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1 GERALDA DE OLIVEIRA SANTOS LIMA O REI DO CANGAÇO, O GOVERNADOR DO SERTÃO; O BANDIDO OUSADO DO SERTÃO, O CANGACEIRO MALVADO: PROCESSOS REFERENC IAIS NA CONSTRUÇÃO DA MEMÓRIA DISCURSIVA SOBRE LAMPIÃO. Campinas, São Paulo 2008 2 Geralda de Oliveira Santos Lima O REI DO CANGAÇO, O GOVERNADOR DO SERTÃO; O BANDIDO OUSADO DO SERTÃO, O CANGACEIRO MALVADO: PROCESSOS REFERENC IAIS NA CONSTRUÇÃO DA MEMÓRIA DISCURSIVA SOBRE LAMPIÃO. Tese apresentada ao Doutorado em Lingüística do Departamento de Lingüística do Instituto de Estudos da Linguagem da Universidade Estadual de Campinas como requisito parcial para a obtenção do título de Doutora em Lingüística, área de Lingüística Textual, sob a orientação da Profa. Dra. Anna Christina Bentes da Silva Campinas, São Paulo 2008 3 Ficha catalográfica elaborada pela Biblioteca do IE L - Unicamp L628r Lima, Geralda. O rei do cangaço, o governador do sertão, o bandido ousado do sertão, o cangaceiro malvado: processos referenciais na construção da memória discursiva sobre Lampião / Geralda de Oliveira Santos Lima. -- Campinas, SP : [s.n.], 2008. Orientador : Anna Christina Bentes da Silva. Tese (doutorado) - Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Estudos da Linguagem. 1. Lampião, 1898-1938. 2. Referenciação. 3. Objetos de discurso. 4. Memória discursiva. 5. Sergipe, Sertão de. I. Bentes, Anna. II. Universidade Estadual de Campinas. Instituto de Estudos da Linguagem. III. Título. oe/iel Título em inglês: Cangaço’s king, hinterland’s chief, hinterland’s daring bandit, the bad bandoleer: processes benchmarks in the construction of social memory on Lampião. Palavras-chaves em inglês (Keywords): Lampião, 1898-1938; Referentiation; Objects of discourse; Discursive memory; Sergipe, Hinterland of. Área de concentração: Lingüística. Titulação: Doutor em Lingüística. Banca examinadora: Profa. Dra. Anna Christina Bentes da Silva (orientadora), Profa. Dra. Ingedore Grunfeld Villaça Koch, Profa. Dra. Clélia Cândida Abreu Spinardi Jubran, Profa. Dra. Vanda Maria da Silva Elias e Profa. Dra. Mônica Magalhães Cavalcante. Data da defesa: 26/02/2008. Programa de Pós-Graduação: Programa de Pós-Graduação em Lingüística. 4 Geralda de Oliveira Santos Lima REI DO CANGAÇO, O GOVERNADOR DO SERTÃO; O BANDIDO OUSADO DO SERTÃO, O CANGACEIRO MALVADO: PROCESSOS REFERENCIAI S NA CONSTRUÇÃO DA MEMÓRIA DISCURSIVA SOBRE LAMPIÃO. Campinas, SP, 26 de fevereiro de 2008. 5 à Anna Bentes, minha orientadora, a Justino, meu marido, a Flávio e Fúlvio, meus filhos. 6 AGRADECIMENTOS À Anna Christina Bentes, pelas orientações dadas que possibilitaram a realização desta pesquisa; fazendo sugestões valiosas ao longo do processo de elaboração desta investigação; estimulando-me constantemente. Só tenho a agradecer-lhe pela amizade, pelo apoio e, acima de tudo, pela gentileza, firmeza e boa vontade, características que lhe são tão naturais. Anna, mais que uma orientadora, foi uma grande incentivadora. Enfim, sabe exercer com competência a difícil arte da orientação. A todos os cidadãos de Poço Redondo e Nossa Senhora da Glória pelo acolhimento que tiveram comigo em seus lares, e pelas valiosas informações, para esta pesquisa, dadas nos seus depoimentos: ABM, AAA, ES, EC, ES, JFO, JPS, JAS, JAO, MGG, MVA, MA e REC. A duas pessoas que, mais que depoentes, fizeram-se amigas. Colocaram-se a minha disposição, sempre que eu ia a Poço Redondo: o escritor Alcindo Costa e o professor Beto. Este me acompanhou durante a pesquisa, apresentando-me a depoentes, abrindo caminhos para a confecção deste trabalho. Às professoras que constituíram a banca de qualificação: Ingedore Grünfeld Villaça Koch e Vanda Maria Elias, pelas suas críticas e sugestões enriquecedoras. À Vilma e Luana, minhas parceiras, pela contribuição que deram à pesquisa, nas idas e vindas aos recantos de Poço Redondo e Nossa Senhora da Glória, na busca de informações. A Justino, especialmente pelo carinho, dedicação, paciência e apoio em todos os momentos que me ajudaram a trilhar o caminho de pesquisadora, por isso e muito mais, somente tenho a agradecer-lhe. A meus dois queridos e amados filhos, Flávio e Fúlvio, que souberam sempre se fazer presentes através do carinho e incentivo, dando-me forças para continuar a caminhada. 7 A meus queridos pais, Gerino e Maria José pelo carinho. A meus irmãos, de modo muito especial, a Wellington que sempre se preocupou em saber como andava esta pesquisa; que sempre soube ser um grande amigo e incentivador durante todo este percurso. À Universidade Federal de Sergipe, pela oportunidade concedida. 8 SUMÁRIO INTRODUÇÃO....................................................................................................... 12 CAPÍTULO 1 - CONTEXTUALIZAÇÃO DO CANGAÇO...........................................28 1.1 Coronelísmo........................................................................................................32 1.2 Outros personagens desse contexto sócio-político: os cangaceirosd e as volantes.............................................................................................................. 38 1.3 Banditismo e Cangaço....................................................................................... 42 CAPÍTULO 2 - LAMPIÃO SOB OS OLHARES DOS ESPECIALISTAS ................. 57 2.1 Virgulino Ferreira da Silva........................................................................................... 57 2.2 Virgulino entra no cangaço, nasce Lampião............................................................ 64 2.3 Trajetória de Lampião........................................................................................ 83 CAPÍTULO 3 – CONSIDERAÇÕES SOBRE O PROBLEMA DA MEMÓRIA SOCIAL: PERSPECTIVAS HISTORIOGRÁFICAS E SOCIOCOGNITIVAS 95 3.1 Memória na visão de Halbwachs..................................................................... 99 3.2 Modelos de memória: a perspectiva sociocognitiva........................................ 108 3.3 Uma breve apresentação dos embates da memória social sobre o cangaço na região do semi-árido do sertão sergipano...................................................... 120 CAPÍTULO 4 - A QUESTÃO DA REFERENCIAÇÃO ......................................... 137 CAPÍTULO 5 – BREVES CONSIDERAÇÕES SOBRE O AMBIENTE DE PESQUISA E A COLETA DE DADOS................................................................................ 160 5.1 O ambiente da pesquisa.................................................................................. 160 5.1 A coleta de dados........................................................................................... 163 CAPÍTULO 6 - LAMPIÃO SOB OS OLHARES DO POVO.................................. 172 9 6.1 A construção discursiva da figura de Lampião: os olhares positiivos. ........172 6.2 A construção discursiva da figura de Lampião: os olhares negativos........ 209 6.3 A construção discursiva de Lampião: olhares opostos e olhares híbriidos.. 224 6.4 Outros personagens do cangaço: as volantes............................................... 227 CONSIDERAÇÕES FINAIS................................................................................... 232 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS...................................................................... 240 APÊNDICE – Transcrições das fitas..................................................................... 250 10 RESUMO Opresente trabalho aborda a questão da referenciação na construção e reconstrução da memória discursiva (e social) sobre Lampião, personagem da história do nordeste brasileiro. A escolha do tema foi baseada na riqueza de fatos contados e recontados sobre o cangaceiro. Esta investigação diz respeito ao uso de processos referenciais no interior de fontes orais. Propõe-se, pois, a analisar como se constrói e se reconstrói a memória discursiva do rei do cangaço via cadeias referenciais produzidas pelos sujeitos investigados acerca da figura desse herói do sertão nordestino e, também, de outros personagens que orbitam em torno de tal referente. Como hipótese, apresenta-se o fato de que as atividades de referenciação desenvolvidas pelos sujeitos do discurso, nas suas práticas sociais, não só possibilitam a (re)construção dos acontecimentos passados, mas também condensam uma multiplicidade de informações e de pontos de vista sobre tal mito. O corpus do trabalho que se constitui de 15 entrevistas realizadas com moradores dos municípios de Poço Redondo e de Nossa Senhora da Glória, na região do semi- árido de Sergipe, consolida um conjunto de testemunhos que revela a autovisão do homem sertanejo. Na fundamentação teórica considera-se a articulação entre concepções de linguagem, de memória e de historia, enfocando, sobretudo, o fenômeno do cangaço: Lampião. Analisam-se algumas cadeias de expressões nominais (definidas e indefinidas), mostrando como esquemas coerentes de produção e de interpretação dos fatos ocorrem no interior dos depoimentos dos sujeitos. Verifica-se, portanto, que a rememoração de acontecimentos passados constrói e reconstrói a imagem mítica desse personagem da nossa história, a partir do uso de um conjunto de estratégias de referenciação, que constitui uma cadeia coesiva que retoma outras cadeias referenciais enunciadas por outros sujeitos, em outros lugares e tempos. Palavras-Chave: Lampião (1898-1938); referenciação; objetos-de-discurso; memória discursiva; sertão de Sergipe. 