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Química Farmacêutica Responsável pelo Conteúdo: Prof.ª Dr.ª Carina Rodrigues Amorim Revisão Textual: Prof.ª Dr.ª Selma Aparecida Cesarin Latenciação de Fármacos Latenciação de Fármacos • Estudar os meios de desenvolvimento e os objetivos e identificar o tipo de pró-fármacos. OBJETIVO DE APRENDIZADO • Conceito; • Objetivos da Latenciação de Fármacos; • Propriedades de um Pró-Fármaco; • Métodos de Latenciação de Fármacos. UNIDADE Latenciação de Fármacos Conceito • Latenciação de fármacos: é a transformação do fármaco ativo em forma de fár- maco inativo que, in vivo, mediante reação química ou enzimática, libera a porção ativa no local de ação ou próximo dele. A forma latente obtida mediante esse pro- cesso denomina-se pró-fármaco; • Pró-fármaco: é o derivado químico e farmacologicamente inativo da molécula ma- triz, que requer biotransformação para liberar o fármaco ativo (WERMUTH, 2015). Os pró-fármacos podem ser classificados em: » Pró-fármacos clássicos; » Bioprecursores; » Recíprocos; » Pró-fármacos mistos; » Fármacos dirigidos. Objetivos da Latenciação de Fármacos Os métodos de latenciação dos fármacos para formar pró-fármacos podem ser diversos. Entre eles, estão: • Aumentar o T1/2 vida dos fármacos, pois o método de latenciação gera os pró- -fármacos, que necessitam de reações de biotransformação para liberar a estrutu- ra ativa, estas reações ocorrem lentamente e, como consequência, aumentam o tempo de ação dos fármacos. Neste método, são desenvolvidos os medicamentos conhecidos como fármacos de ação prolongada e/ou liberação lenta; • Aumentar a biodisponibilidade, ou seja, melhorar a absorção e concentração do fár- maco que chega à corrente sanguínea; • Elevar a seletividade do fármaco ao seu local e receptor de ação; • Facilitar a formulação das formas farmacêuticas, como, por exemplo, aumentar a hidrossolubilidade obtendo formas líquidas; • Melhorar propriedades organolépticas (sabor e odor) para melhor aceitação do pa- ciente, para ser administrado via oral; • Permitir a passagem pela barreira hematoencefálica e, consequentemente, ação no Sistema Nervoso Central; • Diminuir efeitos colaterais e toxicidade (MONTANARI, 2011; WERMUTH, 2015). 8 9 Propriedades de um Pró-Fármaco Em algumas técnicas de desenvolvimento de pró-fármacos como, por exemplo, nos métodos para a obtenção de pró-fármacos clássicos e mistos, são adicionados nos fármacos de origem (protótipos) grupos ou pequenas moléculas que são chama- das de transportadores. Esses transportadores são adicionados ao fármaco protótipo no grupo farmacofórico. Portanto, a alteração desse grupo forma um fármaco inativo, que necessita de reações de biotransformação para separar o fármaco do transportador e liberar a porção ativa (fármaco ativo). Já no método para a formação de pró-fármacos bioprecursores, não são utilizados transportadores, ou seja, a molécula inativa é biotransformada gerando o fármaco ativo sem perda de transportador (CHUNG, 2005). Os detalhes dessas técnicas serão vistos logo adiante. Lembrando-se de que grupo farmacofórico é a parte da estrutura química do fármaco res- ponsável pela ação farmacológica, ao ser modificado, o fármaco torna-se inativo, como acontece nos pró-fármacos. No entanto, essa inativação é proposital para a melhora da far- macodinâmica e/ou farmacocinética dele. Algumas propriedades para a obtenção dos pró-fármacos são extremamente relevan- tes, como: • A adição do transportador à estrutura química do fármaco geralmente ocorre por meio de uma ligação covalente; • É preciso garantir a hidrólise entre fármaco e transportador dentro do fármaco para a liberação da porção ativa; • Os transportadores ou seus metabólitos não devem ser não tóxicos; • O fármaco protótipo deve ter grupos funcionais na estrutura química matriz possível de sofrer latenciação; • A biodisponibilidade do pró-fármaco deve ser adequada à concentração; • O tempo de biotransformação para a liberação do fármaco ativo deve ser ideal para manter a concentração plasmática terapêutica do fármaco; • O pró‐fármaco deve ter alta seletividade para o local de ação; • Facilidade e simplicidade da síntese e purificação do pró‐fármaco; • Estabilidade química do pró‐fármaco para garantir sua integridade durante o tempo de armazenamento (CHUNG, 2005). Na Figura 1, podemos observar uma ilustração de forma geral de um pró-fármaco com transportador e sua ativação no organismo. 