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1 Metodologia Específica do Ensino de Física Profa. Janes Kened- UFPA Licenciatura em Física à Distancia– UAB/UFPA METODOLOGIA ESPECÍFICA DO ENSINO DE FÍSICA Apostila Profa. Janes Kened – UFPA Professora da Disciplina Belém - Pará - Brasil 2015 3 Obs. Os textos presentes neste material são apenas para consulta e orientação do trabalho pedagógico desenvolvido no percurso da disciplina, não podendo ser comercializado/vendido. As citações de autoria se fazem presentes em cada capitulo. Devendo ser citado, caso utilizado. Sumário 1 UNIDADE 1 TEXTOS INICIAIS...........................................................................................5 1.1 Superação das visões deformadas da ciência e tecnologia: um requisito essencial para a renovação da educação científica. (Autores organizadores: António Cachapuz; Daniel Gil-Perez; Ana Maria Carvalho; João Praia; Amparo Vilches) .........................................................................................................................................5 1.2 Ensino de Física: objetivos e imposições no ensino médio (Autores: Cleci Werner da Rosa e Álvaro Becker da Rosa).........................................................................................6 1.3 Professores de física em formação inicial: o ensino de física, a abordagem CTS e os temas controversos (Autores: Luciano Fernandes Silva; Luiz Marcelo de Carvalho)........................................................................................................................38 1.4 O gostar e o aprender no ensino de física: uma proposta metodológica (Autores: Helio Bonadiman; Sandra E. B. Nonenmacher)..............................................................39 2 UNIDADE 2 - PROPOSTAS DE ATIVIDADES PRÁTICAS PARA O ENSINO DE FÍSICA......40 2.1 Trânsito e a primeira lei de Newton (Autor: Paulo Henrique de Sousa Silva)...............40 2.2 A luz (Nível I) .................................................................................................................41 2.3 A matéria (Nível I) .........................................................................................................54 2.4 O movimento (nível II)....................................................................................................68 2.5 A luz (nível II)...................................................................................................................82 3 UNIDADE 3 - TEXTOS PARA AS ATIVIDADES EM GRUPO..............................................99 3.1 Água de lastro: um Problema de hidrostática (Autor: Vitor Cossich de Holanda Sales...............................................................................................................................99 3.2 O motor a combustão na sociedade (Autor: João Paulo Fernandes)..........................107 3.3 Produção de energia elétrica em usinas hidrelétricas (Autor: José Roberto da Rocha Bernado)......................................................................................................................116 3.4 Espelhos planos (Autor: Eduardo Oliveira Ribeiro de Souza) ......................................130 UNIDADE 1 Capítulo 1:Superação das visões deformadas da ciência e da tecnologia: um requisito essencial para a renovação da educação científica. Organizadores: Daniel Gil-Perez, Anna Maria Pessoa de Carvalho, João Praia, Amparo Vilches Livro: A Necessária renovação do ensino das ciências/ António Cachapuz...[et al], ( organizadores). — São Paulo : Cortez, 2005. ISBN 85-249-1114-X Temos dedicado o primeiro capitulo deste livro a expor as razões que apóiam a idéia de uma alfabetização científica para todos os cidadãos e cidadãs e temos analisado as reticências e barreiras sociais que se têm oposto (e continuam a opor-se ) a uma educação científica generalizada, com argumentos que expressam implicitamente a oposição à ampliação do período de escolaridade obrigatória para todos os cidadãos, a suposta incapacidade da maioria da população para uma formação cientifica, etc. A educação científica aparece assim como uma necessidade do desenvolvimento social è pessoal. Mas as expectativas postas na contribuição das ciências nas humanidades modernas (Langevin,1926) não se tem cumprido, e assistimos a um fracasso generalizado e, o que é pior, a uma crescente recusa dos estudantes para a aprendizagem das ciências e incluso para a própria ciência. Esta preocupante distância entre as expectativas postas na contribuição da educação cientifica na formação de cidadãos conscientes das repercussões sociais da ciência – e susceptíveis de se incorporarem numa percentagem significativa, as suas tarefas – e a realidade de uma ampla recusa da ciência e da sua aprendizagem, tem terminado por dirigir a atenção para como se está levando a cabo essa educação científica. Esta análise do ensino das ciências, tem mostrado entre outras coisas, graves discordâncias da natureza da ciência que justificam, em grande medida, tento fracasso de um bom número de estudantes, como a sua recusa à ciência. Compreendeu-se, pois, numerosos estudos mostram que o ensino transmite visões da ciência que se afastam notoriamente da forma como se constroem e evolucionam os conhecimentos científicos (McComas, 1998; Fernández,2000; Gil- Pérez et al., 2001). Visões empobrecidas e distorcidas que criam o desinteresse, quando não a rejeição, de muitos estudantes e se convertem num obstáculo para a aprendizagem. Isto está relacionado com o facto de que o ensino científico- incluindo o universitário – reduziu-se basicamente à apresentação de conhecimento s já elaborados, sem dar ocasião aos estudantes de se aproximarem das actividades características do trabalho científico (Gil-Pérez et al., 1999). Deste modo, as concepções dos estudantes – incluindo as dos futuros docentes- não se afastaram daquilo a que pode chamar uma imagem “ folk”,”naif” ou “popular” da ciência , 5 Revista Electrónica de Enseñanza de las Ciencias Vol. 4 Nº 1 (2005) Ensino de Física: objetivos e imposições no ensino médio Cleci Werner da Rosa e Álvaro Becker da Rosa Área de Física.Universidade de Passo Fundo/Brasil. E-mail: cwerner@upf.br Resumo: O presente texto destina-se a proporcionar uma reflexão sobre os critérios adotados pelos professores no momento da seleção dos conteúdos que serão desenvolvidos no decorrer do ano letivo, na disciplina de Física na escola de ensino médio. Desta forma, desenvolveu-se uma pesquisa junto a estes professores que exercem docência nesta disciplina junto ao ensino médio no município de Passo Fundo/RS, questionando os critérios utilizados por eles neste processo de seleção dos conteúdos. Com isso, foi possível identificar elementos que tem subsidiado este processo seletivo apontando a existência de questões que ultrapassam a epistemologia do professor e interferem na sua ação pedagógica de modo a determinarem regras próprias e direcionarem o ensino da Física na escola básica. Na busca pelo referencial teórico como forma de fundamentar esta pesquisa julgou-se ser conveniente proceder a uma revisão na literatura existente, contemplando aspectos relacionados ao processo de transposição didática, dentro da didática das ciências, ao processo ensino-aprendizagem na perspectiva sócio-interacionista e ainda, resgatar aspectos histórico referente ao ensino de Ciências, em particular de Física, enquanto disciplina integrante do processo de formação básica no sistema educacional brasileiro. Palavras chave: Física, ensino médio, seleção de conteúdos. Title: Physics teaching: aim and imposition of the high school Abstract: This work present a reflection about criteria adopted by the teachers at the moment of the selection of the contents that will be developed by the year, in the Physics classes of the high school. The teachers that work with Physics classes on high schoolin Passo Fundo City was inquired about the criteria adopted during the process of the contents selection. Thus, was possible identifier some general parameters of the process, appointing the existence of the questions that transcending the teachers epistemology. This questions interferes in their pedagogic action, and particular rules are created, and the Physics teach is influenced by this rules in primary an high school. Looking for the theoretical references to fundament this work, we proceed to revision of the existing literature about some topics: the didactic transposition in to science didactic process; the teaching-learning process by the social- interaction perspective and finally, recover the historical aspects refers to science teaching, in particular Physics like classes in the Brazilian basic system of education. 