11 ABSTRACT This article discusses the procedures for referral to (re) construction of social memory (and discursive) on Lampião, character from Northeastern Brazil. The choice of theme was based on the wealth of facts and to tell again counted on the bandoleer. This research concerning procedures for referral within the oral sources. The research aims to identify and analyse chains benchmarks produced by subjects investigated on the figure of Lampião and events occurring that time, and also the other characters that orbit around it. As hypothesis is the fact that the activities of reference developed by subjects in their social practices, not only enable the (re) construction of past events, but also the condensation of a large amount of information and views, by the expressions benchmarks, related to that myth. The corpus of work is constituted of 15 open interviews, conducted with residents of municipalities Well Redondo and Our Lady of Glory, in the semi-arid region of Sergipe, consolidating a number of testimonies that reveal the man's self vision inlander. In the theoretical foundation is considered a link between concepts of language and memory mainly the phenomenon of cangaço. It examines the expressions benchmarks as diagrams showing consistent production and interpretation of facts about Lampião occur within the depositions. It follows that the remembrance of past events builds and reconstructs the image of that mythical character of our history from a set of strategies for referral mobilised, which is a cohesive chain which incorporates other chains benchmarks set out by other subjects in other places and time. Keywords : Lampião, 1898-1938; Referentiation; Objects of discourse; Discursive memory; Sergipe, Hinterland of. 12 INTRODUÇÃO A rememoração de alguns fatos que retratam a saga de Lampião, a construção e veiculação de memórias a seu respeito, entendida à luz de uma articulação entre teorias sociais, históricas e lingüísticas, é o material desta pesquisa. O interesse por esta temática deriva de uma motivação pessoal: demonstração de reconhecimento de nossas origens. Crescemos ouvindo muitas histórias impressionantes sobre “o bandido mais ousado do sertão”, o que se constituiu em fator decisivo para a nossa tomada de decisão quanto ao trabalho com fontes orais, com falantes que nos proporcionaram preciosas informações. Sobrepondo-se ao interesse pelo estudo da memória, justifica-se a escolha do tema à oportunidade que tivemos de cursar, no primeiro ano de Doutorado a disciplina Tópicos de Lingüística Textual, com a professora Ingedore Koch. A partir das discussões semanais, descobrimos a importância e o valor dos estudos sobre as atividades referenciais. É, sem dúvida, a questão da referência um dos temas mais instigantes, palpitantes e apaixonantes quando se trata de analisar atividades discursivas, como nos têm mostrado lingüistas, filósofos, sociólogos, psicólogos. Tais estudiosos, preocupados com aspectos externos, sociais e históricos da linguagem, passam a adotar em suas investigações abordagens sociocognitivas e interacionistas no entendimento da relação entre linguagem e mundo. À luz dessas pesquisas, desenvolvemos este trabalho que pretende dar uma pequena contribuição para o campo dos estudos da referenciação no Brasil, levando-se em consideração justamente a relação entre a conservação da memória social e a construção de processos referenciais. Ao Examinar estudos de 13 pesquisadores brasileiros sobre a referenciação, verifica-se que pouco se tem explorado este viés teórico que se situa na interface entre a Sociologia e a Lingüística, sobretudo, no que diz respeito às atividades referenciais de sujeitos em relação aos processos de construção e reconstrução da memória social. Assim, a consulta a fontes especializadas sobre o fenômeno do cangaço e a articulação entre concepções de linguagem e de memória constituem o alicerce teórico desta investigação. Quanto ao corpus do trabalho, trata-se de um conjunto de testemunhos que revelam a autovisão do homem sertanejo. Ao longo do século XIX, mais precisamente na sua segunda metade, o que se vê na vida social do sertanejo do Nordeste do Brasil é a criminalização do viver pelas armas, nos planos jurídico, histórico, sociológico e econômico. Data daí o uso das expressões “cangaço” e “cangaceiro”, tempo em que a lei e as autoridades não eram respeitadas nas terras do sertão do Brasil; tempos em que a guerra e a vingança privadas eram práticas importantes de uma ordem um tanto bárbara, mas real, tendo o cangaço se tornado uma forma de vida criminal orgulhosa, ostensiva, escancarada. Dessa forma, a criminalidade (Mello, 2005) deve ser vista, antes de tudo, como geradora de uma subcultura dentro da cultura sertaneja. A quantidade de informações sobre o universo do cangaço permite aos estudiosos do fenômeno elucidações e reconstruções históricas bastante preciosas sobre atitudes e ações, entre tantos outros aspectos, da vida dos cangaceiros, e, especialmente, da vida de Lampião. Pode-se dizer que uma parcela da população sertaneja abonava o cangaço e que muitos torciam pela vitória dos cangaceiros com quem simpatizavam. Os mais 14 famosos do cangaço, como Lampião, eram exaltados através dos versos dos cantadores de feira, embaladores e cegos rabequistas, todos dispostos a cantar a última façanha de guerra do grupo de sua preferência, particularmente, do de Lampião. Também, a literatura de cordel se encarregou dessa celebração. O nosso interesse em investigar esta temática surgiu ao ministrar a disciplina Morfossintaxe da Língua Portuguesa no Projeto de Qualificação de Professores (PQD), desenvolvido pela Universidade Federal de Sergipe (UFS), no município de Nossa Senhora da Glória, em Sergipe,em 2001. Durante o curso desenvolvemos uma pesquisa que resultou na construção de um corpus do português rural falado com informantes desse município. Nas entrevistas, vários temas foram abordados, como educação, cultura, política, religião. Os temas eram escolhidos pelos próprios informantes que falavam daquilo que mais lhes interessasse. Ao analisar tal corpus, o tema que mais nos chamou a atenção dentre aqueles abordados pelos sujeitos pesquisados sobre o português rural falado foi a ligação da história dos municípios de Nossa Senhora da Glória e, especificamente, a do município de Poço Redondo, Sergipe, de onde eram oriundos alguns alunos, com o fenômeno do cangaço no nordeste. Outro fato instigante foi que naquela pesquisa revelou-se o “social nas lembranças individuais” (cf, Halbwachs, 1990), ou seja, o fato de que quase todos os sujeitos da pesquisa (do português rural falado), ao elegerem o tema sobre o qual iriam falar, escolheram justamente o tema do cangaço, e, conseqüentemente, as histórias sobre Lampião. Durante as entrevistas, as pessoas faziam relatos interessantes de suas vidas, glórias e decepções, mas, em particular, falavam muito 15 sobre o cangaceiro Virgulino Ferreira da Silva – Lampião, que teria freqüentado a região do sertão de Sergipe, durante mais ou menos dez anos, no período que se estende do ano de 1928 ao de 1938, ao ser morto na Grota do Angico, no município de Poço Redondo. Nos seus discursos, afirmavam que ali ainda havia pessoas que conviveram com o “rei do cangaço, o soberano dos sertões” e com seu bando. Tudo isso nos trazia lembranças de muitas histórias que ouvimos contar sobre esse personagem da nossa história sertaneja. E agora, como aluna do curso de doutorado em Lingüística na Universidade de Campinas (Unicamp), essas recordações ou lembranças se avivaram, tendo em vista a pertinência de um estudo lingüístico sobre o tema. A partir daí, houve a decisão de trabalhar com depoimentos de sujeitos sobre a saga de Lampião e, com esse objetivo em mente, construímos o corpus que possibilita a investigação de como se constrói e se reconstrói a memória social do mito do cangaço. Dessa forma, o presente trabalho propõe-se a investigar o emprego dos processos de referenciação no interior dos depoimentos, histórias contadas e recontadas sobre Lampião, de informantes da comunidade do sertão de Sergipe. Em particular, de cidadãos dos municípios de Poço Redondo e Nossa Senhora da Glória, os quais se empenharam em participar de uma rememoração sobre o fenômeno do cangaço, relatando e dando suas opiniões e interpretações. Assim, ficou definido o objetivo deste trabalho: analisar a construção e reconstrução da memória social e discursiva sobre Lampião, no interior dos depoimentos dos sujeitos, via uso de processos de referenciação que articulam 16 diferentes pontos de vista sobre esse famoso personagem da história do sertão brasileiro. E, para comprovação desta pesquisa, foi levantada a hipótese de que é por meio da cadeia de referências que os sujeitos investigados produzem pontos de cristalização necessários para a conservação de lembranças comuns na sociedade. O nosso estudo parte, portanto, do pressuposto de que a referenciação é uma atividade discursiva (Koch, 2003, 1999; Koch; Marcuschi, 1998; Mondada; Dubois, 1995) e de que a memória coletiva é uma realidade social transmitida pelas práticas discursivas dos grupos sociais. Assim, para Nora (998), a memória coletiva recompõe o passado de um determinado grupo social por meio de “pontos de cristalização” ou através da construção de modelos de relação entre a história e a memória. No que diz respeito aos processos de referenciação, Koch (2004), postula que são escolhas do próprio sujeito do discurso em função de um querer dizer, e os objetos-de-discurso não se confundem com a realidade extralingüística, mas a constroem e reconstroem interativamente. A nossa proposta de investigar como se processa a construção e a reconstrução da memória discursiva sobre Lampião, por meio das expressões referenciais que aparecem nos depoimentos das histórias contadas e recontadas pelos sujeitos entrevistados, é apresentada em seis capítulos. Pode-se