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A Construção da Memória Discursiva sobre Lampião

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GERALDA DE OLIVEIRA SANTOS LIMA 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
O REI DO CANGAÇO, O GOVERNADOR DO SERTÃO; O BANDIDO OUSADO 
DO SERTÃO, O CANGACEIRO MALVADO: PROCESSOS REFERENC IAIS NA 
CONSTRUÇÃO DA MEMÓRIA DISCURSIVA SOBRE LAMPIÃO. 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
Campinas, São Paulo 
2008 
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Geralda de Oliveira Santos Lima 
 
 
 
 
 
 
O REI DO CANGAÇO, O GOVERNADOR DO SERTÃO; O BANDIDO OUSADO 
DO SERTÃO, O CANGACEIRO MALVADO: PROCESSOS REFERENC IAIS NA 
CONSTRUÇÃO DA MEMÓRIA DISCURSIVA SOBRE LAMPIÃO. 
 
 
 
 
 
 
Tese apresentada ao Doutorado em Lingüística 
do Departamento de Lingüística do Instituto de 
Estudos da Linguagem da Universidade 
Estadual de Campinas como requisito parcial 
para a obtenção do título de Doutora em 
Lingüística, área de Lingüística Textual, sob a 
orientação da Profa. Dra. Anna Christina 
Bentes da Silva 
 
 
 
 
 
Campinas, São Paulo 
2008 
 
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Ficha catalográfica elaborada pela Biblioteca do IE L - Unicamp 
 
 
 
L628r 
 
 Lima, Geralda. 
O rei do cangaço, o governador do sertão, o bandido ousado do 
sertão, o cangaceiro malvado: processos referenciais na construção da 
memória discursiva sobre Lampião / Geralda de Oliveira Santos Lima. 
-- Campinas, SP : [s.n.], 2008. 
 
Orientador : Anna Christina Bentes da Silva. 
Tese (doutorado) - Universidade Estadual de Campinas, Instituto 
de Estudos da Linguagem. 
 
1. Lampião, 1898-1938. 2. Referenciação. 3. Objetos de discurso. 
4. Memória discursiva. 5. Sergipe, Sertão de. I. Bentes, Anna. II. 
Universidade Estadual de Campinas. Instituto de Estudos da 
Linguagem. III. Título. 
 
 
oe/iel 
 
 
Título em inglês: Cangaço’s king, hinterland’s chief, hinterland’s daring bandit, the bad 
bandoleer: processes benchmarks in the construction of social memory on Lampião. 
Palavras-chaves em inglês (Keywords): Lampião, 1898-1938; Referentiation; Objects of 
discourse; Discursive memory; Sergipe, Hinterland of. 
Área de concentração: Lingüística. 
Titulação: Doutor em Lingüística. 
Banca examinadora: Profa. Dra. Anna Christina Bentes da Silva (orientadora), Profa. Dra. 
Ingedore Grunfeld Villaça Koch, Profa. Dra. Clélia Cândida Abreu Spinardi Jubran, Profa. 
Dra. Vanda Maria da Silva Elias e Profa. Dra. Mônica Magalhães Cavalcante. 
Data da defesa: 26/02/2008. 
Programa de Pós-Graduação: Programa de Pós-Graduação em Lingüística. 
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Geralda de Oliveira Santos Lima 
 
 REI DO CANGAÇO, O GOVERNADOR DO SERTÃO; O BANDIDO OUSADO DO 
SERTÃO, O CANGACEIRO MALVADO: PROCESSOS REFERENCIAI S NA 
CONSTRUÇÃO DA MEMÓRIA DISCURSIVA SOBRE LAMPIÃO. 
 
Campinas, SP, 26 de fevereiro de 2008. 
 
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à Anna Bentes, minha orientadora, 
a Justino, meu marido, 
a Flávio e Fúlvio, meus filhos. 
 
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AGRADECIMENTOS 
 
À Anna Christina Bentes, pelas orientações dadas que possibilitaram a 
realização desta pesquisa; fazendo sugestões valiosas ao longo do processo de 
elaboração desta investigação; estimulando-me constantemente. Só tenho a 
agradecer-lhe pela amizade, pelo apoio e, acima de tudo, pela gentileza, firmeza e 
boa vontade, características que lhe são tão naturais. Anna, mais que uma 
orientadora, foi uma grande incentivadora. Enfim, sabe exercer com competência a 
difícil arte da orientação. 
A todos os cidadãos de Poço Redondo e Nossa Senhora da Glória pelo 
acolhimento que tiveram comigo em seus lares, e pelas valiosas informações, para 
esta pesquisa, dadas nos seus depoimentos: ABM, AAA, ES, EC, ES, JFO, JPS, 
JAS, JAO, MGG, MVA, MA e REC. 
A duas pessoas que, mais que depoentes, fizeram-se amigas. Colocaram-se 
a minha disposição, sempre que eu ia a Poço Redondo: o escritor Alcindo Costa e o 
professor Beto. Este me acompanhou durante a pesquisa, apresentando-me a 
depoentes, abrindo caminhos para a confecção deste trabalho. 
 Às professoras que constituíram a banca de qualificação: Ingedore Grünfeld 
Villaça Koch e Vanda Maria Elias, pelas suas críticas e sugestões enriquecedoras. 
À Vilma e Luana, minhas parceiras, pela contribuição que deram à pesquisa, 
nas idas e vindas aos recantos de Poço Redondo e Nossa Senhora da Glória, na 
busca de informações. 
 A Justino, especialmente pelo carinho, dedicação, paciência e apoio em 
todos os momentos que me ajudaram a trilhar o caminho de pesquisadora, por isso 
e muito mais, somente tenho a agradecer-lhe. 
 A meus dois queridos e amados filhos, Flávio e Fúlvio, que souberam sempre 
se fazer presentes através do carinho e incentivo, dando-me forças para continuar a 
caminhada. 
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A meus queridos pais, Gerino e Maria José pelo carinho. 
A meus irmãos, de modo muito especial, a Wellington que sempre se 
preocupou em saber como andava esta pesquisa; que sempre soube ser um grande 
amigo e incentivador durante todo este percurso. 
À Universidade Federal de Sergipe, pela oportunidade concedida. 
 
 
 
 
 
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SUMÁRIO 
 
INTRODUÇÃO....................................................................................................... 12 
CAPÍTULO 1 - CONTEXTUALIZAÇÃO DO CANGAÇO...........................................28 
1.1 Coronelísmo........................................................................................................32 
1.2 Outros personagens desse contexto sócio-político: os cangaceirosd e as 
volantes.............................................................................................................. 38 
1.3 Banditismo e Cangaço....................................................................................... 42 
CAPÍTULO 2 - LAMPIÃO SOB OS OLHARES DOS ESPECIALISTAS ................. 57 
2.1 Virgulino Ferreira da Silva........................................................................................... 57 
2.2 Virgulino entra no cangaço, nasce Lampião............................................................ 64 
2.3 Trajetória de Lampião........................................................................................ 83 
CAPÍTULO 3 – CONSIDERAÇÕES SOBRE O PROBLEMA DA MEMÓRIA SOCIAL: 
PERSPECTIVAS HISTORIOGRÁFICAS E SOCIOCOGNITIVAS 95 
3.1 Memória na visão de Halbwachs..................................................................... 99 
3.2 Modelos de memória: a perspectiva sociocognitiva........................................ 108 
3.3 Uma breve apresentação dos embates da memória social sobre o cangaço na 
região do semi-árido do sertão sergipano...................................................... 120 
CAPÍTULO 4 - A QUESTÃO DA REFERENCIAÇÃO ......................................... 137 
CAPÍTULO 5 – BREVES CONSIDERAÇÕES SOBRE O AMBIENTE DE PESQUISA 
E A COLETA DE DADOS................................................................................ 160 
5.1 O ambiente da pesquisa.................................................................................. 160 
5.1 A coleta de dados........................................................................................... 163 
CAPÍTULO 6 - LAMPIÃO SOB OS OLHARES DO POVO.................................. 172 
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6.1 A construção discursiva da figura de Lampião: os olhares positiivos. ........172 
6.2 A construção discursiva da figura de Lampião: os olhares negativos........ 209 
6.3 A construção discursiva de Lampião: olhares opostos e olhares híbriidos.. 224 
6.4 Outros personagens do cangaço: as volantes............................................... 227 
CONSIDERAÇÕES FINAIS................................................................................... 232 
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS...................................................................... 240 
APÊNDICE – Transcrições das fitas..................................................................... 250 
 
 
 
 
 10
RESUMO 
 
Opresente trabalho aborda a questão da referenciação na construção e 
reconstrução da memória discursiva (e social) sobre Lampião, personagem da 
história do nordeste brasileiro. A escolha do tema foi baseada na riqueza de fatos 
contados e recontados sobre o cangaceiro. Esta investigação diz respeito ao uso de 
processos referenciais no interior de fontes orais. Propõe-se, pois, a analisar como 
se constrói e se reconstrói a memória discursiva do rei do cangaço via cadeias 
referenciais produzidas pelos sujeitos investigados acerca da figura desse herói do 
sertão nordestino e, também, de outros personagens que orbitam em torno de tal 
referente. Como hipótese, apresenta-se o fato de que as atividades de referenciação 
desenvolvidas pelos sujeitos do discurso, nas suas práticas sociais, não só 
possibilitam a (re)construção dos acontecimentos passados, mas também 
condensam uma multiplicidade de informações e de pontos de vista sobre tal mito. O 
corpus do trabalho que se constitui de 15 entrevistas realizadas com moradores dos 
municípios de Poço Redondo e de Nossa Senhora da Glória, na região do semi-
árido de Sergipe, consolida um conjunto de testemunhos que revela a autovisão do 
homem sertanejo. Na fundamentação teórica considera-se a articulação entre 
concepções de linguagem, de memória e de historia, enfocando, sobretudo, o 
fenômeno do cangaço: Lampião. Analisam-se algumas cadeias de expressões 
nominais (definidas e indefinidas), mostrando como esquemas coerentes de 
produção e de interpretação dos fatos ocorrem no interior dos depoimentos dos 
sujeitos. Verifica-se, portanto, que a rememoração de acontecimentos passados 
constrói e reconstrói a imagem mítica desse personagem da nossa história, a partir 
do uso de um conjunto de estratégias de referenciação, que constitui uma cadeia 
coesiva que retoma outras cadeias referenciais enunciadas por outros sujeitos, em 
outros lugares e tempos. 
 