9 UNIDADE Latenciação de Fármacos FÁRMACO GRUPO TRANSPORTADOR Síntese química Regeneração “in vivo” FÁRMACO GRUPO TRANSPORTADOR PRÓ-FÁRMACO Liberação do fármaco ativo no organismo atóxico ligação covalente + Figura 1 – Esquema representativo de um pró-fármaco com transportador Fonte: Adaptada de usp.br Métodos de Latenciação de Fármacos Pró-fármacos clássicos Os pró-fármacos clássicos são administrados de forma inativa, pois apresentam transportadores ligados ao grupo farmacofórico. A liberação do transportador ocorre por meio de reações de biotransformação do tipo hidrólise que, normalmente, ocorre por reações enzimáticas. Posteriormente à hidrólise, o fármaco ativo é liberado e o transportador eliminado do organismo. Geralmente, o transportador apresenta caráter lipofílico, melhorando a absorção e a biodisponibilidade do fármaco e, consequentemente, elevando sua eficácia, porém também pode ser obtido com o objetivo de aumentar a seletividade pelo local de ação, diminuindo a toxicidade ou, ainda, prolongar o tempo de ação (CHUNG, 2005). Um exemplo de pró-fármaco clássico é o valaciclovir, que foi obtido através do aciclovir. Após a biotransformação do valaciclovir no organismo, ele é transformado em aciclovir. O valaciclovir apresenta absorção aumentada em cerca de 3 a 5 vezes em relação ao aciclovir, com biodisponibilidade em torno de 54% comparado a 12-20% do aciclovir (CHUNG, 2005). Na Figura 2, podemos observar a presença do transportador adicionado no valaciclo- vir e a perda dele após a biotransformação, liberando o fármaco ativo aciclovir. Após hidrólise, o transportador é liberado do organismo. O N NNH2N HN O O O CH3 CH3 NH2 O O OHN N NHN H2N VALACICLOVIR (PRÓ-FÁRMACO) INATIVO TRANSPORTADOR ORGANISMO BIOTRANSFORMAÇÃO ACICLOVIR FÁRMACO ATIVO + TRANSPORTADOR ELIMINADO DO ORGANISMO Figura 2 – Aciclovir e seu pró-fármaco valaciclovir 10 11 Outro exemplo de pró-fármaco clássico é a levodopa, utilizada no tratamento da Doença de Parkinson. Nessa patologia, ocorre degeneração dos neurônios dopaminérgicos levando a uma diminuição e à ação do neurotransmissor dopamina. A administração da dopamina sintética não é viável, pois ela apresenta alta polarida- de e não atravessa as membranas e a barreira hematoencefálica. Devido a isso, a estrutura química da dopamina foi sintetizada com a adição de um transportador formando um aminoácido com maior característica apolar o que permite a passagem pelas membranas e barreira hematoencefálica. Depois da passagem para o Sistema Nervoso Central, a levodopa é descarboxilada, sendo transformada em dopamina (THOMAS, 2003). A ilustração desse mecanismo é apresentada na Figura 3. HO HO NH2 OH O HO HO O OH NH2 HO HO NH2 DOPAMINALEVODOPABARREIRALEVODOPA Figura 3 – Levodopa pró-fármaco da dopamina Fonte: Adaptada de THOMAS, 2003 Pró-fármacos bioprecursores Esses pró-fármacos não apresentam transportadores. A molécula administrada é inativa e, após a biotransformação, transformam-se em fármacos ativos sem perda de transportador. A maioria dos pró-fármacos presentes hoje no Mercado são bioprecursores. Na Figura 4, podemos observar o esquema de bioativação do omeprazol, um pró- -fármaco bioprecursor utilizado no tratamento de úlcera e de gastrite. O omeprazol é uma base fraca que, quando concentrada na secreção ácida, reage com um próton e gera uma sulfenamida. Essa sulfenamida interage por meio de uma ligação covalente com um receptor da H+ K+‐ATPase (bombade prótons) inibindo a liberação de ácido clorídrico (LOURENÇO, 2010). 