exercidas por opção mas por necessidade, como o tempo de trabalho (remunerado ou não) ou de busca por trabalho, por exemplo. Nesse tempo liberado as pessoas encontram-se relativamente "livres" para escolherem o que fazer: atividades de lazer, de cultura, esporte ou descanso, turismo, ócio ou contemplação. Nesse sentido, tempo livre é um conceito genérico que é compreendido pela cultura (numa concepção ampla do termo)5, mas que compreende o lazer e o ócio. 5. A palavra "cultura" possui inúmeros significados e discuti-los aqui seria inviável. Então, fazemos a opção de considerar o sentido amplo do termo "cultura" como o que corresponde ao sentido antropológico, ou seja, ao entendimento de cultura como um conjunto de valores, crenças, hábitos, gestos, linguagens e normas que caracterizam a forma de existência de um grupo. Assim, não seria lógico afirmar Trabalho e Gestão de Pessoas 35 Assim, quando se usa a palavra lazer, pensa-se em ocupação do temp° livre com atividades culturais (no sentido restrito do termo), esportivas, recreativas e turísticas (cf. Padilha, 2004). Há uma tendência aparentemente recente de as empresas investirem em espaços e atividades de lazer, esporte, cultura e saúde para os seus funcionários, objetivando aumentar a qualidade de vida no trabalho (QVT). Assim, cada vez mais, os trabalhadores acabam permanecendo no ambiente da empresa ou com colegas do trabalho (em seus espaços de lazer, em clubes, campeonatos, festas etc.). No contexto atual de globalização da economia e aumento de competitividade do mercado, a qualidade de vida no trabalho (QVT) é um tema que vem ganhando espaço para o bem-estar organizacional. Segundo Limongi-França e Arellaho (2002, p. 296), qualidade de vida no trabalho é o conjunto das ações de uma empresa no sentido de implantar melhorias e inovações gerenciais, tecnológicas e estruturais no ambiente de trabalho. Ainda segundo as autoras, os conhecimentos e segmentos que estariam diretamente ligados à QVT, fora e dentro do ambiente de trabalho, são: • Saúde - integridade física, psicológica e social do ser humano; • Ecologia - o homem é ator do desenvolvimento sustentável; • Ergonomia - estuda as condições de trabalho ligadas à pessoa; • Psicologia - importância da satisfação de necessidades individuais para o envolvimento com o trabalho; • Sociologia - dimensão simbólica e múltiplas influências da sociedade e empresa; • Economia - os bens são fmitos e a sua eqüitativa distribuição é direito social; • Administração - aumenta capacidade de mobilizar recursos; que alguém pode ter ou não ter cultura, uma vez que a cultura não é um objeto que se possua mas sim um processo do qual todos participamos quotidianamente. O sentido restrito de cultura é o que a considera como sendo um conjunto de atividades culturais e artísticas, ou seja, formas de manifestar a cultura no seu sentido amplo. Então, cinema, teatro, museu, revista, livro, pintura, música, dança, por exemplo, são "cultura" no seu sentido restrito, pois são algumas das formas de materialização e expressão da cultura maior (cf. Bosi, 1997). 36 Valquíria Padilha • Engenharia - organização do trabalho, controle de processos e uso da tecnologia. Segundo Walton (apud Limongi-França; Arellano, 2002, p. 297), existem oito categorias para avaliar QVT nas organizações, quais sejam: 1. Remuneração justa e adequada; 2. Segurança e salubridade do trabalho; 3. Oportunidade de utilizar e desenvolver habilidades; 4. Oportunidade de progresso e segurança no emprego; 5. Integração social na organização; 6. Leis e normas sociais; 7. Trabalho e vida privada (as condições de crescimento na carreira não devem interferir no descanso nem na vida familiar do empregado); 8. Significado social da atividade do empregado. Para a ela- boração deste capítulo, preocupou-nos enfocar as rela- ções entre trabalho e vida privada, uma vez que aí estão também as relações específicas entre trabalho e lazer. Para escrever este capítulo, fizemos uma pesquisa a fim de perceber se as melhores empresas brasileiras escolhidas pela revista Exame nos últimos anos desenvolvem ou estimulam atividades de lazer, esporte ou cuidados com a saúde nas suas práticas de gestão de pessoas. Foram examinadas as edições de 2002,2003 e 2004 do Guia Exame - As melhores empresas para você trabalhar6. Das 100 melhores empresas selecionadas pela revista, em 2002 e 2003, e das 150 selecionadas em 2004, apresentamos as 3 primeiras melhores empresas em cada ano e destacamos as informações que aparecem no item "equilíbrio entre trabalho e vida pessoal" (apontados pelos funcionários que responderam aos questionários enviados pela Exame). Do total de 350 empresas selecionadas, nos anos de 2002,2003 e 2004, observamos que a grande maioria das empresas consideradas atraentes enquanto locais para se trabalhar inclui, dentre outros itens, lazer, esporte e saúde como preocupação das políticas de gestão de pessoas e de qualidade de vida no trabalho. •T Traif rabalho e Gestão de Pessoas 37 6. O Guia Exame é publicado pela editora Abril (cf. também http:// www.exame.com.br). As informações selecionadas são as seguintes: /. Guia Exame As 100 melhores empresas para você trabalhar - 2002. Io lugar: Siemens Metering - No meio da fábrica está instalada uma praça de eventos com direito a banca de revistas, máquinas de café, caixas eletrônicos e mesas de jogos. Há também um palco no qual acontecem apresentações de funcionários-calouros e de artistas convidados. 