6 Revista Electrónica de Enseñanza de las Ciencias Vol. 4 Nº 1 (2005) Key words: Physics, high school, selection of the contents. Introdução As discussões sobre o processo ensino-aprendizagem em Física, principalmente no ensino médio, tem sido tema de várias pesquisas nestes últimos anos. A preocupação central tem estado na identificação do estudante com o objeto de estudo. Em outras palavras, a questão emergente na investigação dos pesquisadores está relacionada à busca por um real significado para o estudo dessa Ciência na educação básica – ensino médio. Não se quer aqui dizer que ela não seja importante para o processo de formação dos estudantes, mas sim, que há uma polêmica em torno da diversidade de enfoques dados ao ensino de Física nesse nível de escolaridade. Parece ser consenso nas pesquisas apresentadas nos principais periódicos do país e debatido nos encontros envolvendo professores e pesquisadores do ensino de Física, que da forma como ela vem se apresentando nos livros- textos e conseqüentemente em sala de aula, está distanciada e distorcida do seu real propósito. As pesquisas de Neto e Pacheco (apud Nardi, 1998), relacionados ao ensino de Física, demonstram que esse tem assumido o caráter de preparação para resolução de exercícios de vestibular. Para esses autores, a situação é comprovada ao observarmos o uso indiscriminado de livros e assemelhados recheados de exercícios preparatórios para as provas de vestibular e que, na sua essência, primam pela memorização e pelas soluções algébricas. Na perspectiva de Souza (2002), os autores dos livros estariam dando essa ênfase demasiada nos vestibulares, como forma de mostrar a sua preocupação com o futuro do aluno. Esta tendência em direcionar o ensino de Física a resolução de problemas, que normalmente estão recheados de cálculos, fortemente influenciados pelo uso do livro didático, tem sido tema de sérias críticas as editoras e, por conseqüência aos autores das obras. A maioria dos livros que circulam nas escolas apresentam os conteúdos como conceitos estanques, dando o caráter de Ciência acabada e imutável a Física. Porém, o mais problemático das obras está na forte identificação que elas agregam entre a Física e os algoritmos matemáticos. Os textos e, principalmente, os exercícios são apresentados como matemática aplicada, na qual a questão fundamental se resume a treinar o estudante na resolução de problemas algébricos. Outro problema identificado no ensino de Física, tem sido a gama imensa de conteúdos que compõe as obras didáticas. É sabido por todos que esta disciplina tem apresentado um número de períodos cada vez mais reduzido nas escolas de ensino médio, principalmente no ensino noturno, que além de não disporem da disciplina curricular de Física nos três anos secundaristas, a contemplam com uma ou duas aulas semanais. Desta forma, o professor precisa selecionar quais os conteúdos que irá abordar diante do complexo da obra didática, tendo que, muitas vezes, pincelar tópicos desconexos, simplesmente por que é necessário contemplar os itens do livro didático. 7 Revista Electrónica de Enseñanza de las Ciencias Vol. 4 Nº 1 (2005) Sob o ponto de vista das leis e diretrizes da educação nacional, os conteúdos mínimos que deverão compor cada disciplina integrante da educação básica, são de certa forma livres, já que não há uma listagem direta destes conteúdos. Tais normativas editados desde a década de 1960, têm assumido a postura de não especificar conteúdos mínimos para a formação dos estudantes em nível de ensino médio, descrevendo apenas os temas que deverão ser abordados e os objetivos a serem atingidos, permitindo que os professores/escolas tenham liberdade de organizar seus programas curriculares de acordo com as necessidades de cada região e adequados a carga horária prevista. Essa situação, tem permitido que professores e em alguns casos instituições, estabeleçam o seu programa em relação aos conteúdos que deverão ser abordados em cada série, provocando questionamentos e distorções nos critérios utilizados neste processo de seleção. Foi da constatação desta realidade, na qual há necessidade de estabelecer critérios para a seleção dos conteúdos a serem abordados na disciplina de Física, é que surge a questão central do processo investigatório do presente texto: quais os critérios utilizados pelos professores no processo de seleção dos conteúdos abordados nas diferentes séries do ensino médio na disciplina de Física. Na busca por pesquisar elementos que fornecessem subsídios a reflexões na questão emergente apontada no parágrafo anterior, buscou-se desenvolver uma pesquisa, por amostragem, junto ao universo de professores de Física que atuam no ensino médio no município de Passo Fundo/RS. A coleta de dados, através de entrevistas, permitiu identificar que a seleção dos conteúdos tem um vínculo direto com um processo específico, voltado para a formação futura em nível de ensino superior desse aluno. Entretanto, esta preocupação não está centrada no desenvolvimento do curso em si, mas no processo de seleção para ingressar neste curso, ou seja, com as provas de seleção na forma de concursos, os vestibulares. Vale lembrar que o processo de seleção, na sua maioria, está muito distanciado daquilo que o aluno necessita para acompanhar o seu curso de graduação. Neste sentido, o sucesso no vestibular não significa que ele estará preparado para cursar sua graduação, ou pelos menos, não representa que o aluno tenha domínio dos conteúdos mínimos necessários para acompanhar as disciplinas deste curso. Refletindo o ensino de ciências no Brasil Ao propor uma discussão no processo ensino-aprendizagem de Física é necessário vinculá-lo ao processo histórico/evolutivo da educação brasileira. Desta forma, é necessário conhecer o processo e os caminhos que levaram a sua inserção nos currículos escolares e as visões que tem sido dadas ao ensino desta Ciência ao longo da história educacional do país. O processo de educação escolarizado no Brasil vem sendo construído ao longo dos anos fortemente apoiados em questões de ordem política, o que de certo modo, tem proporcionado um descaso e uma falta de compromisso com 8 Revista Electrónica de Enseñanza de las Ciencias Vol. 4 Nº 1 (2005) a formação cultural, moral, intelectual e científica do nosso povo. O ensino das Ciências é um reflexo desta situação educacional, já que não existe uma política nacional para o desenvolvimento da Ciência, nem mesmo para direcionar de forma estratégica seu ensino, como já vem acontecendo em países como a Inglaterra, a França, a Alemanha e outros. Nestes paises a política estrategista existe desde o século XVIII, definindo como se deve ensinar, qual a prioridade e a inclinação que necessitam ser dadas a Ciência e ao seu ensino nas escolas e nas universidades. Olhando o aspecto histórico, identifica-se que o ensino de Física no Brasil é algo recente, passando a ser objeto de estudo nas escolas de maneira mais efetiva a partir de 1837, com a fundação do Colégio Pedro II, no Rio de Janeiro. O ensino na épocabaseava-se na transmissão de informações através de aulas expositivas, visando à preparação para os exames que proporcionavam a continuidade dos estudos. Data-se 1934 como o ano em que foi criado o primeiro curso de graduação em Física no Brasil Sciencias Physicas, junto a Faculdade de Philosophia, Sciencias e Letras da Universidade de São Paulo. Este curso visava formar bacharéis e licenciados em Física, sendo os últimos destinados a lecionar em escolas desde o ensino fundamental até o superior. Porém, foi a partir dos anos de 1950, que a Física passou a fazer parte dos currículos desde o ensino fundamental até o médio, tendo sua obrigatoriedade ocorrido em função da intensificação do processo de industrialização no país. A este fator somou-se o incentivo dado ao ensino de Ciências nas escolas de formação básica nos anos pós-guerra (após o término da II Guerra Mundial) como forma de atrair estudantes para a formação superior nessa área do conhecimento. Este incentivo adveio do governo americano e estendeu-se por toda a América Latina, implementando um ensino caracterizado pelo domínio de conteúdos e pelo desenvolvimento de atividades experimentais, tendo como referência o modelo americano. Professores foram treinados em curso específicos visando à perpetuação do modelo conteudista experimental. Este fato tem tido reflexos no ensino dessa Ciência até hoje em virtude de muitos professores que hoje ministram aulas, principalmente nas academias formadoras dos professores da educação básica, terem tido seu processo de formação na época dos anos pós-guerra, fortemente identificado com a visão conteudista. No período anterior à Segunda Guerra Mundial, as atividades experimentais no ensino de Física eram poucas e centradas na demonstração por parte do professor, pois eram constituídas por arranjos experimentais sofisticados, com custos elevados. Esse período ficou conhecido como a Era das Máquinas, cujo objetivo consistia na demonstração do fenômeno físico de modo a ilustrar a teoria. Entretanto, após a década de 1950, a concepção acerca das atividades experimentais modificou-se, passando a privilegiar a montagem das experiências pelos alunos. Os estudantes recebiam kits para a montagem do experimento que desejavam estudar, ocorrendo assim, uma mudança radical na postura que estava sendo dada as aulas práticas de Física. 