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Adelmir Fiabani - Mato, palhoca e pilao_ o quilombo, da escravidao as comunidades remanescentes (1532-2004)-Expressao Popular (2012)-1

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Adelmir Fiabani
MATO, PALHOÇA E PILÃO
O quilombo, da escravidão
às comunidades remanescentes
[1532-2004J
2" edição
EDITORA
EXPRESSÃO POPULAR
SãoPaulo - 2012
Copyright © 2005, by Editora Expressão Popular
Revisão: Geraldo Martins deAzevedo Filho, Maria Elaine Andreoti e Orlando
Augusto Pinto
Projeto gráfico, capa e diagramação: ZAP Design
Ilustração da Capa: Debret (repressãoe violência - instrumentos de tortura de
escravos- chicotes- feitores - o universo do trabalho - lavoura canavieira)
Impressão e acabamento: Cromosete
Dados Intcrnacionais de Catalogação-na-Publicação CIP)
(Biblioteca Central - UEM, Marinaá - PR., Brasil)
F438m
Fiabani, Adelmir
Mato, palhoça e pilão, o qui lombo , da escravidão
ãs comunidades remanescentes (1532-2004)/ Adelmir Fiabani-
2.ed.--São Paulo, Expressão Popular, 2012.
432 p.
Livro indexado em GeoDados-http.//www.geodados.uem.br
ISBN 85-87394-77-0
1. Quilombo - Formação. 2. Quilombo - Historiografia.
3. Quilombo - Brasil. 4. Escravos - Brasil. I. Titulo.
CDD 21.ed. 981.04
301.4493
ELIANE M. S. JOVANOVICH CRB 9/1250
Todos os direitos reservados.
Nenhuma parte deste livro pode ser utilizada
ou reproduzida sem a autorização da editora.
z- edição: março de 2012
FJ)[TORA EXPRESSÃO POPULAR
!t1l.1 Abolição, 201 - Bela Vista
c I' I' () I ~I C) 010 - São Paulo-SP
I I (11) \ I 05-9500/3522-7516, Fax: (11) 3112-0941
1'1' vs.topopular.com. br
"'I"'I"ILH.com.br
Sumário
APRESENTAÇÃO
UMA DEFESA DO QUILOMBO · 7
INTRODUÇÃO
UM PAÍS ESCRAVISTA ·· 15
PARTE I
O QUILOMBO NA HISTORIOGRAFIA: UMA GENEALOGIA CRÍTICA
r. VISÕES SOBREo QUILOMBO NA COLÔNIA .........•.....•.................•........................ ·37
2. VISÕES SOBREO QUI LOMBO NO IMPÉRIO ...........•.....•............ ·...•........................ ·45
3. VISÕES SOBREO QUILOMBO: DA REPÚBLICA AO GOLPEDE 1964 55
4. VISÓES SOBREO QUILOMBO: DA DITADURA AO CENTENÁRIO DA ABOLIÇÃO .. · 93
5. VISÕES SOBREO QUILOMBO: DA CONSTITUIÇÃO DE 1988 AOS DIAS ATUAIS 155
PARTE 11
O QUILOMBO NO BRASIL: UMA TENTATIVA DE ANÁLISE
6. QUILOMBO: FORMAÇÃO, REPRODUÇÃO E RESISTÊNCIA .............•.•..................... 251
7. QUILOMBO: ECONOMIA QUILOMBOLA .. , ···················· .. ······ .. ··········3°9
PARTE 111
QUILOMBO E ANTROPOLOGIA: NOVOS SIGNIFICADOS
8. VISÕES DA ANTROPOLOGIASOBREO QUILOMBO .........•.... ·.. ·.•.....•.•.. ·.•................ 347
CONSIDERAÇÕES FINAIS · · ·..· ··411
BIBLIOGRAFIA 423
RESENTAÇÃO
UMA DEFESADO QUILOMBO
No início dos anos de 1500, viviam no litoral brasílico em
torno de 600 mil americanos, sobretudo aldeões de língua tupi-
guarani. Os colonizadores lusitanos ocuparam asterras litorâneas;
eliminaram, escravizaram ou assimilaram as populações nativas;
impuseram economia escravistae latifundiária voltada à produção de
mercadorias. Por três séculose meio, a produção escravistacolonial
regeua sociedadecolonial e imperial brasileira, impondo duríssimas
condições de existência aos trabalhadores escravizados, primeiro,
americanos, a seguir africanos e afrodescendemes.
Os trabalhadores feitorizados serviram-se de diversos meiospara
seopor, de forma consciente,semiconsciente e inconsciente àexplo-
raçãoescravista,destacando-seentre elesaresistênciana execuçãodo
trabalho; a apropriação de benspor elesproduzidos; o justiçamento
de escravistase prepostos; o suicídio; a fuga; o aquilombarnento; a
revolta; a insurreição. O cativo resistiu ininterruptamente, mesmo
quando se acomodava à escravidão.
A principal forma de resistência do cativo à escravidão foi a
oposição ao trabalho escravizado, por meio do "corpo mole", da
sabotagem das ferramentas, do autoferimento etc. O profundo de-
samor ao trabalho feitorizado impôs a necessidadede que o produtor
direto fosseestreitamentevigiado durante aprodução, ou duramente
castigado, quando não cumpria suas tarefas, ensejando gastos não
produtivos com o controle e a vigilância, que oneravam duramente
essaforma de produção, como apontado por Jacob Gorender, no
clássico O escravismocolonial.1
Uma não menos significativa forma de oposição à escravidãofoi
a fuga, pela qual o cativo selibertava das amarras que o prendiam
ao escravizador,criando ascondições para um exercício autonômico
de sua força de trabalho. Se a oposição incessante ao trabalho e as
outras formas de resistência minaram a produção escravista, foi a
fuga dos trabalhadores escravizados,concentrados no Centro-Sul,
durante o auge da cafeicultura, que assentou o derradeiro golpe à
instituição, como desveladono magnífico estudo de Robert Conrad,
Os últimos anosda escravidãono Brasil. 2
As fugas foram uma hemorragia incessante na produção es-
cravista. Fugiam trabalhadores escravizados, de ambos os sexos,
crianças,jovens, adultos ou já idosos;fugiam cativos dascidades,das
residências,dasembarcações,daschácaras,dasfazendas,dasolarias,
das charqueadas. Fugia o cativo crioulo, que não conhecia outra
vida, e o africano apenasou há muito chegado ao Brasil, que vivera
em liberdade. Fugia o cativo doméstico, o trabalhador do eito, o ga-
nhador especializado.Os fujões escapavamem grupou ou aospares,
mas sobretudo sozinhos, para visitar amigos e parentes;viver como
negros livres libertos nas cidadese nos campos; procurar a proteção
de acoitador cúmplice; encontrar o abrigo em um ermo do interior.
I GORENDER, Jacob. O escravismo colonial. 5" ed. rev. e ampl. SãoPaulo:
Ática, 1988.
2 CONRAD, Robert. Osúltimos anosda escravidão no Brasil-1850-1888. Rio
deJaneiro:Civilização Brasileira; Brasília: INL, 1975.
8
1,)(urnentaçâo estáprenhe de registrosdessavontade incessantede
11111 Idadce,não raro, da dura vontade demantê-Ia, mesmo pelaforça.
I1 onde era possível,os cativos fugiam para além das fronteiras do
I I "d, onde comumente sereconhecia a sua liberdade.
Apenas o desconhecimento, até há poucos anos, do caráter
11I1'(,lllônicoda escravidão no Brasil e da dominância da oposição
1111l' .scravizador e escravizado impediu a correta avaliação e re-
I 11I1 ra de nosso passadoa partir daquela contradição. E isso apesar
1,1 I rabalhos germinais de Benjamin Péret, "Que foi o quilombo
I Palmares?",3de 1956; de Clóvis Moura, Rebeliõesda senzala:
fll//ombos, insurreições,guerrilhas,4 de 1959; de Emília Viotti da
uxt a, Da senzalaà colônia.' de 1966, entre outros.
Até hoje, não contamos com estudos gerais sistemáticos
11111t' a fuga de cativos no Brasil, possíveis de serem realizados
1,,"ll,IS a partir do cruzamento de múltiplas fontes. Tentar, por
I mplo, estimar a incidência dessas ocorrências por meio dos
ruúncios de jornais pagos pelos proprietários de "fujões" é uma
'1" IS inocência historiográfica. Por inúmeras razões, apenasuma
1I II It dos escravistas utilizava-se desserecurso. Nem mesmo as
I1 1,1.\ de cativos fugidos expressam plenamente a dimensão do
I, uomcno. Em geral, elasnão abarcam asperdas dos proprietários
cll poucos cativos, as fugas de breve duração, os fujões já presos
1111 S -rn título de propriedade etc,
I)raticamentetodasasestimativas isoladas,ainda que baseadasem
11111,1 documentaçãolacunar,sugeremque,nosperíodosdenormalidade
11"I itu .ional, de2 a5% dapopulaçãoescravizadaencontrava-sefugida,
I I'I',RET, Benjamin. "Que foi o quilombo de Palmares?".Revista Anhembi,
,",.lO Paulo,abril e maio, 1956.
M()URA, Clóvis. Rebeliõesda senzala: quilombos, insurreições,guerrilhas. São
1',lulo:Zumbi, 1959.
( :( )STA, Emília Viotti da. Da senzala à colônia. 2" ed. SãoPaulo:Ciências
I lu manas, 1982.
9
o que permite uma ideia aproximativa da forte pressãoda fuga - e da
possívelfuga- sobreaproduçãoescravista,atravésdosgastosnecessários
devigilância, dasjornadas de trabalho jamais recuperadas,da perdade
capitaisinvestidos,da desvalorizaçãodo preçodo cativo capturado etc,
São muito raros os momentos em que a ordem capitalista conheceu
uma atividade grevistasistemáticade tamanha dimensão.
Não possuem base documental as tentativas da historiografia
neopatriarcal de minimizar a importância da fuga e de transformá-Ia
em mera resistênciacultural; em ação transitória do cativo crioulo,
para forçar o escravista à "negociação"; em reação do africano in-
satisfeito com o meio hostil, pois ainda desconhecido; em recurso
do cativo querendo "descansar" um pouco etc. Todos elessempre
vivamente dispostos a retomar ao regaço paternal do negreiro, já
que "ansiosos" pelo trabalho no eito e pelas raras horas concedidas
por alguns escravistaspara "atividades autônomas".
