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da Costa. Cada um no seu papel: o líder espiri- tual completava o líder político. Juazeiro podia ser um foco de heresia; mas o perigo não estava nisso e sim na possibilidade de vir a ser uma ameaça à ordem estabelecida no terreno polí- tico, econômico, e social. 51 5 O "Fanatismo", Elemento de Luta ENQUANTO, EM FACE DE TODO UM sistema de exploração e opressão, entre as diferentes reações das massas rurais despossuídas, o cangaço é desde o início um elemento ativo, o misticismo surge como um elemento pas- sivo. Manifesta-se sem fins agressivos. Mas, formado o grupa de místicos em torno de um beato, monge ou conselheiro, sua tendência é adotar métodos de ação que, gradativamente, vão entrando em choque com os da comunidade sertaneja. Colocado à parte, funciona como catalisador ou pólo de atra- ção no meio ambiente. Em geral, desde seu aparecimento ostensivo, esse grupo passa a ser • hostilizado pela religião do- minante, a religião católica. No caso de Antônio Conselheiro, em Canudos, partiu da Igreja o primeiro brado de alerta contra o "chefe fanático" que percorria, desde a década de 70 do século XIX, os sertões. do Nordeste,v na sua "romaria ininterrupta de vinte anos". Qua- torze anos antes de deflagar a Campanha de Canudos, já em 52 1882, o arcebispo da Bahia expedira circular aos vigários do interior, alertando-os contra as atividades do Conselheiro, que estaria "perturbando as consciências e enfraquecendo, não pouco, a autoridade dos párocos destes lugares", e proibindo terminantemente que os paroquianos se reunissem para ouvir suas prédicas 1 . No ano que antecede a luta armada contra Ca- nudos, é enviada ao lugarejo uma missão religiosa para tentar dissolver o ajuntamento, que já era bem numeroso. No caso do Contestado, o chefe espiritual também entra em choque com as autoridades da Igreja Católica e se recusa a cumprir seus ritos, enquanto "os ministros da Igreja [...], fron- talmente e em seu próprio meio faziam desassombrado comba- te a certas idéias propagadas pelos taumaturgos" 2 . Em Juazeiro, o Padre Cícero é suspenso de ordens pela Igreja e durante toda a sua longa vida jamais se reconciliou inteiramente com ela, pregando a seu modo a doutrina ca- tólica. O Beato Lourenço, do Caldeirão, antes de ser atacado pe- las forças repressivas, era objeto de denúncia por parte do cle- ro do Cariri junto às autoridades civis e militares. A Igreja Católica desempenha, assim, o papel de polícia ideológica no meio rural, antecipando-se às forças repressivas. Prepara-lhes o caminho. Percebe, instintivamente, que a "he- resia", o desvio das normas de conduta estabelecida pela reli- gião dominante — a religião das classes dominantes — poderá evoluir até a rebeldia contra a ordem constituída. Uma vez re- pelida pelos "crentes" ou "fanáticos" sua ação pacificadora, dá o brado de alarma. Deve ser este o primeiro abalo que sofrem os crentes ou fanáticos, depois de adotarem sua atitude de protesto incons- ciente, e até então passivo, contra a ordem de coisas existente. E deve ser também o ponto de partida, a fase de transição, da atitude passiva para a atitude ativa. O momento da consciência de uma posição de revolta. A transição não se opera rápida e imediatamente. O 1 Os sertões, pág. 174. 2 O. R. Cabral, João Maria, interpretação da campanha ao contestado, Sáo Paulo, 1960, págs. 18 e 197. 