9 Revista Electrónica de Enseñanza de las Ciencias Vol. 4 Nº 1 (2005) Na década de 1960, os investimentos em educação continuavam dependendo de capital estrangeiro, mas ao mesmo tempo, iniciava-se um movimento de reforma da educação brasileira, principalmente com a instituição da primeira Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), em 1961. No ensino de Física, identifica-se esta época com os consideráveis investimentos na aquisição de materiais para aulas experimentais, sobretudo através de convênios com instituições e governos estrangeiros. Chegavam as escolas os kits de materiais didáticos, sempre acompanhados de livros que serviam de roteiros-guia para as atividades dos professores, perpetuando, desta forma, o modelo de ensino difundido nos programas. Segundo Popkewitz (1997), o movimento de reforma do currículo dos anos 60 surgiu dentro de uma euforia geral sobre o papel da Ciência no progresso do mundo., idealizando a visão técnica da Ciência, priorizando o conhecimento científico produzido por cientistas desinteressados pelos valores sociais e que baseavam seus trabalhos de pesquisas em normas de consenso geral (p. 151). No início da década de 1970, despertou no Brasil, assim como em outros países, a corrida para a modernidade, para o desenvolvimento, passando-se a ver na educação, em especial no ensino de Ciências, um elemento fundamental para se alcançar tal sucesso. Segundo Gouveia (1992): “Para atingir o nível de desenvolvimento das grandes potências ocidentais, a educação foi considerada como alavanca do progresso. Não bastava olhar a educação como um todo, era preciso dar especial atenção ao aprendizado de Ciências. O conhecimento científico do mundo ocidental foi colocado em cheque e ao mesmo tempo, foi tido como mola mestra do desenvolvimento, pois era capaz de achar os caminhos corretos para lá chegar e também se sanar os possíveis enganos cometidos (p. 72).” A educação nacional passou por um redimensionamento na questão relativa a educação para o trabalho, surgindo a obrigatoriedade do ensino secundário ser preparatório para o trabalho independentemente do nível socioeconômico dos alunos. Este tipo de ensino tinha como objetivo claro, diminuir o acesso desses alunos ao ensino superior, encaminhando os mesmos para o mercado de trabalho mais rapidamente, consolidando assim na prática a visão americana da educação como fonte para o progresso econômico do país. Em decorrência dessa situação, o ensino de Ciências nas escolas sofreu, um período de adaptação ao ensino profissionalizante. Nas décadas de 1980 e 1990, o país passou por uma reorganização no campo político e o ensino de Ciências, tomava em termos mundiais uma dimensão de produção do conhecimento voltada para os avanços tecnológicos. Já não se pode mais separar Ciência da Tecnologia e iniciava-se uma discussão em torno dos benefícios desta associação para os homens e para a sociedade. Havia necessidade de uma melhoria no ensino das Ciências no Brasil e no mundo, aproximando-o das necessidades permanentes da sociedade em que os indivíduos estão inseridos. 10 Revista Electrónica de Enseñanza de las Ciencias Vol. 4 Nº 1 (2005) No Brasil mais uma vez, de concreto não sofreu alterações significativas no ensino de Ciências, permanecendo um ensino preso a modelos tradicionais. O ensino de Física em particular, não consegue atingir os níveis desejados, sendo praticado, na sua grande maioria, por professores que desconheciam as relações entre Sociedade, Tecnologia e Ciência, mantendo-se arraigados aos processos de ensino voltado a informação, sem qualquer vínculo com as concepções modernas de educação. Hoje, no início do século XXI, mais de cem anos de história se passaram desde a introdução da Física nas escolas no Brasil, mas sua abordagem continua fortemente identificada com aquela praticada a cem anos atrás: ensino voltado para a transmissão de informações através de aulas expositivas utilizando metodologias voltadas para ao resolução de exercícios algébricos. Questões voltadas para o processo de formação dos indivíduos dentro de uma perspectiva mais histórica, social, ética, cultural, permanecem afastadas do cotidiano escolar, sendo encontradas apenas nos textos de periódicos relacionados ao ensino de Física, não apresentando um elo com o ambiente escolar. Refletindo o processo de transposição didática Retomando a questão relacionada à seleção dos conteúdos no âmbito da ação didática do professor, acredita-se ser imprescindível a análise no processo de transposição didática. Este termo transposição didática foi utilizado por Chevallard no estudo da matemática, sendo definido como: “Um conteúdo do conhecimento, tendo sido designado como saber a ensinar, sofre então um conjunto de transformações adaptativas que vão torná-lo apto a tomar lugar entre os objetos de ensino. O trabalho que, de um objeto de saber a ensinar faz um objeto de ensino, é chamado de transposição didática” (Chevallard e Johsua, 1991, p.39). Assim, no estudo de questões curriculares é necessário reconhecer os caminhos pelos quais um conhecimento é transformado em objeto de ensino, identificando as diferentes formas como esta relação ocorre. Segundo Grando (2000), Chevallard, enfatiza que, quando um objeto de saber (um conceito, um conhecimento científico) é designado como saber a ensinar, ele sofrerá transformações no sentido de adaptá-lo ao ensino (conteúdos escolares). Este processo, no entender de Grando, ocorre porque o funcionamento didático é diferente do funcionamento sábio (sábio estárelacionado ao savoir savant, traduzido como saber sábio ou conhecimento científico), havendo dois regimes de saber, inter-relacionados mas não sobrepostos. Para Chevallerd, essa modificação que o saber gerado no mundo científico sofre é inevitável, pois sem ele não haveria possibilidade didática de concretizar o processo ensino-aprendizagem de um determinado conceito. O processo de transposição didática se divide em duas etapas: uma externa ao contexto escolar, pertencente à seleção dos conteúdos de saber a ensinar até a chegada na escola; outra interna, que se refere à apropriação do conteúdo pela escola e à chegada desse ao aluno. 11 Revista Electrónica de Enseñanza de las Ciencias Vol. 4 Nº 1 (2005) Pinho Alves (2000) menciona que, O termo saber (savoir) é utilizado para designar o objeto sujeito a transformações (...) o processo de transposição didática estabelece a existência de três patamares, ou níveis para saber: (a) o saber sábio (savoir savant); (b) o saber a ensinar (savoir à enseigner) e (c) saber ensinado (savoir ensigné). (p. 178) Analisando os trabalhos de Chevallard e Pinho Alves, é possível identificar o trabalho externo como aquele relacionado ao saber sábio e ao saber a ensinar, enquanto o trabalho interno estaria associado ao saber ensinado. Por saber sábio entende-se aquele que advém da produção do conhecimento ou da apresentação deste a sociedade, relacionado, portanto, diretamente com o trabalho do mundo científico. Esse saber é gerado a partir de indagações e investigações dos cientistas na busca por respostas desejadas, estando vinculado a concepções e interesses políticos, econômicos e sociais. Já a apresentação deste conhecimento à sociedade, assim como as tecnologias advindas como decorrências destas pesquisas, sofrem um processo de transposição, antes mesmo de se tornarem objeto de ensino. Isto ocorre, já que há necessidade de tornar o saber científico compreensível as sociedades em geral. Ainda na esfera externa, encontra-se um grupo diferente daquele que produziu o conhecimento ou mesmo que o apresentou a sociedade, responsável pela organização e seleção dos conhecimentos que deverão ser transformados em objetos de ensino. Este grupo, sob regras próprias, passa a gerar um novo saber, tendo a competência de tornar esse conhecimento em saber que possa ser ensinado nas escolas. Segundo Pinho Alves (2000), “o saber a ensinar é produto organizado e hierarquizado em graus de dificuldade, resultante de um processo de total descontextualização e degradação do saber sábio. Enquanto o saber sábio apresenta-se ao público através das publicações científicas, o saber a ensinar faz-se por meio dos livros-textos e manuais de ensino” (p. 179). A apresentação desse saber a ensinar, após sofrer as adaptações necessárias, passa a compor os livros textos. Ele tem se apresentado linearizado, elaborado a partir dos níveis de desenvolvimento do aluno, seguindo uma lógica seqüencial, permitindo que a apropriação do conhecimento ocorra de forma facilitada ao aluno, diferente daquela que originou o objeto de estudo ou da maneira pela qual ele foi apresentado a sociedade. Esses saberes sofrem um processo de descontextualização e passam a representar generalizações. Nesse processo muito se perde da história e das circunstâncias nas quais o saber emergiu. Tais situações são omitidas, dando lugar a um anonimato e a uma descontextualização do saber, assim como ocorre na despersonalização das publicações científicas na esfera do saber sábio. Um exemplo da discordância entre a produção do saber e elaboração do saber a ensinar na escola, é analisada por Astolfi se referindo a observação de Martinand sobre os estudo do efeito foto elétrico nos manuais franceses de ensino: “A maior parte dos manuais franceses de física expõe o efeito foto elétrico dando, primeiramente, as leis experimentais. Mostram, em seguida, 12 Revista Electrónica de Enseñanza de las Ciencias Vol. 4 Nº 1 (2005) que essas leis são bem explicadas pela teoria do fóton de Einstein. Ora, a teoria de Einstein data de 1905 e era apresentada como um ponto de vista heurístico, ao passo que as experiências haviam sido feitas com muitas dificuldades técnicas por Milikan em 1916” (Martinand apud Astolfi, 1995, p.50) Já na esfera interna o saber atinge um novo nível, agora mais próximo do aluno, relacionado com a maneira pela qual ele é transformado em objeto a ser ensinado. Essa tarefa cabe ao professor, que arraigado ao contexto escolar, impõe de certa forma a sua organização e decide, em conjunto com a escola, a melhor maneira pela qual o saber a ensinar possa ser de fato ensinado aos alunos. É nessa instância que se destaca a participação do professor como elemento mediador entre o conhecimento (saber a ser ensinado) e o aluno. Aqui é importante destacar que é nessa esfera que ocorre o processo de seleção