Nessasapresentaçõesapologéticasdo cativeiro colonial, a resistên-
cia transforma-se em uma muito singular vontade política do cativo
de "transformar a escravidãono seioda escravidão",e não em suasu-
peração,ainda queatravésda emancipaçãoindividual. Essaproposta,
que exigiria do cativo nível de consciência impossível para a época,
serealmenteprocedesse,tornaria desnecessáriososingentesgastosde
vigilância em feitores,homensdo mato, tropasmunicipais eregionais
e, sobretudo, a intimidação terrorista a que a população escravizada
foi submetida. Por necessidadesestruturais da sociedadenegreira, e
não por ruindade dossenhores,erahabitual cativoscondenados,além
daspenasde morte ou deprisão, a até 1,5mil chicotadas, como Soli-
mar Oliveira Lima assinalouem seumagnífico estudo Tristepampa:
resistênciaepunição de escravosemfontesjudiciárias no RS, referente
ao Rio Grande do Sul, já apresentadocomo terra de amos afáveis.6
6 LIMA, Solimar Oliveira. Triste pampa: resistência epunição de escravosem
fontes judiciárias no RS - 1818-1833.Porto Alegre: IELlEdiPUCRS, 1998.
10
Ao igual de outras regiõesdaAmérica, desdeo início do cativeiro,
/lI! l,tmpOs mas também nas cidades do Brasil, um grande número
II (,ltivOSfugia à procura de um ermo qualquer do interior, nas es-
II pasde uma serra, no coração de uma ilha, nos embrenhados de
um mangue ou na profundeza de uma floresta. Por meio do exercício
1I .intiga sabedoriados oprimidos, de que se"deus é grande, o mato
.unda maior", procuravam formar uma comunidade de produtores
1I I('li em um espaçogeográfico e social que, por suascaracterísticas,
IIV -sse longe do braço pesadodo escravista.No Brasil, essascomu-
ni.l.rdcs foram conhecidas no passadosobretudo como mocambos
1111 quilombos.
No novo espaçodeliberdade, o trabalhador escravizadoescapado
11 I ti ruía os produtos de seuesforço, empregado na agricultura, arte-
111.110, caça,coleta, extrativismo, pesca,rapinagem, serviçosetc. Em
1111ma mais ou menos sistemática, as mais diversasregiões do Brasil
• i.ivi ta conheceram quilombos. Não temosigualmente estimativas
III li •o número de minúsculos, pequenos,médios e grandesquilorn-
111" Iormados durante o passadoescravistabrasileiro - entretanto, ele
I I 1.1 111ente seelevaàsdezenasde milhares.
A importância quantitativa e a extensão geográfica das fugas e
l'Ittilombamentos influenciou profundamente a história política,
111 i.tl, econômica, demográfica etc. do Brasil. Entretanto, apenasnos
111m de 1970 e 1980, o estudo das comunidades de cativos fugidos
11I111l' "euimportante impulso, desenvolvendo-seentãopesquisassobre
I' principais quilombos e levantamentos mais ou menos exaustivos
I. \\1,\ incidência em praticamente todas asregiõesdo Brasil.
Essesvaliosos estudoscentrararn-se na identificação e descrição
11111íI i "a,social e econômica do fenômeno, considerado, porém, mais
1111111 mente em forma isolada, no que serefere ao espaçoe ao tem-
1111 I;oram raras e limitadas as tentativas de análises diacrônicas e
II li rônicas sobre a determinação pelos quilombos da história rural
111 .isilci ra, da povoação do interior, da fronteira agrícola, da forma-
11
ção de comunidades caboclasde origem africana, da influência dos
padrões do português falado no Brasil etc.
Em fins dos anosde 1980,com a maré neoliberal, sob a ditadura
da "história das mentalidades", da "história da vida cotidiana", da
"história cultural" etc., os estudos sobre a sociedade escravista,em
geral, e das formas de resistência do trabalhador escravizado, em
particular, recuaram significativamente em prol de campos histo-
riográficos mais amenos e menos conflitivos. No mesmo sentido,
dominaram osestudosescravistasasinterpretações neopaternalistas
sobre o escravismo, não raro de conteúdo linearmente apologético,
que terminaram construindo cenários quasebucólicos e idílicos, em
que a visão da oposição e luta entre escravistae cativo cedeu lugar
à proposta de uma verdadeira complementaridade e identidade de
interessesentre o senhor e seu escravo.
No relativo aos poucos estudos sobre os quilombos propria-
mente ditos no período, impôs-se fortemente a substituição da sua
compreensão como resistência do trabalhador à escravidão pela
apresentaçãodas comunidades de cativos fugidos como forma de
resistênciacultural, ou recursopara forçar osescravistasà negociação
no interior da escravidão.Também foi empreendida assimilação do
quilombo à economia dos pequenos plantadores, dos cativos com
direito a hortas etc., que praticamente diluiu a essênciae singula-
ridade do fenômeno.
A passada ênfase historiográfica sobre o quilombo e uma
maior organização da comunidade negra ensejaram que, quando
da Constituinte de 1988, fosse aprovado o dispositivo constitu-
cional provisório - artigo 68 -, determinando o reconhecimento
da propriedade da terra ocupada pelos "remanescentes das comu-
nidades dos quilombos". A necessidadede mapear e comprovar a
existência de tais comunidades e, a seguir, a proposta de ampliar
os contemplados pela determinação não através da extensão da
abrangência da lei, mas com interpretação casuística da mesma,
12
( 11 iejaram o renascimento do interesse pelos quilombos e o debate
obre a sua essência.
***
Adelmir Fiabani defendeu, em 16de novembro de 2004, no
Programa de Pós-Graduação em História da UPF, a dissertação
de mestrado "Mato, palhoça e pilão: o quilombo, da escravidão
JS comunidades remanescentes [1532-2004]",que tive o privilégio
de orientar, agora apresentada sob a forma de livro pela Editora
Expressão Popular, com pequenas modificações sobretudo de
forma.
Participaram da banca examinadora do trabalho os professores
doutores1héo Loubarinhas Pineiro, da UFF, e Fernando Camargo,
da UPF, que acordaram ao mesmo a nota máxima, recomendação
parapublicação e ressaltaram a suavaliosa contribuição à retomada
dos estudos sobre as comunidades dos trabalhadores escravizados,
sobrea questão dos remanescentesdos quilombos e sobre o mundo
rural brasileiro, no passadoe no presente.
Na primeira parte do trabalho "Quilombo na historiografia: uma
genealogiacrítica", Adelmir apresentaampla revisãocrítica da histo-
riografia sobre o quilombo, desdeasépocascoloniais e imperiais, e,
portanto, produto da pena - num sentido não apenasfigurado - de
autorescontemporâneos e em geral apoiadores da ordem escravista,
até os dias de hoje. Essaparte do trabalho permite conhecimento
bastante exaustivo do fenômeno e das evoluções, permanências e
tentativas de superaçõesdasvisões dominantes sobre ele na cultura
historiográfica luso-brasileira e brasileira.
Baseadosobretudo nesseamplo material, a segunda parte de "O
quilombo no Brasil: uma tentativa de análise" desenvolveensaiode
interpretação estrutural do fenômeno, atravésda definição de suas
determinações essenciais,após apresentar as diversas tentativas de
periodização e de sistematizaçãosobreo quilombo realizadassobre-
13
tudo nos últimos anos. Se a primeira parte do trabalho restaura as
descriçõese avaliaçõesdos quilombos nos últimos séculos, criando
um muito útil instrumento de pesquisa, a segunda apresentasólida
basepara a reflexão categorial sobre o fenômeno.
Finalmente, na última parte, "Quilombo e antropologia: novos
significados", apoiado solidamente na definição essencialdas deter-
minações do fenômeno empreendida na segunda parte, Adelmir
Fiabani abraçaa abordagem "antropológica" do quilombo, realiza-
da sobretudo - mas não apenas- após a aprovação do dispositivo
constitucional transitório que, nos casosextremos, sob o pretexto deampliar a abrangência daquela determinação para toda e qualquer
comunidade da cidade e do campo com alguma origem afrodes-
cendente, empreende uma clara dissolução da objetividade dos
fatos históricos, necessariamenteancorados na materialidade e na
temporalidade dos acontecimentos, para defini-los como produtos
da subjetividade humana, em uma verdadeira, como define o autor,
"recriação da tradição", atravésda negaçãoedesrespeitoda história.
Mato, palhoça epilão: o quilombo, da escravidãoàscomunidades
remanescentes[1532-2004J, deAdelmir Fiabani, constitui poderoso
instrumento de informação sobre as comunidades autônomas dos
trabalhadores escravizados fugidos e as visões lançadas sobre elas
nos últimos séculos. O trabalho apresenta-se, igualmente, como
forte defesada necessidadeinarredável de respeito à integralidade da
história das classestrabalhadoras hegemônicas no passadoescravis-
ta, principais ancestrais do mundo do trabalho do Brasil. História
que constitui instrumento fundamental para a segura superação
das crescentescontradições atuais entre o mundo do trabalho e o
mundo do capital.
Mário Maestri, abril de 2005.
14
INTRODUÇÃO
UM PAís ESCRAVISTA
Por mais de três séculos, o Brasil foi um país profundamente
·scravista. Durante essaépoca, a construção da nação aconteceu
sobretudo assentada no esforço do trabalhador escravizado. Esse
período significativo da história brasileira continua sendo objeto de
investigaçõesde antropólogos, economistas, historiadores e soció-
logos interessadosem desvendar as articulações que sustentaram a
ordem escravista por mais de 300 anos.
O homem submetido pela força nem sempre é um escravo.
Podemos classificar uma comunidade como escravista quando o
trabalhador escravizado é considerado uma mercadoria; quando
seu proprietário pode decidir onde, como e quando empregar seu
trabalho; quando, ao menos em teoria, a totalidade do produto do
trabalho do cativo pertence ao amo e, finalmente, quando o status
servil é vitalício e hereditário.
A escravidão fez parte do cotidiano da humanidade muito antes
de ser implantada na América. Acredita-se que tenha surgido há 5
mil anos. Na Mesopotâmia e no Egito, o homem apropriou-se de
seusemelhantepara que produzisseacima desuasnecessidadesvitais
-
e, assim, fornecesseum excedentepara seusdominadores. Entretan-
to, não podemos definir essasformações sociais como escravistas,
porque o trabalho não foi sobretudo tarefa dos cativos, existindo
formas de produção não escravistadominantes.