Palavras-Chave: Lampião (1898-1938); referenciação; objetos-de-discurso; memória 
discursiva; sertão de Sergipe. 
 
 
 11
 
 
 
 
ABSTRACT 
 
 
This article discusses the procedures for referral to (re) construction of social memory 
(and discursive) on Lampião, character from Northeastern Brazil. The choice of 
theme was based on the wealth of facts and to tell again counted on the bandoleer. 
This research concerning procedures for referral within the oral sources. The 
research aims to identify and analyse chains benchmarks produced by subjects 
investigated on the figure of Lampião and events occurring that time, and also the 
other characters that orbit around it. As hypothesis is the fact that the activities of 
reference developed by subjects in their social practices, not only enable the (re) 
construction of past events, but also the condensation of a large amount of 
information and views, by the expressions benchmarks, related to that myth. The 
corpus of work is constituted of 15 open interviews, conducted with residents of 
municipalities Well Redondo and Our Lady of Glory, in the semi-arid region of 
Sergipe, consolidating a number of testimonies that reveal the man's self vision 
inlander. In the theoretical foundation is considered a link between concepts of 
language and memory mainly the phenomenon of cangaço. It examines the 
expressions benchmarks as diagrams showing consistent production and 
interpretation of facts about Lampião occur within the depositions. It follows that the 
remembrance of past events builds and reconstructs the image of that mythical 
character of our history from a set of strategies for referral mobilised, which is a 
cohesive chain which incorporates other chains benchmarks set out by other subjects 
in other places and time. 
 
Keywords : Lampião, 1898-1938; Referentiation; Objects of discourse; Discursive 
memory; Sergipe, Hinterland of. 
 
 
 