dos saberes a serem ensinados aos alunos. O professor e a escola têm autonomia suficiente para decidir quais os conteúdos que deverão ser abordados em cada série, assim como decidir quais as obras didáticas que servirão de referência no desenvolvimento das aulas. Outro ponto importante e que pertence à esfera interna do processo de transposição didática estando relacionada diretamente a ação do professor, são as atividades práticas/experimentais. Cabe ao professor, que conjuntamente com a escola, toma a decisão pela utilização ou não das atividades práticas/experimentais no ensino de Física. Entretanto, vale lembrar que há um consenso acerca da validade de realização de práticas experimentais no ensino de Física por parte dos professores, seja no sentido de metodologia de ensino como solução das dificuldades de aprendizagem ou para a ilustração de um fenômeno discutido teoricamente. Não menos importante que as questões já mencionadas a respeito da transformação do saber na esfera do professor, o trabalho de Martinand mostra que esta deve estar relacionada às práticas sociais de referência, buscando uma aproximação entre os conteúdos a serem transmitidos e a realidade dos alunos. Por práticas sociais de referências o autor entende a proximidade dos conteúdos com a cultura e o cotidiano do aluno, de maneira a buscar um significado ao objeto de estudo, não correndo o risco de ter um ensino vazio de significado (Martinand apud Astolfi, 1995) Diante dessa análise do processo de transposição didática relacionada ao ensino de Física, é possível identificar que esta se refere às questões pedagógicas dos conteúdos, de maneira a buscar uma combinação entre o conhecimento científico, produzido pelos elaboradores da ciência, e o que de fato possa ser compreendido pelos alunos. A expressão questões pedagógicas dos conteúdos foi criada por Schulman para expressar as formas mais úteis de representação daquelas idéias, as mais poderosas analogias, exemplos, ilustrações, explicações e demonstrações, numa palavra, as maneiras de representar e formular a matéria de modo a torná-la compreensível para os outros (Schulman, 1986, p. 9). Associada às questões pedagógicas dos conteúdos está o processo de seleção dos tópicos abordados em cada série. 13 Revista Electrónica de Enseñanza de las Ciencias Vol. 4 Nº 1 (2005) Essa questão tem provocado polêmica em virtude dos critérios que tem sido utilizado neste processo seletivo. Refletindo o processo ensino-aprendizagem O processo ensino-aprendizagem de Física vincula-se diretamente ao campo das estruturas cognitivas dos indivíduos, a aprendizagem cognitiva. Neste sentido, discutir o processo escolarizado do ensino de Física requer uma identificação com as teorias cognitivas de aprendizagem, como forma de discutir os mecanismos que favorecem a compreensão dos conceitos e fenômenos físicos. Diversas são as teorias que tem sido propostas como forma de subsidiar o ensino nestes últimos anos, porém algumas podem ser vinculadas diretamente ao ensino de Física. Nestesentido, as teorias ditas construtivistas que buscam na construção do conhecimento o meio favorável a sua compreensão, parecem ser mais adequadas a proposta deste trabalho. Dentre as construtivistas, encontramos a teoria histórico-cultural que fornece insight sobre como, de fato, se efetiva uma aprendizagem baseada na apropriação do conhecimento, atribuindo enorme importância ao papel da interação social no desenvolvimento do ser humano. Os estudos de Vygotsky apontam para a inter-relação entre aprendizagem e desenvolvimento, porém mostram que aprendizagem não é desenvolvimento, visto que progride de forma mais lenta e após o processo de aprendizado (1999). Continua Vygotsky: “... o aprendizado adequadamente organizado resulta em desenvolvimento mental e põe em movimento vários processos de desenvolvimento que, de outra forma, seriam impossíveis de acontecer. Assim, o aprendizado é um aspecto necessário e universal do processo de desenvolvimento das funções psicológicas culturalmente organizadas e especificamente humanas” (p. 118). Portanto, o desenvolvimento pleno do ser humano depende do aprendizado que ele realiza num determinado grupo cultural, a partir da sua interação com outros indivíduos. Mais especificamente, com relação ao processo ensino- aprendizagem, Vygotsky (1999) afirma que “o bom ensino é aquele que se adianta ao desenvolvimento”. Ao possibilitar a existência de zonas de desenvolvimento proximal, o professor estaria forçando o aparecimento de funções ainda não completamente desenvolvidas. Para Vygotsky, as disciplinas escolares são capazes de orientar e estimular o desenvolvimento de funções psíquicas superiores uma vez que se ligam ao sistema nervoso central. A teoria histórico-cultural evidencia a relação entre o social e a aprendizagem escolar. No ensino de Física, percebe-se a importância dessa interação social no processo de aprendizagem escolar, já que esta Ciência se encontra próxima e presente na realidade do educando. Neste sentido, a teoria enfatiza a relação entre os conceitos científicos (ambiente escolar) e os conceitos espontâneos (apropriados no cotidiano), como forma de favorecer a formação dos conceitos. As proposições de Vygotsky a respeito deste processo de formação de conceitos possibilita verificar a relação existente entre o pensamento e a linguagem, pelos quais ocorre a internalização do 14 Revista Electrónica de Enseñanza de las Ciencias Vol. 4 Nº 1 (2005) conhecimento, e as relações estabelecidas entre os conhecimentos cotidianos e os científicos. O autor afirma: “A formação de conceitos é o resultado de uma atividade complexa, em que todas as funções intelectuais básicas tomam parte. No entanto, o processo não pode ser, reduzido a associação, à atenção, à formação de imagens, à interferência ou as tendências determinantes. Todas são indispensáveis, porém insuficientes sem o uso do signo, ou palavra, como o meio pelo qual conduzimos as nossas operações mentais, controlamos o seu curso e as canalizamos em direção à solução do problema que enfrentamos” (Vygotsky, 1999, p. 72). Na formação dos conceitos, salienta-se o confronto entre o conhecimento cotidiano e o científico, que embora pareçam antagônicos, não o são; apenas pertencem a diferentes níveis de desenvolvimento da criança, ou seja, enquanto criança, ela, de fato, entra em conflito com os conhecimentos cotidianos e os discutidos na escola, porém, à medida que ela se desenvolve, tais divergências deixam de existir, dando lugar a um relacionamento mais abrangente, no qual se torna importante a busca pela proximidade entre esses tipos de conhecimento. Vygotsky acredita que esses dois conceitos se relacionam e se influenciam constantemente, fazendo parte de um único processo: o desenvolvimento da formação dos conceitos. Pode-se dizer que a formação de conceitos é afetada por diferentes condições, tendo no aprendizado escolar a força que impulsiona o desenvolvimento mental da criança. No entanto, cabe salientar que, como os conceitos científicos e cotidianos são formulados em condições diferenciadas, produzirão também desenvolvimento diferenciado na mente da criança. Considera-se que, por trás de qualquer conceito científico, existe um sistema hierarquizado do qual ele faz parte e que, por sua vez, pressupõe uma relação consciente e consentida entre sujeito e objeto do conhecimento. O ambiente escolar é considerado o espaço ideal para a aquisição desse tipo de conceito. No entanto, ele se apresenta vinculado ao espontâneo, cujo cerne se encontra na convivência do indivíduo com o mundo que o cerca. Vygotsky (1999) mostra que, à medida que os conceitos científicos avançam, os espontâneos também progridem, permitindo que a relação se dê cada vez mais de forma integrada e associada. Para ele, a tarefa principal do professor é de mediador entre o aluno e o objeto de conhecimento. Quanto à internalização concreta e verdadeira de um conceito por parte de um aluno, Vygotsky (apud Moysés, 1997, p.36) mostra que “[...] o professor, trabalhando com o aluno, explicou, deu informações, questionou, corrigiu o aluno e o fez explicar”. A última expressão "e o fez explicar", é a essência do mecanismo de internalização do conhecimento. No momento em que o professor solicita que um aluno explique o conceito desenvolvido em aula, conseguirá detectar se, de fato, ele se apropriou do conceito. Pode-se, entretanto, dizer que os conceitos científicos estão apoiados em bases sólidas dos conceitos cotidianos. Segundo Vygotsky, “o desenvolvimento dos conceitos espontâneos da criança é ascendente enquanto o 15 Revista Electrónica de Enseñanza de las Ciencias Vol. 4 Nº 1 (2005) desenvolvimento dos seus conceitos científicos é descendente” (1999, p. 135). Acrescenta-se a essa concepção a importância da escola no processo, a qual tem a tarefa de tornar os conhecimentos cotidianos (espontâneos) mais abstratos e abrangentes, permitindo abstrações graduais, com diferentes graus de generalizações, avançando na formação completa do pensamento do aluno. Rego (1996) cita um exemplo do avanço escolar que os conhecimentos espontâneos adquirem, tornando-se, assim, científicos, sem negar os anteriores. Afirma que: “ ... a partir do seu dia-a-dia, a criança pode construir o conceito gato. Esta palavra resume e generaliza as características deste animal (não importa o tamanho, a raça, a cor, etc.) e o distingue de outras categorias tal como livro, estante, pássaro. Os conceitos científicos se relacionam