"[ ...] temos produção escravista quando uma parcela dos bens
sociais é produzida, em forma plena ou sistemática, pelo trabalho
escravo".Porém, "uma sociedadepode serdefinida como escravista"
apenas "quando a produção escravasubmete as outras formas de
produção e a própria formação social a sua dinâmica". Excluem-se
da ordem escravistaascomunidades que seapossavamde indivíduos
que passavama ter direitos e deveresnas sociedadeshospedeiras.I
A escravidão na Antiguidade
O escravismo antigo "formou-se lentamente, por um processo
espontâneo", levando alguns historiadores a considerarem-no como
natural; diferente do "escravismo colonial da Era Moderna, que
irrompeu bruscamente, resultante de atos deliberados e planejados,
que dão ao seu processo de formação uma aparência anormal na
evolução histórica'V Foi na Grécia, mais precisamente em Atenas,
que o trabalho escravizado atingiu proporções dominantes, ense-
jando uma sociedadeclaramente escravista.Nessestempos, muitas
vezes, os trabalhadores escravizados trabalhavam lado a lado aos
proprietários e a alguns homens livres. Definiu-se tradicionalmente
como escravismopatriarcal a forma de produção conhecida por essa
sociedade,em que dominava aprodução desubsistência,a economia
mercantil simples; em que os mais hábeis cativos acumulavam pe-
cúlios, compravam a liberdade, abriam negócios e oficinas, muitas
vezesem associaçãocom livres.3
1 MAESTRI, Mário. O escravismoantigo. 12' ed. SãoPaulo:Atual, 1994.
2 GORENDER, Jacob.O escravismocolonial. 6a ed. SãoPaulo:Ática, 200l.
3 Cf. GLOTZ, Gustavo.História econômica da Grécia. Lisboa: Cosmos,1973.
16
N <10 devemos compreender escravidão patriarcal como sinôni-
11111 da escravidão doméstica. Na escravidão doméstica, os escravos
,11 du.avam-se"aos misteres do serviço pessoaldo senhor, em geral
ouvivendo com ele sob o mesmo teto. Tais escravospertencem à
. fera do consumo". A escravidão patriarcal "tem o conteúdo de
l ravidão produtiva, ainda que sua produção assuma a forma de
IH nx de uso consumidos na própria unidade econômica". Ou seja,
I LI escravidãopatriarcal, "a exploração" do trabalhador escravizado
rvava sobretudo à "produção de uma renda natural","
Os cativos da Antiguidade nasciam de mãe escravizada ou
111 ham das mais diversas regiões da bacia mediterrânea e da
lnropa continental. Não eram identificados pela cor da pele e
1,1 'a específica. Diferentemente do escravismo colonial, em que,
IpÓS a escravização dos americanos nativos, os trabalhadores
I , .ravizados foram arrancados do continente africano.
Em Roma, nos dois últimos séculos da República e no perto-
110 inicial do Império, viveu-se o apogeu e a crise da produção
I , .ravista antiga. Nesses momentos, dominou o modo de pro-
.luçâo escravista pequeno-mercantil, ou seja, a unidade agrícola
s ravista que produzia para o mercado e atendia as suas neces-
Idades de consumo.
"Essaunidade podia abastecerem alimentos, lenha etc. a família
urbana, Sua essencial função era, entretanto, a produção de uma
Icnda monetária". A produção pequeno-mercantil romana entrou
l m crise, pois não conseguiu evoluir à situação de grande produção
mercantil. A partir de então, num processo secular, o trabalhador
escravizadometamorfoseou-se, atravésdo colonato, em produtor e
s.rvo feudal.'
I GORENDER. O escravismo[..]. Op. cito
, MAESTRl, Mário. Breve história da escravidão. Porto Alegre: Mercado
Aberto, 1986.
17
A resistência escrava na Antiguidade
As peculiaridades da sociedadeescravistaantiga não a eximiu da
convivência permanente com a resistênciaservil. Na Antiguidade, o
trabalhador escravizadoreagiu dasmais diversasformas à escravidão
- roubo, fuga, banditismo, insurreição, atose sangue, resistênciaao
trabalho. Os cativos refugiavam-se nas montanhas e organizavam
bandos de assaltantes,prejudicando a produção escravista.Apesar
de semelhançasgerais, havia forte diferença entre a resistênciaservil
no escravismo clássico e no colonial.
No escravismo clássico não havia basessociais e materiais para
movimentos abolicionistas. O trabalhador escravizadoquestionava
sua escravidão, mas não o escravismo. Apenas o advento do capi-
talismo e o forte desenvolvimento das forças produtivas materiais
permitiram aoshomens alcançarem a compreensãoda possibilidade
e do direito à liberdade civil plena."
Para Jacob Gorender, é preciso lembrar que "a escravidão da
Antiguidade greco-romana não teve o fim decretado por um ato
abolicionista formal. Não houve uma lei proibitiva da escravidão.
No século 5 d.C., ainda era considerável o número de escravos,e
uma escravatura residual persistiu na Idade Média europeia. Mas o
trabalho escravodeixou de sera baseda formação social, substituído
pelo trabalho de servos feudais"?
Explorar, colonizar e escravizar
O escravismo colonial superou o escravismogreco-romano. "O
escravismoamericano apresentoua aparência de ressurreiçãodo es-
cravismo mediterrâneo antigo, sobretudo o romano. Há em ambos,
de fato, o traço comum do trabalho escravocomo tipo dominante
de exploração de mão de obra. Mas a estrutura e a dinâmica foram
6 Cf. MAESTRI. O escravismo[..} Op. cito
7 GORENDER. A escravidãoreabilitada. 2a ed. SãoPaulo:Árica, 1991.
18
distintas em um e outro, tanto que a sociedade imperial romana
'I' defrontou com o impasse representado pela impossibilidade de
I volução do escravismo patriarcal arcaico ao escravismo mercantil
I I rodemo",8
Ainda que em ocasiõesespecíficasos cativos desempenhassemr.rrefas que exigiam elevado nível intelectual, na maioria das vezes
I) cscravismo colonial impôs serviços e tarefas manuais grosseiros
"OS trabalhadores feitorizados. "O escravismoromano incluiu indi-
vkluos de elevado nível cultural. [00'] enquanto no Brasil os escravos
executavamquaseapenasfunções do trabalho manual, ascendendo
quando muito a tarefasde capatazia, excepcionalmente de adrninis-
Iraçãode um estabelecimento agrícola, osescravos,na casaromana,
vupriam, de modo regular, as funções de mordomos, professores,
111"dicos, artistas, bibliotecários, secretários, copistas etc."
O escravismocolonial não nasceude forma espontânea,masdas
necessidadeshistóricas profundas, imposto pela ação dos homens.
( :i1'0 Cardoso lembra que "a sociedade escravista colonial surgiu
I orno uma consequência da empresa exportadora e se estruturou
rm função das características e exigências de tal empresa; por con-
\l'guinte, estapreexistiu à sociedade estruturada e condicionou sua
forma. Não se pode passar por alto este aspecto voluntário, que
\1' traduz na decisão consciente dos colonos e das metrópoles, na
organização do tráfico, nas políticas coloniais [00.]".9
Com as descobertas e a colonização americana, a produção
cscravista atingiu patamares desconhecidos pela humanidade. ''A
.ibundância de terras virgens; o desenvolvimento dos meios de
Iransporte; asnovas maquinarias; a amplitude do mercado europeu;
,I produção e o comércio do açúcar, bem de baixo volume e alto
H GORENDER. O escravismoI. . .]. Op. cito
'I CARDOSO, Ciro. "EI Modo deProducciónEsclavistaColonial enAmérica".
In GORENDER. O escravismo[ ..]. Op. cito
19
valor mercantil, adaptado à produção feitorizada, tudo issocriou as
condições para o desenvolvimento do grande latifúndio escravista."!"
O escravismo colonial "surgiu e sedesenvolveudentro de deter-
minismo socioeconômico rigorosamente definido, no tempo e no
espaço", assentando-seem nível superior de desenvolvimento das
forças produtivas materiais e da divisão internacional do trabalho.
Tratou-se de "modo de produção de características novas, antes
desconhecidas na história humana".'! Os instrumentos utilizados
pelos trabalhadores escravizadosdaAntiguidade eram rudimentares
se comparados à maquinaria e aos implementos de um engenho
açucareiro do século 16. Apenas o desenvolvimento da tecnologia
e do mercado permitiu que um numeroso eito de cativos entregasse
sua capacidade produtiva até a exaustão, viabilizando a exploração
escravistado grande latifúndio.
Escravizar, produzir e exportar
As unidades escravistasamericanas produziam para o consumo
interno, mas estavamvoltadas principalmente para a produção mer-
cantil de gêneroscoloniais. A finalidade e a amplidão da produção
estabeleceramum abismo entre o escravismoclássicoeo escravismo
colonial. Só assim compreenderemos o caráter insaciável do escra-
vismo moderno em relaçãoao clássico.O sangue e o suor do cativo
americano alimentaram por muito tempo o mercado europeu, em
contínua expansão.
A "economia política da escravidão colonial desvendou os
mecanismos econômicos que determinaram de forma tendencial
a rápida exaustão do cativo assenzaladono escravismo americano.
A produção de mercadorias coloniais para o mercado intemacio-
10 MAESTRI. O escravogaúcho: resistênciaetrabalho. PortoAlegre:EdUFRGS,
1993.
11 GORENDER. O escravismot.J Op. cito
20
I I 1I l' barata reposição do escravodestruído; a vantagem da
I 11) P ermanentede escravosjovens e sadios; a abundância e
I llid.idc das terras; as contingências técnicas dessaprodução
11111.1 llue a plantagem e outras atividades produtivas coloniais
11111 r'~l'm de forma vertiginosa as condições médias de vida e
I ih ti lio dos cativos americanos".'?
'I IlIll' da impossibilidade de monopolizar os mercados, os
I I I I.IS americanos possuíam uma única alternativa para au-
111 I m lucros. Diminuíam os custos de produção obrigando os
I ti I1.1dor 'S escravizadosa trabalharem incessantemente. Os tra-
111 "Iult's escravizadosprodutivos foram submetidos comumente
I 1I111\(J('S de trabalho insuportáveis. "Só o excedente acima do
I ti 1111 necessário,ou seja,só o sobretrabalho do escravoé que se
1111 rpropriavel pelo escravista".':' Outra forma de maximizar os
I IlIi .•redução dos custos com a manutenção dos cativos. Co-
11111 uu-, o cativo viu-se reprimido nas suascondições materiais e
I 11 1II.lis de sobrevivência.Como consequência,foram degradantes
I oruliçôes médias de existência e muito violentas as relações
I 11 \l'l1hores e os escravosassenzalados.