dizer, inicialmente, que os depoimentos que compõem o corpus foram construídos em lugares de memória das duas comunidades investigadas. No capítulo 1, intitulado “Contextualização do cangaço” são levantados alguns aspectos históricos e sociais para o entendimento da temática pesquisada, contextualizando-se o ambiente em que Lampião, enquanto bandido-cangaceiro, foi 17 produzido. Este capítulo encontra-se fundamentado nas teorizações e análises mais gerais sobre o tema do banditismo (Hobsbawn, 1975, 1978; Chiavenato, 1990) e em análises específicas do ponto de vista histórico e social sobre a questão do cangaço no nordeste: Chandler (1980), Maciel (1992), Mello (2005), Queiroz (1987), Dantas (1987), Janotti (1981), Leal (1975), Martins (1981), Cintra (1974), Ferreira e Amaury (1997), Sousa (1994), Costa (1994), Lira (l990). De modo geral, enfatiza-se o fato de que o cangaço é um fenômeno derivado dos interesses dos poderes locais e regionais e que sempre esteve harmonizado com a dominação local. Mas há também a concepção de que o cangaço foi um movimento popular do sertanejo contra o sistema, sendo um produto da conjuntura social nos sertões do Nordeste, provocado pela injustiça da natureza. Destaca-se nessa estrutura social não apenas a figura do coronel, proprietário de grandes extensões de terra, que persistia como principal fator da sociedade dos sertões, mas também a figura do coiteiro, indivíduo que prestava diversos tipos de serviços a Lampião. Havia, também, em oposição aos coiteiros, as volantes, forças do governo que, em diligência, saiam à procura dos cangaceiros, principalmente, de Lampião. Em termos de padrão de vida, essa sociedade continuava a ser dominada pelos poucos que possuíam grandes propriedades. Um sistema que preservou desigualdades sociais e práticas de exploração, em um meio social sujeito à inclemência do clima árido e, conseqüentemente, apresentando um contexto econômico difícil, que possibilitava com maior força a manutenção das estruturas de dominação. Ainda neste capítulo mostramos que os bandidos cangaceiros apareceram devido à grande seca que flagelou o Nordeste na segunda metade do 18 século XIX, precisamente na década de 1870, quando houve vários tumultos populares com invasões e saques a vilas e fazendas. Os líderes cangaceiros sempre buscaram estabelecer relações em bases sólidas com quantos fosse possível: políticos, policiais, comerciantes, fazendeiros, já que disto precisavam para manutenção do estilo de vida do cangaço. O capítulo 2, intitulado “ Lampião sob os olhares de especialistas”, fundamenta- se em estudiosos como Ferreira e Amaury (1997), Maciel (1992, 1988), Carvalho (1974), Barros (2000), Queiroz (1987), Gueiros (1953), Chandler (1980), Mello (2005), Fontes (1998, 2001), Conrado (1983), Costa (1994), Souza (1994) e Souza (1997), que investigaram os fatos e acontecimentos ocorridos durante o período da saga lampiônica. Ao longo deste capítulo, procuramos entender, por meio das reflexões desses estudiosos, como e por que Lampião se tornou o mais importante e o mais famoso de todos os cangaceiros, tornando-se conhecido não apenas no Brasil, como também no exterior, como é o caso da matéria publicada (Chandler, 1980) a seu respeito no jornal norte-americano The New Yotk Times. Lampião era de uma família humilde, proprietária de pequeno sítio, situado entre os latifundiários e a massa de lavradores sem terra. Como almocreve, desempenhou papel importante na sociedade, pois transportava não apenas bens materiais, mas também idéias, notícias do mundo para o povo do sertão nordestino. Sempre acompanhava o pai nesse trabalhofascinante e de grande responsabilidade (Sousa, 1994). De “rapaz extraordinário”, que fora antes do cangaço, passou a ser um dos mais respeitados cangaceiros da época. Sua entrada para o crime ocorreu ainda na 19 adolescência, quando juntamente com alguns irmãos, entrou em disputa com um vizinho e sua família, supostamente, devido a pequenos furtos e insultos. Já a vida de cangaceiro começa, mas, oficialmente, só ao ingressar no grupo do Sinhô Pereira, um dos mais respeitados cangaceiros da época. Este, ao decidir deixar a atividade de cangaceiro, em 1922, não hesitou em nomear Lampião como o seu sucessor, pois para o Sinhô Pereira, Lampião, era o mais inteligente, o mais hábil e o mais esperto de todos os cangaceiros. Sempre foi um homem diferente dos outros; “já nasceu aprendido”; atirava bem e como que adivinhava ou pressentia o perigo iminente e, àquela época, ele contava com apenas 25 anos de idade. Esse acontecimento representava mais um dos instantes capitais na vida de Lampião. A atividade de almocreve lhe permitiu conhecer as futuras ‘estradas do cangaço’, ao mesmo tempo em que estabelecia relações de conhecimento e amizade, ia construindo o cenário no qual posteriormente viria a atuar, não mais como o cidadão Virgulino, mas como, o bandido-cangaceiro, Lampião. Criou fama de inteligente, astuto, corajoso, cauteloso, planejador, meticuloso, atributos que garantiram sua sobrevivência a um cerco permanente que começou em 1916 e se estendeu até 1938. Passou ao comando do cangaço no ano de 1922 e ficou neste posto até 1938, ano da sua morte, emboscado na Grota do Angico, em Poço Redondo, Sergipe. O período em que Lampião esteve no comando do cangaço é considerado como “o ciclo mítico do cangaço nordestino”, revelado em diversos tipos de manifestação artística que mantêm vivo o mito lampiônico na mente da população, como foi possível observar. Como se vê, o cangaço é um terreno “privilegiado do imaginário social”, na medida em que há um leque de representações, a partir do 20 desdobramento de um mesmo símbolo. Dentro dessa perspectiva, o cangaceiro Lampião é visto como uma figura complexa, contraditória, associada a “múltiplas representações que vão do bandido sanguinário ao bandido social, do justiceiro ao mau-caráter sem escrúpulos, do herói ao bandido”. Diante dessa visão, criam-se pontos de vista que o constrói como um mito de muitas faces, entre as quais a de político-militar. Lampião foi antes de qualquer coisa um sujeito político, soube construir sua imagem de forma mitológica. O imaginário de herói e bandido se confunde nas suas aparições diante a população. No capítulo 3, intitulado “Considerações sobre o problema da memória social: perspectivas historiográficas e sociocognitivas”, abordamos, na primeira parte, a questão da memória de acordo com a visão de sociólogos e historiadores, como Halbwachs (1990), dentre outros. Para ele, um dos aspectos mais instigantes dos níveis sociais é o da construção social da memória. Essa reconstrução de acontecimentos passados que ainda estão vivos na memória coletiva do grupo opera-se na memória do indivíduo através de pensamentos contínuos que fizeram e continuam fazendo parte da vida social desse mesmo grupo em cuja memória as lembranças são cristalizadas. A reconstituição dessa memória social depende do relacionamento do indivíduo com outros grupos sociais com os quais convive. Essas lembranças são reconstruções das experiências vividas no passado pelo grupo, que se manifestam no presente através de conversas, relatos e depoimentos. A memória é, portanto, entendida, aqui, como um dos pólos de fixação mais significativos no interior do qual são reconstruídos os acontecimentos experimentados pela sociedade. Neste sentido, a memória surge da união de um grupo social e sua 21 natureza é múltipla, além de ser pluralizada e, ao mesmo tempo, individualizada. A de esse respeito, a obra de Halbwachs (1990) tem sido tomada como o principal ponto de partida, de muitos estudiosos, para refletir sobre a questão da memória coletiva no discurso histórico, na atualidade. Na segunda parte desse capítulo, apresentamos teorias de base sociocognitiva que procuram dar conta do problema da memória discursiva. Fundamentam-se em estudiosos como Koch (2003), Van Dijk, (2004), Koch; Cunha-Lima, (2005), Marcuschi; Koch (1998), Mondada; Dubois ([1995] 2003), Berrendonner (1994), Mondada (1994). Nessa abordagem, a linguagem não se realiza fora dos sujeitos sociais e dos eventos discursivos, visto que a construção e entendimento do discurso dependem sempre do conhecimento partilhado pelos sujeitos. Por isso, os modelos de discurso são estruturas complexas (Koch, 2003) que representam as experiências que o indivíduo vivencia na comunidade e que servem de base a “processos conceituais”. Esses modelos são, portanto, representações dinâmicas dessas experiências pessoais, construídos na/pela memória social do grupo. Tais modelos desempenham papel importante na construção não só de modelos pessoais novos, mas também na atualização dos velhos (Van Dijk, 2004), construídos por ocasião de episódios também anteriores. À luz do exposto, prioriza- se a perspectiva que postula a linguagem como atividade sociocognitiva em que a cultura e a experiência interagem na reconstrução de objetos-de-discurso. Para esses autores, a noção de memória “publicamente” partilhada pode ter várias formulações em diferentes perspectivas teóricas. 