 12
INTRODUÇÃO 
A rememoração de alguns fatos que retratam a saga de Lampião, a construção 
e veiculação de memórias a seu respeito, entendida à luz de uma articulação entre 
teorias sociais, históricas e lingüísticas, é o material desta pesquisa. O interesse por 
esta temática deriva de uma motivação pessoal: demonstração de reconhecimento 
de nossas origens. Crescemos ouvindo muitas histórias impressionantes sobre “o 
bandido mais ousado do sertão”, o que se constituiu em fator decisivo para a nossa 
tomada de decisão quanto ao trabalho com fontes orais, com falantes que nos 
proporcionaram preciosas informações. 
Sobrepondo-se ao interesse pelo estudo da memória, justifica-se a escolha do 
tema à oportunidade que tivemos de cursar, no primeiro ano de Doutorado a 
disciplina Tópicos de Lingüística Textual, com a professora Ingedore Koch. A partir 
das discussões semanais, descobrimos a importância e o valor dos estudos sobre as 
atividades referenciais. É, sem dúvida, a questão da referência um dos temas mais 
instigantes, palpitantes e apaixonantes quando se trata de analisar atividades 
discursivas, como nos têm mostrado lingüistas, filósofos, sociólogos, psicólogos. 
Tais estudiosos, preocupados com aspectos externos, sociais e históricos da 
linguagem, passam a adotar em suas investigações abordagens sociocognitivas e 
interacionistas no entendimento da relação entre linguagem e mundo. 
À luz dessas pesquisas, desenvolvemos este trabalho que pretende dar uma 
pequena contribuição para o campo dos estudos da referenciação no Brasil, 
levando-se em consideração justamente a relação entre a conservação da memória 
social e a construção de processos referenciais. Ao Examinar estudos de 
 13
pesquisadores brasileiros sobre a referenciação, verifica-se que pouco se tem 
explorado este viés teórico que se situa na interface entre a Sociologia e a 
Lingüística, sobretudo, no que diz respeito às atividades referenciais de sujeitos em 
relação aos processos de construção e reconstrução da memória social. Assim, a 
consulta a fontes especializadas sobre o fenômeno do cangaço e a articulação entre 
concepções de linguagem e de memória constituem o alicerce teórico desta 
investigação. Quanto ao corpus do trabalho, trata-se de um conjunto de 
testemunhos que revelam a autovisão do homem sertanejo. 
Ao longo do século XIX, mais precisamente na sua segunda metade, o que se 
vê na vida social do sertanejo do Nordeste do Brasil é a criminalização do viver pelas 
armas, nos planos jurídico, histórico, sociológico e econômico. Data daí o uso das 
expressões “cangaço” e “cangaceiro”, tempo em que a lei e as autoridades não eram 
respeitadas nas terras do sertão do Brasil; tempos em que a guerra e a vingança 
privadas eram práticas importantes de uma ordem um tanto bárbara, mas real, tendo 
o cangaço se tornado uma forma de vida criminal orgulhosa, ostensiva, 
escancarada. Dessa forma, a criminalidade (Mello, 2005) deve ser vista, antes de 
tudo, como geradora de uma subcultura dentro da cultura sertaneja. A quantidade de 
informações sobre o universo do cangaço permite aos estudiosos do fenômeno 
elucidações e reconstruções históricas bastante preciosas sobre atitudes e ações, 
entre tantos outros aspectos, da vida dos cangaceiros, e, especialmente, da vida de 
Lampião. 
 Pode-se dizer que uma parcela da população sertaneja abonava o cangaço e 
que muitos torciam pela vitória dos cangaceiros com quem simpatizavam. Os mais 
 14
famosos do cangaço, como Lampião, eram exaltados através dos versos dos 
cantadores de feira, embaladores e cegos rabequistas, todos dispostos a cantar a 
última façanha de guerra do grupo de sua preferência, particularmente, do de 
Lampião. Também, a literatura de cordel se encarregou dessa celebração. 
O nosso interesse em investigar esta temática surgiu ao ministrar a disciplina 
Morfossintaxe da Língua Portuguesa no Projeto de Qualificação de Professores 
(PQD), desenvolvido pela Universidade Federal de Sergipe (UFS), no município de 
Nossa Senhora da Glória, em Sergipe,em 2001. Durante o curso desenvolvemos 
uma pesquisa que resultou na construção de um corpus do português rural falado 
com informantes desse município. Nas entrevistas, vários temas foram abordados, 
como educação, cultura, política, religião. Os temas eram escolhidos pelos próprios 
informantes que falavam daquilo que mais lhes interessasse. Ao analisar tal corpus, 
o tema que mais nos chamou a atenção dentre aqueles abordados pelos sujeitos 
pesquisados sobre o português rural falado foi a ligação da história dos municípios 
de Nossa Senhora da Glória e, especificamente, a do município de Poço Redondo, 
Sergipe, de onde eram oriundos alguns alunos, com o fenômeno do cangaço no 
nordeste. 
Outro fato instigante foi que naquela pesquisa revelou-se o “social nas 
lembranças individuais” (cf, Halbwachs, 1990), ou seja, o fato de que quase todos os 
sujeitos da pesquisa (do português rural falado), ao elegerem o tema sobre o qual 
iriam falar, escolheram justamente o tema do cangaço, e, conseqüentemente, as 
histórias sobre Lampião. Durante as entrevistas, as pessoas faziam relatos 
interessantes de suas vidas, glórias e decepções, mas, em particular, falavam muito 
 15
sobre o cangaceiro Virgulino Ferreira da Silva – Lampião, que teria freqüentado a 
região do sertão de Sergipe, durante mais ou menos dez anos, no período que se 
estende do ano de 1928 ao de 1938, ao ser morto na Grota do Angico, no município 
de Poço Redondo. 
Nos seus discursos, afirmavam que ali ainda havia pessoas que conviveram 
com o “rei do cangaço, o soberano dos sertões” e com seu bando. Tudo isso nos 
trazia lembranças de muitas histórias que ouvimos contar sobre esse personagem 
da nossa história sertaneja. E agora, como aluna do curso de doutorado em 
Lingüística na Universidade de Campinas (Unicamp), essas recordações ou 
lembranças se avivaram, tendo em vista a pertinência de um estudo lingüístico sobre 
o tema. A partir daí, houve a decisão de trabalhar com depoimentos de sujeitos 
sobre a saga de Lampião e, com esse objetivo em mente, construímos o corpus que 
possibilita a investigação de como se constrói e se reconstrói a memória social do 
mito do cangaço. 
Dessa forma, o presente trabalho propõe-se a investigar o emprego dos 
processos de referenciação no interior dos depoimentos, histórias contadas e 
recontadas sobre Lampião, de informantes da comunidade do sertão de Sergipe. Em 
particular, de cidadãos dos municípios de Poço Redondo e Nossa Senhora da 
Glória, os quais se empenharam em participar de uma rememoração sobre o 
fenômeno do cangaço, relatando e dando suas opiniões e interpretações. 
Assim, ficou definido o objetivo deste trabalho: analisar a construção e 
reconstrução da memória social e discursiva sobre Lampião, no interior dos 
depoimentos dos sujeitos, via uso de processos de referenciação que articulam 
 16
diferentes pontos de vista sobre esse famoso personagem da história do sertão 
brasileiro. E, para comprovação desta pesquisa, foi levantada a hipótese de que é 
por meio da cadeia de referências que os sujeitos investigados produzem pontos de 
cristalização necessários para a conservação de lembranças comuns na sociedade. 
O nosso estudo parte, portanto, do pressuposto de que a referenciação é uma 
atividade discursiva (Koch, 2003, 1999; Koch; Marcuschi, 1998; Mondada; Dubois, 
1995) e de que a memória coletiva é uma realidade social transmitida pelas práticas 
discursivas dos grupos sociais. Assim, para Nora (998), a memória coletiva 
recompõe o passado de um determinado grupo social por meio de “pontos de 
cristalização” ou através da construção de modelos de relação entre a história e a 
memória. No que diz respeito aos processos de referenciação, Koch (2004), postula 
que são escolhas do próprio sujeito do discurso em função de um querer dizer, e os 
objetos-de-discurso não se confundem com a realidade extralingüística, mas a 
constroem e reconstroem interativamente. 
A nossa proposta de investigar como se processa a construção e a 
reconstrução da memória discursiva sobre Lampião, por meio das expressões 
referenciais que aparecem nos depoimentos das histórias contadas e recontadas 
pelos sujeitos entrevistados, é apresentada em seis capítulos. Pode-se dizer, 
inicialmente, que os depoimentos que compõem o corpus foram construídos em 
lugares de memória das duas comunidades investigadas. 
No capítulo 1, intitulado “Contextualização do cangaço” são levantados alguns 
aspectos históricos e sociais para o entendimento da temática pesquisada, 
contextualizando-se o ambiente em que Lampião, enquanto bandido-cangaceiro, foi 
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produzido. Este capítulo encontra-se fundamentado nas teorizações e análises mais 
gerais sobre o tema do banditismo (Hobsbawn, 1975, 1978; Chiavenato, 1990) e em 
análises específicas do ponto de vista histórico e social sobre a questão do cangaço 
no nordeste: Chandler (1980), Maciel (1992), Mello (2005), Queiroz (1987), Dantas 
(1987), Janotti (1981), Leal (1975), Martins (1981), Cintra (1974), Ferreira e Amaury 
(1997), Sousa (1994), Costa (1994), Lira (l990). De modo geral, enfatiza-se o fato de 
que o cangaço é um fenômeno derivado dos interesses dos poderes locais e 
regionais e que sempre esteve harmonizado com a dominação local. Mas há 
também a concepção de que o cangaço foi um movimento popular do sertanejo 
contra o sistema, sendo um produto da conjuntura social nos sertões do Nordeste, 
provocado pela injustiça da natureza. 
Destaca-se nessa estrutura social não apenas a figura do coronel, proprietário 
de grandes extensões de terra, que persistia como principal fator da sociedade dos 
sertões, mas também a figura do coiteiro, indivíduo que prestava diversos tipos de 
serviços a Lampião. Havia, também, em oposição aos coiteiros, as volantes, forças 
do governo que, em diligência, saiam à procura dos cangaceiros, principalmente, de 
Lampião. Em termos de padrão de vida, essa sociedade continuava a ser dominada 
pelos poucos que possuíam grandes propriedades. Um sistema que preservou 
desigualdades sociais e práticas de exploração, em um meio social sujeito à 
inclemência do clima árido e, conseqüentemente, apresentando um contexto 
econômico difícil, que possibilitava com maior força a manutenção das estruturas de 
dominação. Ainda neste capítulo mostramos que os bandidos cangaceiros 
apareceram devido à grande seca que flagelou o Nordeste na segunda metade do 
 18
século XIX, precisamente na década de 1870, quando houve vários tumultos 
populares com invasões e saques a vilas e fazendas. Os líderes cangaceiros sempre 
buscaram estabelecer relações em bases sólidas com quantos fosse possível: 
políticos, policiais, comerciantes, fazendeiros, já que disto precisavam para 
manutenção do estilo de vida do cangaço. 
O capítulo 2, intitulado “ Lampião sob os olhares de especialistas”, fundamenta-
se em estudiosos como Ferreira e Amaury (1997), Maciel (1992, 1988), Carvalho 
(1974), Barros (2000), Queiroz (1987), Gueiros (1953), Chandler (1980), Mello 
(2005), Fontes (1998, 2001), Conrado (1983), Costa (1994), Souza (1994) e Souza 
(1997), que investigaram os fatos e acontecimentos ocorridos durante o período da 
saga lampiônica. Ao longo deste capítulo, procuramos entender, por meio das 
reflexões desses estudiosos, como e por que Lampião se tornou o mais importante e 
o mais famoso de todos os cangaceiros, tornando-se conhecido não apenas no 
Brasil, como também no exterior, como é o caso da matéria publicada (Chandler, 
1980) a seu respeito no jornal norte-americano The New Yotk Times. Lampião era 
de uma família humilde, proprietária de pequeno sítio, situado entre os latifundiários 
e a massa de lavradores sem terra. Como almocreve, desempenhou papel 
importante na sociedade, pois transportava não apenas bens materiais, mas também 
idéias, notícias do mundo para o povo do sertão nordestino. Sempre acompanhava o 
pai nesse trabalhofascinante e de grande responsabilidade (Sousa, 1994). De 
“rapaz extraordinário”, que fora antes do cangaço, passou a ser um dos mais 
respeitados cangaceiros da época. Sua entrada para o crime ocorreu ainda na 
 19
adolescência, quando juntamente com alguns irmãos, entrou em disputa com um 
vizinho e sua família, supostamente, devido a pequenos furtos e insultos. 
Já a vida de cangaceiro começa, mas, oficialmente, só ao ingressar no grupo 
do Sinhô Pereira, um dos mais respeitados cangaceiros da época. Este, ao decidir 
deixar a atividade de cangaceiro, em 1922, não hesitou em nomear Lampião como o 
seu sucessor, pois para o Sinhô Pereira, Lampião, era o mais inteligente, o mais 
hábil e o mais esperto de todos os cangaceiros. Sempre foi um homem diferente dos 
outros; “já nasceu aprendido”; atirava bem e como que adivinhava ou pressentia o 
perigo iminente e, àquela época, ele contava com apenas 25 anos de idade. Esse 
acontecimento representava mais um dos instantes capitais na vida de Lampião. A 
atividade de almocreve lhe permitiu conhecer as futuras ‘estradas do cangaço’, ao 
mesmo tempo em que estabelecia relações de conhecimento e amizade, ia 
construindo o cenário no qual posteriormente viria a atuar, não mais como o cidadão 
Virgulino, mas como, o bandido-cangaceiro, Lampião. Criou fama de inteligente, 
astuto, corajoso, cauteloso, planejador, meticuloso, atributos que garantiram sua 
sobrevivência a um cerco permanente que começou em 1916 e se estendeu até 
1938. Passou ao comando do cangaço no ano de 1922 e ficou neste posto até 1938, 
ano da sua morte, emboscado na Grota do Angico, em Poço Redondo, Sergipe. 
O período em que Lampião esteve no comando do cangaço é considerado 
como “o ciclo mítico do cangaço nordestino”, revelado em diversos tipos de 
manifestação artística que mantêm vivo o mito lampiônico na mente da população, 
como foi possível observar. Como se vê, o cangaço é um terreno “privilegiado do 
imaginário social”, na medida em que há um leque de representações, a partir do 
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desdobramento de um mesmo símbolo. Dentro dessa perspectiva, o cangaceiro 
Lampião é visto como uma figura complexa, contraditória, associada a “múltiplas 
representações que vão do bandido sanguinário ao bandido social, do justiceiro ao 
mau-caráter sem escrúpulos, do herói ao bandido”. Diante dessa visão, criam-se 
pontos de vista que o constrói como um mito de muitas faces, entre as quais a de 
político-militar. Lampião foi antes de qualquer coisa um sujeito político, soube 
construir sua imagem de forma mitológica. O imaginário de herói e bandido se 
confunde nas suas aparições diante a população. 
No capítulo 3, intitulado “Considerações sobre o problema da memória social: 
perspectivas historiográficas e sociocognitivas”, abordamos, na primeira parte, a 
questão da memória de acordo com a visão de sociólogos e historiadores, como 
Halbwachs (1990), dentre outros. Para ele, um dos aspectos mais instigantes dos 
níveis sociais é o da construção social da memória. Essa reconstrução de 
acontecimentos passados que ainda estão vivos na memória coletiva do grupo 
opera-se na memória do indivíduo através de pensamentos contínuos que fizeram e 
continuam fazendo parte da vida social desse mesmo grupo em cuja memória as 
lembranças são cristalizadas. A reconstituição dessa memória social depende do 
relacionamento do indivíduo com outros grupos sociais com os quais convive. Essas 
lembranças são reconstruções das experiências vividas no passado pelo grupo, que 
se manifestam no presente através de conversas, relatos e depoimentos. A memória 
é, portanto, entendida, aqui, como um dos pólos de fixação mais significativos no 
interior do qual são reconstruídos os acontecimentos experimentados pela 
sociedade. Neste sentido, a memória surge da união de um grupo social e sua 
 21
natureza é múltipla, além de ser pluralizada e, ao mesmo tempo, individualizada. A 
de esse respeito, a obra de Halbwachs (1990) tem sido tomada como o principal 
ponto de partida, de muitos estudiosos, para refletir sobre a questão da memória 
coletiva no discurso histórico, na atualidade. 
Na segunda parte desse capítulo, apresentamos teorias de base sociocognitiva 
que procuram dar conta do problema da memória discursiva. Fundamentam-se em 
estudiosos como Koch (2003), Van Dijk, (2004), Koch; Cunha-Lima, (2005), 
Marcuschi; Koch (1998), Mondada; Dubois ([1995] 2003), Berrendonner (1994), 
Mondada (1994). Nessa abordagem, a linguagem não se realiza fora dos sujeitos 
sociais e dos eventos discursivos, visto que a construção e entendimento do 
discurso dependem sempre do conhecimento partilhado pelos sujeitos. Por isso, os 
modelos de discurso são estruturas complexas (Koch, 2003) que representam as 
experiências que o indivíduo vivencia na comunidade e que servem de base a 
“processos conceituais”. Esses modelos são, portanto, representações dinâmicas 
dessas experiências pessoais, construídos na/pela memória social do grupo. Tais 
modelos desempenham papel importante na construção não só de modelos 
pessoais novos, mas também na atualização dos velhos (Van Dijk, 2004), 
construídos por ocasião de episódios também anteriores. À luz do exposto, prioriza-
se a perspectiva que postula a linguagem como atividade sociocognitiva em que a 
cultura e a experiência interagem na reconstrução de objetos-de-discurso. Para 
esses autores, a noção de memória “publicamente” partilhada pode ter várias 
formulações em diferentes perspectivas teóricas. 
 22
Ainda no capítulo 3, mostramos uma breve apresentação dos embates da 
memória social sobre o cangaço na região do semi-árido do sertão de Sergipe, onde 
as lembranças do tempo do cangaço estão depositadas, por conta da presença do 
bando de Lampião nessa localidade. A (re)construção discursiva dos 
acontecimentos passados, relativos a este cangaceiro, mostra que os fatos 
históricos continuam presentes na memória social do grupo ou na memória vivida 
em torno da história do lugar, em que a figura de Lampião é vista como um símbolo 
contraditório. Isso se constata a partir dessa (re)construção de sua imagem positiva 
e/ou negativa por meio do emprego das expressões referenciais, ( um homem bom, 
um homem de palavra e/ou um homem mau, um criminoso, respectivamente), 
extraídas de fragmentos dos depoimentos dos sujeitos da pesquisa. São essas 
múltiplas e diversificadas interpretações sobre Lampião que o transformam em uma 
figura mítica. Halbwachs (1990) enfatiza a importância da conservação dessas 
lembranças comuns a todo o grupo social e a sua influência sobre a vida da 
sociedade. Portanto, essa memória discursiva é construída, mantida, e modificada 
(Koch, 2003) no curso das práticas interativas dos sujeitos e os diferentes grupos 
sociais, práticas estas que contribuem para a cristalização da memória local. 
 No capítulo 4, intitulado “A questão da referenciação”, apresenta-se a 
concepção de língua como uma atividade sociocognitiva, o que significa dizer que os 
sentidos produzidos nas/pelas práticas de linguagem não estão nos textos, nos 
enunciados produzidos, mas são gerados a partir deles por meio da interação entre 
os interlocutores. Por isso, é relevante dizer que, segundo Koch e Marcuschi (1998), 
a referência a entidades do mundo fenomênico não está pronta, mas é construída no 
 23
processo de designação, na relação co(n)textual. Neste sentido, a referenciação, na 
concepção de Mondada e Dubois ([1995] 2003), é uma atividade discursiva de tal 
modo que os referentes do discurso não são dados apriorísticos do mundo 
ontológico, mas objetos-de-discurso. 
Baseando-nos em orientações de ordem sócio-interacionista que compreendem 
a produção discursiva como uma atividade para a qual convergem substancialmente 
fatores de ordem lingüística, sócio-interacional e cognitiva, analisam-se expressões 
referenciais definidas e indefinidas. Para isso, consideram-se ostrabalhos de 
Apothéloz (2003), Dubois e Mondada (2003), Mondada (2005), Conte (2003), 
Francis (2003), Apothéloz e Chanet (2003), Koch e Marcuschi (l998), Koch (1999, 
2000, 2001, 2002, 2003, 2005, 2006), Marcuschi (2002, 2005, 2007). As expressões 
referenciais, formas lingüísticas, permitem constatar a grande complexidade na 
produção de um texto, interativamente, construído ou reconstruído pelo sujeito do 
discurso, nas práticas sociais (Koch, 2002). O uso dessas formas nominais implica 
sempre uma multiplicidade de escolhas, dentre as propriedades capazes de 
caracterizar o referente. Escolha esta que será feita, em cada contexto, em função 
do projeto de dizer do sujeito do discurso. Aqui, neste capítulo, observa-se também a 
questão do encapsulamento anafórico, que tem sido investigado por Conte (2003), 
Koch (2002, 2006), Cavalcante (2003). 
No capítulo 5 intitulado “Breves considerações sobre o ambiente de pesquisa e 
a coleta de dados”, apresentam-se os passos metodológicos seguidos para a 
constituição do corpus da pesquisa. Para isso foram realizadas entrevistas abertas, 
com moradores da região do semi-árido de Sergipe, mais especificamente, dos 
 24
municípios de Poço Redondo e de Nossa Senhora da Glória, levando-se em 
consideração a convivência do cangaceiro Lampião com o povo desses lugares por 
um bom tempo. Esses dados reúnem depoimentos importantes de cidadãos dessas 
duas comunidades, as quais constituem o ambiente da pesquisa, onde a memória 
do fenômeno do cangaço é permanentemente reconstruída por esses sujeitos. O 
trabalho de campo foi desenvolvido no período de março de 2006 a janeiro de 2007 
No capítulo 6, intitulado “Lampião sob os olhares do povo”, apresenta-se, em 
um primeiro momento, a construção discursiva da figura de Lampião: 1) os olhares 
positivos e 2) os olhares negativos 3) os olhares contraditórios e híbridos. Além 
disso, fazemos uma breve análise das “volantes”, a força policial que era 
encarregada de caçar Lampião. Para tanto, analisamos vários fragmentos dos 
depoimentos dos sujeitos procurando observar como esses sujeitos constroem os 
seus pontos de vista a respeito do cangaceiro, através dos processos referenciais. 
Pontos de vista estes que constroem um mito multifacetado. É possível observar 
esta construção, a partir da análise das expressões referenciais presentes no 
corpus. 
Na primeira parte, os olhares positivos, mostram-se pontos de vista por meio de 
descrições nominais definidas (“o rei do cangaço”, “a figura máxima”), que se 
caracterizam por operar uma seleção, dentre as propriedades atribuídas 
interativamente pelo sujeito do discurso ao referente; e, também, através das 
expressões indefinidas (“um homem muito”, “capaz, um sujeito sério”) que 
evidenciam como a imagem do cangaceiro Lampião vai sendo construída 
discursivamente pelos sujeitos. Verifica-se, pois, que há um número variável de 
 25
expressões referenciais definidas e indefinidas que corroboram a formulação de que 
há uma memória sobre Lampião, e, conseqüentemente, que a memória coletiva é 
uma realidade social transmitida e mantida nas/pelas práticas interativas e 
discursivas dos sujeitos e dos grupos sociais. A análise das expressões nominais 
mobilizadas pelos sujeitos da pesquisa mostra que a grande maioria delas vincula-se 
a um ponto de vista positivo sobre o cangaceiro, o que mostra a força do universo 
referencial socialmente construído que se formou, ao longo do tempo, ao redor da 
figura do rei do cangaço. 
Quanto à segunda parte, os olhares negativos, mostra-se o outro lado de 
Lampião: o de um homem bandido, possuidor de uma violência excessiva contra os 
que lhe negassem pedidos ou que o contrariassem. O bandido que invadia casas, 
fazendas, cidades; que se acoitava nos barrancos; que se escondia nas grotas, nas 
trevas para de lá espalhar a destruição e a morte (Fontes, 1998). Por essas suas 
façanhas aterrorizantes, alguns dos sujeitos da pesquisa consideram-no o mais 
audacioso tipo de cangaceiro do nordeste do Brasil. 
A construção desse ponto de vista pode ser observada por meio do uso das 
descrições referenciais (o malfeitor, o cangaceiro malvado; um homem perverso, um 
bicho), que caracterizam a outra face do mito, sua imagem de bandido, identificada 
através de um conjunto de formas referenciais que ressaltam discursivamente, em 
uma dada situação, determinados atributos e/ou predicações de um homem 
“sanguinário”. É, portanto, via essa rede de referências que os sujeitos, através das 
suas práticas de linguagem, produzem os pontos de cristalização necessários para a 
conservação de lembranças comuns na sociedade. 
 26
As descrições nominais que aparecem no interior dos depoimentos dos 
entrevistados sobre o mito Lampião resultam, portanto, de atividades sociocognitivas 
realizadas durante o processo de “organização das informações que são acionadas 
pelos interlocutores na ação verbal” (Jubran, 1996, 2003), servindo, assim, de base 
para o desenvolvimento discursivo no momento da reconstrução da memória social 
do grupo. 
Verifica-se ainda, no curso da análise, um dos processos da referenciação que 
se destaca como um recurso discursivo importante: a condensação de porções 
discursivas, uma vez que se está lidando não só com a (re)categorização de 
informações contextualmente dada, mas também com o que já está presente na 
memória discursiva do sujeito durante as atividades de linguagem. Nestas 
sobressaem o emprego de determinadas expressões lingüísticas que atribuem 
certas características ou predicações ao referente. Por exemplo, a expressão “a 
síntese de todo um período do sertão nordestino”, extraída de um dos depoimentos 
do corpus, não só remete ao referente Lampião, mas também sumariza conteúdos, 
precedentes e subseqüentes, sedimentados na memória discursiva do pesquisado e 
do grupo do qual faz parte. À medida que o discurso se desenvolve não apenas as 
informações-suporte, contidas em segmentos anteriores do texto, são condensadas, 
mas toda uma memória social em torno de um acontecimento, sumarizando-as sob a 
forma de um substantivo-predicativo e assim transformadas em objeto-de-discurso 
(Koch, 1999). Assim, a partir das informações contextuais expressas nas práticas 
discursivas, a nosso ver, as expressões referenciais mobilizadas pelo sujeito formam 
 27
uma cadeia referencial que remete e retoma outras cadeias coesivas e outros 
discursos expressos por outros enunciadores, em outros lugares e tempos. 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 28
CAPÍTULO 1 - CONTEXTUALIZAÇÃO DO CANGAÇO 
Existem versões variadas no que diz respeito a Lampião e suas aventuras. 
Dessa forma, alguns aspectos são indispensáveis para um melhor entendimento 
desta temática. Assim, é importante o estudo no que diz respeito ao contexto sócio-
político do cangaço, pois como diz o jornalista Júlio José Chiavenato, em sua obra 
Cangaço: a força do coronel, “para entender o homem, primeiro é preciso desvendar 
o ambiente onde ele é produzido – mais as suas circunstâncias” (Chiavenato, 1990, 
p. 62). 
Segundo Billy Jaynes Chandler (1980), em seu livro Lampião, o rei dos 
cangaceiros, a área, geograficamente, não é muito propícia à habitação humana, 
embora alguns nativos e, às vezes, até mesmo alguns forasteiros, fossem atraídos 
pelo seu fascínio terrível. Na verdade, 
o sertão nordestino com suas longas estações sem chuva, com suas 
secas freqüentes, com sua vegetação grotesca e com seu solo 
geralmente árduo, não estende uma mão acolhedora ao homem. 
Como os bandidos que surgem de seus confins, o sertão é 
ameaçador (Chandler, 1980, p.19). 
 