1111 111 cativeiro
I . ruvidâo colonial alcançou verdadeiro apogeu no Brasil. É
wl .ompreenderahistória destanaçãodissociadada herança
I I I L\. O Brasil foi uma dasprimeiras naçõesdo Novo Mundo a
1111:.11 o escravismo e a última a concluí-lo. Também foi ali que
uilurcou o maior número de africanos escravizados.A econo-
I r.ivista nacional produziu a mais rica gama de mercadorias
li 1111 ", com mão de obra servil: açúcar,arroz, café, charque, fumo,
I 11I.lsi I, ouro etc. Praticamente não há lugar desteimenso territó-
I I' SI' RI. O escravismo{ . .}. Op. cito
11 11 IIN DER. O escravismot.J. Op. cito
21
rio que não tenha conhecido o trabalho do trabalhador feitorizado.
Onde se fez necessário o trabalho braçal, lá estava o trabalhador
cativo, tanto nos centros urbanos quanto na zona rural."
A relação entre o escravizadore o escravizadoera marcada pelo
paternalismo, pelo controle, pelaviolência, pela resistência,pelaoposi-
ção.A resistênciaservil surgiu como produto da contradição social,de
classes,quando o produtor escravizado,conscienteou inconscientemente
inconformado com a apreensãoe exploraçãodesapiedadade suaforça
de trabalho, resistiu contra eladasmais diversasformas.
O cativo trabalhava mal, sabotavaa produção, fugia, suicidava-
-se,agredia senhorese capatazes,rebelava-se.Ao mínimo descuido
das forças repressoras,ausentava-sedos domínios senhoriais para
lugar distante ou próximo das forças escravistas. Sua própria
"acomodação" à escravidão deu-se no contexto da permanente
resistência a ela."
Fugindo para a liberdade
A fuga foi uma das formas de resistência do cativo que mais
preocupou a sociedade escravista.Angustiou tanto o escravizador
que, depois do comércio, "a maior preocupação da legislação me-
tropolitana [...] teria sido a questão das fugas. Desde asOrdenações
até asLeis Extravagantes e Cartas Régias,há constantes referências
à repressão dos quilombos e [à] proibição de ajuda aos escravos
fugidos - tema também recorrente nas determinações expedidas
1 id d loni "IGpe as auton a esco oruais .
14 Cf. FREITAS, Décio. O escravismobrasileiro. 2" ed. Porto Alegre: Mercado
Aberto, 1982.
15 Cf. PINEIRO, Théo Lobarinhas. Crise e resistência no escravismocolonial: os
últimos anos da escravidão naprovíncia do Rio deJaneiro. PassoFundo: UPF,
2002.
16 LARA, Sílvia Hunold. Campos da violência: escravose senhoresna capitania
do Rio deJaneiro, 1750-1808. Rio deJaneiro:PazeTerra, 1988.
22
Muitas vezes, os cativos ausentaram-se dos domínios do es-
r.ivista e misturaram-se à massa de africanos e afrodescendentes
.l ravizados e livres que perambulavam ou trabalhavam pelas ruas
dosgrandes centros urbanos da época. "Nas zonas rurais tornou-se
notório o fato de alguns escravos conservarem-se nas imediações
.l.rs propriedades de seus donos, com o intuito de saciar a fome,
I h 'gando alguns à afoiteza de dormir nas próprias senzalas [...]"!7
I>essaforma, viviam livres até serem eventualmente identificados
I' -las forças repressoras.
Individual ou coletiva, de forma espontâneaou planejada, a fuga
l rvi] contribuiu para a formação de comunidades de fujões nos ar-
udores dos locais de trabalho - nas cidades,nas catas, nas fazendas
1'11.. - epor vezesem lugaresde difícil acesso."No Brasil, essascornu-
11 idadesde ex-cativos foram designadasde quilombos, mocambos e
outrasdenominações,assinaladasediscutidas no decorrer do presente
I I .ibalho. Mesmo que em determinadasregiões um ou outro nome
u-nha sido preferido pela historiografia, no decorrer do texto o termo
quilombo seráusado para designar o fenômeno em estudo.
Nos mais de 300 anosque vigorou o sistemaescravistano Brasil,
IIquilombo constituiu um enclave, uma das principais alternativas
cI ' negaçãoda produção escravistapor parte dos produtores oprimi-
dos.Marcou suapresençae existiu praticamente em toda a extensão
do território do Brasil. O quilombo representou uma afirmação da
oposição do produtor feitorizado contra o escravismo, produto da
singularidade dessetipo de sociedade." De um lado, estavam os
1 GOULART, JoséAlípio. Da fuga ao suicídio: aspectosda rebeldia dosescravos
no Brasil. Rio deJaneiro:Conquista/MEC, 1972.
IH Cf. REIS, JoãoJosé& GOMES, Flávio dosSantos.[Orgs.]Liberdade por um
fio: história dosqui/ombos no Brasil. SãoPaulo:Companhia dasLetras, 1996.
1'1 Cf. MOURA, Clóvis. Quilombos: resistênciaao escravismo.3a ed. SãoPaulo:
Ática, 1993.
23
trabalhadores negros lutando contra a expropriação de suaforça de
trabalho. Do outro, a classeescravista empenhada no retorno dos
produtores à escravidão. O quilombo foi uma clara expressãoda
luta de classesna produção colonial.
Em 1996, em "Mineração, quilombos e Palmares: Minas Gerais
no séculoXVIII", o historiador Carlos Magno Guimarães salientou
que "o resgate da importância do quilombo, pelo seu caráter de
resistência ao escravismo, nos permite aprofundar a compreensão
do escravoenquanto sujeito histórico e localizá-lo como agente da
luta de classesno âmbito da sociedade que tem por basea escravi-
dão".20Sem o entendimento do fenômeno quilombola é impossível
compreender a escravidão no Brasil colonial.
Quilombo: a resistência
Sob constante tensão, os quilombolas desenvolveram técnicas
de combate e estratégias que permitiram êxito em muitos enfren-
tamentos com a sociedade repressora. Muitas vezes, profundos
conhecedores do ambiente, construíram caminhos alternativos,
enganando os inimigos. Quando em desvantagem numérica, evita-
ram o enfrentamento direto com asforças escravistas,construindo
entretanto cercas,fossose paliçadas para protegerem o mocarnbo."
Igualmente importante na defesafoi a habilidade que os quilorn-
bolas tiveram para "estabelecer uma teia de relacionamentos que
permitisse, além do fornecimento de alguns produtos específicos,
informações sobre açõesdos seus perseguidores'V'
20 GUIMARÃES, Carlos Magno. "Mineração, quilombos e Palmares: Minas
Gerais no século XVIII". In REIS & GOMES [Orgs.] Liberdade [..}. Op. cito
21 Cf. FREITAS, Décio. Palmares: a guerra dos escravos.5a ed. Porto Alegre:
Mercado Aberto, 1984.
22 VOLPATO, LuÍza Rios Ricci. "Quílombos em Mato Grosso: resistência negra
em área de fronteira". In REIS & GOMES [Orgs.] Liberdade [..}. Op. cito
24
Produtores imaginosos, os quilombolas sobreviveram das mais
variadas formas. Traziam da África técnicas e, acima de tudo, a
l xperiência de trabalhadores, não raro ampliadas e enriquecidas
11.1 própria sociedade escravista. No continente negro, "os campos
.Igrícolaseram explorados pelas famílias, isoladasou associadaspor
meio de técnicas agrícolas extensivas e itinerantes't.P Conforme a
localização do quilombo e das circunstâncias que seapresentavam,
osquilombolas praticaram a agricultura, extraíram metais preciosos,
( 11rtaram, coletaram, negociaram com a sociedadeescravista,enfim,
utilizaram-se de todos os meios possíveis para estender por mais
tempo e em forma mais profunda a vida em liberdade.
A sociedadeescravistajamais aceitou o fenômeno do quilombo.
Procurou de todas asformas destruí-Io. "Quando um mocambo ou
quilombo cresciaem tamanho ou força o suficiente para pôr em risco
.1 tranquilidade dos caminhos e das roças, tratava-se de armar um
pt'queno exército para restaurar a paz."24Um exemplo dessafúria foi
.1 luta contra os palmarinos, quando foram enviados exércitos com
I fi nalidade de aniquilar qualquer tentativa de formação de uma
ociedadede produtores livres." Foram significativos osgastoscom
I destruição das comunidades quilombolas. Se não era a maior, a
1'1cocupaçâocom o inimigo interno eracertamente mais persistente
do que a com o inimigo externo.
s últimos dias do cativeiro
O Brasil foi a última nação americana a acabar com a escra-
\ «Ião colonial, em 13 de maio de 1888. Nem mesmo a pressão
I terna, associada à vontade de setores emancipacionistas ou
'i M AESTRI. O escravismono Brasil. Op. cit ..
'1 LARA, Sílvia H. "Do singular ao plural: Palmares, capitães-do-mato e o
governo dos escravos". In REIS & GOMES [Orgs.] Liberdade [..). Op. cito
, Cf FREITAS. Palmares.[..]. Op. cit ..
25
abolicionistas da sociedade brasileira foram suficientes para co-
locar um ponto final no cativeiro antes daquela data extrema. "A
escravatura fora abolida por meio de uma dura e complexa luta
na qual os abolicionistas tinham parecido David enfrentando um
Golias de tradição e de vasto poder econômico [...]". Não pode-
mos esquecer a "resistência dos próprios escravos, que reduziu a
eficiência do sistema escravocrata e culminou no movimento de
fugas em massa de 1887 e 1888".26
As condições que seapresentavamnão eram favoráveisà liberta-
ção dos produtores escravizados.A economia estavaprofundamente
comprometida com a mão de obra servil. Não havia parcela signifi-
cativa da população livre, independente da produção escravista,que
assumissea causa servil. O fim da escravidão foi obra dos cativos
em aliança com o abolicionismo radicalizado. Com o advento da
abolição, embora tardia, realizou-se "a única revolução social até
hoje vitoriosa no Brasil"Y
Com a abolição, o trabalhador escravizado obteve sua liber-
dade civil. Mas, em geral, as condições materiais de existência do
afrodescendente não se revolucionaram significativamente com o
fim da escravidão.Alguns quilombolas continuaram vivendo como
posseirosnas áreasde seusquilombos. Outros procuraram a sobre-
vivência juntando-se às parcelas da população marginalizada, em
novasformas de luta pela sobrevivência. Com o fim da escravidão,o
quilombo deixou de existir como entidade gerada no seio e a partir
das contradições da sociedade escravista, fruto da resistência do
produtor escravizadocontra aapropriação de suapessoa,e,portanto,
de sua força de trabalho, pelo escravizador.
26 CONRAD, Robert. Os últimos anos da escravatura no Brasil: 1850-1888. 2'
ed. Rio deJaneiro: Civilização Brasileira, 1978.