11 UNIDADE Latenciação de Fármacos H3C H H H O N N NH S O CH3 OCH3 pH H3CO CH3H3C HN NH O S H3CO sulfenamida N+ + omeprazol H3C CH3 N+ NHN S OCH3 Interação com o sítio de ação HS OCH3 H3C -H2O OCH3 OCH3 CH3 N+ N S SHN OCH3 H K ATPase + + H K ATPase + + Figura 4 – Ativação do pró-fármaco bioprecursor omeprazol Fonte: Adaptada de BARREIRO, 2015 A lovastatina é inibidor da enzima HMG–CoA (3-hidroxi-3-metilglutaril coenzima-A redutase). Essa enzima é fundamental para a biossíntese do colesterol. A lovastatina é um pró-fármaco bioprecursor (Figura 5), inibidor da enzima HMG- -CoA redutase, utilizado no tratamento das hipercolesterolemias (LEMKE, 2008). O O O O O O O OHO HO OH lovastatina composto ativo Figura 5 – Lovastatina e seu composto ativo Pró-fármacos recíprocos Os pró-fármacos recíprocos, assim como os pró-fármacos clássicos, apresentam transportadores, mas, nesse tipo de latenciação, o transportador também apresenta uma ação terapêutica após a hidrólise e não é eliminado de forma inativa, como ocorre com os pró-fármacos clássicos. Esses transportadores podem ter ação terapêutica semelhante ao fármaco que está ligado para promover um sinergismo, ou seja, potencializar a ação ou, ainda, apresentar ação farmacológica com a vantagem de administrar somente um fármaco em casos de tratamentos nos quais mais de um tipo de fármaco é necessário (CHUNG, 2005). A sulfassalazina é um bom exemplo de pró-fármaco recíproco. É utilizada no tra- tamento de colite ulcerativa. Esse pró-fármaco, após sofrer biotransformação, libera 12 13 sulfapiridina e ácido aminossalicílico (5-ASA), ambos farmacologicamente ativos, como representado na Figura 6 (CHUNG, 2005). HOOC HO N N N N H2NNH2 5-ASA HO HOOC Sulfassalazina biotransformação Sulfapiridina SO2NH SO2NH Figura 6 – Pró-fármaco recíproco sulfassalazina Pró-fármacos mistos Os pró-fármacos mistos são caracterizados por terem dois métodos de latenciação: pró-fármacos clássicos e bioprecursores, isto é, primeiramente, são moléculas inativas ligadas a transportadores, mas, após a reação de hidrólise, o fármaco permanece inativo necessitando de uma segunda reação de biotransformação para se tornar ativo. Esse tipo de pró-fármaco aumenta a seletividade do fármaco pelo fato de sua ativação ser próxima ao local de ação (CHUNG, 2005). Exemplo desse tipo de pró-fármaco também é conhecido como CDS (Chemical Delivery System), desenvolvido para liberação específica no Sistema Nervoso Central (SNC). Por meio desse Sistema, o transportador permite a passagem do fármaco pela Bar- reira Hematoencefálica (BHE). Dentro do SNC, o transportador é liberado, porém o fármaco continua inativo. Em seguida, sofre reações de fosforilações, tornando-se ativo. Esse Sistema foi usado para o planejamento de vários fármacos antivirais para o tra- tamento da Síndrome da Imunodeficiência Adquirida (AIDS), como a Zidovudina (AZT), ilustrada na Figura 7 (CHUNG, 2005). 13 UNIDADE Latenciação de Fármacos O O HN O N O O O O OP O AZT–a CDS saída do transportador fosforilação acumulado no cérebro AZT-P– O N3 HN O N O N3 O HN O ON PO O O– O N3 O N O OH N3 HN O OO HN O N O O O O P O H PO O O O P O O O n=1,2 desfosforilação acil fosfatase Figura 7 – Ilustração da ativação de um pró-fármaco misto Fonte: Adaptada de CHUNG, 2005 Pró-fármacos dirigidos Como o próprio nome diz, esse tipo de pró-fármaco dirige-o para o seu local de ação. Os estudos para aumentar a seletividade dos fármacos ao local de ação têm sido bastante pesquisados pelos métodos de latenciação, pois o aumento da seletividade, consequentemente, eleva a eficácia do fármaco e diminui os efeitos colaterais, pois as moléculas são mais direcionadas ao alvo e se ligam em menores proporções a outros receptores. Esse método consiste em alta seletividade sendo também conhecido como ADEPT (Terapia Dirigida por Anticorpo-Enzima-Pró-Fármaco), muito estudado para o desen- volvimento de antineoplásicos