2° lugar: McDonald'* - Há Sala de Break, um espaço com com- putadores e recursos audiovisuais para treinamento e descanso dos funcionários. Sabático de 60 dias para funcionários de média gerência que completam dez anos de casa. 3° lugar: Magazine Luiza - Possui grêmio com piscina, campo de futebol e playgmund. II. Guia Exame As 100 melhores empresas para você trabalhar - 2003. l ° lugar: Magazine Luiza - Há clube com quadra, piscina e lazer. As equipes têm verba para comemorar conquistas. 2° lugar: Redecard - Estimula o pessoal a desenvolver ativida- des voltadas para a saúde física e mental. A Redecard não per- mite que as pessoas fiquem na empresa após as 19 horas. 3° lugar: Todeschini -A empresa disponibiliza ginásio de espor- tes, clube campestre, consultório médico e odontológico em sua sede e aulas de ioga com custo subsidiado. ///. Cuia Exame As 150 melhores empresas para você trabalhar - 2004. l ° lugar: Todeschini - Sua fazenda de reflorestamento pode ser usada para o lazer do colaborador e sua família. Para ir lá, a empresa oferece transporte e motorista gratuitose ainda os recebe com jantar ou almoço campeiro, feitos com a especiali- dade da casa: ovelha. 2° lugar: Tigre - A empresa promove três festas anuais: a de fim de ano, a junina e a do Dia das Crianças. A sede social é supere- quipada. A academia de ginástica acabou de passar por uma reforma e está maior e mais equipada. 3° lugar: Landis+Gyr - A sede da empresa é arborizada e tem 38 Valquíria Padilha espaço para caminhadas em meio à natureza. Na praça de leitura instalada na fábrica, sem divisórias, há jornais, revistas, livros, jogos e computador com acesso à internet. Parece que as empresas de hoje procuram transformar-se em grandes "centros de bem-estar", como se fossem "shopping centers híbridos" (cf. Padilha, 2006), ou seja, querem criar espaços especiais, bonitos, artificiais e atraentes que diluem o lazer e o esporte no meio dos sacrifícios do trabalho. Algumas descrições das melhores empresas apresentadas pelo Guia da revista Exame (muitas acompanhadas de fotografias) mostram academias de ginástica, galerias com lojas, massagens durante o expediente, espaços de "convivialidade" que se assemelham às praças internas dos shopping centers. As matérias que acompanham os referidos guias da Exame destacam o quanto esses espaços anexados às empresas modernas tornam-se o "plus", o diferencial, a "qualidade de vida levada a sério". No guia Exame de 2000, De Mari (2000, p. 18) afirma: Quer saber qual o segredo das "dez mais"? Elas cuidam, cuidam e cuidam do seu pessoal. Como retorno, têm funcionários que confiam, confiam e confiam em seus líderes. Em artigo de Levering (1998, p. 28), aparece em destaque a seguinte afirmação: Todos ganham quando se investe no ambiente de trabalho. Os funcionários ficam motivados, produzem mais e as empresas aumentam os lucros. Mas, o que hoje recebe rótulos modernos já existiu no começo do século passado, como passamos a rever agora. Quando hoje se prega que "trabalhadores felizes produzem mais", não há nada de novo nisso. Está-se, na verdade, resgatando um dos principais lemas do Departamento da Beleza do Trabalho, organização implantada nas fábricas pelo governo nazista em 193 3. Os slogans desse departamento eram: "Boa iluminação - Bom trabalho"; "Homens limpos em uma fábrica limpa" e "A felicidade na fábrica aumenta a produtividade". O que se pretendia era convencer os trabalhadores de que a racionalização do trabalho - leia-se taylorismo ou organização científica do trabalho (Rago; Moreira, 1986) - era necessária e boa para todos. Os regimes fascista (na Itália de Mussolini) e nazista (na Alemanha de Hitler) levaram às últimas conseqüências a glorificação Gestão de Pessoas 39 . técnica, da racionalidade e da produtividade no trabalho centrando aliados na estética (embelezamento das fábricas) e no lazer. As melhorias (indubitavelmente necessárias) que foram alcançadas com as políticas desse Departamento da Beleza do Trabalho na indústria alemã - como melhor ventilação e iluminação, a construção de refeitórios, lavabos, sanitários, a reforma e pintura de paredes, a criação de parques e jardins floridos em volta das fábricas - tinham como maior objetivo compensar o aumento da exploração e da