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reter ali mão-de-obra excedente para o latifún- dio. Uma vez que este não podia absorver toda a mão-de-obra disponível, os desocupados procuravam outro meio de vida, nem que fossem os assaltos armados, entrando para um grupo de cangaceiros. Um dos perseguidores de Lampião, e que cer- tamente possuía boas informações sobre a origem de seus ho- mens, informa que "os celerados tinham os claros preenchidos pelos cangaceiros mansos, que eram considerados vaqueiros ou moradores" dos fazendeiros 8 . São, portanto, os jagunços ou capangas. E conta que tendo perguntado certa vez a Lampião por que não dera combate à Coluna Prestes, conforme se havia comprometido com os chefes de Juazeiro, embora a visse pas- sar perto de uma serra onde se ocultava o bando, o famoso cangaceiro respondeu: "Ah! menino. Isto aqui é meio de vida. Se eu fosse atirar em todos os macacos que eu vejo, já teria desaparecido" 9 . Nem mais nem menos: para os componentes do bando, o cangaço é modalidade de ganhar a vida, como é possível ga- nhá-la num ambiente onde impera a ferocidade do coronel, com toda a sua aparente mansidão, o seu falso humanismo, o seu apregoado paternalismo cristão. Pois, "quando às vezes comunicavam ao coronel Manuel Inácio, de Pernambuco, que seus cabras estavam se matando uns aos outros, como acon- teceu no sítio Serecé [. . .] ele dizia a gaguejar: "Não tem 7 A. Montenegro, História do cangaceirismo, pág. 98. 8 O. Gueiros, ob. cit., pág. 32. 9 R. Nonato, Lampião, em Moçoró, Rio, 1955, pág. 266. 64 nada não, é isso mesmo, as cobras é para se engolirem umas às outras" 10 . Se o coronel tratava assim a seus cabras, se a explora- ção no eito é brutal, se a emigração só lhes era facilitada nos anos de crise aguda, com o advento das calamidades climáti- cas, não era de admirar que esses homens cheios de energia fossem parar nos bandos de cangaço e os considerassem co- mo um meio de vida perfeitamente normal. O famigerado cangaceiro Jararaca, do bando de Lampião, ferido e preso no assalto à cidade de Moçoró, declara no seu depoimento que fora soldado de polícia, mas que exercia então a "profissão de cangaceiro" 11 . Mais do que meio de vida, meio de prover a subsistência, o cangaceirismo prolifera no Nordeste sobretudo nas épocas das grandes secas. Formando-se então os bandos, em geral, pequenos, de 3 a 10 homens no máximo. A maioria deles de- saparece, uma vez passada a calamidade climática. Alguns remanescem e prolongam sua existência. Antônio Silvino, percorreu os sertões do Nordeste durante 18 anos, de 1896 a 1914. Sucede-lhe, como num autêntico reinado, Virgulino Lampião, que bate todos os recordes de assaltos, em vinte anos de cangaço, devassando o Nordeste com uma rapidez in- crível, de um a outro Estado, e constituindo o grupo mais nu- meroso de todos. É verdade que seus efetivos variam sempre, segundo as circunstâncias, até mesmo as políticas. Permitia que seus cangaceiros "dessem baixa" quando quisessem, em- bora advertindo-os de que seriam presa fácil da polícia, e mui- tos o eram realmente, pagando não raro com a vida a temeri- dade de ter abandonado o cangaço. Assim aconteceu com Jara- raca (José Leite Santana), baleado e preso no dia seguinte ao assalto malogrado à cidade de Moçoró. Depois de prestar de- poimento minucioso, é levado para o cemitério e aí assassina- do pela polícia. Tinha 26 anos. A mesma sorte caberia a Mor- maço (19 anos), que fora da Polícia Militar de Pernambuco e participara das perseguições à Coluna Prestes e, também, dos assédios a Lampião. Depois do frustrado ataque a Juazeiro, 10 Ulisses Lins, Um sertanejo e o sertão, Rio, 1957, pág. 37. 11 R. Nonato, ob. cit., pág. 266. 