Terra de tantos paradoxos não se cansa de oferecer surpresas mesmo a 
estudiosos que já tenham boa noção dos diferentes perfis científicos que integram 
os conceitos do semi-árido quente e o das áreas sujeitas ao seu regime hostil (Mello, 
2005). 
O Nordeste, aqui considerado, é o que se estendedo Piauí à Bahia, escreve 
Frederico Pernambucano de Mello (2005), no seu livro Guerreiro do sol: violência e 
 29
banditismo no Nordeste do Brasil, onde se apertam continuamente as realidades 
físicas e culturais bem marcantes de uma faixa costeira úmida e quente e de um 
miolo geográfico de terras quentes e secas, onde predominam, no plano climático, o 
chamado semi-árido quente, e no da produção, a indústria pastoril. Esse tipo de 
clima que aqui se desfruta apresenta as temperaturas mais elevadas do país. 
Estação seca prolongada, exacerbada por ventos fortes e igualmente secos, aliada à 
insolação de incidência direta sobre o solo pouco espesso, por conta da cobertura 
vegetal rala, e a proximidade do Equador, eis a fórmula de obtenção dessas 
temperaturas infernais (Mello, 2005, p. 52). 
Para o historiador Frederico Bezerra Maciel (1992), na sua obra Lampião, seu 
tempo e seu reinado, o agente físico que mais define e caracteriza o sertão são as 
chuvas. O sertanejo nunca amaldiçoa a água mesmo quando em cheias 
destruidoras, embebendo a terra ou carregando as plantações. “A água é uma 
bênção divina que molha os corações de esperança e enche as terras de verde e de 
fartura. Maldição são as prolongadas estiagens, as secas sem fim, aniquilando tudo 
o que significa vida” (Maciel, 1992, p. 31). 
Na aridez da paisagem sertaneja, conforme Mello (2005), a chuva é o fiel da 
balança da sorte. Quando chove, tem-se a fartura; escasseia-se por um ano ou 
mais, tem-se um quadro trágico das lavouras perdidas, do gado morrendo à míngua, 
das procissões profanas, dos retirantes desesperados, dos barreiros esturricados, do 
salve-se quem puder. 
Além dessas características físicas da terra onde nasceu, viveu e morreu 
Lampião, deve-se acrescentar que a sociedade da qual ele não era um 
 30
representante atípico, foi influenciada pelos mesmos fatores. Contudo, essa 
sociedade sofreu também outras influências, e, embora tivesse acobertado várias 
espécies de crimes, as condições, no tempo de Lampião, eram tais que favoreciam 
ainda mais esse comportamento. Para o jornalista Chandler, “o estudo de alguns 
aspectos da história social, política e econômica do sertão provará este ponto de 
vista” (Chandler,1980, p. 20). 
Os primeiros colonizadores que vieram para o Nordeste do Brasil durante o 
século XVI não se estabeleceram no sertão, mas, sim, nas regiões litorâneas, onde 
surgiu uma sociedade agrícola, baseada no cultivo da cana de açúcar. Esse local 
era tão importante para o cultivo da cana, que a produção de gêneros alimentícios 
ficou relegada a segundo plano. Daí o surgimento do interesse pelas terras do 
interior para a criação do gado e para a agricultura em geral; foi, então, que o interior 
do sertão nordestino começou a ser desbravado, embora, muitas vezes, só 
esporadicamente. Só nas primeiras décadas do século XVIII, é que as regiões mais 
distantes foram reivindicadas, e a estrutura da sociedade sertaneja foi constituída 
(Chandler, 1980). 
Para isso, grandes extensões de terra foram entregues por oficiais da colônia 
aos mais influentes para conquistá-las e cultivá-las. Foi assim que surgiu a base de 
um sistema de latifúndios. E o fazendeiro que possuía muitas terras era igual, em 
seu mundo, aos senhores de engenho do litoral. Para impor mais lei e mais 
disciplina, governava com mão de ferro seus subordinados. Dessa forma, conforme 
Câmara Cascudo ([197-?]), no seu trabalho, vaqueiros e cantadores, era preciso que 
 31
o fazendeiro tivesse “tropa pessoal, fiel e paga, para a defesa de propriedades 
visadas pelos adversários políticos” (Cascudo, ([197-?]), p. 122). 
Portugal, na verdade, quase nunca chegou a exercer muito domínio sobre a 
região sertaneja. Desse modo, desde sua origem, a sociedade dos sertões ficou à 
mercê da prepotência dos que tinham a sorte de possuir grandes extensões de terra. 
Por outro lado, a maioria dos sertanejos vivia numa penúria extrema, e foi dessa 
classe que saíram muitos dos seguidores de Lampião (Chandler, 1980). 
Inicialmente, a classe pobre do sertão nordestino compreendia a mão de obra 
trazida pelos potentados para o desbravamento da região. Era composta de uma 
mistura de índios, escravos, mulatos e seus descendentes, e também de pessoas 
livres que formavam o séqüito dos senhores que vinham da costa (Mello, 2005). 
Mas, com o passar dos anos, essa classe se estendeu, também, a muitos daqueles 
cujos ancestrais tinham sido os próprios donos de terra, visto que, no sertão do 
nordeste brasileiro, os costumes e as condições de vida do nordestino impunham, 
inexoravelmente, um processo de nivelamento. 
Esse nivelamento de classe pode ser explicado da seguinte forma: as grandes 
propriedades eventualmente se fragmentavam, pois eram divididas entre os 
herdeiros quando morria o dono. Essa fragmentação, cada vez maior, causou o 
empobrecimento de seus proprietários. E as adversidades, sobretudo as secas 
periódicas, dizimavam também os rebanhos e os outros recursos dos fazendeiros. 
Conseqüentemente, viam-se forçados a vender suas propriedades, passando, 
portanto, para a classe dos menos favorecidos (Mello, 2005). 
 32
Através de uma série de circunstâncias, mas, principalmente, através de 
esforços pessoais e casamentos de conveniência, muitos fazendeiros conseguiram 
não só deter esse processo de desintegração, mas até reconstruir suas fortunas que 
seus antepassados tinham perdido. Embora o domínio da terra tivesse cessado de 
ser tão monolítico, como na época das conquistas, o latifúndio ainda persistia como 
principal fator da sociedade dos sertões. Em termos de padrão de vida, essa 
sociedade continuava a ser dominada pelos poucos que possuíam ainda grandes 
propriedades (Chandler, 1980). 
Ainda, segundo esse mesmo autor, “a característica principal do potentado 
colonial dos sertões, e de seu sucessor, o ‘coronel’, ou melhor, do ‘chefe político’ dos 
tempos mais recentes, era o prestígio e o poder que suas propriedades lhe 
conferiam” (Chandler, 1980, p. 23). Portanto, aliado ao fator das secas, outro, talvez, 
tão forte quanto foi o da herança colonial dos latifúndios, que se traduzia, por sua 
vez, no poder dos grandes patriarcas, mais tarde conhecidos na figura dos coronéis. 
 