intensificação do trabalho fabril sob os rígidos princípios tayloristas. De Grazia (1978) conta a história das estratégias docilizadoras adotadas pelo casamento do taylorismo com o fascismo/nazismo. Na Itália, entre 1925 e 1927, foram criados os chamados dopolavoro, ou seja, "depois do trabalho", que nada mais eram do que uma forma de o governo fascista aliado aos empresários organizarem o tempo de lazer dos operários. Foi Mario Giani (que morreu em 1930) quem implantou o dopolavoro na Itália, trazendo experiências dos Estados Unidos, país onde ele havia realizado seus estudos. Visava criar nos operários uma disciplina adequada ao trabalho ao mesmo tempo em que eles se tomariam leais e fiéis aos seus patrões. Organizado em maio de 1925 num órgão governamental chamado Opera Nazionale Dopolavoro (OND), criava clubes operários e grupos recreativos. Nas palavras de De Grazia (1978, p. 213), o dopolavoro deveria ser aos lazeres o que era a administração científica ao trabalho: ambos tendiam a maximizar a produtividade, um fora do trabalho, outro no espaço do trabalho. O dopolavoro correspondia plenamente à ideologia fascista de Mussolini que afirmava: Os capitalistas inteligentes [...] não tiram nenhum lucro da miséria: é por isso que eles se preocupam não somente com os salários, mas também com a habitação, as escolas, os hospitais e os espaços de esporte para seus operários (apud Dê Grazia, 1978, p. 214-5). Esse discurso vai ao encontro do que hoje se chama de "responsabilidade social" das empresas e das políticas modernas de gestão de pessoas. O que se prega atualmente - como se fosse novidade - é que as pessoas devem estar no centro da administração de empresas. Por isso, é comum ver a expressão "capital humano" 40 Valquíria Padilha como referência aos empregados (ou "colaboradores") hoje em dia. Mas, na verdade, a essência dessa idéia que hoje ganha nova roupagem nasce na Itália fascista dos anos 1920-30. A idéia de que investir em bem-estar ou qualidade de vida dos trabalhadores é investir no próprio lucro dos empresários já vinha sendo defendida naquela época, como nos mostra a citação seguinte: a indústria deveria estar convencida que o bem-estar crescente do seu pessoal traria repercussões favoráveis no rendimento, da mesma maneira que os cuidados da fábrica e das máquinas tenderiam a aumentar a eficácia da produção. [...] Se a fábrica precisava de cuidados, para a força de trabalho valia o mesmo. [...] O relaxamento e os programas recreativos "amarrariam" o trabalhador "a seus superiores hierárquicos pelos laços de solidariedade": ele teria orgulho de se descobrir como "parte viva, atuante, do grande mecanismo industrial no qual ele trabalha, intelectualmente ou manualmente", e seria mais inclinado a "dar provas tangíveis de seu savoir-faire (De Grazia, 1978, p. 215). Observamos então que a preocupação com o fator humano - ainda que disfarce de uma estratégia de docilização - entra na indústria pelo lazer ou, como chamou De Grazia, pela "taylorização dos lazeres operários". Foi o início de um processo de gestão das pessoas pela persuasão que se estende até hoje. O desafio da direção de pessoas na empresa é, e era nos anos 30, envolver os funcionários nas atividades da empresa não apenas dando ordens, mas persuadindo e conquistando. Henry Ford, na mesma época, nos Estados Unidos, conseguiu fazer isso principalmente com política de aumento de salário. Na Itália fascista, como as condições do capitalismo e do desenvolvimento econômico não eram as mesmas que nos Estados Unidos, a oferta de lazer parecia ser uma estratégia mais interessante e inovadora. Destacava-se claramente que o dopolavoro teria uma importante contribuição na elevação do rendimento das indústrias e 7. As citações contidas nessa passagem são de M. Giani, Quaderni dei Dopolavoro H, Roma, 1925. Gestão de Pessoas 41 potencial educativo na medida em que levaria os trabalhadores restaurarem sua dignidade, aumentarem sua auto-estima e a terem vontade de colaborar com as outras classes (De Grazia, 1978, p. 220)8. Mas, diante disso, resta-nos perguntar: que tipo de trabalho faz com ue Q trabalhador perca sua integridade e sua auto-estima? Por que uma política de gestão de pessoas baseada na oferta de lazer, esporte e embelezamento da fábrica devolveria integridade (física e moral) e auto-estima aos trabalhadores? A questão que se coloca, inevitavelmente, é saber se é possível permanecer alienado durante oito horas e recuperar sua identidade em seguida, num outro local. Numerosas observações clínicas sugerem que isto não é factível e que esta fragmentação entra em contradição radical com os processos psíquicos inconscientes. Certas pessoas, entretanto, se esforçam para recuperar sua identidade fora do trabalho, recorrendo a uma atividade privada. Porém, muitos fracassam
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