27 MAESTRI, Mário. A segunda morte de CastroAlves: genealogia crítica de um
revisionismo. PassoFundo: EdUPF, 2000.
26
omunidades negras rurais
No novo contexto, com novas determinações, as comunida-
desnegras rurais remanescentes de quilombos, confundidas com
u-dutos de libertos, treze de maio, ex-cativos etc., passaram a ser
designadase a autodesignar-se por diversas nominações - rincões,
«xluto, arraial, vila etc. Uma realidade que, nas primeiras décadas
IpÓS a abolição, não despertou o interesse sistemático das ciências
ociais brasileiras. Somente após a Constituição de 1988, cresceu
ignificativamente o interesse por essascomunidades.
A exploração do trabalhador afro-brasileiro continuou após
,I abolição. Para acrescer sua rentabilidade, o sistema capitalista
wrviu-se comumente da população afrodescendente marginalizada
I orno exército urbano e rural de reservaétnico. Com escassoacesso
, educação,moradia, saúdee, na maioria dasvezes,semiempregada,
xubempregada e desempregada,sofrendo a discriminação racial, a
população afrodescendente começou a se organizar e reivindicar
ti i reitos negados durante toda a história do Brasil.
O regime militar [1964-1985] constituiu imposição desa-
pi 'dada da ditadura capitalista no Brasil. Os trabalhadores do
I .1rnpo e da cidade, os estudantes, a intelectualidade não alienada
lutaram contra o regime despótico que se instalara no Brasil. O
.rfro-brasileiro participou em todos os níveis dessa resistência.
Sobretudo nos anos finais do regime militar, a vanguarda da
Iornunidade afrodescendentebrasileira apresentou parte de suas
Icivindicaçôes específicas, processo do qual resultou a forma-
~.\O do Movimento Negro Unificado. Após um longo período
ti iiarorial, com a saída dos militares do poder, a população
brasileira viu suas esperanças renovadas com o advento de uma
nova Constituição.
Os movimentos organizados, fortalecidos na luta contra a
ti itadura, indicaram aosdeputados constituintes suas aspirações,
muito parcialmente adotadas. Uma das reivindicações populares
27
retidas foi interpretada pelo artigo 68 do Ato das Disposições
Constitucionais Transitórias (ADCT), que reconhecia os direi-
tos de propriedade territorial aos remanescentes de quilombos,
sendo-lhes garantida a titulação definitiva pelo Estado brasileiro:
''Artigo 68 - Aos remanescentes das comunidades dos quilombos
que estejam ocupando suas terras é reconhecida a propriedade
definitiva, devendo o Estado ernitir-lhes os títulos respectivos'l "
Com a promulgação da Constituição em 1988, a vanguarda
organizada da população afro-brasileira passou a exigir do Estado
o cumprimento da lei. A interpretação estrita do preceito constitu-
cional excluía do reconhecimento da propriedade da terra, através
daquela ordenação, toda e qualquer comunidade rural afrodes-
cendente não originada diretamente de um quilombo. Tentou-se
contornar essacrassainjustiça não com a ampliação da lei, mas com
a extensão dos critérios de reconhecimento de uma comunidade
como remanescente de quilombos.
A interpretação dos antropólogos
Nessecontexto, sobretudo antropólogos assumiram a direção da
discussãosobrea conceituação de quilombos e, consequentemente,
sobre a identificação das comunidades qualificadas como remanes-
centes de quilombos, a fim de estender ao máximo a vigência do
texto constitucional, para que assim, eventualmente, um número
maior de afrodescendentesfossecontemplado por ele. Dessemodo,
para a antropologia e para grupos e indivíduos envolvidos nessa
discussão, o termo quilombo assumiu significados radicalmente
distintos dos tidos no passado.A bem da verdade, essaproposta,
até agora, obteve escassoresultado. Segundo dados oficiais, existem
743 áreasdefinidas como remanescentesde quilombos no Brasil.
28 OLIVEIRA, LeinadAyerde. [Org.] Quilombos: a hora ea vezdossobreviventes.
SãoPaulo: Comissãopró-Índio de SãoPaulo,2001.
28
l'orérn, apenas 72 comunidades quilombolas têm a titulação das
II.IS terras."
Os antropólogos pretendem mostrar quea "data de 1888,embora
I'ja um marco formal para os negrosno Brasil, não tem importância
I rntral no que diz respeito aosquilombos. Elesseformaram por es-
(I.IVOS libertos e insurretos e negros livres antese depois da abolição.
lnquanto vigora a escravidão,os quilombos cumprem a função de
.ibrigar as populações negras, configurando um tipo de resistência.
I' j ndaaescravidão,esabemosque a Lei Áurea sóvem formalizar uma
Il.•tlidade conquistada pelas populações negras uma vez que quase
lodos os escravosjá sehaviam libertado quando da assinatura da lei,
11.' quilombos serãoo único espaçoonde muitos negros,excluídospela
nova ordem que se configura, poderão sobreviver física e cultural-
111 .nte.Os quilombos continuam representandoa resistêncianegra".30
Para essainterpretação, o termo "remanescentesde quilombo"
11.10 descrevesobrevivências, após 1888, da ocupação física de es-
jI.IÇOS territoriais de liberdade por comunidade de trabalhadores
I~ ravizados fugidos. Não se trata de grupos isolados ou de uma
populaçâo de origem histórica homogênea. Os quilombos nem
\l'mpre teriam sido constituídos a partir de movimentos de ruptura
I 0111 a escravidão, mas também por grupos que desenvolveram prá-
uca cotidianas de manutenção-reprodução de seusmodos de vida
I .rraccerísticos,através da consolidação de um território próprio."
Paraalém dasjustificativas político-sociais, essaressemamização,
semresguardopara com o sentidooriginal do termo quilombo, violen-
'" Cf. SILVA, Ana Lúcia Ribeiro da. "Governo Federale o Estado de Goiás
irão regularizar terrasdo maior quilombo brasileiro".Disponível em: http://
www.gov.brlnotÍcias.news/Ano/2004/ mês/julho/ semanal /01. Acessoem:
7/set./2004.
\li OLIVEIRA. [Org.] Quilombos [...]. Op. cito
1i Cf. O'DWYER, Eliane Cantarino [Org.] Quilombo: identidade étnica e
territorialidade. Rio deJaneiro:EdFGV, 2002.
29
ta o conceito constituído atravésda descriçãode fenômeno histórico
objetivo fundamental da história da escravidãoafro-brasileira. Nesse
sentido, tende a reescrevero passadoa partir deconceitos do presente.
Desde que surgiu como fenômeno inerente à escravidão, o
quilombo vem sendo estudado pela historiografia, utilizando-se,
para tal, parte das abundantes fontes sobre a questão: toponímia;
descriçõesdos viajantes; documentação do Estado escravista- do-
cumentação provincial, municipal, policial, judicial etc. Lamenta-
velmente, são ainda muito raros os estudos arqueológicos sobre os
quilombos.F Um dos fatores que dificulta esseestudo é que, em
geral, os quilombos ficaram conhecidos sobretudo quando de sua
destruição. Cabe aohistoriador a análise dos documentos e a leitura
das intenções e informações que ficaram nas entrelinhas.
A gênese quilombola
Para o melhor entendimento do quilombono Brasil, procura-
mos, na "Parte I - O quilombo na historiografia: uma genealogia
crítica", estabelecer uma análise genealógica do fenômeno, a
partir sobretudo de suas representações na historiografia bra-
sileira, que efetuamos através de apresentação cronológica dos
autores estudados, a fim de melhor compreensão das modifica-
ções e filiações de interpretação sofridas no decorrer do tempo.
Essa primeira parte abriga cinco capítulos assim distribuídos:
no capítulo primeiro tratamos das "Visões sobre o quilombo na
Colônia". Centramos nossa análise nas visões de Gaspar Barleu
e Rocha Pita, escritores coloniais que vivenciaram o primeiro
32 Sobreestudosarqueológicosnos quilombos ver: FUNARI, PedroPaulo de
Abreu. "ArqueologiadePalmares- Suacontribuição parao conhecimentoda
história da cultura afro-americana".In REIS & GOMES [Orgs.] Liberdade
[..}. Op. cit.; GUIMARÃES, CarlosMagno. & LANNA, Ana Lúcia Duarte.
"Arqueologiadequilombos emMinas Gerais.Pesquisas".AntropoLogia n?31.
SãoLeopoldo - RS, 1980.
30
I' I íodo escravista. Suas obras são fontes de consulta obrigatória
111 pesquisadores do período escravista.
Diferentemente de algumas nações americanas, no momento
II Independência, o Brasil manteve plenamente a escravidão como
1,,1\(' essencialda economia do jovem Império. No capítulo segun-
"", "Visões sobre o quilombo no Império", analisamos asobras de
I lcinrich Handelmann, Agostinho Perdigão Malheiro e Francisco
dolfo Varnhagen sobre a escravidão e o quilombo de Palmares. A
pl'( uliaridade dessasobras está no fato de serem escritas por quem
Ivcu o período escravista.
A República Velha reconheceu formalmente a cidadania da
população brasileira e caracterizou-se por seu caráter federalista,
IIllgárquico e elitista. No capítulo terceiro, "Visões sobre o qui-
lombo: da República ao golpe de 1964", analisamos a obra de Nina
Rodrigues. A Revolução de 1930 assinalou o ingresso das classes
til iais na arena política e social, sob a constante hegemonia das
I IiI' proprietárias. Arthur Ramos eÉdison Carneiro sãoalguns dos
tutores mais característicos dessesanos de transição a se referirem
obre o quilombo, por nós estudados.
Com a redemocratização do Brasil, em 1945, teremos a reto-
m.ida das lutas sociais no país, abrindo forte espaçopara o movi-
mente social e popular. Pelaprimeira vez, asclassestrabalhadoras
.rprcsentam-se,nem que sejaformalmente, como alternativa à nação.
Nesse contexto geral, o francês Benjamin Pérete o brasileiro Clóvis
Moura abordaram o quilombo a partir de uma visão revolucionária
110 passadobrasileiro.
Florescem trabalhos sobre escravidão
Por 20 anos, a ditadura militar impõe semissilêncio sobre o
('~ludo do passado escravistano Brasil. Porém, são dos anos ime-
diatamenteanteriores ao golpe ou do vintênio ditatorial trabalhos
gcrminais por nós estudados. No capítulo quarto, "Visões sobre
31
o quilombo: da ditadura ao centenário da abolição", analisamos
importantes obras, como as de Emília Viotti da Costa, JoséAlípio
Goulart e Décio Freitas. Em fins dos anos de 1970, a retomada da
luta social no Brasil abriu importante espaçopara o estudo sobre
o escravismo e a resistência dos trabalhadores escravizados.Nesse
período, destacam-setrabalhos como osdeJacob Gorender, Robert
Conrad, Lana Lage, Ronaldo Santos, JoãoJoséReis etc.