1.1 O coronelismo 
A algumas rixas ou lutas entre famílias tradicionalmente sertanejas do Nordeste 
brasileiro, extremadas em rivalidades criminosas e favoráveis ao uso dos chamados 
cabras em lutas, associou-se “um cangaço vingador ou vingativo de 
desentendimentos endogâmicos e, até, incestuosos. Lutas, algumas, em torno de 
terras, de bois, de cavalos preferidos por motivos ligados a brios de família” (Mello, 
2005 p. 16), sendo que esses animais foram associados especialmente à angústia 
de dias mais terríveis da seca. Para a escritora Maria Isaura de Queiroz (1987), em 
 33
seu trabalho História do cangaço, eram comuns, ainda no período imperial, esses 
tipos de conflitos entre famílias mais abastadas. 
Dentro de uma visão estrutural da sociedade, Ibarê Dantas (1987), no seu livro 
Coronelismo e Dominação, argumenta que o fenômeno do coronel no Brasil se 
constitui a partir de uma tripla fundamentação: econômico-social, ideológica e 
política. No primeiro caso, destaca-se o grande proprietário de terra que exerce 
sobre os trabalhadores um tipo de dominação pessoal, que serve para camuflar 
desigualdades e práticas de exploração. Correlacionada com a dimensão 
econômico-social, atua a fundamentação ideológica que se apresenta como um 
conjunto mais ou menos coerente de idéias e representações, muitas vezes, 
veiculadas através de normas que reforçam laços de lealdade e práticas de 
submissão. O controle de informações pelo senhor torna-se elemento vital para a 
preservação dos padrões de dominação e manutenção das relações de 
dependência pessoal. A terceira dimensão que participa da constituição do 
coronelismo é a políticaque fundamenta–se no papel de intermediação que o 
proprietário de terra exerce entre a sociedade política estadual e as massas rurais 
do município, ou melhor, de um lado ele controla o povo e do outro legitima a 
sociedade política. 
Para Chiavenato (1990), o coronel tinha o poder real. Era o dono da terra que 
aumentava seu latifúndio por meio de guerras de família e expulsando posseiros. 
Mandava políticos representá-lo na capital e a sua força excedia a das autoridades 
constituídas. Prefeitos, delegados e juízes raramente se opunham ao coronel. Na 
verdade, as autoridades eram escolhidas por ele. Apesar desse poder excessivo, “o 
 34
coronel era um homem rude, pouco polido pela riqueza, semi-analfabeto, ostentando 
um código de honra que não o distinguia do mais pobre sertanejo” (Chiavenato, 
1990, p. 41). 
Ainda na concepção desse mesmo autor, ”o coronel é como um senhor feudal – 
em algumas regiões chegou até a ter direito da ‘primeira noite’ – mas só a riqueza o 
separa dos ‘servos’, que são seus agregados. Cultural e psicologicamente ele é 
igual a todos” (Chiavenato, 1990, p. 41). Para ele, a sociedade em que vivia o 
coronel, ou melhor, em que reinava, era um aglomerado de homens brutalizados 
pelo meio social, sujeitos à inclemência do clima árido e perdidos num conjunto 
econômico difícil de ser definido com rigor. Na verdade, todos eram vaqueiros. Os 
que conquistaram a posse da terra mandavam. Os outros, embora oprimidos, 
obedeciam, porque as ordens não agridem o conceito que eles tinham de justiça que 
se baseia na força. Quando aplicada, prestigiava aquele que mandava, uma vez que 
ressaltava a “macheza” do mandante. 
Maria de Lourdes Janotti (1981), no seu livro O coronelismo: uma política de 
compromisso, ao se posicionar a respeito desse assunto, reafirma que é comum, 
nos meios de comunicação, apresentar o coronel como “um fazendeiro rústico, 
autoritário, brutal, ignorante, dispondo da vida dos demais habitantes do lugarejo em 
que reside. Este é um estereótipo que vem sendo consagrado e, comumente 
ridicularizado” (Janotti, 1981, p. 8). Posição que vem também explicitada nas 
palavras de Maciel: 
 
 35
mundo em que só imperava o absolutismo do grande fazendeiro 
mandão e político, promovido naturalmente a ‘Coronel’, teúdo e 
manteúdo pela força dos cabras – os cangaceiros mansos e pelo 
reforço da fiadora de seu prestígio político – a polícia. Essa última, 
aliás, o único sinal do Governo naquelas brenhas (Maciel, 1992, 
p.35). 
 