àqueles eventos não diretamente acessíveis à observação ou a ação imediata da criança: são conhecimentos sistematizados, adquiridos nas interações escolares. Por exemplo, na escola o conceito gato pode ser ampliado e tornar-se ainda mais abstrato e abrangente. Será incluído num sistema conceitual de abstrações, graduais, com diferentes graus de generalizações: gato, mamífero, vertebrado, animal, ser vivo constituem uma seqüência de palavras que, partindo do objeto concreto gato adquirem cada vez mais abrangência e complexidade”. (p.77) As relações entre os conhecimentos científicos e os adquiridos no cotidiano são particularmente de grande importância para o processo ensino- aprendizagem em Física. Como exemplo da importância desta relação entre o conceito espontâneo trazido pelo aluno para o ambiente escolar e o científico desenvolvido na escola, pode-se analisar o estudo da dilatação dos corpos. O aluno já traz consigo, como fruto de sua relação cotidiano com o meio social, a convicção de que, à medida que um corpo é aquecido, aumenta de tamanho (volume), porém é no ambiente escolar que ele amplia esse conceito, na busca pela sua cientificidade, analisando fatores que interferem nesse aumento; o que significa o aquecimento do corpo; a diferença existente em função da natureza da substância; ou, ainda, a possibilidade de que, ao contrário de se expandir, ele se contraia. É preciso, contudo, considerar que o aprendizadoescolar é de fundamental importância para o processo de desenvolvimento mental, principalmente na perspectiva vygotskyana, a qual prima pelas relações entre os indivíduos e as formas culturais de comportamento. Vygotsky e seus colaboradores basearam- se nos princípios do materialismo dialético e buscaram a interação do homem enquanto corpo e mente, enquanto ser biológico e social, enquanto membro da espécie humana e participante de um processo histórico (Oliveira, 1993). A pesquisa Foi com base nos pressupostos de que o ensino de Física deve atender a uma diversidade de interesses dos educandos no seu processo de formação junto a escola básica – ensino médio, que surgiu o interesse em investigar o processo pelo qual o ensino dessa disciplina vem sendo desenvolvido neste nível de escolaridade. O foco principal deste estudo está relacionado ao 16 Revista Electrónica de Enseñanza de las Ciencias Vol. 4 Nº 1 (2005) processo de seleção dos conteúdos de modo a envolver os critérios utilizados pelos docentes neste processo seletivo. Para tanto, realizou-se uma pesquisa junto a professores que atuam no ensino médio no município de Passo Fundo, com o objetivo de coletar dados que permitissem discutir e analisar a situação apresentada e identificada de antemão. O universo da pesquisa é representado por doze professores em exercício na docência de Física no ensino médio nas escolas públicas e privadas. Este número de professores representa aproximadamente 32% do total de docentes atuando no ensino desta disciplina junto a estas escolas. Os professores investigados apresentam em comum a docência em escolas públicas no município, representando quatro das seis escolas de ensino médio estadual, porém alguns professores também atuam em escolas privadas, representando duas das seis existentes. São professores cuja formação está associada a cursos de graduação para nove dos entrevistados e de pós- graduação (especialização) para os outros três. Outro ponto comum entre eles é identificado no curso de graduação realizado, sendo que para 100% da amostra o curso de graduação é em Matemática, fato comum na região de Passo Fundo. O critério adotado no processo de seleção dos professores era por livre adesão. A pesquisa se classificou como qualitativa e adotou como instrumento no processo investigatório, entrevistas semi-estruturadas, priorizando o diálogo entre pesquisadores e entrevistados. Neste sentido, não foram formuladas perguntas, mas uma única questão abrangente, permitindo que o entrevistado explanasse suas idéias de forma livre. As entrevistas foram guiadas por essa questão principal (tema de investigação), mas sofriam indagações sempre que o pesquisador julgasse merecer maiores esclarecimentos nas colocações dos entrevistados. A escolha por esse instrumento teve como objetivo permitir uma coleta de dados mais significativa, possibilitando cercar a investigação de elementos que por ventura, não estivessem sidos contemplados na elaboração do projeto. Na perspectiva de André (1999), a escolha por uma pesquisa qualitativa deve-se ao tipo de dado que se deseja coletar, como no caso deste estudo, que envolve uma investigação sobre os critérios adotados por um grupo de professores na seleção de conteúdos. O enfoque principal nas entrevistas foi o processo de seleção dos conteúdos desenvolvidos nas diferentes séries do ensino médio na disciplina de Física. A entrevista partiu da questão objeto de investigação: como você procede na seleção dos conteúdos de Física que serão abordados durante o ano letivo. O interesse, como não poderia ser diferente, relacionava-se a identificar tais critérios e de como estes estavam presentes e se faziam impor frente ao processo didático do professor. Neste texto, será dado o limite de abordar os resultados de forma mais generalizados, não cabendo a descrição pormenorizada dos vários aspectos contemplados no estudo, mas sim, fazer referências aos resultados julgados mais significativos para a reflexão proposta. Desta forma, as discussões apresentadas a seguir são decorrentes da análise feita pela transcrição dos 17 Revista Electrónica de Enseñanza de las Ciencias Vol. 4 Nº 1 (2005) dados obtidos com as entrevistas gravadas, de forma a buscar uma fundamentação mais próxima aos aspectos didáticos da esfera interna do processo de seleção dos conteúdos. A primeira questão emergida nas colocações dos professores, foi de que a organização dos tópicos principais de cada conteúdo, assim como a divisão dos assuntos por séries, é praticamente impostas pelo projeto político pedagógico da escola. Cabe ao professor, na maioria dos casos, apenas detalhar a ementa de forma a adaptá-la ao número de períodos semanal. Foi justamente neste aspecto, referente à adaptação no programa da disciplina frente ao número de aulas que esta pesquisa se concentrou. Os professores, na sua maioria, destacaram que os programas apresentados pelas escolas são amplos e que é necessário reorganizá-los de modo a condizerem com a carga horária semanal da disciplina. Neste processo de seleção interna, os critérios elucidados pelos entrevistados estão relacionados a perspectiva futura de vestibular dos seus estudantes. A escolha pelos assuntos que serão desenvolvidos em cada série, tem como justificativa as questões apresentadas pelas universidades próximas, nos últimos vestibulares. Não há como negar que o vestibular tem sido o carro chefe no processo de seleção de conteúdos, sendo que algumas questões têm merecido meses de dedicação e estudos por parte dos alunos, sacrificando tópicos considerados por especialistas no ensino de Física, como fundamentais no processo de compreensão desta ciência. Um exemplo, citado pelos entrevistados, é o estudo da cinemática, envolvendo gráficos e equações de movimentos retilíneos e curvos. Estudos detalhados sobre lançamento de projéteis acompanhados de listas intermináveis de exercícios envolvendo algoritmos matemáticos, são freqüentemente utilizados no ensino de Física. Na fala de uma das entrevistadas: “... não concordo com o ensino da cinemática de modo tão longo, mas os alunos têm dificuldade em matemática e com isso perco muito tempo neste conteúdo, que cai no vestibular, por isso preciso ensinar...” A justificativa do estudo destes tópicos, como foi destacado na fala anterior, está no fato de que, praticamente, todos os vestibulares cobram duas ou três questões envolvendo estes assuntos e, normalmente, recheadas de cálculos. O estudo deste tema, tem provocado um recorte na mecânica, deixando de lado o estudo de energia e seus processos de conservação, que convenhamos, é fundamental para a compreensão da Física das séries seguintes, além de servir de referência para a inserção do aluno no mundo tecnológico do qual ele se faz presente. A situação não é diferente quando se investiga a metodologia utilizada pelos professores no seu processo ensino-aprendizagem. Eles são unânimes em destacar que, em virtude do pouco tempo e da gama imensa de conteúdos, a metodologia centra-se na aula expositiva com a utilização do quadro e giz, praticamente inexistindo atividades como aula experimental em laboratório ou a utilização softwares para demonstrações. Na colocação dos entrevistados, a prioridade é abordar o maior número de tópicos possíveis e realizar um número satisfatório de exercícios. Se houver tempo, reforçar os conteúdos através de experimentos em laboratório. “ ... quando penso em fazer uma 18 Revista Electrónica de Enseñanza de las Ciencias Vol. 4 Nº 1 (2005) atividade prática, logo lembro do tempo, que acaba representando menos exercícios e aí desisto...”, destaca um entrevistado. Essa situação, na qual o vestibular tem sido um forte elemento na seleção dos conteúdos, principalmente na esfera interna do processo de transposição didática, ao qual o professor pertence, não parece ser apenas de responsabilidade do professor. A visão,quase sempre, limitada dos dirigentes das escolas e, até mesmo, das famílias, apontam o sucesso do educando nas provas de vestibular como indicador de eficiência no processo de