22 Ainda no capítulo 3, mostramos uma breve apresentação dos embates da memória social sobre o cangaço na região do semi-árido do sertão de Sergipe, onde as lembranças do tempo do cangaço estão depositadas, por conta da presença do bando de Lampião nessa localidade. A (re)construção discursiva dos acontecimentos passados, relativos a este cangaceiro, mostra que os fatos históricos continuam presentes na memória social do grupo ou na memória vivida em torno da história do lugar, em que a figura de Lampião é vista como um símbolo contraditório. Isso se constata a partir dessa (re)construção de sua imagem positiva e/ou negativa por meio do emprego das expressões referenciais, ( um homem bom, um homem de palavra e/ou um homem mau, um criminoso, respectivamente), extraídas de fragmentos dos depoimentos dos sujeitos da pesquisa. São essas múltiplas e diversificadas interpretações sobre Lampião que o transformam em uma figura mítica. Halbwachs (1990) enfatiza a importância da conservação dessas lembranças comuns a todo o grupo social e a sua influência sobre a vida da sociedade. Portanto, essa memória discursiva é construída, mantida, e modificada (Koch, 2003) no curso das práticas interativas dos sujeitos e os diferentes grupos sociais, práticas estas que contribuem para a cristalização da memória local. No capítulo 4, intitulado “A questão da referenciação”, apresenta-se a concepção de língua como uma atividade sociocognitiva, o que significa dizer que os sentidos produzidos nas/pelas práticas de linguagem não estão nos textos, nos enunciados produzidos, mas são gerados a partir deles por meio da interação entre os interlocutores. Por isso, é relevante dizer que, segundo Koch e Marcuschi (1998), a referência a entidades do mundo fenomênico não está pronta, mas é construída no 23 processo de designação, na relação co(n)textual. Neste sentido, a referenciação, na concepção de Mondada e Dubois ([1995] 2003), é uma atividade discursiva de tal modo que os referentes do discurso não são dados apriorísticos do mundo ontológico, mas objetos-de-discurso. Baseando-nos em orientações de ordem sócio-interacionista que compreendem a produção discursiva como uma atividade para a qual convergem substancialmente fatores de ordem lingüística, sócio-interacional e cognitiva, analisam-se expressões referenciais definidas e indefinidas. Para isso, consideram-se ostrabalhos de Apothéloz (2003), Dubois e Mondada (2003), Mondada (2005), Conte (2003), Francis (2003), Apothéloz e Chanet (2003), Koch e Marcuschi (l998), Koch (1999, 2000, 2001, 2002, 2003, 2005, 2006), Marcuschi (2002, 2005, 2007). As expressões referenciais, formas lingüísticas, permitem constatar a grande complexidade na produção de um texto, interativamente, construído ou reconstruído pelo sujeito do discurso, nas práticas sociais (Koch, 2002). O uso dessas formas nominais implica sempre uma multiplicidade de escolhas, dentre as propriedades capazes de caracterizar o referente. Escolha esta que será feita, em cada contexto, em função do projeto de dizer do sujeito do discurso. Aqui, neste capítulo, observa-se também a questão do encapsulamento anafórico, que tem sido investigado por Conte (2003), Koch (2002, 2006), Cavalcante (2003). No capítulo 5 intitulado “Breves considerações sobre o ambiente de pesquisa e a coleta de dados”, apresentam-se os passos metodológicos seguidos para a constituição do corpus da pesquisa. Para isso foram realizadas entrevistas abertas, com moradores da região do semi-árido de Sergipe, mais especificamente, dos 24 municípios de Poço Redondo e de Nossa Senhora da Glória, levando-se em consideração a convivência do cangaceiro Lampião com o povo desses lugares por um bom tempo. Esses dados reúnem depoimentos importantes de cidadãos dessas duas comunidades, as quais constituem o ambiente da pesquisa, onde a memória do fenômeno do cangaço é permanentemente reconstruída por esses sujeitos. O trabalho de campo foi desenvolvido no período de março de 2006 a janeiro de 2007 No capítulo 6, intitulado “Lampião sob os olhares do povo”, apresenta-se, em um primeiro momento, a construção discursiva da figura de Lampião: 1) os olhares positivos e 2) os olhares negativos 3) os olhares contraditórios e híbridos. Além disso, fazemos uma breve análise das “volantes”, a força policial que era encarregada de caçar Lampião. Para tanto, analisamos vários fragmentos dos depoimentos dos sujeitos procurando observar como esses sujeitos constroem os seus pontos de vista a respeito do cangaceiro, através dos processos referenciais. Pontos de vista estes que constroem um mito multifacetado. É possível observar esta construção, a partir da análise das expressões referenciais presentes no corpus. Na primeira parte, os olhares positivos, mostram-se pontos de vista por meio de descrições nominais definidas (“o rei do cangaço”, “a figura máxima”), que se caracterizam por operar uma seleção, dentre as propriedades atribuídas interativamente pelo sujeito do discurso ao referente; e, também, através das expressões indefinidas (“um homem muito”, “capaz, um sujeito sério”) que evidenciam como a imagem do cangaceiro Lampião vai sendo construída discursivamente pelos sujeitos. Verifica-se, pois, que há um número variável de 25 expressões referenciais definidas e indefinidas que corroboram a formulação de que há uma memória sobre Lampião, e, conseqüentemente, que a memória coletiva é uma realidade social transmitida e mantida nas/pelas práticas interativas e discursivas dos sujeitos e dos grupos sociais. A análise das expressões nominais mobilizadas pelos sujeitos da pesquisa mostra que a grande maioria delas vincula-se a um ponto de vista positivo sobre o cangaceiro, o que mostra a força do universo referencial socialmente construído que se formou, ao longo do tempo, ao redor da figura do rei do cangaço. Quanto à segunda parte, os olhares negativos, mostra-se o outro lado de Lampião: o de um homem bandido, possuidor de uma violência excessiva contra os que lhe negassem pedidos ou que o contrariassem. O bandido que invadia casas, fazendas, cidades; que se acoitava nos barrancos; que se escondia nas grotas, nas trevas para de lá espalhar a destruição e a morte (Fontes, 1998). Por essas suas façanhas aterrorizantes, alguns dos sujeitos da pesquisa consideram-no o mais audacioso tipo de cangaceiro do nordeste do Brasil. A construção desse ponto de vista pode ser observada por meio do uso das descrições referenciais (o malfeitor, o cangaceiro malvado; um homem perverso, um bicho), que caracterizam a outra face do mito, sua imagem de bandido, identificada através de um conjunto de formas referenciais que ressaltam discursivamente, em uma dada situação, determinados atributos e/ou predicações de um homem “sanguinário”. É, portanto, via essa rede de referências que os sujeitos, através das suas práticas de linguagem, produzem os pontos de cristalização necessários para a conservação de lembranças comuns na sociedade. 26 As descrições nominais que aparecem no interior dos depoimentos dos entrevistados sobre o mito Lampião resultam, portanto, de atividades sociocognitivas realizadas durante o processo de “organização das informações que são acionadas pelos interlocutores na ação verbal” (Jubran, 1996, 2003), servindo, assim, de base para o desenvolvimento discursivo no momento da reconstrução da memória social do grupo. Verifica-se ainda, no curso da análise, um dos processos da referenciação que se destaca como um recurso discursivo importante: a condensação de porções discursivas, uma vez que se está lidando não só com a (re)categorização de informações contextualmente dada, mas também com o que já está presente na memória discursiva do sujeito durante as atividades de linguagem. Nestas sobressaem o emprego de determinadas expressões lingüísticas que atribuem certas características ou predicações ao referente. Por exemplo, a expressão “a síntese de todo um período do sertão nordestino”, extraída de um dos depoimentos do corpus, não só remete ao referente Lampião, mas também sumariza conteúdos, precedentes e subseqüentes, sedimentados na memória discursiva do pesquisado e do grupo do qual faz parte. À medida que o discurso se desenvolve não apenas as informações-suporte, contidas em segmentos anteriores do texto, são condensadas, mas toda uma memória social em torno de um acontecimento, sumarizando-as sob a forma de um substantivo-predicativo e assim transformadas em objeto-de-discurso (Koch, 1999). Assim, a partir das informações contextuais expressas nas práticas discursivas, a nosso ver, as expressões referenciais mobilizadas pelo sujeito formam 27 uma cadeia referencial que remete e retoma outras cadeias coesivas e outros discursos expressos por outros enunciadores, em outros lugares e tempos. 28 CAPÍTULO 1 - CONTEXTUALIZAÇÃO DO CANGAÇO Existem versões variadas no que diz respeito a Lampião e suas aventuras. Dessa forma, alguns aspectos são indispensáveis para um melhor entendimento desta temática. Assim, é importante o estudo no que diz respeito ao contexto sócio- político do cangaço, pois como diz o jornalista Júlio José Chiavenato, em sua obra Cangaço: a força do coronel, “para entender o homem, primeiro é preciso desvendar o ambiente onde ele é produzido – mais as suas circunstâncias” (Chiavenato, 1990, p. 62). Segundo Billy Jaynes Chandler (1980), em seu livro Lampião, o rei dos cangaceiros, a área, geograficamente, não é muito propícia à habitação humana, embora alguns nativos e, às vezes, até mesmo alguns forasteiros, fossem atraídos pelo seu fascínio terrível. Na verdade, o sertão nordestino com suas longas estações sem chuva, com suas secas freqüentes, com sua vegetação grotesca e com seu solo geralmente árduo, não estende uma mão acolhedora ao homem. Como os bandidos que surgem de seus confins, o sertão é ameaçador (Chandler, 1980, p.19). Terra de tantos paradoxos não se cansa de oferecer surpresas mesmo a estudiosos que já tenham boa noção dos diferentes perfis científicos que integram os conceitos do semi-árido quente e o das áreas sujeitas ao seu regime hostil (Mello, 2005). O Nordeste, aqui considerado, é o que se estendedo Piauí à Bahia, escreve Frederico Pernambucano de Mello (2005), no seu livro Guerreiro do sol: violência e 29 banditismo no Nordeste do Brasil, onde se apertam continuamente as realidades físicas e