Com o fim de destacar elementos importantes do coronelismo, o historiador 
Dantas (1987) conceitua-o como uma forma de representação política exercida por 
determinados proprietários sobre os trabalhadores rurais, ao tempo em que se 
impõem como intermediários entre as massas do campo e as oligarquias estaduais, 
tendo como objetivo a manutenção da estrutura de dominação. Para esse autor, o 
coronelismo é um fenômeno eminentemente republicano, e embora comece a se 
formar no Império, nas relações do patronato rural com os libertos, alimentando-se 
nas formas de dominação pessoal, é na República que se realiza com todas suas 
características. Como bem assinala a socióloga Maria Isaura Pereira de Queiroz 
(1975), no seu trabalho O coronelismo numa interpretação sociológica, ao afirmar 
que “embora aparecendo à apelação do coronel desde a segunda metade do 
Império, é na Primeira República que o coronelismo atinge sua plena expansão e a 
plenitude de suas características” (Queiroz, 1975, p. 160). 
Muitos autores que tratam dessa temática associam o crescimento do poder 
dos coronéis à força eleitoral que eles desempenharam na Primeira República 
(1900-1930). Queiroz, ao analisar a estrutura coronelística, afirma que “o poder 
político é medido através da quantidade de votos de que dispõe um chefe local ou 
regional, no momento das eleições” (Queiroz, 1975, p. 157). Ainda considerando 
esse tipo de estrutura, argumenta que “o segundo aspecto essencial existente é o da 
 36
possibilidade de barganha e a consideração do voto como uma posse, que marca os 
eleitores diante dos respectivos chefes” (Queiroz, 1975, p. 160). 
Victor Nunes Leal (1975), considerado um expoente desse assunto, conceitua o 
coronelismo como sendo, sobretudo, “um compromisso, uma troca de proveitos 
entre o poder público, progressivamente fortalecido, e a decadente influência social 
dos chefes locais, e notadamente dos senhores de terra” (Leal, 1975, p. 20). Ainda 
se referindo a essa temática, acrescenta, que “a força eleitoral empresta-lhe 
prestígio político, natural coroamento de sua privilegiada situação econômica e 
social de dono de terra” (Leal, 1975, p. 20). 
Para José de Souza Martins (1981), em sua obra, Os camponeses e a política 
no Brasil, esse fenômeno se concretizou pelo rígido “controle dos chefes políticos 
sobre os votos do eleitorado, constituindo currais eleitorais e produzindo o chamado 
voto de cabresto” (Martins, 1981, p. 46). 
Ao retratar, também, a figura do coronel, Antônio Octávio Cintra (1974) o vê 
como um “pacto de poder público através das elites que o manipulam com os chefes 
do interior, controladores e fornecedores dos votos de seus redutos locais” (Cintra, 
l974, p. 38). 
De acordo com Ibarê Dantas (l987), as práticas eleitorais de voto a bico de 
pena, atas falsas e comissões eleitorais controladas pelos coronéis tornaram o 
sistema representativo extremamente viciado. Essa representação, em última 
instância, dependia dos coronéis que se impunham não apenas através dos votos 
que controlavam no meio rural, mas, sobretudo, pelo domínio da coerção. O controle 
dos votantes podia ser em decorrência da supremacia adquirida pelos coronéis 
 37
através das milícias particulares. A importância dessas milícias, como fonte de poder 
do coronel, tem sido notada por vários estudiosos. O escritor Otávio Cintra (1974), 
por exemplo, depois de considerar que a terra tinha sido distribuída de maneira 
desigual, como primeira fonte de poder, afirma que “uma segunda e crucial fonte de 
poder, controlada pelos grandes proprietários de terra, eram as milícias particulares” 
(Cintra, 1974, p. 42). 
Também na opinião dos autores Vera Ferreira e Antônio Amaury (1997), na 
obra, O espinho do quipá: Lampião, a história, acima de todos, na escala do poder, 
estava o coronel. Àquela época, era a grande força do sertão, uma vez que podia 
tudo, pois detinha a posse de grandes extensões de terra e era a lei em suas 
propriedades e nas regiões de sua influência. Tinha poder de vida e de morte. As 
autoridades constituídas não se atreviam a interferir, ou melhor, a enfrentá-lo. 
Mesmo assim, muitos coronéis dos Estados nordestinos mantiveram um bom 
relacionamento com os cangaceiros, chegando a protegê-los e acolhê-los em suas 
fazendas. Não porque tinham um bom coração, mas porque visavam suas próprias 
vantagens e não hesitavam em mudar de opinião e de lado sempre que lhes fosse 
conveniente. Abrigar um cangaceiro e depois o trair não lhes era incomum. Alguns 
tiveram com Lampião amizade e inimizade profunda, variando de acordo com os 
interesses momentâneos de cada um. 
 38
1.2 Outros personagens desse contexto sócio-polític o: os coiteiros e as 
volantes 
Não eram apenas os coronéis que forneciam proteção aos cangaceiros. Havia 
os chamados coiteiros, indivíduos que lhes prestavam diversos tipos de serviços, 
dando-lhes informações, alimentação, abrigo, e até fazendo suas compras (Ferreira; 
Amaury, 1997). Os abrigos eram geralmente chamados de coitos, daí a palavra 
coiteiro. 
Para que alguém fosse considerado um coiteiro não eram necessárias muitas 
atribuições. Um indivíduo podia passar, às vezes, a ser conhecido como coiteiro 
apenas por ter dado uma caneca de água a um cangaceiro. Segundo Prata, ser 
coiteiro para a polícia 
 
é servir-lhe um copo d’água numa rápida parada de sua marcha 
incessante; é vê-lo passar ao longe, enão ir, presunçoso, delatá-lo; é 
topá-lo na estrada e responder às perguntas que lhes forem feitas; é, 
enfim, todo aquele que voluntária ou involuntariamente tenha com ele 
o mais leve contato (Prata, 1933, p. 102). 
 
Ser coiteiro, para Ferreira e Amaury (1997), era motivo suficiente para ser 
perseguido pelas forças do governo. Quanto menor fosse o seu poder político e 
econômico, mais sofria perseguições. Estava sempre sujeito a terríveis castigos 
físicos e até podia ser morto pelos homens das volantes. Por outro lado, por onde 
Lampião passava, também havia coiteiros de grande prestígio político e econômico. 
Em Sergipe, por exemplo, o coiteiro mais conhecido era “Antônio Caixeiro, pai do 
 39
Interventor (Governador) do Estado, o Capitão do Exército Dr. Eronildes de 
Carvalho” (Ferreira; Amaury, 1997, p.19). 
Para a polícia, havia dois tipos de coiteiros. O primeiro era constituído pelos 
fazendeiros, negociantes ou chefes políticos, que ajudavam Lampião por precaução. 
Enviavam-lhe o dinheiro que pedia, ou lhe forneciam mantimentos, para proteger 
suas propriedades. O segundo tipo era formado de vaqueiros, moradores e outras 
pessoas que tinham pouca influência. Entre estes, estavam os donos de pequenas e 
médias propriedades, assim também como lojistas e comerciantes dos povoados 
(Chandler, 1980). Este grupo 
 
não contava com a compreensão da polícia, principalmente se esta 
suspeitava de que estavam dando informações falsas na área em 
que estavam os cangaceiros. Se procediam assim porque gostavam 
de Lampião, ou porque o temiam, era um dilema que fazia pouca 
diferença para a polícia (Chandler, 1980, p. 190). 
 
Em oposição aos coiteiros, que ajudavam os cangaceiros, havia as forças 
oficiais, as volantes, que os perseguiam dispostos a encontrá-los e acabar com eles. 
Essas forças eram heterogêneas, já que eram constituídas tanto de policiais ou de 
“indivíduos que procuravam obter lucro pessoal, matando cangaceiros e ficando com 
os seus pertences, como ouro, dinheiro, etc.” (Ferreira; Amaury, 1997, p. 19). 
Alguns policiais permaneciam em seus quartéis à espera de informações para 
sair à caça dos cangaceiros, enquanto outros grupos de policiais viviam em 
constante movimento, seguindo a pista dos homens do cangaço e, por isso, eram 
chamados de volantes. Volante é, pois, “o agrupamento de vários soldados, que, em 
diligências, saem à procura de criminosos e foragidos” (Costa, 1994, p. 103). E ainda 
 40
afirma que a existência das volantes vem desde “o aparecimento dos primeiros 
bandoleiros e foragidos da justiça. Sempre foi um bando de arrogantes e 
ameaçadores policiais que se tornaram conhecidos como volante ou força do 
governo” (Costa, 1994, p. 113). 
Com o passar dos anos, esses representantes da ordem e da justiça passaram 
a ser odiados e temidos pelos sertanejos. A população via nas forças oficiais, 
policiais despreparados, violentos e corruptos, pois, nas perseguições aos 
cangaceiros, o povo do sertão nordestino sofreu muito com as ações das volantes. 
Ao se fazer a revisão de literatura sobre o fenômeno do cangaço, percebe-se 
que uma grande parte dos sertanejos apoiou o cangaço devido à falta de justiça e a 
violência da própria polícia. As volantes, ao chegarem às casas dos sertanejos 
pobres, invadiam-nas e praticavam muitas arbitrariedades Tal procedimento 
contribuiu para o fortalecimento do fenômeno do cangaço junto ao sertanejo. Havia 
muitas queixas, como por exemplo, a de que uma tropa do governo passara por um 
povoado quebrando pontes, roubando casas e implantando o terror. O medo que a 
população do sertão sentia das volantes era grande, tanto que muitos sertanejos 
preferiam ver Lampião em sua porta a ver os homens da volante. 
Tal medo pode ser aquilatado quando Chandler relata que “um fazendeiro de 
Sergipe, referindo-se à polícia da Bahia, declarou: Pode acreditar que hoje, no 
sertão, já se tem mais alegria quando Lampião chega à porta do que a simples 
notícia de que as forças se aproximam” (Chandler, 1980, p. 121). 
Para este autor, dentre todas as volantes, os Nazarenos, sob o comando de 
Manuel Neto, eram os mais temidos pelo povo, pois na perseguição a Lampião, 
 41
empregavam qualquer método para obter informações. “A brutalidade das tropas era 
atribuída, sem dúvida, às frustrações e raiva, mas é evidente que a violência, em 
muitos casos, era empregada deliberadamente” (Chandler, 1980, p. 192). Um outro 
fator que contribuiu para essa brutalidade foi, segundo o autor, a própria natureza 
dos soldados, uma vez que, na sua maioria, eram analfabetos e ignorantes. A 
brutalidade, para esses indivíduos, era corriqueira, já que “pertenciam a uma 
sociedade rústica, que usava da violência para resolver suas disputas” (Chandler, 
1980, p. 196). 
O tratamento dado pelas volantes também era diferente quando alguém 
precisava de ajuda. Para os grandes proprietários de terra, essa ajuda era imediata, 
por isso tinham uma visão diferente da polícia, já que não sofriam e, sempre que 
necessitavam, podiam contar com sua ajuda. Mas os pobres, quando precisavam, 
não eram atendidos quando não tinham a proteção de algum chefe político. De 
qualquer forma, deve-se levar em consideração as dificuldades que as volantes 
passavam 
 
ao imergirem naqueles brutos e desconhecidos sertões: o rigor da 
campanha cangaceira, sempre dura e cheia de provocações, a 
desvantagem absurda no confronto direto com os cangaceiros, 
senhores absolutos daquelas caatingas, conhecedores profundos da 
mataria (Costa, 1994, p. 113). 
 