Nos anos imediatamente anteriores eposteriores a 1988,data do
'primeiro centenário da abolição', realizaram-se inúmeros trabalhos
sobrea escravidão e a resistênciaservil. No capítulo quinto, "Visões
sobre o quilombo: da Constituição de 1988 aos dias atuais", abor-
damos os trabalhos de Alaôr Eduardo Scisinio, Antonio Montene-
gro, Amo Wehling, Carlos Magno Guimarães, Célia de Azevedo,
Eduardo Silva, Eliane Cantarino O'Dwyer, Flávio Gomes, Ivan
Alves Filho, J. M. Monteiro, Mário Maestri, Ronaldo Vainfas, Sílvia
Lara, Stuart Schwartz, 1héo L. Pineiro.
Na "Parte 11- O quilombo no Brasil: uma tentativa de análise",
procuramos, de forma substancial, a partir dos conceitos emitidos
pela historiografia, construir a imagem do fenômeno quilombola.
Dividimos estaparte em dois capítulos. No capítulo sexto, tratamos
do "Quilombo: formação, reprodução e resistência", e no capítulo
sétimo, do "Quilombo: economia quilombola".
Finalmente, na parte 111, especificamente no capítulo oitavo,
"Visões da antropologia sobre o quilombo", apresentamos o qui-
lombo na nova visão sobretudo de antropólogos para, finalmente,
percebermos os processosde ruptura com o passadoe negação da
própria história dessanova visão, um dos principais escopos de
nossainvestigação.
Ainda nessaparte, serãodiscutidas as consequênciasda Lei de
Terrasde 1850, feita àsvésperasda abolição do tráfico transatlântico
de trabalhadores escravizados,que, dentre outros objetivos, tinha
() ti impedir o acessoà terra ao trabalhador livre. A exclusão do
32
.drodescendente livre iniciou com a escravidão e se acentuou com
.1 Lei de Terras de 1850.
Nessaterceira parte foi também apresentadaa proposta de antro-
pólogossobre nova conceitualização de quilombo, a partir da lei de
1988,visando a titulação das terras ocupadas pelos remanescentes
dI.' quilombos e, como assinalado, as eventuais contradições das
leituras antropológicas referentes ao quilombo.
33
PARTE I
o QUILOMBO NA
HISTORIOGRAFIA:
UMA GENEALOGIA CRíTICA
A escravidão vista por Gaspar Barleu
Filólogo, historiador, um dos maiores poetas latinos de sua
época, Gaspar van Barleu nasceu na Antuérpia em 1584e faleceu
em 1648.Ele foi escolhido por Maurício de Nassau para escrever
a história dos seus feitos nos oito anos que administrou o Brasil
holandês. Presenciou a consolidação do escravismo no Brasil e foi
um dos primeiros autores a registrar algo sobre os trabalhadores
escravizadosnesta terra.
Em História dosfeitos recentespraticados durante oito anosno Bra-
sil, apoiado em fontes oficiais e particulares, deixou uma das mais
representativasobrasda experiência colonial holandesano Brasil. Ao
tratar dosquilombos, qualificou oscativosfujõesereferiu-seàreligião,
à economia, à escravidão,ao governo e àshabitaçõesem Palmares.
Para Barleu, os palmarinos seriam "salteadorese escravosfugi-
dos, ligados numa sociedadede latrocínios e rapinas, os quais eram
dali mandados àsAlagoas para infestarem as lavouras". Relatou a
presençade dois quilombos ou, talvez, de duas pequenas confede-
raçõesde quilombo: os Palmares grandes e os Paimares pequenos,
como sendo povoações e comunidades de negros. Atrás dessas
habitações havia hortas e palmares.?
Sem dar mais detalhes, afirmou que os habitantes de Paimares
imitavam a religião dos portugueses e seumodo de governar. Salvo
engano, foi o primeiro a sereferir a formas deservidão em Palmares.
Entre eles, "qualquer escravoque leva de outro lugar um negro ca-
tivo fica alforriado; mas seconsideram emancipados todos quantos
espontaneamente querem ser recebidos na sociedade".
Ele registra a inexistência de criação animal e informa sobreos
produtos da terra: "[ ...] frutos das palmeiras, feijões, batatas-doces,
mandioca, milho, cana-de-açúcar. Por outro lado, o rio setentrional
2 BARLEU, Gaspar.História dosfeitos recentementepraticados durante oito anos
no Brasil. Belo Horizonte: Iratiaia: SãoPaulo, Edusp, 1974.
38
I1 A lagoasfornece peixescom fartura. Deleitam-se aquelesnegros
11111 a arne de animais silvestres,por não terem a dos domésticos.
IIIIIS vezespor ano, faz-seo plantio e a colheita do milho".
Harleu não poupou elogios a Rodolfo Baro, que, em janeiro de
I', t t, comandara expedição composta de alguns holandeses,mula-
111 ( nativos contra os quilombolas de Palmares. A documentação
111 i.1i aponta para a captura de 31 quilombolas. ''A expedição contra
I, . que, pouco havia, fora impedida, obtendo agora algum efeito,
I11 11inou os Palmares grandes, onde salteadores,que compravam o
111 10 .om latrocínios e roubos, tinham o seuvalhacouto e refúgio."
Parao autor, Rodolfo Baro seria um homem "de ânimo audaz
II 'sl .rnido, o qual, reunindo cem tapuias àssuasdemais forças e
1'11 p.trando-se para devastar e saquear os Paimares pequenos, caiu
1111Il' osgrandese destruiu-os a ferro e fogo". De certa forma, Barleu
, 111111 a regrade justificar os feitos das forças repressoras,desqualifi-
nulo os quilombolas. A sociedade escravistasempre qualificou os
'1" ilombolas como ladrões, salteadorese vagabundos.
I'~mendiaa escravidão como necessáriaao sucessoda lavoura
I ,.1na-de-açúcar: "Para o trabalho dos engenhos e da lavoura são
11 I cssários negros": Também colocou o africano como ser inferior
1111 .lpaz: "Os ardras, muito preguiçosos, teimosos e estúpidos [...].
I I (k Calabar têm pouco valor em razão de suapreguiça, estupidez
111 digência."Tratou osquilombos como algo nocivo à sociedadeda
IICH .1, uma volta aoscostumes africanos, resultado da incapacidade
I•. «Iaptação do negro aoscostumes "civilizados".
I':m seu discurso sobre a origem da condição escrava,afirmou
1"' "uns são por um vício da natureza, outros em virtude da lei.
'I"des chamo os que, por defeito de inteligência e de aptidões,
11 111 logram elevar-seàs cogitações mais altas e dignas do homem,
«uvindo mais viverem ao nuto e arbítrio alheio do que ao seu".Ao
,I ti i-rcnciar os homens pelas aptidões cognitivas, incorporava-se à
I ,10 aristotélica da escravidão, ou seja,de homens incapazesde se
39
governarem. Intelectual orgânico da sociedadeescravistaholandesa,
não encontramos, nos poucos parágrafos que foram dedicados ao
assunto, repúdio àviolência, aosmaus-tratos, sobrecargade trabalho
e tratamento dos cativos.
"Uma república rústica e a seu modo bem ordenada"
Rocha Pita viveu de 1660 a 1739. Baiano, oriundo de família
nobre, foi membro daAcademia Real de História Portuguesa. Entre
os livros que escreveudestaca-sea História da América Portuguesa,
de 1730, onde não economiza detalhes para descrevera terra brasi-
leira. Pita foi contemporâneo a Palmares. No livro oitavo, dedicou
pouco mais de uma dezena de parágrafos para elucidar o feito das
forças escravistascontra os palmarinos. Apoiador incondicional da
escravidão, demonstrou seu apreço pelos feitos portugueses e sua
antipatia pelo negro escravizado.
A sociedadeescravistaestavaapreensivacom a presençade cati-
vos aquilombados em Palmares. Tomado pelo mesmo sentimento,
Pita solidarizou-se com os moradores de Alagoas, pois era "quase
irremediável o dano que aquelesmoradores experimentavam dos ne-
gros dos Palmares [...]".3 Proprietário de engenhosna Bahia, defendia
a aplicação do castigo pedagógico aos trabalhadores escravizados;
para ele, um mal necessário.
SegundoPita, ostrabalhadoresescravizadosfugiam "aossenhores
de quem eram escravosnão por tiranias que nelesexperimentassem,
mas por apeteceremviverisentosde qualquer domínio". Quanto aos
castigos,seaplicados com moderação, transformavam um bruto em
bom trabalhador. Partindo do princípio dequeasfugaseram inerentes
à personalidade do escravo,os escravizadoresqualificaram os negros
que fugiam de 'preguiçosos' e 'inimigos' do trabalho.
3 PITA, Sebastiãoda Rocha.História da América Portuguesa. Belo Horizonte:
Itatiaia: SãoPaulo:Edusp, 1976.
40
I)l'screveu com detalhes o ato da fuga dos palmarinos. "Com
I 10 [ ••• ] dispuseram a fuga e a executaram, levando consigo
urnas escravas, esposase concubinas, também cúmplices no
1110 da ausência, muitas armas diferentes, umas que adquiriram,
11111,\ que roubaram a seusdonos na ocasião em que fugiram."
f ujoesromperam o "vastíssimo sertão daquelavila, que acharam
oc upado do gentio, e só assistido dos brutos que lhes serviam de
lhucnto e companhia, com a qual sejulgaram ditosos, estimando
I I1 ,I liberdade entre as feras que a sujeição entre os homens".
".;tO ricos os detalhes apresentados pelo autor sobre Palmares.
h.una a atenção sua proposta da preferência dos negros pela vida
I clva, em detrimento ao cativeiro. Outro registro importante
1I .1 cumplicidade dos cativos das fazendas com os fujões. Sua
I 111 .uiva deixa claro que a fuga era o objetivo de grande parte dos
II ,h.dhadores escravizados. Identificou também a presença de na-
I 11\ americanos entre os quilombolas.
Pila confirmou que algumas famílias, com medo das investidas
I" 1 .uivos escapados,pactuaram com os palmarinos. Salvo enga-
111. 1 ,I primeira referência de intercâmbio entre quilombolas e a
"1 lade escravistaque não ocorria apenasdevido ao medo, como
1"11111 so autor, mas também devido a interessesde ambas aspartes.