culturais bem marcantes de uma faixa costeira úmida e quente e de um miolo geográfico de terras quentes e secas, onde predominam, no plano climático, o chamado semi-árido quente, e no da produção, a indústria pastoril. Esse tipo de clima que aqui se desfruta apresenta as temperaturas mais elevadas do país. Estação seca prolongada, exacerbada por ventos fortes e igualmente secos, aliada à insolação de incidência direta sobre o solo pouco espesso, por conta da cobertura vegetal rala, e a proximidade do Equador, eis a fórmula de obtenção dessas temperaturas infernais (Mello, 2005, p. 52). Para o historiador Frederico Bezerra Maciel (1992), na sua obra Lampião, seu tempo e seu reinado, o agente físico que mais define e caracteriza o sertão são as chuvas. O sertanejo nunca amaldiçoa a água mesmo quando em cheias destruidoras, embebendo a terra ou carregando as plantações. “A água é uma bênção divina que molha os corações de esperança e enche as terras de verde e de fartura. Maldição são as prolongadas estiagens, as secas sem fim, aniquilando tudo o que significa vida” (Maciel, 1992, p. 31). Na aridez da paisagem sertaneja, conforme Mello (2005), a chuva é o fiel da balança da sorte. Quando chove, tem-se a fartura; escasseia-se por um ano ou mais, tem-se um quadro trágico das lavouras perdidas, do gado morrendo à míngua, das procissões profanas, dos retirantes desesperados, dos barreiros esturricados, do salve-se quem puder. Além dessas características físicas da terra onde nasceu, viveu e morreu Lampião, deve-se acrescentar que a sociedade da qual ele não era um 30 representante atípico, foi influenciada pelos mesmos fatores. Contudo, essa sociedade sofreu também outras influências, e, embora tivesse acobertado várias espécies de crimes, as condições, no tempo de Lampião, eram tais que favoreciam ainda mais esse comportamento. Para o jornalista Chandler, “o estudo de alguns aspectos da história social, política e econômica do sertão provará este ponto de vista” (Chandler,1980, p. 20). Os primeiros colonizadores que vieram para o Nordeste do Brasil durante o século XVI não se estabeleceram no sertão, mas, sim, nas regiões litorâneas, onde surgiu uma sociedade agrícola, baseada no cultivo da cana de açúcar. Esse local era tão importante para o cultivo da cana, que a produção de gêneros alimentícios ficou relegada a segundo plano. Daí o surgimento do interesse pelas terras do interior para a criação do gado e para a agricultura em geral; foi, então, que o interior do sertão nordestino começou a ser desbravado, embora, muitas vezes, só esporadicamente. Só nas primeiras décadas do século XVIII, é que as regiões mais distantes foram reivindicadas, e a estrutura da sociedade sertaneja foi constituída (Chandler, 1980). Para isso, grandes extensões de terra foram entregues por oficiais da colônia aos mais influentes para conquistá-las e cultivá-las. Foi assim que surgiu a base de um sistema de latifúndios. E o fazendeiro que possuía muitas terras era igual, em seu mundo, aos senhores de engenho do litoral. Para impor mais lei e mais disciplina, governava com mão de ferro seus subordinados. Dessa forma, conforme Câmara Cascudo ([197-?]), no seu trabalho, vaqueiros e cantadores, era preciso que 31 o fazendeiro tivesse “tropa pessoal, fiel e paga, para a defesa de propriedades visadas pelos adversários políticos” (Cascudo, ([197-?]), p. 122). Portugal, na verdade, quase nunca chegou a exercer muito domínio sobre a região sertaneja. Desse modo, desde sua origem, a sociedade dos sertões ficou à mercê da prepotência dos que tinham a sorte de possuir grandes extensões de terra. Por outro lado, a maioria dos sertanejos vivia numa penúria extrema, e foi dessa classe que saíram muitos dos seguidores de Lampião (Chandler, 1980). Inicialmente, a classe pobre do sertão nordestino compreendia a mão de obra trazida pelos potentados para o desbravamento da região. Era composta de uma mistura de índios, escravos, mulatos e seus descendentes, e também de pessoas livres que formavam o séqüito dos senhores que vinham da costa (Mello, 2005). Mas, com o passar dos anos, essa classe se estendeu, também, a muitos daqueles cujos ancestrais tinham sido os próprios donos de terra, visto que, no sertão do nordeste brasileiro, os costumes e as condições de vida do nordestino impunham, inexoravelmente, um processo de nivelamento. Esse nivelamento de classe pode ser explicado da seguinte forma: as grandes propriedades eventualmente se fragmentavam, pois eram divididas entre os herdeiros quando morria o dono. Essa fragmentação, cada vez maior, causou o empobrecimento de seus proprietários. E as adversidades, sobretudo as secas periódicas, dizimavam também os rebanhos e os outros recursos dos fazendeiros. Conseqüentemente, viam-se forçados a vender suas propriedades, passando, portanto, para a classe dos menos favorecidos (Mello, 2005). 32 Através de uma série de circunstâncias, mas, principalmente, através de esforços pessoais e casamentos de conveniência, muitos fazendeiros conseguiram não só deter esse processo de desintegração, mas até reconstruir suas fortunas que seus antepassados tinham perdido. Embora o domínio da terra tivesse cessado de ser tão monolítico, como na época das conquistas, o latifúndio ainda persistia como principal fator da sociedade dos sertões. Em termos de padrão de vida, essa sociedade continuava a ser dominada pelos poucos que possuíam ainda grandes propriedades (Chandler, 1980). Ainda, segundo esse mesmo autor, “a característica principal do potentado colonial dos sertões, e de seu sucessor, o ‘coronel’, ou melhor, do ‘chefe político’ dos tempos mais recentes, era o prestígio e o poder que suas propriedades lhe conferiam” (Chandler, 1980, p. 23). Portanto, aliado ao fator das secas, outro, talvez, tão forte quanto foi o da herança colonial dos latifúndios, que se traduzia, por sua vez, no poder dos grandes patriarcas, mais tarde conhecidos na figura dos coronéis. 1.1 O coronelismo A algumas rixas ou lutas entre famílias tradicionalmente sertanejas do Nordeste brasileiro, extremadas em rivalidades criminosas e favoráveis ao uso dos chamados cabras em lutas, associou-se “um cangaço vingador ou vingativo de desentendimentos endogâmicos e, até, incestuosos. Lutas, algumas, em torno de terras, de bois, de cavalos preferidos por motivos ligados a brios de família” (Mello, 2005 p. 16), sendo que esses animais foram associados especialmente à angústia de dias mais terríveis da seca. Para a escritora Maria Isaura de Queiroz (1987), em 33 seu trabalho História do cangaço, eram comuns, ainda no período imperial, esses tipos de conflitos entre famílias mais abastadas. Dentro de uma visão estrutural da sociedade, Ibarê Dantas (1987), no seu livro Coronelismo e Dominação, argumenta que o fenômeno do coronel no Brasil se constitui a partir de uma tripla fundamentação: econômico-social, ideológica e política. No primeiro caso, destaca-se o grande proprietário de terra que exerce sobre os trabalhadores um tipo de dominação pessoal, que serve para camuflar desigualdades e práticas de exploração. Correlacionada com a dimensão econômico-social, atua a fundamentação ideológica que se apresenta como um conjunto mais ou menos coerente de idéias e representações, muitas vezes, veiculadas através de normas que reforçam laços de lealdade e práticas de submissão. O controle de informações pelo senhor torna-se elemento vital para a preservação dos padrões de dominação e manutenção das relações de dependência pessoal. A terceira dimensão que participa da constituição do coronelismo é a políticaque fundamenta–se no papel de intermediação que o proprietário de terra exerce entre a sociedade política estadual e as massas rurais do município, ou melhor, de um lado ele controla o povo e do outro legitima a sociedade política. Para Chiavenato (1990), o coronel tinha o poder real. Era o dono da terra que aumentava seu latifúndio por meio de guerras de família e expulsando posseiros. Mandava políticos representá-lo na capital e a sua força excedia a das autoridades constituídas. Prefeitos, delegados e juízes raramente se opunham ao coronel. Na verdade, as autoridades eram escolhidas por ele. Apesar desse poder excessivo, “o 34 coronel era um homem rude, pouco polido pela riqueza, semi-analfabeto, ostentando um código de honra que não o distinguia do mais pobre sertanejo” (Chiavenato, 1990, p. 41). Ainda na concepção desse mesmo autor, ”o coronel é como um senhor feudal – em algumas regiões chegou até a ter direito da ‘primeira noite’ – mas só a riqueza o separa dos ‘servos’, que são seus agregados. Cultural e psicologicamente ele é igual a todos” (Chiavenato, 1990, p. 41). Para ele, a sociedade em que vivia o coronel, ou melhor, em que reinava, era um aglomerado de homens brutalizados pelo meio social, sujeitos à inclemência do clima árido e perdidos num conjunto econômico difícil de ser definido com rigor. Na verdade, todos eram vaqueiros. Os que conquistaram a posse da terra mandavam. Os outros, embora oprimidos, obedeciam, porque as ordens não agridem o conceito que eles tinham de justiça que se baseia na força. Quando aplicada, prestigiava aquele que mandava, uma vez que ressaltava a “macheza” do mandante. Maria de Lourdes Janotti (1981), no seu livro O coronelismo: uma política de compromisso, ao se posicionar a respeito desse assunto, reafirma que é comum, nos meios de comunicação, apresentar o coronel como “um fazendeiro rústico, autoritário, brutal, ignorante, dispondo da vida dos demais habitantes do lugarejo em que reside. Este é um estereótipo que vem sendo consagrado e, comumente ridicularizado” (Janotti, 1981, p. 8). Posição que vem também explicitada nas palavras de