Enquanto, nas palavras do autor, o conhecimento profundo da caatinga era um 
forte aliado dos cangaceiros, as volantes sofriam o impacto do desconhecido e do 
mistério, com obstáculos quase intransponíveis e inglórios que terminavam por 
derrotar os desacostumados homens do governo. Enquanto tudo ali era contrário às 
 42
volantes, com os cangaceiros se dava justamente o inverso, já que aquele espaço 
era o seu verdadeiro mundo: a gruta, a tocaia, a serra, a vereda, a chuva, o sol, a 
noite, tudo lhes era familiar. A luta era desigual e o resultado era real: o extermínio 
do cangaço estava longe de acontecer e o desespero e a angústia das volantes 
aumentavam a cada ano: 
 
os responsáveis pela repressão enviaram comandantes competentes 
para chefiar os mateiros, e aí a luta se igualou. Os cuidados da 
cangaceirada redobraram. Já não enfrentavam os outrora 
cordeirinhos; agora era fera contra fera, monstro contra monstro, 
valentão contra valentão. E aí o sertão pegou fogo (Costa, 1994, p. 
116). 
 
1.3 Banditismo e cangaço 
Segundo Eric Hobsbawm (1978), em seu livro, Rebeldes primitivos: estudos de 
formas arcaicas de movimentos sociais nos séculos XIX e XX, “o bandido é um 
fenômeno pré-político e sua força está na proporção inversa da força dos 
movimentos revolucionários agrários organizados, do socialismo ou comunismo” 
(Hobsbawm, 1978, p. 31). E acrescenta que a função prática do bandido é, no 
máximo, impor certos limites de opressão, numa sociedade tradicional, ao preço da 
desordem, do assassinato e da extorsão. 
Para ele, os bandidos e salteadores de estradas preocupam a polícia, mas 
devem também preocupar o historiador social, pois, num certo sentido, o banditismo 
é “uma forma bastante primitiva de protesto social organizado, talvez a mais primitiva 
que conhecemos. De qualquer modo, em muitas sociedades é assim que os pobres 
 43
o vêem” (Hobsbawm, 1978, p.22), e em conseqüência protegem o bandido, 
consideram-no como seu defensor, idealizam-no e o transformam num mito. 
É interessante salientar que o bandido social incipiente, na concepção desse 
autor, é considerado como não-culpado pela população, pois se fosse tido como 
criminoso em relação às convenções da sociedade, esse bandido não poderia 
desfrutar da proteção local, que lhe é rigorosamente necessária. Quase todos os 
que enfrentam os opressores e o Estadosão considerados como vítimas, como 
heróis, ou ambas as coisas, e quando passa a ser perseguido, é protegido 
naturalmente pelos camponeses e “pelo peso das convenções locais, que defendem 
a ‘nossa’ lei-costumes, inimizades de sangue, ou qualquer outra – contra a lei 
‘deles’, e a ‘nossa’ justiça contra a justiça dos ricos” (Hobsbawm, 1978, p. 25). Para 
ele, 
 
a ‘carreira’ do bandido começa, quase sempre, com um incidente que 
em si não é grave, mas que o coloca fora da lei: uma acusação 
policial que visa mais a ele, pessoalmente, do que a punição de um 
crime: falso testemunho, erro judiciário ou intriga, uma condenação 
injusta a domicílio (confino), ou uma condenação considerada como 
injusta (Hobsbawm, 1978, p. 25). 
 
No sertão do Nordeste, como bem ressalta o historiógrafo Frederico 
Pernambuco de Mello, “o banditismo não vem a conhecer apenas o estímulo de uma 
cultura violenta, em que o épico se fazia sentir à flor da pele. É ali que recebe o 
próprio nome com que se perpetuaria na memória escrita e na poesia cantada pelo 
povo” ( Mello, 2005, p.26). 
É interessante observar que, dentro das análises historiográficas sobre esse 
fenômeno, o pesquisador Chiavenato (1990) afirma que o colonizador fundou o 
 44
latifúndio usando bandidos, visto que os bandeirantes invadiram os sertões do Brasil 
derrubando matas e fincando grandes marcos. Oficialmente, eles foram “alargadores 
de fronteiras” e, por isso, tornaram-se heróis nacionais, não sendo difícil, segundo o 
autor, criar-se o mito, uma vez que faziam parte do banditismo oficial; eram de 
origem nobre e financiados pela corte. Para explorar grandes domínios, 
escravizaram índios e negros, e para policiá-los e perseguir os fugitivos, surgiram as 
figuras dos capitães-do-mato que juntamente com os bandeirantes defendiam a 
posse da terra e vigiavam o trabalho escravo. Aqueles, criminosos das classes 
baixas, mercenários sem terra ou sem perspectiva de enobrecimento, nunca 
contaram com a simpatia dos conservadores que, ao conquistar o poder econômico 
e político, passaram a financiar o crime. Para garantir suas terras, ou roubar as 
alheias e reprimir as populações rurais, pagavam a jagunços, bandoleiros e 
marginais. 
Com o passar do tempo, os “alargadores de fronteira” foram transformados em 
heróis, os matadores em barões e os ladrões de terra em coronéis, como assinala 
este pesquisador: “limparam convenientemente a imagem dos bandeirantes, dos 
barões e dos coronéis do sertão. Os crimes desapareceram e os criminosos 
passaram a homens ilustres”. (Chiavenato, 1990, p. 9). E ainda acrescenta na sua 
análise que a grande diferença, é que “os bandidos oficiais ganharam uma linhagem 
que os absolve, e, mais que isso, os premia como heróis. Os bandidos comuns, pelo 
contrário, são até mais estigmatizados, para realçar as falsas virtudes dos primeiros” 
(Chiavenato, 1990, p. 10). 
 45
Os bandidos que se tornaram nobres, para garantir suas terras ou roubar as 
alheias, contratavam marginais que a miséria tinha empurrado ao crime. Entre os 
primeiros grupos a inaugurar essa genealogia popular do mal foi o dos bandidos 
cacheados que agiam no Nordeste, desde o século XVIII, impondo a lei no sertão: 
expulsando posseiros; disciplinando agregados e matando inimigos políticos. Eles 
eram assim chamados por usarem, como sinal de valentia, os cabelos cacheados 
escondidos no chapéu; ao tirá-lo, aparecia a cabeleira cacheada, o que significava 
sentença de morte (Chiavenato, 1990). 
Outro grupo de bandoleiros que também agiu no sertão do São Francisco foi o 
dos vira-saias que invadiam vilas, fazendas e cometiam assaltos e estupros. Esses 
bandidos eram usados pelos proprietários de terra com o objetivo apenas de 
humilhar seus agregados. Para isso, amarravam os homens, obrigando-os a manter 
os olhos abertos para que vissem suas mulheres e filhas sendo estupradas: “viravam 
as saias delas” e executavam o estupro. “Nada desgraçava mais o caboclo do que 
estuprarem sua mulher e filhas diante dele” (Chiavenato, 1990, p.11). Daí o nome de 
vira-saias. Mas, com o tempo, os latifundiários perdem o controle sobre eles e 
passam a persegui-los. Ao se dispersarem, muitos desses homens se transformam 
em capitães-de-estrada e voltam a servir, novamente, aos donos de terra para 
capturar e escravizar o caboclo que vivia livre no sertão. Todos eles possuíam a 
mesma missão: o controle da mão-de-obra e a manutenção da posse da terra. Aos 
poucos, começam a surgir outros grupos que também se destinavam a servir a 
esses grandes proprietários não só para policiar os pobres, mas também para vingar 
afrontes e eliminar inimigos políticos. 
 46
Por outro lado, Frederico de Mello (2005) chama atenção para o fato de que no 
século XIX, o sertão, que já se achava razoavelmente povoado, começa a se 
converter no cenário, por excelência, do banditismo, até porque, no litoral, a 
colonização florescia em todos os sentidos, permitindo uma repressão mais eficaz 
como fruto da estruturação social que crescentemente se aperfeiçoava. Mesmo com 
o deslocamento do foco central do banditismo para o sertão, onde, mais tarde viria a 
receber o batismo de cangaço ou cangaceirismo, o banditismo do litoral 
evidentemente não iria desaparecer. A partir da primeira metade desse século, as 
evidências históricas demonstram que essa forma de criminalidade passa a se 
desenvolver no sertão nordestino em ritmo idêntico ao do litoral. No sertão viria o 
cangaço a se requintar notavelmente, pois 
 
fornecendo ao banditismo um nome próprio de valor regional, um tipo 
de homem vocacionado à aventura, um meio físico de relevo 
adequado à ocultação, coberto por malha vegetal quase 
impenetrável, e uma cultura francamente receptiva à violência, o 
sertão não poderia deixar de se converter no palco principal do 
cangaço. Principal mas não exclusivo (Mello, 2005, p. 95). 
 