''1. .. ] por temerem os danos que recebiam e segurarem as suas
I I~. famílias e lavouras dos males que os negros do Palmares lhes
111 avarn,tinham com elessecretaconfederação,dando-lhes armas,
1IIIIvorae balas, roupas, fazendas da Europa e regalos de Portugal,
I 10 oiro, prata e dinheiro que traziam do que roubavam, e alguns
I 'I I 'S dosque nos seuscamposcolhiam, sematençãoàsgravíssimas
11111,11>em que incorriam, porque o perigo presenteos fazia esquecer
111 1 ,lstigo futuro [...]."
( ) escritor português comparou o feito dos trabalhadores escra-
I •.ulos aos acontecimentos dos romanos, referindo-se igualmente
, oq~anização estatal dos palmarinos: "[00'] uma república rústica
41
e a seu modo bem ordenada". Para ele, os habitantes de Palmares
possuíam um chefe, que chamou de príncipe, tomado pela tradição
europeia, e propôs a existência de um conselho.
Na república negra, ospalmarinos elegeriam "seu príncipe, com
nome de Zombi (que no seu idioma vale o mesmo que diabo), um
dos seusvarões mais justos e alentados; e posto que esta superiori-
dade era eletiva, lhe durava por toda a vida, e tinha acessoa ela os
negros, mulatos e mestiços [...] de mais reto procedimento, de maior
valor e experiência [...]". Portanto, o título seria eletivo, por toda a
vida, não participando da eleição todos oshabitantes dos Palmares.
Segundo Pita, nos quilombos de Palmares seriam necessárias
algumas medidas para manter a comunidade coesa,sobretudo por-
que eram frequentes as investidas das forças escravistas.A procura
da coesãosocial interna era uma das estratégiasde manutenção da
sociedade palmarina. "Eram entre eles delitos castigados inviola-
velmente com pena de morte o homicídio, o adultério e o roubo,
porque o mesmo que com os estranhos era lícito se lhes proibia
entre os naturais."
Como Barleu, Pita discute a questão da liberdade nos PaImares
e o caráter costumeiro das leis. Ele propôs que "aosescravosque por
vontade selhes iam juntar, concediam viverem em liberdade; os que
tomavam por força ficavam cativos e podiam servendidos. Tinham
também pena capital aqueles que, havendo ido para o seu poder
voluntários, intentassem tornar para os seussenhores.Com menor
rigor castigavamaosque, sendolevadospor força, tivessemo mesmo
impulso. Destesseusestatutose leis eram asordenaçõesevolumes as
suasmemórias e tradições conservadasde pais e filhos [...]".
Ao tratar do final do conflito, Pita fantasiou a morte de Zumbi,
último comandante palmarino: "Zombi, com os mais esforçados
guerreiros e leaissúditos, querendo obviar o ficarem cativos da nossa
gente,edesprezandoo morrerem a nossoferro, subiram àsuagrande
eminência evoluntariamente sedespenharam, e com aquele gênero
42
I III00te mostraram não amar a vida na escravidão, e não querer
I IIII Ia aosnossosgolpes".A proposta tratava-sede elogio oblíquo
li 11.1 pela liberdade dos palmarinos.
dmitiu o castigo pedagógico ejustificou asfugas como devidas
I unor à liberdade. Entendeu que havia cumplicidade dos cativos
II f .izendas com os fujões e identificou também a presença de
IIIVO americanos entre os quilombolas. Para ele, as famílias dos
,llIuizadores,com medo das investidas dos palmarinos, pactuaram
1111os mesmos. Como assinalado, teria sido o primeiro autor a
li.unar a atenção para as trocas mercantis, que, segundo ele, inte-
I .\riam a ambas as partes.
!':nalteceua repressãodos quilombos de Palmares, ao elogiar o
,·llIrioso" feito do governador da província de Pernambuco quando
1'1I11'1l0U a sua destruição: "Este fim tão útil como glorioso teve a
"III'lra que fizemos aos negros dos Palmares, devendo-se não só o
11I'IlItlSOda empresa, mas osmeios da execução,aovalor e zelo com
I' 11 Caetano de Melo de Castro governou a província de Pernam-
111" o". Sãocompreensíveis asposições de Pita e Barleu. Pita era es-
I I rvixta e cidadão do império lusitano; Barleu erao escritor "oficial"
.11 Maurício de Nassau. Os dois escritores escravistasdefenderam a
I r.ividâo e atacaram a rebeldia servil.
43
VI ÓES SOBRE O QUILOMBO NO IMPÉRIO
1111 mbo: "desagradável" vizinhança
Em 1860, Heinrich Handelmann (1827-1891) publicou sua
J I/I/riria do Brasil. Ao referir-se aosfatos de Palmares, praticamente
I 1'1 riu o conteúdo da obra de Rocha Pita. O historiador alemão
1"essousua visão europeia de sociedade e de homem superior
111 ti squalificar o próprio homem livre brasileiro: "[ ...] o morador
111.1\ 1 .iro é absolutamente indolente, mandrião, prefere ser pobre a
li" t' 'ar-se a algum esforço fatigante",'
I )iferentemente do camponês europeu proprietário de seu lote
I. 1110"0], o caboclo mantinha relação de posseprecária com a terra,
111 crindo-se fragilmente na sociedademercantil. Seu regime de tra-
1,.11110,voltado para a economia desubsistência,tevesuabasecorroída
I" L, .scravidâo, O caboclofoi qualificado como preguiçosoenão dado
11)trabalho, precisamenteporque não serelacionavaprioritariamente
• IIANDELMANN, Heinrich. História do Brasil. 4a ed. Belo Horizonte:
ltatiaia; SãoPaulo: Edusp, 1982.
com o mercado. Essepreconceito ainda sefaz presenteem algumas
regiõesbrasileiras,sobretudonascom origem nacolonizaçãoeuropeia.
Handelmann reconhecia a presença de nativos americanos e
africanos como a baseda mão de obra escravizada.Para ele, porém,
num futuro breve, somente osafricanos e mestiços de todas asraças
negrasestariam condenados à escravidão: "[ ...] para o futuro, devia
somente pesar a maldição da escravidão humana sobre a raça afri-
cana; contudo, sem dúvida quando o sangue de outra raça, índia
ou europeia, semisturava com a africana, logo ficava o mestiço sob
o jugo da escravidão."
Criticou sem constrangimento os raros escritores que haviam
repudiado a escravidão: "Tomás de Mercado, em 1569,desdecedo
profligara incisiva e abertamente os abusose barbaridades desseco-
mércio dehomens; porém, essainstituição em si mesmae,sobretudo,
o princípio da escravidão negra vigora até aos tempos modernos,
como coisa permitida e justa".
Reforçou a tese da necessidadeda introdução de africanos no
Brasil. Segundo ele, diante da escassezde imigrantes europeus,
sem os trabalhadores escravizados,a colonização das imensas terras
americanasnão seriapossível.Ao tratar dasfugas de cativos, afirmou
que "escravosfugidos,houve-os naturalmente desdesempre;porém
direito legal de liberdade não podia, nem pode aqui ser alcançado
pela fuga, porque não existe no Brasil em parte alguma asilo ou
território livre".
Lembrava que a condição do trabalhador cativo garantia ao
escravizador a propriedade sobre este.Portanto, em caso de fuga, a
população livre unia-se contra os fujões. Propôs que os escapados
conheciam os caminhos e atalhos para as matas. Empreendeu em
seuvalioso trabalho descriçãosintética da fuga edo quilombo como
fenômenos sociais gerais próprios à escravidão, apontando para al-
gumas de suasdeterminações essenciais.Nela, definiu o nome em
geral recebido pelas comunidades de cativos fugidos.
46
egundo Handelmann, na mata, os fujões "ora vagavam isola-
I I ,~ ida um com sua família; ora sereuniam diversos num grande
111111)C fundavam no âmago da mata uma aldeia em comum, em
I li limas pobres choças de palha e taipa, ao lado de uma roçada
I '1" 'na para fazer plantação, o conjunto defendido, àsvezes,por
" III.tI ha tosca, para o caso de um imprevisto assalto; chamava-se
uma tal colônia de escravosfugidos um quilombo, ou, em ou-
I " sítios, um mocambo, ambos nomes provavelmente de origem
'11l.lna".
Ouanto aos quilombos, afirmou que "existiram desde cedo,
1IIIamente em todas as províncias do Brasil (o primeiro exern-
,,111 11 i tórico conhecido foi na Bahia, em 1575, destruído pelo
uvrrnador-geral dali, Luís de Brito de Alrneida), e eram em toda
I 11.11I ' considerados uma muito desagradávele temida vizinhança
I' 11.1() fazendeiro; porque não somente os fugitivos, onde podiam,
I1111b.ivam e danificavam asplantações, mas porque os seuspróprios
, I.IVOS sepunham em relaçõescom os quilombolas, lhes levavam
1'1" .elesprecisavam e, afinal, cansadosde trabalhar, serefugiavam
I IIlIh "m no quilombo".
I 'gistra a preocupação da sociedade escravista com os qui-
I, uuhos. As ações dos quilombolas causavam prejuízos materiais
111proprietários e efeito psicológico sobre os cativos. O "mau"
( mplo dos mocambeiros poderia desestruturar a organização
I, propriedades, aguçando asfugas e assublevações.O quilombo
I , li m enclave dentro do regime escravista, uma microssociedade
til! rnativa à escravidão, à disposição do trabalhador escravizado.
,Ivo engano, a leitura de Handelmann constitui a primeira apre-
I nruçâo sociológica do quilombo na historiografia.
As investidas isoladas contra os quilombos nem sempre tive-
I 1111sucesso.Referiu-se à necessidade da intervenção do Estado.
I h ssaforma, teria nascido uma entidade antifugas, os capitães-
110 mato e capitães-do-campo. Ofício brutal "para o qual só
47
se prestavam homens de grande força física e gênio destemido,
armados até os dentes".
Denominou os quilombos de Palmares de "Estado negro",
que teria se formado "nos primeiros anos da invasão holandesa
em Pernambuco, 1630 e seguintes, quando se evadiu um grande
número de africanos da escravidão dos portugueses, não sabemos
precisamente quando, nem como; todavia, a circunstância de se
haverem logo ajuntado e sujeitado a uma organização coletiva faz-
-nos supor que eram companheiros de tribo da costa de Angola ou
pelo menos malungos, isto é, companheiros de navio, que sempre
conservaram uma grande solidariedade. [...] em meadosdo século 17,
havia o 'Estado negro' assim alcançado não pequeno grau de poder
e florescimento; estavaagora em condições de oferecer resistência
às forças militares da capitania de Pernambuco".