Maciel: 35 mundo em que só imperava o absolutismo do grande fazendeiro mandão e político, promovido naturalmente a ‘Coronel’, teúdo e manteúdo pela força dos cabras – os cangaceiros mansos e pelo reforço da fiadora de seu prestígio político – a polícia. Essa última, aliás, o único sinal do Governo naquelas brenhas (Maciel, 1992, p.35). Com o fim de destacar elementos importantes do coronelismo, o historiador Dantas (1987) conceitua-o como uma forma de representação política exercida por determinados proprietários sobre os trabalhadores rurais, ao tempo em que se impõem como intermediários entre as massas do campo e as oligarquias estaduais, tendo como objetivo a manutenção da estrutura de dominação. Para esse autor, o coronelismo é um fenômeno eminentemente republicano, e embora comece a se formar no Império, nas relações do patronato rural com os libertos, alimentando-se nas formas de dominação pessoal, é na República que se realiza com todas suas características. Como bem assinala a socióloga Maria Isaura Pereira de Queiroz (1975), no seu trabalho O coronelismo numa interpretação sociológica, ao afirmar que “embora aparecendo à apelação do coronel desde a segunda metade do Império, é na Primeira República que o coronelismo atinge sua plena expansão e a plenitude de suas características” (Queiroz, 1975, p. 160). Muitos autores que tratam dessa temática associam o crescimento do poder dos coronéis à força eleitoral que eles desempenharam na Primeira República (1900-1930). Queiroz, ao analisar a estrutura coronelística, afirma que “o poder político é medido através da quantidade de votos de que dispõe um chefe local ou regional, no momento das eleições” (Queiroz, 1975, p. 157). Ainda considerando esse tipo de estrutura, argumenta que “o segundo aspecto essencial existente é o da 36 possibilidade de barganha e a consideração do voto como uma posse, que marca os eleitores diante dos respectivos chefes” (Queiroz, 1975, p. 160). Victor Nunes Leal (1975), considerado um expoente desse assunto, conceitua o coronelismo como sendo, sobretudo, “um compromisso, uma troca de proveitos entre o poder público, progressivamente fortalecido, e a decadente influência social dos chefes locais, e notadamente dos senhores de terra” (Leal, 1975, p. 20). Ainda se referindo a essa temática, acrescenta, que “a força eleitoral empresta-lhe prestígio político, natural coroamento de sua privilegiada situação econômica e social de dono de terra” (Leal, 1975, p. 20). Para José de Souza Martins (1981), em sua obra, Os camponeses e a política no Brasil, esse fenômeno se concretizou pelo rígido “controle dos chefes políticos sobre os votos do eleitorado, constituindo currais eleitorais e produzindo o chamado voto de cabresto” (Martins, 1981, p. 46). Ao retratar, também, a figura do coronel, Antônio Octávio Cintra (1974) o vê como um “pacto de poder público através das elites que o manipulam com os chefes do interior, controladores e fornecedores dos votos de seus redutos locais” (Cintra, l974, p. 38). De acordo com Ibarê Dantas (l987), as práticas eleitorais de voto a bico de pena, atas falsas e comissões eleitorais controladas pelos coronéis tornaram o sistema representativo extremamente viciado. Essa representação, em última instância, dependia dos coronéis que se impunham não apenas através dos votos que controlavam no meio rural, mas, sobretudo, pelo domínio da coerção. O controle dos votantes podia ser em decorrência da supremacia adquirida pelos coronéis 37 através das milícias particulares. A importância dessas milícias, como fonte de poder do coronel, tem sido notada por vários estudiosos. O escritor Otávio Cintra (1974), por exemplo, depois de considerar que a terra tinha sido distribuída de maneira desigual, como primeira fonte de poder, afirma que “uma segunda e crucial fonte de poder, controlada pelos grandes proprietários de terra, eram as milícias particulares” (Cintra, 1974, p. 42). Também na opinião dos autores Vera Ferreira e Antônio Amaury (1997), na obra, O espinho do quipá: Lampião, a história, acima de todos, na escala do poder, estava o coronel. Àquela época, era a grande força do sertão, uma vez que podia tudo, pois detinha a posse de grandes extensões de terra e era a lei em suas propriedades e nas regiões de sua influência. Tinha poder de vida e de morte. As autoridades constituídas não se atreviam a interferir, ou melhor, a enfrentá-lo. Mesmo assim, muitos coronéis dos Estados nordestinos mantiveram um bom relacionamento com os cangaceiros, chegando a protegê-los e acolhê-los em suas fazendas. Não porque tinham um bom coração, mas porque visavam suas próprias vantagens e não hesitavam em mudar de opinião e de lado sempre que lhes fosse conveniente. Abrigar um cangaceiro e depois o trair não lhes era incomum. Alguns tiveram com Lampião amizade e inimizade profunda, variando de acordo com os interesses momentâneos de cada um. 38 1.2 Outros personagens desse contexto sócio-polític o: os coiteiros e as volantes Não eram apenas os coronéis que forneciam proteção aos cangaceiros. Havia os chamados coiteiros, indivíduos que lhes prestavam diversos tipos de serviços, dando-lhes informações, alimentação, abrigo, e até fazendo suas compras (Ferreira; Amaury, 1997). Os abrigos eram geralmente chamados de coitos, daí a palavra coiteiro. Para que alguém fosse considerado um coiteiro não eram necessárias muitas atribuições. Um indivíduo podia passar, às vezes, a ser conhecido como coiteiro apenas por ter dado uma caneca de água a um cangaceiro. Segundo Prata, ser coiteiro para a polícia é servir-lhe um copo d’água numa rápida parada de sua marcha incessante; é vê-lo passar ao longe, enão ir, presunçoso, delatá-lo; é topá-lo na estrada e responder às perguntas que lhes forem feitas; é, enfim, todo aquele que voluntária ou involuntariamente tenha com ele o mais leve contato (Prata, 1933, p. 102). Ser coiteiro, para Ferreira e Amaury (1997), era motivo suficiente para ser perseguido pelas forças do governo. Quanto menor fosse o seu poder político e econômico, mais sofria perseguições. Estava sempre sujeito a terríveis castigos físicos e até podia ser morto pelos homens das volantes. Por outro lado, por onde Lampião passava, também havia coiteiros de grande prestígio político e econômico. Em Sergipe, por exemplo, o coiteiro mais conhecido era “Antônio Caixeiro, pai do 39 Interventor (Governador) do Estado, o Capitão do Exército Dr. Eronildes de Carvalho” (Ferreira; Amaury, 1997, p.19). Para a polícia, havia dois tipos de coiteiros. O primeiro era constituído pelos fazendeiros, negociantes ou chefes políticos, que ajudavam Lampião por precaução. Enviavam-lhe o dinheiro que pedia, ou lhe forneciam mantimentos, para proteger suas propriedades. O segundo tipo era formado de vaqueiros, moradores e outras pessoas que tinham pouca influência. Entre estes, estavam os donos de pequenas e médias propriedades, assim também como lojistas e comerciantes dos povoados (Chandler, 1980). Este grupo não contava com a compreensão da polícia, principalmente se esta suspeitava de que estavam dando informações falsas na área em que estavam os cangaceiros. Se procediam assim porque gostavam de Lampião, ou porque o temiam, era um dilema que fazia pouca diferença para a polícia (Chandler, 1980, p. 190). Em oposição aos coiteiros, que ajudavam os cangaceiros, havia as forças oficiais, as volantes, que os perseguiam dispostos a encontrá-los e acabar com eles. Essas forças eram heterogêneas, já que eram constituídas tanto de policiais ou de “indivíduos que procuravam obter lucro pessoal, matando cangaceiros e ficando com os seus pertences, como ouro, dinheiro, etc.” (Ferreira; Amaury, 1997, p. 19). Alguns policiais permaneciam em seus quartéis à espera de informações para sair à caça dos cangaceiros, enquanto outros grupos de policiais viviam em constante movimento, seguindo a pista dos homens do cangaço e, por isso, eram chamados de volantes. Volante é, pois, “o agrupamento de vários soldados, que, em diligências, saem à procura de criminosos e foragidos” (Costa, 1994, p. 103). E ainda 40 afirma que a existência das volantes vem desde “o aparecimento dos primeiros bandoleiros e foragidos da justiça. Sempre foi um bando de arrogantes e ameaçadores policiais que se tornaram conhecidos como volante ou força do governo” (Costa, 1994, p. 113). Com o passar dos anos, esses representantes da ordem e da justiça passaram a ser odiados e temidos pelos sertanejos. A população via nas forças oficiais, policiais despreparados, violentos e corruptos, pois, nas perseguições aos cangaceiros, o povo do sertão nordestino sofreu muito com as ações das volantes. Ao se fazer a revisão de literatura sobre o fenômeno do cangaço, percebe-se que uma grande parte dos sertanejos apoiou o cangaço devido à falta de justiça e a violência da própria polícia. As volantes, ao chegarem às casas dos sertanejos pobres, invadiam-nas e praticavam muitas arbitrariedades Tal procedimento contribuiu para o fortalecimento do fenômeno do cangaço junto ao sertanejo. Havia muitas queixas, como por exemplo, a de que uma tropa do governo passara por um povoado quebrando pontes, roubando casas e implantando o terror. O medo que a população do sertão sentia das volantes era grande, tanto que muitos sertanejos preferiam ver Lampião em sua porta a ver os homens da volante. Tal medo pode ser aquilatado quando Chandler relata que “um fazendeiro de Sergipe, referindo-se à polícia da Bahia, declarou: Pode acreditar que hoje, no sertão, já se tem mais alegria quando Lampião chega à porta do que a simples notícia de que as forças se aproximam” (Chandler, 1980, p. 121). Para este autor, dentre todas as volantes, os Nazarenos, sob o comando