53 ajuntamento de insubmissos vacila, a princípio, admite a in- tervenção das autoridades eclesiásticas, mas até certo limite, pois o rompimento já houve com a própria formação do ajun- tamento de místicos. Refeito do primeiro choque, reage. Foi o que aconteceu em Canudos. A missão religiosa en- cabeçada por Frei Monte Marciano é suspensa, não pela inter- venção do chefe espiritual local, Antônio Conselheiro, que de início tenta conciliar seus próprios seguidores. Quem intervém ante a crise surgida pela reação negativa dos fanáticos a um sermão do sacerdote católico é um chefe "leigo", João Abade. É este quem arregimenta os conselheiristas e os conduz à casa em que se abrigam os clérigos, reclamando sua saída do povo- ado. A missão é suspensa e os sacerdotes católicos expulsos. Em Juazeiro não foi diferente, no essencial. O heresiarca era um padre, um sacerdote católico. É interpelado, pressio- nado de todos os modos por seus superiores hierárquicos para que retroceda. Intransigente, enviam-no, como último recurso, à Santa Sé, para explicar-se perante o Papa. O resultado é con- traproducente. Mas esse período de pressão, interpelação, in- quéritos eclesiásticos, corresponde, aqui, ao da missão religio- sa em Canudos: à admissão da intromissão externa. Também em Juazeiro os "afilhados" do Padre Cícero ficam em guarda, assumem um estado de ânimo de desafio aberto à religião do- minante, ao lado de seu "padrinho". Não arredam pé de Juazei- ro até a sua volta, e então seu prestígio, aumenta considera- velmente. Está preparada, assim, a passagem à segunda fase, a fase ativa da heresia. Em Canudos, esta fase corresponde a um acréscimo da autoridade de João Abade como chefe civil. Já o era, uma es- pécie de prefeito, "comandante de rua", como ficou conhecido entre os habitantes de Canudos. Mas daí por diante é ele o che- fe leigo de fato, inconteste, é quem decide na prática os desti- nos daquela coletividade, enquanto o Conselheiro ficará como simples chefe espiritual, quase simbólico. Sua importância é mínima para o caso de deflagrar uma luta armada. E nesta, como veremos, ele se apaga. Sem se conhecer os detalhes da intromissão da Igreja Ca- tólica no Contestado, sabe-se que malogrou também, e a se- 54 guir, no primeiro assalto das tropas do Governo contra os "fa- náticos", em 22 de outubro de 1912, no Irani, morre o "mon- ge" José Maria. Mas, não faria nenhuma falta, pois a luta pros- segue e é comandada por chefes civis, entre os quais se desta- cam os Doze Pares de França, chefes leigos, talvez uma espé- cie de colegiado dos mais prestigiosos dirigentes da comuni- dade. O monge fica apenas como um símbolo, uma entidade quase mitológica, tanto assim que ninguém consegue distin- guir em certos aspectos a individualidade dos João Maria ou a destes e de José Maria, sacrificado ao iniciar-se luta armada. A confusão, neste ponto, é geral. O fato irrefutável é que o mon- ge não marca com a sua presença e a sua atuação bélica o ce- nário da luta armada, não tem qualquer papel importante nesta luta, e no entanto, ela se trava por três longos anos, empe- nhando o Governo federal fortes contingentes do Exército. Em Juazeiro, o marco divisório entre o período ativo e o passivo da insubmissão não ocorre imediatamente depois do regresso do Padre Cícero de sua viagem a Roma. Há como que uma pausa para meditação do próprio sacerdote, certa vacila- ção de sua parte em relação à Igreja Católica e da Igreja Cató- lica em relação a ele. O rompimento definitivo ocorre quando, depois que é suspenso de ordens, deflagra a primeira luta ar- mada em que se empenham alguns romeiros, a luta pela posse da suposta mina de cobre do Coxa, que o Padre havia compra- do e estava em litígio. Naturalmente, quem comanda os jagun- ços, para assinalar à bala a posse da área ocupada pela mina, não é o Padre. É um representante, seu, Floro Bartolomeu da Costa. Depois da luta, o nome de Floro projeta-se com resso- nância entre os romeiros do sacerdote fazedor de milagres. A partir desse momento, o Padre se obscurece como chefe do povo e projeta-se Floro Bartolomeu. O Padre, daí por diante, teria o papel de guia espiritual, mas o comando efetivo dos romeiros se transfere a Floro Bartolomeu. É ele o chefe civil