formação desses estudantes. O fato do aluno estar preparado para responder questões solicitadas no vestibular, tem sido apontado como parâmetro para mudanças ou estagnações no processo escolar, principalmente quando se refere a conteúdos. Na visão da maioria dos pais e, conseqüentemente, dos próprios alunos, o vestibular assume o papel de “termômetro” da eficácia do sistema educativo. Para eles, o desempenho do aluno nas provas de vestibular é o indicativo de que a escola cumpriu ou não o seu papel. “ os pais querem e a direção também acaba querendo uma escola que prepare para passar no vestibular, assim temos que voltar nossos conteúdos para ele, querendo ou não.” Nesse sentido, ocorre uma divergência com a avaliação dos professores, que consideram o vestibular apenas uma etapa posterior ao ensino médio e não elemento norteador dos currículos do ensino médio. Mas ele tem ocupando lugar de destaque no processo educativo, estando presente de forma intensiva e maçante nos livros didáticos, que na sua maioria, primam pela realização de exercícios de vestibular em detrimento de questões voltadas ao cotidiano do educando e que de fato contribuam para a sua formação, envolvendo aspectos humanos, sociais e éticos. Tópicos relativos a experimentação, por exemplo, tem dado espaço cada vez mais a questões envolvendo vestibulares das principais universidades do país. Os experimentos, quando contemplados, tem aparecido timidamente ao final de cada tópico, evidenciando ao professor de que sua utilização é secundária, sendo um apêndice no processo de compreensão dos conceitos pertencentes à Física. Esta falta de sintonia entre as finalidades indicadas para o ensino de Física, decorrentes da visão dos professores e a almejada pelos estudantes com relação aos conteúdos que devem ser abordados na escola, tem interferido no processo didático de transposição dos conceitos produzidos no mundo científico e os ensinados na escola. Segundo um dos entrevistados “ ... não temos muito o que fazer, se o vestibular cobrar o conteúdo e este foi trabalhado nas aulas, a escola e os pais ficam felizes e se dão por satisfeitos ...”. Outro entrevistado foi além e destacou “... não importa se a aula é teórica ou prática, o importante é ensinar aquilo que cai no vestibular e, de preferência, fazer o aluno acertar a questão.” Os depoimentos tomados juntos aos professores caminharam nesta perspectiva, mostrando que o direcionamento deve ser dado para as provas dos exames de vestibular. Entretanto, tal referencial centrado no ingresso no ensino superior não seria de um todo problemático, se ao obterem sucesso 19 Revista Electrónica de Enseñanza de las Ciencias Vol. 4 Nº 1 (2005) nestas provas, estivesse associado ao preparo necessário para o acompanhamento dos futuros cursos de graduação. Porém, esta não é a realidade, a aprovação no vestibular não representa em hipótese alguma, estar em condições de acompanhar o curso superior escolhido. Considerações finais Os resultados apresentados anteriormente sobre aos critérios utilizados no processo de seleção dos conteúdos apontam para uma reflexão em torno da validade do ensino de Física na escola básica, já que este ensino tem sido direcionado para um fim específico: resolver a prova seletiva de vestibular, pelo menos na visão unânime dos entrevistados. Mesmo que os professores tenham consciência da gravidade do problema imposto pelo sistema educacional ao ensino de disciplinas como a Física na escola básica, a mudança no quadro depende de outros fatores que transcendem a lógica interna do ensino. Tais questões decorrem da visão de pessoas que muitas vezes, desconhecem o complexo que representa a educação e quão importante esta etapa é na vida dos indivíduos. O professor é responsável pela culminância do processo de ensino, ele é encarregado por possibilitar mecanismos de eficácia deste sistema, não sendo possível a sua organização e gerencia. Ou seja, o professor deve favorecer a compreensão dos conteúdos específicos de cada disciplina escolar de forma a abranger a gama diversificada de objetivos a que o ensino se propõe, porém não cabe a ele influenciar a esfera que decide e organiza o saber a ser ensinado na escola. Ao mesmo tempo em que se exime o professor de sua responsabilidade sobre a esfera de adaptação do conhecimento científico para os níveis escolares, lhe é legado a responsabilidade sobre o enfoque ou a possíveis abordagens deste conhecimento. Assim, se ele não pode alterar o curso da esfera que seleciona e organiza os conhecimentos, ele poderá contribuir com o direcionamento deste conhecimento. Seguramente, a questão principal que se pode destacar ao final deste trabalho é a mencionada anteriormente, evidenciando a importância do professor no processo de transposição didática. A tomada de consciência por parte do professor acerca desse processo lhe permitirá uma melhor adequação do saber que chega à escola a um saber a ser ensinado aos alunos. Nesse sentido, a sua busca permanente por uma atualização, a retomada reflexiva na sua ação docente e a flexibilidade nas discussões em torno do fazer pedagógico lhe permitirá atingir mais rapidamente o seu objetivo no processo ensino-aprendizagem. A preocupação constante com o ensino da Física e a melhor maneira de aproximá-lo dos alunos lhe fornecerá o suporte necessário para que a Física perca o status de disciplina odiada por todos aqueles que dela se aproximam. Questões importantes, como as mencionados por Martinand, relacionadas às práticas sociais de referência, ou as identificadas por Schulmam, ao discutir as questões pedagógicas dos conteúdos, ou mesmo, as citadas por Pinho Alves, relacionadas à importância das atividades experimentais, não foram 20 Revista Electrónica de Enseñanza de las Ciencias Vol. 4 Nº 1 (2005) mencionadas pelos entrevistados como referenciais no processo de seleção dos conteúdos. Essa falta de diversidade de elementos no suporte dos critérios, demonstram o descaso do docente com o processo de formação do seu aluno, evidenciando por outro lado, um ensino voltado essencialmente para a informação. Priorizar um predicado em prejuízo de outro, não parece ser uma escolha pedagogicamente correta. Os professores que se dizem educadores, voltam suas práticas pedagógicas para questões que transcendem a lógica interna da disciplina. Um conteúdo pode ser validado por aquilo que ele proporciona além dos seus domínios propriamente ditos, ou seja, ao ensinar um conceito deve-se ter clareza da dimensão dos elementos que ele irá abranger. Nesse sentido, ensinar Física é mais do que proporcionar o domínio dos seus conceitos ou fenômenos, é oportunizar um aprimoramento do aluno enquanto pessoa. O processo de formação ética e moral e o desenvolvimento do pensamento crítico, podem ser citados como alguns dos valores de formação pessoal que a Física, enquanto disciplina integrante da escola básica, deve proporcionar. Na conclusão deste texto, fica o desafio para que todos os fatos e esforços se dêem no sentido de promover um ensino no qual o educando seja capaz de pensar, agir, criar, de acordo com as suas necessidades. Acredita-se que, no momento em que o homem tiver condições próprias de pensamento e ação, estará saindo do mundo medíocre em que foi lançado para tomar suas próprias decisões e para posicionar-se como verdadeiro ser humano, dono de seus atos e atitudes. Isso possibilitará a formação de um indivíduo emancipado que pode superar conscientemente as injustiças sociais, transformando a sociedade em que está inserido. Referenciais André, M. E. D. A. (1999). Etnografia na prática escolar. 3 ed. Campinas: Papirus. Astolfi, J. e Develay, M. (1995). A didática das ciências. 4 ed. Campinas:Papirus. Castorina, J. A. et al. (1998). Piaget e Vigotsky: novas contribuições para o debate. 5. ed. São Paulo: Ática. Catelli, F.(1999). O alvorecer da medida: uma gênese virtual. Caxias do Sul: Educs. Chevallard, Y. e Johsua, M. (1991). La transposition didatique: du savoir savant au savoir enseigné. Paris: La Pensée Sauvage. Grando, N. (2000). Transposição didática e educação matemática. In: RAYS, O. A. 