de Manuel Neto, eram os mais temidos pelo povo, pois na perseguição a Lampião, 41 empregavam qualquer método para obter informações. “A brutalidade das tropas era atribuída, sem dúvida, às frustrações e raiva, mas é evidente que a violência, em muitos casos, era empregada deliberadamente” (Chandler, 1980, p. 192). Um outro fator que contribuiu para essa brutalidade foi, segundo o autor, a própria natureza dos soldados, uma vez que, na sua maioria, eram analfabetos e ignorantes. A brutalidade, para esses indivíduos, era corriqueira, já que “pertenciam a uma sociedade rústica, que usava da violência para resolver suas disputas” (Chandler, 1980, p. 196). O tratamento dado pelas volantes também era diferente quando alguém precisava de ajuda. Para os grandes proprietários de terra, essa ajuda era imediata, por isso tinham uma visão diferente da polícia, já que não sofriam e, sempre que necessitavam, podiam contar com sua ajuda. Mas os pobres, quando precisavam, não eram atendidos quando não tinham a proteção de algum chefe político. De qualquer forma, deve-se levar em consideração as dificuldades que as volantes passavam ao imergirem naqueles brutos e desconhecidos sertões: o rigor da campanha cangaceira, sempre dura e cheia de provocações, a desvantagem absurda no confronto direto com os cangaceiros, senhores absolutos daquelas caatingas, conhecedores profundos da mataria (Costa, 1994, p. 113). Enquanto, nas palavras do autor, o conhecimento profundo da caatinga era um forte aliado dos cangaceiros, as volantes sofriam o impacto do desconhecido e do mistério, com obstáculos quase intransponíveis e inglórios que terminavam por derrotar os desacostumados homens do governo. Enquanto tudo ali era contrário às 42 volantes, com os cangaceiros se dava justamente o inverso, já que aquele espaço era o seu verdadeiro mundo: a gruta, a tocaia, a serra, a vereda, a chuva, o sol, a noite, tudo lhes era familiar. A luta era desigual e o resultado era real: o extermínio do cangaço estava longe de acontecer e o desespero e a angústia das volantes aumentavam a cada ano: os responsáveis pela repressão enviaram comandantes competentes para chefiar os mateiros, e aí a luta se igualou. Os cuidados da cangaceirada redobraram. Já não enfrentavam os outrora cordeirinhos; agora era fera contra fera, monstro contra monstro, valentão contra valentão. E aí o sertão pegou fogo (Costa, 1994, p. 116). 1.3 Banditismo e cangaço Segundo Eric Hobsbawm (1978), em seu livro, Rebeldes primitivos: estudos de formas arcaicas de movimentos sociais nos séculos XIX e XX, “o bandido é um fenômeno pré-político e sua força está na proporção inversa da força dos movimentos revolucionários agrários organizados, do socialismo ou comunismo” (Hobsbawm, 1978, p. 31). E acrescenta que a função prática do bandido é, no máximo, impor certos limites de opressão, numa sociedade tradicional, ao preço da desordem, do assassinato e da extorsão. Para ele, os bandidos e salteadores de estradas preocupam a polícia, mas devem também preocupar o historiador social, pois, num certo sentido, o banditismo é “uma forma bastante primitiva de protesto social organizado, talvez a mais primitiva que conhecemos. De qualquer modo, em muitas sociedades é assim que os pobres 43 o vêem” (Hobsbawm, 1978, p.22), e em conseqüência protegem o bandido, consideram-no como seu defensor, idealizam-no e o transformam num mito. É interessante salientar que o bandido social incipiente, na concepção desse autor, é considerado como não-culpado pela população, pois se fosse tido como criminoso em relação às convenções da sociedade, esse bandido não poderia desfrutar da proteção local, que lhe é rigorosamente necessária. Quase todos os que enfrentam os opressores e o Estadosão considerados como vítimas, como heróis, ou ambas as coisas, e quando passa a ser perseguido, é protegido naturalmente pelos camponeses e “pelo peso das convenções locais, que defendem a ‘nossa’ lei-costumes, inimizades de sangue, ou qualquer outra – contra a lei ‘deles’, e a ‘nossa’ justiça contra a justiça dos ricos” (Hobsbawm, 1978, p. 25). Para ele, a ‘carreira’ do bandido começa, quase sempre, com um incidente que em si não é grave, mas que o coloca fora da lei: uma acusação policial que visa mais a ele, pessoalmente, do que a punição de um crime: falso testemunho, erro judiciário ou intriga, uma condenação injusta a domicílio (confino), ou uma condenação considerada como injusta (Hobsbawm, 1978, p. 25). No sertão do Nordeste, como bem ressalta o historiógrafo Frederico Pernambuco de Mello, “o banditismo não vem a conhecer apenas o estímulo de uma cultura violenta, em que o épico se fazia sentir à flor da pele. É ali que recebe o próprio nome com que se perpetuaria na memória escrita e na poesia cantada pelo povo” ( Mello, 2005, p.26). É interessante observar que, dentro das análises historiográficas sobre esse fenômeno, o pesquisador Chiavenato (1990) afirma que o colonizador fundou o 44 latifúndio usando bandidos, visto que os bandeirantes invadiram os sertões do Brasil derrubando matas e fincando grandes marcos. Oficialmente, eles foram “alargadores de fronteiras” e, por isso, tornaram-se heróis nacionais, não sendo difícil, segundo o autor, criar-se o mito, uma vez que faziam parte do banditismo oficial; eram de origem nobre e financiados pela corte. Para explorar grandes domínios, escravizaram índios e negros, e para policiá-los e perseguir os fugitivos, surgiram as figuras dos capitães-do-mato que juntamente com os bandeirantes defendiam a posse da terra e vigiavam o trabalho escravo. Aqueles, criminosos das classes baixas, mercenários sem terra ou sem perspectiva de enobrecimento, nunca contaram com a simpatia dos conservadores que, ao conquistar o poder econômico e político, passaram a financiar o crime. Para garantir suas terras, ou roubar as alheias e reprimir as populações rurais, pagavam a jagunços, bandoleiros e marginais. Com o passar do tempo, os “alargadores de fronteira” foram transformados em heróis, os matadores em barões e os ladrões de terra em coronéis, como assinala este pesquisador: “limparam convenientemente a imagem dos bandeirantes, dos barões e dos coronéis do sertão. Os crimes desapareceram e os criminosos passaram a homens ilustres”. (Chiavenato, 1990, p. 9). E ainda acrescenta na sua análise que a grande diferença, é que “os bandidos oficiais ganharam uma linhagem que os absolve, e, mais que isso, os premia como heróis. Os bandidos comuns, pelo contrário, são até mais estigmatizados, para realçar as falsas virtudes dos primeiros” (Chiavenato, 1990, p. 10). 45 Os bandidos que se tornaram nobres, para garantir suas terras ou roubar as alheias, contratavam marginais que a miséria tinha empurrado ao crime. Entre os primeiros grupos a inaugurar essa genealogia popular do mal foi o dos bandidos cacheados que agiam no Nordeste, desde o século XVIII, impondo a lei no sertão: expulsando posseiros; disciplinando agregados e matando inimigos políticos. Eles eram assim chamados por usarem, como sinal de valentia, os cabelos cacheados escondidos no chapéu; ao tirá-lo, aparecia a cabeleira cacheada, o que significava sentença de morte (Chiavenato, 1990). Outro grupo de bandoleiros que também agiu no sertão do São Francisco foi o dos vira-saias que invadiam vilas, fazendas e cometiam assaltos e estupros. Esses bandidos eram usados pelos proprietários de terra com o objetivo apenas de humilhar seus agregados. Para isso, amarravam os homens, obrigando-os a manter os olhos abertos para que vissem suas mulheres e filhas sendo estupradas: “viravam as saias delas” e executavam o estupro. “Nada desgraçava mais o caboclo do que estuprarem sua mulher e filhas diante dele” (Chiavenato, 1990, p.11). Daí o nome de vira-saias. Mas, com o tempo, os latifundiários perdem o controle sobre eles e passam a persegui-los. Ao se dispersarem, muitos desses homens se transformam em capitães-de-estrada e voltam a servir, novamente, aos donos de terra para capturar e escravizar o caboclo que vivia livre no sertão. Todos eles possuíam a mesma missão: o controle da mão-de-obra e a manutenção da posse da terra. Aos poucos, começam a surgir outros grupos que também se destinavam a servir a esses grandes proprietários não só para policiar os pobres, mas também para vingar afrontes e eliminar inimigos políticos. 46 Por outro lado, Frederico de Mello (2005) chama atenção para o fato de que no século XIX, o sertão, que já se achava razoavelmente povoado, começa a se converter no cenário, por excelência, do banditismo, até porque, no litoral, a colonização florescia em todos os sentidos, permitindo uma repressão mais eficaz como fruto da estruturação social que crescentemente se aperfeiçoava. Mesmo com o deslocamento do foco central do banditismo para o sertão, onde, mais tarde viria a receber o batismo de cangaço ou cangaceirismo, o banditismo do litoral evidentemente não iria desaparecer. A partir da primeira metade desse século, as evidências históricas demonstram que essa forma de criminalidade passa a se desenvolver no sertão nordestino em ritmo idêntico ao do litoral. No sertão viria o cangaço a se requintar notavelmente, pois fornecendo ao banditismo um nome próprio de valor regional, um tipo de homem vocacionado à aventura, um meio físico de relevo adequado à ocultação, coberto por malha vegetal quase impenetrável, e uma cultura francamente receptiva à violência, o sertão não poderia deixar de se converter no palco principal do cangaço. Principal mas não exclusivo (Mello, 2005, p. 95). Frederico de Mello (2005) afirma, de forma incisiva, ter havido certo exagero nas palavras de Graciliano Ramos quando diz do cangaço ser “fenômeno próprio da zona de indústria pastoril, no Nordeste”. Mello acha mais conveniente a concepção de Gustavo Barroso, para o qual “não somente nessas zonas sertanejas existem cangaceiros [...] os bandidos não são produtos exclusivos das terras brasileiras do Nordeste, [...] em todos os povos têm existido com denominações diversas” (Mello, 2005, p. 95). 