devido à baixa seletividade desses fármacos pelas célu- las neoplásicas. Com isso, ocorre alta ligação desses agentes com células sadias, promovendo diver- sos efeitos colaterais e toxicidade. Esse sistema utiliza uma enzima não existente no or- ganismo humano acoplada a um anticorpo monoclonal, que vai interagir com as células neoplásicas e a enzima atuará como um sinalizador para o direcionamento do fármaco. A administração desse Sistema consiste em duas etapas, como demonstrado na Figura 8 (CHUNG, 2005): • Primeira etapa: administra-se o anticorpo monoclonal acoplado à enzima (1). O anticorpo reconhece a superfície de uma determinada célula neoplásica e se liga a um determinado receptor dessa célula, permanecendo ligado à enzima (2); 14 15 • Segunda etapa: administra-se, então, o pró-fármaco (3), no qual o transportador apre- senta alta seletividade pela enzima que está acoplada ao anticorpo, ou seja, essa enzi- ma atua como um sinalizador para atrair o pró-fármaco para aquela célula. Quando o pró-fármaco se aproxima do complexo anticorpo-enzima ligado à célula neoplásica, o transportador reage com a enzima acoplada ao anticorpo (4), liberando o fármaco ativo (5), que promoverá ação (6) contra a célula tumoral (CHUNG, 2005). Figura 8 – Representação esquemática de ADEPT Fonte: Adaptada de CHUNG, 2005 Estudos desse tipo de sistema estão sendo pesquisados com diferentes combinações de anticorpos, enzimas e pró-fármacos para diversos tipos de tumores. Porém é ne- cessário que a célula neoplásica apresente um antígeno diferenciado das células sadias e reconheça o anticorpo acoplado à enzima. Sendo assim, a eficácia do tratamento é melhorada e com menos toxicidade (CHUNG, 2005). A latenciação tem se mostrado um método muito interessante no desenvolvimento de novos fármacos, sobretudo, com busca na melhora das propriedades farmacocinéticas, assim como fármacos mais seletivos e com menos toxicidade. A Química Farmacêutica é necessária para conhecer a ação molecular dos fármacos e tornar possível o desenvol- vimento de novos fármacos no futuro (CHUNG, 2005). 15 UNIDADE Latenciação de Fármacos Material Complementar Indicações para saber mais sobre os assuntos abordados nesta Unidade: Livros Farmacologia RANG, H.P; DALE, M. M.; RITTER, J. M. Farmacologia. 8. ed. Rio de Janeiro: Elsevier, 2016. An Introduction to Medicinal Chemistry PATRICK, G. L. An Introduction to Medicinal Chemistry. Nova Iorque: Oxford University Press Inc., 2009. Farmacologia SILVA, P. Farmacologia. 6. ed. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 2002. Vídeos Latenciação de Fármacos https://youtu.be/kKAnUb5gRtg Leitura O Processo de Latenciação no Planejamento de Fármacos https://bit.ly/32VZD0i Latenciação e Formas Avançadas de Transporte de Fármacos https://bit.ly/3t3oXvV Abordagens da Química Medicinal para o Planejamento de Protótipos de Fármacos SILVA, T. F. Abordagens da química medicinal para o planejamento de protótipos de fár- macos. Revista Virtual Química, Rio de Janeiro, n. 5, v. 5, p. 921-933, 2013. https://bit.ly/3gPOndV 16 17 Referências BARREIRO, E. J.; FRAGA, C. A. M. Química medicinal: bases moleculares da ação dos fármacos. 3. ed. Porto Alegre: Artmed, 2015. CHUNG, M. C. et. al. Latenciação e formas avançadas de transporte de fármacos. Rev. Bras. Cienc. Farm., São Paulo, v. 41, n. 2, 2005. LEMKE, T. L.; WILLIAMS, D. A.; FOYE, W. O. Foye’s principles of medicinal chemistry. 6. ed. Filadélfia: Lippincott Williams & Wilkins, Wolters Kluwer, 2008. LOURENÇO, A. L. Gestão das inovações incrementais, o caso omeprazola. Quimica Nova, São Paulo, v. 33, n. 4, p. 1000-1004, 2010. MONTANARI, C. A química medicinal métodos e fundamentos em planejamento de fármacos. São Paulo: EDUSP, 2011. THOMAS, G. Química Medicinal: uma Introdução. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 2003. WERMUTH, C. G. et al. The Practice of MedicinalChemistry. 4. ed. 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