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Pode-se-ia argumentar que esta dissonância carece no fundo de importância já que não impediu os docentes de desempenharem a tarefa de transmissores dos conhecimentos científicos. No entanto, as limitações de uma educação científica centrada numa mera transmissão de conhecimentos- limitações postas em relevo por uma abundante literatura, recolhida em boa medida nos Handbooks já publicados (Gabel,1994; Fraser e Tobín,1998;Perales e Canãl,2000), deram origem a investigações que evidenciam concepções epistemológicas desadequadas e mesmo incorrectas como um dos principais obstáculos aos movimentos de renovação da Educação Científica. Compreendeu-se, assim que se quisermos trocar o que os professores e alunos fazem nas aulas científicas, é preciso previamente modificar a epistemologia dos professores (Bell e Person, 1992). E ainda que, possuir concepções válidas sobre a ciência não garante que o comportamento docente seja coerente com ditas concepções, este constitui um requisito sine quan nom (Hodson,1993). O estudo de ditas concepções tem-se convertido, por essa razão, numa potente linha de investigação e tem proposto a necessidade de estabelecer no que se pode compreender como uma imagem basicamente correta sobre a natureza da ciência e da actividade científica, coerente com a epistemologia actual. Isto é o que pretendemos abordar neste capítulo. Possíveis visões deformadas da ciência e da tecnologia Somos conscientes da dificuldade que implica falar de uma “imagem correcta” da actividade científica, que parece surgir a existência de um suposto método universal, de um modelo único de desenvolvimento cientifico. É preciso, evitar qualquer interpretação deste tipo, mais não se consegue renunciando a falar das características da actividade científica, mais sim com um esforço consciente para evitar simplismos e deformações claramente contrarias ao que se pode compreender, no sentido amplo, como “ aproximação científica do tratamento de problemas”. Trata-se-ia, em certo modo, de aprender por via negativa uma actividade complexa que parece difícil de caracterizar positivamente. Temos proposto esta actividade a numerosas equipas de docentes, solicitando-lhes que expliquem, a título de hipóteses, quais podem ser as concepções errôneas sobre a actividade científica a que o ensino das ciências deve prestar atenção, evitando a sua transmissão explicita e implícita. Poderia pensar-se que esta actividade deve ser escassamente produtiva já que se está pedindo aos professores, que temos por hábito cair nestas deformações, que investiguem quais podem ser estas. No entanto, ao criar-se uma situação de investigação (preferencialmente coletiva), nós, professores,podemos distanciar-nos criticamente das nossas concepções e práticas habituais, fruto de uma impregnação ambiental, que não havíamos tido ocasião de analisar e valorizar. 24 O resultado deste trabalho é que as deformações conjecturadas são sempre as mesmas; ou melhor, não só se assinalam sistematicamente as mesmas deformações, senão que se observa numa notável coincidência na frequência com que cada um é mencionada. Cabe assinalar, por outra parte, que se se realiza uma análise bibliografia, procurando referências a possíveis erros e simplismos na forma em que o ensino das ciências apresenta a natureza da ciência, os resultados de dita análise são surpreendentemente coincidentes com as conjunturas das equipas de docentes no que se referem ás deformações mencionadas, e em geral, incluindo a frequência com que o são (Femandez, 2000). Esta coincidência básica mostra a efectividade da reflexão das equipas de docentes. Convém ponderar e discutir as deformações conjecturadas (como veremos, estreitamente relacionadas entre si), que expressam, no seu conjunto, uma imagem ingênua profundamente afastada do que supõe a construção dos conhecimentos científicos, mas que se foi consolidando até se converter num estereótipo socialmente aceite que, insistimos, a própria educação científica reforça por acção ou omissão. UMA VISÃO DESCONTEXTUALIZADA Decidimos começar por uma deformação criticada por todas as equipas de docentes implicadas neste esforço de clarificação e por uma abundante literatura: a transmissão de uma visão descontextualizada, socialmente neutra que esquece dimensões essenciais da actividade científica e tecnológica, como o seu impacto no meio natural e social, ou os interesses e influencias da sociedade no seu desenvolvimento (Hodson, 1994). Ignora-se, pois, as complexas relações CTS, Ciência- Tecnologia-Sociedade, ou melhor CTSA, agregando a A de Ambiente para chamara atenção sobre os graves problemas de degradação do meio que afectam a totalidade do planeta. Este tratamento descontextualizado comporta, muito em particular, uma falta de clarificação das relações entre a ciência e a tecnologia. Com efeito, habitualmente a tecnologia é considerada uma mera aplicação dos conhecimentos científicos. De facto, a tecnologia tem sido vista tradicionalmente como uma actividade de menor status que a ciência "pura" (Acevedo, 1996; De Vries, 1996; Cajas, 1999 e 2001), por mais que isso tenha sido refutado por epistemólogos como Bunge (1976 e 1997). Até muito recentemente, o seu estudo não tem formado parte da educação geral dos cidadãos (Gilbert, 1992 e 1995), senão que tem ficado relegado ao nível do secundário, e à chamada formação profissional, que estava orientada para estudantes com o pior rendimento escolar, frequentemente vindos dos sectores sociais mais desfavorecidos (Rodriguez, 1998). Isto responde á tradicional primazia social do trabalho "intelectual" frente as actividades práticas “manuais”, próprias das técnicas ( Medway,1989; Lopez Cubino,2001). 25 É relativamente fácil, no entanto, questionar esta visão simplista das relações ciência- tecnologia : basta refletir brevemente sobre o desenvolvimento histórico de ambas (Gardener,1994) para compreender que actividade técnica precedeu em milênios a ciência e que , por tanto , de modo algum pode considerar-se como mera aplicação de conhecimentos científicos. A este respeito , cabe sublinhar que os dispositivos e instalações, e em geral os inventos tecnológicos,não podem ser considerados como meras aplicações de determinadas idéias cientificas. Em primeiro lugar, porque eles têm uma pré-história que muitas é independente de ditas ideais como,muito particular , necessidades humanas que têm vindo a evoluir, outras invenções que lhe precederam ou conhecimentos e experiências práticas acumuladas de muitas diversas índoles. Assim , o desvio de uma agulha magnética por uma corrente elétrica (experiência de Oersted, efectuada em 1819), por si só não sugeria a sua utilização para a comunicação à distância entre as pessoas. Advertiu-se essa possibilidade, só porque a comunicação à distância era uma necessidade crescente , e já se haviam desenvolvido antes outras formas de “telegrafia” sonora e visual, nas quais se empregavam determinados códigos; também se tinham construído baterias de potência considerável, longos condutores e outros dispositivos que se tornavam imprescindíveis para o invento da telegrafia. Isto permite começar a romper com a idéia comum da tecnologia como subproduto da ciência , como um simples processo de aplicação do conhecimento científico para a elaboração de artefactos ( o que reforça o suposto caráter neutro,alheio a interesse e conflitos sociais , do binócio ciência-tecnologia). Mais, o mais importante é clarificar o que a educação científica dos cidadãos perde com esta desvalorização da tecnologia. Isto obriga a pergunta-nos , como faz Cajas (1999), se há algo característico da tecnologia que possa ser útil para a formação científica dos cidadãos e que nós, os professores de ciências estamos a tomar em consideração. Ninguém pretende hoje, evidentemente, traçar uma separação entre a ciência e a tecnologia: desde a revolução Industrial os técnicos incorporam de uma forma crescente as estratégias de investigação cientifica para produzir e melhorar os seus produtos. A interdependência da ciência e da tecnologia continua crescendo devido à sua incorporação nas actividades industriais e produtivas, e isso torna hoje difícil, e ao mesmo tempo, desinteressante classificar um trabalho como puramente cientifico ou puramente tecnológico. Interessa destacar, pelo contrário, alguns aspectos das relações ciência tecnologia, com o objectivo de evitar visões deformadas que empobrecem a educação científica e tecnológica. O objectivo dos técnicos tem sido e vai sendo, fundamentalmente, produzir e melhorar os artefactos, sistemas e procedimentos que satisfaçam necessidades e desejos humanos, mais do que contribuir àcompreensão teórica, ou seja, à construção de corpos coerentes de conhecimentos (Mitcham, 1989; Gardner, 1994). Isto não significa que não utilizem ou construam conhecimentos, senão que os constroem para situações específicas reais (Cajas 1999) e logo, complexa, em que não é possível 26 deixar de um lado toda urna série de aspectos que numa investigação científica podem ser obviados corno não relevantes, mas que é preciso contemplar no desenho e manuseamento de produtos tecnológicos que devem funcionar na vida real. Deste modo, o estudo resulta ao mesmo tempo mais limitado (interessa resolver urna questão específica, não construir um corpo de conhecimentos) e mais complexo (não é possível trabalhar em condições "ideais", fruto de análises capazes de eliminar influências "espúrias"). Assim "corno" converte-se na pergunta central, por cima do "porquê". Um "corno" ao qual, geralmente, não se pode responder unicamente a partir de princípios científicos: ao passar dos desenhos à realização de protótipos e destes à optimização dos processos para a sua produção real, são inumeráveis - e, com frequência inesperados -:- os problemas que devem resolver-se. O resultado final tem que ser o funcionamento correcto, em situações requeridas, dos produtos desenhados (Moreno, 1988). Esta complexa interacção de compreensão e acção em situações específicas, mas reais, não "puras", é o que caracteriza o trabalho tecnológico (Hill, 1998; Cajas, 1999). Corno vemos, de modo algum pode conceber-se a tecnologia corno mera aplicação dos conhecimentos científicos. Não devemos pois, ignorar nem desvalorizar os processos de desenho necessários para converter em realidade os objectos e sistemas tecnológicos e para compreender o seu funcionamento. A apresentação destes produtos corno simples aplicação de algum princípio científico só é possível na medida em que não se presta a atenção real á tecnologia. Perde-se assim uma ocasião privilegiada para conectar com a vida diária dos estudantes, para os familiarizar com o que supõe a concepção e realização prática de artefactos e o seu manuseamento real, superando os habituais tratamentos pu- ramente livrescos e verbalistas. Estes planeamentos