47 Também para Câmara Cascudo ([197-?]), esta uniformidade universal do banditismo não passou despercebida, entendendo que “o cangaceiro não é um elemento do sertão” e sim uma figura que “existe em todos os países e regiões mais diversas" (Cascudo, [197-?], p. 42). O italiano Garofalo (1908), autor da obra Criminologia que também tratou do banditismo rural, considera-o um fenômeno universal. Aos estudos de Barroso, Cascudo e Garofalo, veio juntar-se o de Hobsbawm (1975) que, em seu livro “Bandidos”, reafirma a tese de universalidade: “geograficamente, o banditismo social se encontra em todas as Américas, na Europa, no mundo islâmico, na Ásia meridional e oriental, e até na Austrália” (Hobsbawm, 1975, p. 11-12). Apesar do que há de exato na fixação desse caráter universal do cangaceirismo e do processo de mitificação que sobre este vai se formando, invariavelmente, em decorrência da luta que envolve o nome dos mais bem sucedidos capitães, convém não esquecer o enorme papel do nosso sertão, com todas as contradições e peculiaridades da cultura pastoril, na formação da imagem que temos hoje do fenômeno cangaço. A imagem que ficou é cronologicamente a última. É a da década de 20 do século passado, com seu auge no ano de 1926. Esta é a imagem de um cangaço gigante, cangaço do mosquetão, tipicamente sertanejo e talvez a este tenha se referido Graciliano Ramos quando disse ser fenômeno próprio da nossa zona pastoril (Mello, 2005, p. 96-97). No começo dos anos 90 do século passado, aparece no sertãonordestino o bandido peito-largo, contratado para fazer arruaças: invadia casas e roças; dava 48 tiros para o ar; distribuía tapas; espancava pessoas; assustava e matava líderes camponeses, já que tinha a proteção dos homens poderosos da região. Como se vê, o crime foi o modo de se ‘construir’ o Brasil das classes dominantes. “Bandeirantes, barões e coronéis transformaram-se em heróis exemplares. Com a sedimentação do poder, seus herdeiros, para impor sua força, apelaram para o banditismo feito pelos deserdados sociais” (Chiavenato, 1990, p. 14). Para este autor, o banditismo de controle social é uma tática oficial, ou melhor, é uma prática do poder, outrora encoberta, de repressão popular. Esse pesquisador, dentro das próprias análises historiográficas sobre esse assunto, enfatiza o conceito de que o cangaço é um fenômeno derivado dos interesses do poder. E acrescenta que, do mesmo modo que a historiografia conservadora consagra seus heróis, mitificando-os, há os que, idealisticamente, contribuem para a construção de certos mitos populares. Um deles, pouco contestado e nunca sepultado, é de que o cangaço foi um movimento popular do sertanejo contra o sistema. Ao contrário, conforme se esboça na história dos bandidos populares, os cangaceiros foram estimulados e mantidos por grupo de latifundiários, para assegurar o domínio no campo e controlar a população sertaneja (Chiavenato, 1990). Ainda postula que uma das causas do aparecimento dos bandidos cangaceiros foi a grande seca que flagelou o Nordeste na segunda metade do século XIX, década de 1870, quando “os pastos secaram, o gado morreu, a água acabou. Sede e fome. Até o final desse século, as conseqüências dessa seca foram terríveis” (Chiavenato, 1990, p.15-16). Houve vários tumultos: invasões a vilas e fazendas, além de saques freqüentes a armazéns. Tudo isso favorece o surgimento de um 49 novo tipo de cangaço - o cangaço independente - no sentido de que já não estava mais atrelado a um único local e patrão, tinha a livre iniciativa de formar uma rede de relações e de influências em diferentes localidades. Os indivíduos que participavam desse novo tipo de cangaço possuíam uma vida errante: realizavam saques, pilhagens, seqüestros e puniam, até com a morte, a quem os considerasse inimigos. No entanto, não romperam com certas relações, consideradas essenciais para a manutenção do cangaço, como, por exemplo, os vínculos de aliança com poderosos chefes de parentelas, governantes locais e até mesmo com coronéis. Essas relações carregavam um forte código de confiança e fidelidade, podendo chegar a extremos, como bem ressalta a socióloga Maria Isaura Ferreira de Queiroz (1987), “pressupunham contratos tácitos de auxílio mútuo, nas mais diversas circunstâncias contratos que se estabeleciam entre iguais. Qualquer deslize no relacionamento ‘traição abominável’ e os aliados da véspera passavam a inimigos mortais” (Queiroz, l987, ´p. 33). Sendo assim, por um simples mal entendido, uma amizade de anos poderia converter-se em conflitos que provavelmente custariam vidas. A revolta dos sertanejos também induz ao crime os menos conformados com a situação de injustiça. Tratava-se de uma revolta espontânea, sem consciência social, os grupos rebeldes não tinham nenhum projeto político e partiam para o crime de maneira desenfreada: assaltando e matando, sobretudo, os mais fracos. Os cangaceiros eram perigosos, não só para as suas vítimas, mas também para a estrutura falida do sertão nordestino. Precisavam usar de toda a astúcia para sobreviver, já que lutavam pela mera sobrevivência. Sem produzir, vivendo do roubo numa sociedade muito pobre, precisavam aliar-se ao mais forte. Para isso, 50 dependiam do coiteiro que os escondia e os abastecia de alimento e armas e que era preposto dos coronéis. Com essa aliança, o cangaço transformou-se de revolta espontânea em banditismo de controle social. Para Chiavenato [...] essa aliança não só foi possível como fatal. O cangaço não representava uma verdadeira ameaça ao latifúndio: os cangaceiros não pretendiam a terra, não lutavam pela igualdade social. Eram rebeldes que buscavam no crime uma sobrevivência mais fácil, impossível pelo trabalho. Não tinham reivindicações políticas nem sociais. Disputavam um espaço para cometer seus atropelos. Eram a opção racional, se é que se pode usar essa palavra para o latifúndio ameaçado pela miséria do povo (Chiavenato, 1990, p. 17). Este pesquisador fundamenta sua obra, apontando, de maneira incisiva, o estreito vínculo de aliança que permeava as relações entre cangaço e coronéis, utilizando o caso do grupo de Lampião. Procura denunciar o fato de o grupo de bandidos ser uma espécie de mecanismo de manutenção do controle social no sertão nordestino. O próprio título com que seu livro foi batizado (Cangaço: a força do coronel) deixa bastante às claras sua opinião de que sem o apoio dos coronéis e seus subordinados, os coiteiros, o cangaço não teria razão de ser, da mesma forma que sua aniquilação foi conseqüências de sua não-utilidade para a nova ordem política e social que se consolidou entre as décadas de 30 e 40 do século passado. Procura, ao longo de seu trabalho, mostrar que o cangaço, de maneira geral, sempre esteve harmonizado com a dominação local. O coronelismo, na verdade, “teve um importante papel para a origem e manutenção do fenômeno cangaço, não podemos negar, o problema é termos o devido cuidado para não cair no reducionismo” (Queiroz, 1987, p 14). 51 Os cangaceiros, em sua origem, estavam a serviço das famílias, empregados de contrato, encarregados pela segurança da propriedade e para cuidar de seus bens. Normalmente ficavam sediados nas fazendas e estavam subordinados a um chefe local ou a um poderoso patriarca. Por outro lado, não há como absolutizar tal afirmativa, já que Antônio Silvino, que é considerado o primeiro grande líder do cangaço, não admitia subordinação aos chefes locais, entrando algumas vezes em conflitos direto com eles. Por tal comportamento, pagou um preço alto, visto que, por ocasião de sua prisão, faltou alguém que intercedesse a seu favor. Mas, em se tratando de Lampião, de acordo com Alcino Costa (1994), na sua obra, Lampião além da versão: mentiras e mistérios de Angico, é coerente afirmar a existência desse estreito vínculo, porém sem reduzi-lo a uma pessoa sem autonomia de atitudes, pois, na opinião deste memorialista, estar ao lado dos poderosos não seria um defeito, mas uma estratégia sagaz de sobrevivência, e longa, haja vista a duração de seu bando ter sido, mais ou menos, de dezesseis anos. Para ele, cangaço e cangaceiros, na verdade, são frutos de uma época, a do “mandão”, das grotescas injustiças, onde a grande e respeitada lei era a do coronel. Ainda, na opinião desse autor, “foram gerados pelo esperma da força e do poder incontrolável do coronel, fecundados no óvulo altamente fértil da pobreza, carência e injustiça social daqueles atrasados tempos, foram as fêmeas que pariram esses deserdados da sorte” (Costa, 1994, p. 22). Os autores que estudam o cangaço, mais especificamente o grupo de Lampião, convergem no aspecto de que suas redes de alianças estendiam-se também aos poderes políticos legitimamente oficiais e não somente aos coronéis. No entanto, é 52 bom lembrar-se de que várias vezes tais figuras fundiam-se e confundiam-se nesta cultura política regida pelo cabresto e pelo curral eleitoral. Em algumas localidades do Nordeste, Lampião era muito bem acolhido. Em Sergipe, merece destaque sua fiel amizade com o governador e interventor federal Eronildes de Carvalho. “Estado e cangaço são as relações que Lampião estabelece com o então governo de Sergipe” (Chiavenato, 1990, p. 46). Lampião conheceu Eronildes de Carvalho na fazenda de seu pai, o coronel Antônio Brito, seu antigo coiteiro. Segundo Chiavenato,
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