Frederico de Mello (2005) afirma, de forma incisiva, ter havido certo exagero 
nas palavras de Graciliano Ramos quando diz do cangaço ser “fenômeno próprio da 
zona de indústria pastoril, no Nordeste”. Mello acha mais conveniente a concepção 
de Gustavo Barroso, para o qual “não somente nessas zonas sertanejas existem 
cangaceiros [...] os bandidos não são produtos exclusivos das terras brasileiras do 
Nordeste, [...] em todos os povos têm existido com denominações diversas” (Mello, 
2005, p. 95). 
 47
Também para Câmara Cascudo ([197-?]), esta uniformidade universal do 
banditismo não passou despercebida, entendendo que “o cangaceiro não é um 
elemento do sertão” e sim uma figura que “existe em todos os países e regiões mais 
diversas" (Cascudo, [197-?], p. 42). O italiano Garofalo (1908), autor da obra 
Criminologia que também tratou do banditismo rural, considera-o um fenômeno 
universal. 
Aos estudos de Barroso, Cascudo e Garofalo, veio juntar-se o de Hobsbawm 
(1975) que, em seu livro “Bandidos”, reafirma a tese de universalidade: 
“geograficamente, o banditismo social se encontra em todas as Américas, na 
Europa, no mundo islâmico, na Ásia meridional e oriental, e até na Austrália” 
(Hobsbawm, 1975, p. 11-12). 
Apesar do que há de exato na fixação desse caráter universal do 
cangaceirismo e do processo de mitificação que sobre este vai se formando, 
invariavelmente, em decorrência da luta que envolve o nome dos mais bem 
sucedidos capitães, convém não esquecer o enorme papel do nosso sertão, com 
todas as contradições e peculiaridades da cultura pastoril, na formação da imagem 
que temos hoje do fenômeno cangaço. 
 
A imagem que ficou é cronologicamente a última. É a da década de 
20 do século passado, com seu auge no ano de 1926. Esta é a 
imagem de um cangaço gigante, cangaço do mosquetão, tipicamente 
sertanejo e talvez a este tenha se referido Graciliano Ramos quando 
disse ser fenômeno próprio da nossa zona pastoril (Mello, 2005, p. 
96-97). 
 
No começo dos anos 90 do século passado, aparece no sertãonordestino o 
bandido peito-largo, contratado para fazer arruaças: invadia casas e roças; dava 
 48
tiros para o ar; distribuía tapas; espancava pessoas; assustava e matava líderes 
camponeses, já que tinha a proteção dos homens poderosos da região. Como se vê, 
o crime foi o modo de se ‘construir’ o Brasil das classes dominantes. “Bandeirantes, 
barões e coronéis transformaram-se em heróis exemplares. Com a sedimentação do 
poder, seus herdeiros, para impor sua força, apelaram para o banditismo feito pelos 
deserdados sociais” (Chiavenato, 1990, p. 14). 
Para este autor, o banditismo de controle social é uma tática oficial, ou melhor, 
é uma prática do poder, outrora encoberta, de repressão popular. Esse pesquisador, 
dentro das próprias análises historiográficas sobre esse assunto, enfatiza o conceito 
de que o cangaço é um fenômeno derivado dos interesses do poder. E acrescenta 
que, do mesmo modo que a historiografia conservadora consagra seus heróis, 
mitificando-os, há os que, idealisticamente, contribuem para a construção de certos 
mitos populares. Um deles, pouco contestado e nunca sepultado, é de que o 
cangaço foi um movimento popular do sertanejo contra o sistema. Ao contrário, 
conforme se esboça na história dos bandidos populares, os cangaceiros foram 
estimulados e mantidos por grupo de latifundiários, para assegurar o domínio no 
campo e controlar a população sertaneja (Chiavenato, 1990). 
Ainda postula que uma das causas do aparecimento dos bandidos cangaceiros 
foi a grande seca que flagelou o Nordeste na segunda metade do século XIX, 
década de 1870, quando “os pastos secaram, o gado morreu, a água acabou. Sede 
e fome. Até o final desse século, as conseqüências dessa seca foram terríveis” 
(Chiavenato, 1990, p.15-16). Houve vários tumultos: invasões a vilas e fazendas, 
além de saques freqüentes a armazéns. Tudo isso favorece o surgimento de um 
 49
novo tipo de cangaço - o cangaço independente - no sentido de que já não estava 
mais atrelado a um único local e patrão, tinha a livre iniciativa de formar uma rede de 
relações e de influências em diferentes localidades. Os indivíduos que participavam 
desse novo tipo de cangaço possuíam uma vida errante: realizavam saques, 
pilhagens, seqüestros e puniam, até com a morte, a quem os considerasse inimigos. 
No entanto, não romperam com certas relações, consideradas essenciais para a 
manutenção do cangaço, como, por exemplo, os vínculos de aliança com poderosos 
chefes de parentelas, governantes locais e até mesmo com coronéis. Essas relações 
carregavam um forte código de confiança e fidelidade, podendo chegar a extremos, 
como bem ressalta a socióloga Maria Isaura Ferreira de Queiroz (1987), 
“pressupunham contratos tácitos de auxílio mútuo, nas mais diversas circunstâncias 
contratos que se estabeleciam entre iguais. Qualquer deslize no relacionamento 
‘traição abominável’ e os aliados da véspera passavam a inimigos mortais” (Queiroz, 
l987, ´p. 33). Sendo assim, por um simples mal entendido, uma amizade de anos 
poderia converter-se em conflitos que provavelmente custariam vidas. 
A revolta dos sertanejos também induz ao crime os menos conformados com a 
situação de injustiça. Tratava-se de uma revolta espontânea, sem consciência social, 
os grupos rebeldes não tinham nenhum projeto político e partiam para o crime de 
maneira desenfreada: assaltando e matando, sobretudo, os mais fracos. Os 
cangaceiros eram perigosos, não só para as suas vítimas, mas também para a 
estrutura falida do sertão nordestino. Precisavam usar de toda a astúcia para 
sobreviver, já que lutavam pela mera sobrevivência. Sem produzir, vivendo do roubo 
numa sociedade muito pobre, precisavam aliar-se ao mais forte. Para isso, 
 50
dependiam do coiteiro que os escondia e os abastecia de alimento e armas e que 
era preposto dos coronéis. Com essa aliança, o cangaço transformou-se de revolta 
espontânea em banditismo de controle social. Para Chiavenato 
 
[...] essa aliança não só foi possível como fatal. O cangaço não 
representava uma verdadeira ameaça ao latifúndio: os cangaceiros 
não pretendiam a terra, não lutavam pela igualdade social. Eram 
rebeldes que buscavam no crime uma sobrevivência mais fácil, 
impossível pelo trabalho. Não tinham reivindicações políticas nem 
sociais. Disputavam um espaço para cometer seus atropelos. Eram a 
opção racional, se é que se pode usar essa palavra para o latifúndio 
ameaçado pela miséria do povo (Chiavenato, 1990, p. 17). 
 
Este pesquisador fundamenta sua obra, apontando, de maneira incisiva, o 
estreito vínculo de aliança que permeava as relações entre cangaço e coronéis, 
utilizando o caso do grupo de Lampião. Procura denunciar o fato de o grupo de 
bandidos ser uma espécie de mecanismo de manutenção do controle social no 
sertão nordestino. O próprio título com que seu livro foi batizado (Cangaço: a força 
do coronel) deixa bastante às claras sua opinião de que sem o apoio dos coronéis e 
seus subordinados, os coiteiros, o cangaço não teria razão de ser, da mesma forma 
que sua aniquilação foi conseqüências de sua não-utilidade para a nova ordem 
política e social que se consolidou entre as décadas de 30 e 40 do século passado. 
Procura, ao longo de seu trabalho, mostrar que o cangaço, de maneira geral, sempre 
esteve harmonizado com a dominação local. O coronelismo, na verdade, “teve um 
importante papel para a origem e manutenção do fenômeno cangaço, não podemos 
negar, o problema é termos o devido cuidado para não cair no reducionismo” 
(Queiroz, 1987, p 14). 
 51
Os cangaceiros, em sua origem, estavam a serviço das famílias, empregados 
de contrato, encarregados pela segurança da propriedade e para cuidar de seus 
bens. Normalmente ficavam sediados nas fazendas e estavam subordinados a um 
chefe local ou a um poderoso patriarca. Por outro lado, não há como absolutizar tal 
afirmativa, já que Antônio Silvino, que é considerado o primeiro grande líder do 
cangaço, não admitia subordinação aos chefes locais, entrando algumas vezes em 
conflitos direto com eles. Por tal comportamento, pagou um preço alto, visto que, por 
ocasião de sua prisão, faltou alguém que intercedesse a seu favor. 
Mas, em se tratando de Lampião, de acordo com Alcino Costa (1994), na sua 
obra, Lampião além da versão: mentiras e mistérios de Angico, é coerente afirmar a 
existência desse estreito vínculo, porém sem reduzi-lo a uma pessoa sem autonomia 
de atitudes, pois, na opinião deste memorialista, estar ao lado dos poderosos não 
seria um defeito, mas uma estratégia sagaz de sobrevivência, e longa, haja vista a 
duração de seu bando ter sido, mais ou menos, de dezesseis anos. Para ele, 
cangaço e cangaceiros, na verdade, são frutos de uma época, a do “mandão”, das 
grotescas injustiças, onde a grande e respeitada lei era a do coronel. Ainda, na 
opinião desse autor, “foram gerados pelo esperma da força e do poder incontrolável 
do coronel, fecundados no óvulo altamente fértil da pobreza, carência e injustiça 
social daqueles atrasados tempos, foram as fêmeas que pariram esses deserdados 
da sorte” (Costa, 1994, p. 22). 
Os autores que estudam o cangaço, mais especificamente o grupo de Lampião, 
convergem no aspecto de que suas redes de alianças estendiam-se também aos 
poderes políticos legitimamente oficiais e não somente aos coronéis. No entanto, é 
 52
bom lembrar-se de que várias vezes tais figuras fundiam-se e confundiam-se nesta 
cultura política regida pelo cabresto e pelo curral eleitoral. 
Em algumas localidades do Nordeste, Lampião era muito bem acolhido. Em 
Sergipe, merece destaque sua fiel amizade com o governador e interventor federal 
Eronildes de Carvalho. “Estado e cangaço são as relações que Lampião estabelece 
com o então governo de Sergipe” (Chiavenato, 1990, p. 46). Lampião conheceu 
Eronildes de Carvalho na fazenda de seu pai, o coronel Antônio Brito, seu antigo 
coiteiro. Segundo Chiavenato,

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