afectam também, em geral, as propostas de incorporação da dimensão CTSA que se têm centrado em promover a absolutamente necessária contextualização da actividade científica, discutindo a relevância dos problemas abordados, estudando as suas aplicações e possíveis repercussões (pondo ênfase na tomada de decisões), mas afastando outros aspectos chave do que supõe a tecnologia: a análise meios-fins, o desenho e a realização de protótipos ( com a resolução de inúmeros problemas práticos), a optimização dos processos de produção , a análise risco-custo- beneficio, a introdução de melhoras sugeridas pelo uso, ou seja, tudo o que supõe a realização prática e o manuseamento real dos produtos tecnológicos de que depende a nossa vida diária. De facto, as referências mais freqüentes das relações CTSA que incluem a maioria dios textos escolares de ciências reduzem-se à enumeração de algumas aplicações dos conhecimentos científicos (Solbes e Vilches,1997), caindo assim numa exaltação simplista da ciência como factor absoluto de progresso. Frente a esta ingênua visão de raiz positivista começa a alargar-se uma tendência a descarregar sobre a ciência e a tecnologia a responsabilidade da situação atual de deterioração do planeta, o que 27 deixa de ser uma simplificação maniqueísta em que resulta fácil cair e que chega a afetar, inclusive, alguns livros de texto (Solbes e Viches,1998). Não podemos ignorar, a este respeito, que são os cientistas que estudam os problemas que hoje enfrenta a humanidade, advertem dos riscos e encontram soluções ( Sánchez Ron, 1994). Evidentemente ,não só oscientistas, nem todos os cientistas. É certo que são também cientistas e técnicos quem têm produzido , por exemplo, os compostos que estão destruindo a camada de ozônio, mas em conjunto com economistas, políticos, empresários e trabalhadores. As criticas e as chamadas à responsabilidade devem estender-se a todos, incluindo os “simples” consumidores de produtos nocivos. Esquecer a tecnologia é expressão de visões puramente operativistas que ignoram completamente a contextualidade da atividade científica, como se a ciência fosse um produto elaborado em torres de marfim, á margem das contingências da vida ordinária. Trata-se de uma visão que se conecta com a que contempla aos cientistas como seres especiais, gênios solitários, que falam uma linguagem abstracta, de difícil acesso. A visão descontextualizada vê-se reforçada, pois, pelas concepções individuais e elitistas da ciência. UMA CONCEPÇÃO INDIVIDUALISTA E ELITISTA Este é, junto à visão descontextualizada que acabamos de analisar – e à qual está estreitamente ligada – outra das deformações mais frequentemente assinaladas pelas equipas de docentes e também mais tratadas na literatura. Os conhecimentos científicos aparecem como obra de génios isolados, ignorandose o papel do trabalho colectivo, dos intercâmbios entre equipas, essenciais para favorecer a criatividade necessária para abordar situações abertas, não familiares (Solomon, 1987; Linn, 1987). Em particular, deixa-se acreditar que os resultados obtidos, por um só cientista ou equipa podem bastar para verificar ou falsear uma hipótese ou inclusive toda uma teoria. Frequentemente insiste-se, explicitamente, em que o trabalho científico é um domínio reservado a minorias especialmente dotadas, transmitindo expectativas negativas para a maioria dos alunos, e muito em particular, das alunas, com claras descriminações de natureza social e sexual: a ciência é apresentada como uma atividade eminentemente "masculina". Contribui-se, além disso, a este elitismo escondendo o significado dos conhecimentos por detrás de apresentações exclusivamente operativistas. Não se realiza um esforço para tomar a ciência acessível (começando com tratamentos qualitativos, significativos), nem por mostrar o seu carácter de construção humana, na que não faltam confusões nem erros, como os dos próprios alunos. Em algumas ocasiões encontramo-nos com uma deformação de sinal oposto que contempla a atividade científica como algo simples, próximo do sentido comum, esquecendo que a construção científica parte, precisamente, do questionamento sistemático do óbvio (Bachelard, 1938), mas em geral, a concepção dominante é a que contempla a ciência como uma atividade de génios isolados. 28 A falta de atenção à tecnologia contribui a esta visão individualista e elitista: por uma parte. ob\-ia-se a complexidade do trabalho científico-tecnológico que exige, como já temos assinalado a integração de diferentes classes de conhecimentos, dificilmente assumidos por uma única pessoa; por outra parte, menospreza-se a contribuição de técnicos, mestres de oficina, etc., que com frequência têm tido um papel essencial no desenvolvimento científico-tecnológico. O ponto de partida da Revolução Industrial, por exemplo, foi a máquina de Newcomen, que era fundidor e ferreiro. Como afirma Bybee (2000), "Ao revisar a investigação científica contemporânea, não se pode escapar à realidade de que a maioria dos avanços científicos estão baseados na tecnologia". Isto questiona a visão elitista, socialmente assumida, de um trabalho científico-intelectual por cima de um trabalho técnico. A imagem individualista e elitista do cientista traduz-se em iconografias que representam o homem da bata branca no seu inacessível laboratório, repleto de estranhos instrumentos. Desta forma constatamos uma terceira e grave deformação: a que associa o trabalho cientifico, quasee exclusivamente, com esse trabalho no laboratório, onde o cientista experimenta e observa, procurando o feliz “ descobrimento”. Transmite-se assim uma visão empiro-indutivista da atividade cientifica que abordaremos seguidamente. UMA CONCEPÇÃO EMPIRO-INDUTIVISTA E ATEÓRICA Talvez tenha sido a concepção empiro-indutivista a deformação que foi estudada em primeiro lugar, e mais amplamente assinalada na literatura. Uma concepção que defende o papel da observação e da experimentação “ neutra” (não contaminadas por idéias aprioristas), esquecendo o papel essencial das hipóteses como focalizadoras da investigação e dos corpos coerentes de conhecimento (teorias)disponíveis, que orientam todo o processo. Numerosos estudos têm mostrado as discrepâncias entra a imagem da ciência, proporcionada pela espitemologia contemporânea, e certas concepções docentes, amplamente estendidas, marcadas por um empirismo extremo (Giordan,1978; Hodson,1985: Nussbaum,1989; Cleminson,1990; King,1991;Stinener, 1992; Désauteles et al., 1993; Lakin e Wellington,1994; Hewson,Kerby e Cook, 1995; Jiménez Aleixandre,1995; Thomaz et al.,Izqueirdo,Sanmartí e Espinet,1999...). Deve-se insistir a este respeito, na rejeição generalizada do que Piaget (1970) denomina “o mito da origem sensorial dos conhecimentos científicos “, ou seja, na rejeição de um empirismo que concebe os conhecimentos como resultado da inferência indutiva a partir de “dados puros “. Esses dados não têm sentido por si mesmos, senão que requerem ser interpretados de acordo com um sistema teórico. Assim, por exemplo, quando se utiliza um amperímetro não se observa a intensidade da corrente, mais sim o simples desvio da agulha (Bunge,1980). Insiste-se, por isso , em que toda a investigação, e a mesma procura de dados, vêm marcadas por paradigmas teóricos, ou seja, por visões coerentes, 29 articuladas que orientam a dita investigação. É preciso , insistir na importância dos paradigmas conceptuais, das teorias, no desenvolvimento do trabalho científico (Bunge,1976), num processo completo, não reduzido a um modelo definido de mudanças científicas (Estany,1990), que inclui eventuais roturas, mudanças revolucionarias (Kuhn,1971), do paradigma vigente num determinado domínio e surgimento de novos paradigmas teóricos. É preciso também insistir em que os problemas científicos constituem inicialmente “situações problemas” confusas: o problema não é dado, é necessário formulá-lo da maneira precisa, modelizando a situação, fazendo determinadas opções para simplifica-Io mais ou menos com o fim de poder aborda-Io, clarificando o objectivo, etc. E tudo isto partindo do corpus de conhecimentos que se tem no campo específico em que se desenvolve o programa de investigação (Lakatos, 1989). Estas concepções empiro-inductivistas da ciência afeta mesmos os cientistas - pois como explica Mosterín (1990) seria ingênuo pensar que estes "são sempre explicitamente conscientes dos métodos que usam na sua investigação" - assim como, logicamente, mesmos aos estudantes (Gaskell, 1992; Pomeroy, 1993; Roth e Roychondhury, 1994; Solomon, Duveen e Scott 1994; Abrams e Wanderse, 1995; Traver, 1996; Roth e lucas, 1997; Désautels e Larochelle, 1998). Convém assinalar que esta ideia, que atribui a essência da actividade científica à experimentação, coincide com a de "descobrimento" científico, transmitida, por exemplo pelas bandas desenhadas, pelo cinema e, em geral, pelos meios de comunicação (Lakin e Wellington, 1994). Dito de outra maneira, parece que a visão dos professores - ou a que proporcionam os livros de texto (Selley, 1989; Stinner, 1992) - não é muito diferente, no que respeita ao papel atribuído às experiências do que temos denominado de imagem "ingénua" da ciência, socialmente difundida e aceite. Cabe assinalar que mesmo se esta parece ser a deformação mais estudada e criticada na literatura, são poucas as equipas de docentes que se. referem a esta possível deformação. Isto pode interpretar-se como índice do peso
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