65 resolve abandonar o grupo, prestando vários e pormenorizados depoimentos sobre suas atividades. "Juntamente com Bronze- ado e mais dois presos da Justiça que se encontravam na ca- deia de Moçoró, foi levado para a estrada de Natal e morto com os outros 12 . Certa vez, perseguido o bando de Silvino por uma volante da polícia, são-lhe aprisionados 11 cangaceiros, — ou 18, segundo Rodrigues de Carvalho — e todos sangra- dos pela tropa pernambucana 13 . Havia como que o propósito de fechar os caminhos à possibilidade de recuperação dos bandoleiros. Como que se tentava intimidar os cangaceiros de forma a impedir sua de- serção do bando. Mas as flutuações nos efetivos dos grupos continuavam a depender principalmente das épocas de fome, sem excluir o fator prestígio do chefe cangaceiro. Assim,, quando em 1926 Lampião visita o Padre Cícero, em Juazeiro, é provido de grande quantidade de armas, munições e até mesmo fardas, seu bando crescendo logo em seguida. Um de seus homens, Gato Bravo, capturado depois, informa: "Saímos de Juazeiro com 22 homens e ao chegarmos a Pernambuco tí- nhamos mais de 100" 14 . No ano seguinte, ao atacar a cidade de Moçoró, Lampião e seu bando perfazem 53 ho- mens 15 . Vários pequenos grupos juntavam-se eventualmente a Lampião ou atuavam em íntima ligação com ele. Um desses foi o de Massilon, que, segundo todos os depoimentos, exer- ceu influência decisiva sobre o Rei do Cangaço para o assalto a Moçoró. Outro grupo entrosado com o de Lampião era o de Corisco (o Diabo Louro) que, parece, o integrava, mas atuava separadamente, por tática. O grupo de Corisco não seria sur- preendido no esconderijo da fazenda Angicos (Sergipe), quan- do Lampião e mais uma dezena de cangaceiros foram mortos pela polícia militar de Alagoas (28-7-1938). No entanto, pou- cos dias depois, ao ter conhecimento da tragédia que acabara com o "governador do Sertão", Corisco não vacila um instan- 12 Idem, ibidem 13 Ulisses Lins, ob. cit., pág. 341 e Rodrigues de Carvalho, Serrote preto, Rio, 1961, pág. 370. 14 Melquíades da Rocha, Bandoleiro das caatingas, Rio, s. d., pág. 79 15 R. Nonato, ob. cit., pág. 269. 66 te: vai com seu bando ao lugar fatídico e, à exceção de um ve- lho, que deixa "para contar a história", mata toda a família do vaqueiro que tomava conta da fazenda. Inclusive duas mulhe- res — "para vingar a morte de Maria Bonita e Enedina" — te- ria dito, pois haviam denunciado à polícia o esconderijo de Lampião. Vale salientar aqui este fato de real importância: o can- gaceirismo se tornara um fenômeno tão significativamente social que não foi pequeno o número de mulheres que par- ticiparam de suas ações na fase do apogeu. Das mulheres, a mais famosa é Maria Bonita, mas se contam, entre outras, Enedina, abatida juntamente com ela, Inacinha, mulher de Gato, Sebastiana, mulher de Moita Brava e Dada, mulher de Corisco. Em 1935, quando Lampião penetra na localidade de Forquilha, vem "acompanhado de oito cangaceiros e três mu- lheres" 16 . Algumas características de Lampião são mais ou menos comuns a outros cangaceiros e chefes de bando. Desde o início de suas atividades, o grupo ataca de preferência grandes pro- priedades, aquelas onde sabe que poderá obter melhores pro- ventos. Quando o coronel não mora na fazenda e é, por exem- plo, um comerciante na cidade guarnecida onde Lampião não pode penetrar, reclama este sua presença, para conversarem sobre dinheiro. Exige-lhe então o cangaceiro determinada quantia, mediante a condição, muitas vezes expressa em car- tas, das quais se conhecem vários exemplares, de que sua pro- priedade será poupada e nada sofrerá, mesmo por parte de "ou- tros cangaceiros". A carta, um simples bilhete, é uma espécie de salvo-conduto para o fazendeiro. Em geral, o coronel aten- dia-o, pois sabia antecipadamente que, do