Handelmann interpretou a servidão palmarina como escravi-
dão, servindo-se dessaproposta para estabelecercontradição no ato
libertá rio dos cativos: "[ ...J os habitantes de Palmares conservavam
também irmãos de raça na escravidão", contrariando os ideais de
liberdade. Ele deixou clara sua simpatia pelos escravizadorese elo-
giou igualmente a destruição da confederação palmarina.
"Finalmente, resolveuo capitâo-mor Caetano de Melo de Castro
[ ... J empreender a difícil tarefa. Para essefim ele convocou todas as
forças de seugoverno e pediu a colaboração do vizinho governador-
-geral da Bahia, que lhe mandou em auxílio uma tropa de paulistas,
que então vagava nos sertõesdaquela província."
Ao descrevera procissãoda vitória, enalteceu o feito dos negrei-
ros: 'l..J todos seentregaram aosregozijos da vitória, que teve a sua
expressãoreligiosa numa procissão de açãode graçase numa festiva
missa cantada na catedral. Assim se extinguiu o 'Estado negro', o
grande quilombo de Palmares!"
O historiador alemãoescreveuna Europa, em uma épocaem que
se consolidara já o movimento democrático [1848J.Ao registrar a
48
11111 ia portuguesa, refere-seà "triste sorte" dos palmarinos, que jus-
dll ,\ como necessáriaao desenvolvimento da civilização no Brasil,
I ui.u iva que, a seguir, seria retomada pela historiografia brasileira.
"I )everíamos lamentar-lhe a triste sorte, porém a suadestruição
IIII II ma necessidade.Uma completa africanização deAlagoas, uma
IIII 1\ ia africana de permeio aos Estados europeus escravocratas,
I I coisa que não podia de todo ser tolerada, sem fazer perigar
11.\ mente a existência da colonização branca brasileira; o dever
III própria conservação obrigava a exterminá-Ia; e deve-seatribuir,
11111 ,\spessoas,porém somenteàscircunstâncias existentesentão, ao
111 li I .nável sistema do tráfico de escravose escravizaçãodos negros,
I I ulpa de tão grande tragédia."
I Iandelmann foi o primeiro autor a registrar a necessidadeda
I li LI ição de PaImares para a sobrevivência da sociedadeescravista
II1 () brasileira. Apontava de forma certeira que a constituição de
11111 I':stado negro em Alagoas ameaçaria seriamente as pretensões
ruopeias na América. Temia que o exemplo de Palmares incitasse
I li ubalhadores escravizados a um levante contra a escravidão.
~ 111 via possibilidade de ordem na América portuguesa à margem
III Irabalho servil.
fuga é inerente à escravidão"
Nascido em Minas Gerais, o advogado Agostinho Perdigão M.
l.ilheiro escreveu,em 1866,A escravidãonoBrasil: ensaiohistórico,
utidico, social. Antes, em 1863, como presidente do Instituto dos
.lvogados, quando da discussão sobre o fim da instituição, estu-
111.\ ailegitimidade da propriedade constituída sobreo trabalhador
I r.ivizado e sugerira a lenta superação da escravidão, declarando
I, ! Il'S os filhos de cativos nascidos de certa data em diante.
Apadrinhado do Imperador, o advogado mineiro não depen-
111.1 diretamente da exploração da mão de obra servil. Em 1866,
t.ilheiro saiu da teoria e alforriou, sem ônus, nove cativos, além
49
de batizar como livre a última criança nascida. Porém, para não
deixar dúvidas sobre suavisão, combateu a Lei do Ventre Livre,
em 1870.
Preocupado com a questãoda escravidão, fez um apanhado das
leis que existiram e serviram para regular o sistema escravista no
Brasil. Iniciou seu trabalho lembrando que pela lei o trabalhador
escravizado não era cidadão, e sim coisa.
Sobre as fugas, escreveu que "entre nós foi frequente desde
tempos antigos, e ainda hoje se reproduz, o fato de abandonarem
os escravos a casa dos senhores e internarem-se pelas matas ou
sertões, eximindo-se assim de fato ao cativeiro, embora sujeitos à
vida precária e cheia de privações, contrariedades e perigos que aí
pudessem ou possam levar".2
O autor lembrou que asfugas sempreaconteceram.A cadafuga,
o trabalhador escravizadobuscava fora dos domínios escravistasa
liberdade que lhe fora arrancada.As matas esertõesconstituíram-se
numa alternativa segura,embora fossem perigosos.
Ao falar dos quilombos, propôs que "essas reuniões foram
denominadas quilombos ou mocambos; e os escravos assim fu-
gidos (fossem em grande ou pequeno número), quilombolas ou
calhambolas. No Brasil tem sido isto fácil aosescravosem razão de
sua extensão territorial e densasmatas, conquanto procurem eles
sempre a proximidade dos povoados para poderem prover às suas
necessidades,ainda por via do latrocínio".
Fez menção à natureza como aliada dos quilombolas; destacouasrelaçõesmercantis entre quilombos e o mundo oficial; desprezou
ascomparaçõesculturais entre europeus eafricanos. Não qualificou
o quilombo como volta àÁfrica e como perigo eminente à sociedade
escravista.
2 MALHEIRO, Perdigão.A escravidãono Brasil: ensaiohistórico; jurídico, social.
[1866] 3" ed. Petrópolis:Vozes;Brasília: INL, 1976.
50
!tI,lnto à confederação dos Palmares, apoiado em documen-
I1 -poca, escreveu que, "em uma extensão de 50 a 90 léguas
11 011 menos, abundantes de palmeiras [...] seabrigaram desde
l'lllneiros tempos negros fugidos, nas matas principalmente
II I I ,I da Barriga; e aí se foram agregando outros escravos, e
11"H 111desertores e pessoas livres, sobretudo durante a guerra
11,1uulcsa, que não dava tempo aos habitantes de os perseguirem
1\ reaverem os escravos".
Malheiro descreveude forma sintética a organização interna do
1'llIlIInho: "[ ...] aí tinham osnegrosum certo governo temporal, uma
11.1.idministraçâo da justiça, igrejas de corrupto rito católico etc.;
II,ISpovoações eram fortificadas, embora toscamente; tinham
11111,1\diversaspara sua defesa;e entregavam-se também à cultura,
.111('(lido dos gêneros de primeira necessidade".
I) .ixou transparecer no seuvalioso trabalho o preconceito para
11111os quilombolas, e sua defesada tardia ordem escravista: "[ ...]
1111101.quilombos menos importantes existiram sempre, e ainda
11.111existem em várias paragens de tão vasto território, com perigo
.1.1110da gente civilizada, barbarismo dos próprios escravos,ofensa
.1111-m pública, prejuízo do trabalho e portanto da produção e
Ihl'"'l.a, não obstante a sua constante perseguição e destruição".
Enquanto os autores que o antecederam falaram em roubo,
, '11110ato pejorativo, Malheiro justificou arapinagem praticada pelos
'1"dom bolas,por causada necessidadede sobrevivência. Barleu, Pita
l l.indelmann definiram o quilombo como agrupamento distante
II vociedadeoficial. Malheiro retirou o quilombo do esconderijo e
••10 ou-o próximo aospovoados.
Parao autor, astrocas praticadas entre os quilombolas e, sobre-
IIldo, a sociedade escravista acompanharam o fenômeno desde o
I11fi io de sua existência. Malheiro confirmou a presença de armas
11\1mocarnbo, dando-lhe um caráter de defesa, identificando, in-
1uuscienternente, os escravizadoresa criminosos.
51
"A conquista e sujeição de Paimares foi obra de largos anos"
Natural de Sorocaba,FranciscoAdolfo Varnhagen, Visconde de
Porto Seguro,é tido como o patrono da historiografia brasileiradevido
a suaHistória geral do Brasil: antesde suaseparaçãoe independência de
Portugal (1854-1857).3Suavida esuaobra registraramprofunda ligação
com o Estado escravista.Na sua alentada produção historiográfica,
Varnhagen dedicou poucosparágrafosaostrabalhadoresescravizados.
O patrono da historiografia brasileira referiu-se à destruição
dos Paimares admitindo que as forças escravizadorasencontraram
dificuldades para combatê-lo: "[ ...] na actual província dasAlagoas,
os quais se mantinham sempre em armas, apesardas derrotas que
lhesdera,primeiro Antônio Dias Cardoso edepoisFernão Carrilho".
Com esforço "a conquista esujeição dos Palmares foi obra de largos
anos, e de não poucos trabalhos e fadigas".
Mesmo sabendo que osmocambos de Paimares formaram uma
confederação, o escritor desprezou a capacidadede organização dos
palmarinos, pois seriam, segundo ele, incapazesde constituírem um
governo centralizado ecom leispróprias. Nessesentido, pronunciou-
-seclaramente contra os dados históricos disponíveis, afastando-se
da leitura historiográfica para engolfar-se plenamente na produção
apologética e ideológica.
EscreveuVarnhagen: "Exageram osque, amigos do maravilhoso,
os apresentam como organizados em república constituída com leis
especiais,esubordinados aum chefe que denominavam Zombi [...]".
Ele não admitia que o quilombo de Palmaresfossequalificado como
república. O autor referiu-se a Rocha Pita, que classificara Paimares
como uma república rústica.
Varnhagen deixou claro seuapreço pelas forças destruidoras de
quilombos. Para ele, Domingos Jorge Velho era "muito conhecedor
3 VARNHAGEN, F. A. de. História geral do Brasil: antes de sua separaçãoe
independência de Portugal. 7" ed. SãoPaulo:Melhoramentos, 1962.
52
IIll'S eardis dasguerrasdo mato no Brasil, pelascampanhas que
1,1 nossertões, em bandeiras contra os índios, seapresentou em
,10 governador de Pernambuco com um projeto para terminar
I onquista, ficando asvantagens dela para elee seussócios".Sua
1111,1 realçavaa obra do brasileiro - o paulista - na destruição de
dlll,lr 'S,em detrimento da administração lusitana.
() concluir seu relato sobre Palmares, lamentou que outros
I limes não reproduzissem, como ele, o grande feito dos paulis-
I "Travou-se uma encarniçada campanha, da qual infelizmente
I1 ItOSconsta que houvesse um cronista que perpetuasse mais
I 11 .roicos feitos dos paulistas. Em 1695 tiveram lugar os mais
IIl'l!inolentos ataques;porém só em 1697os Palmares sepuderam
tI,',11 de todo conquistados".
Hl' .onheceu inadvertidamente o poderio dos palmarinos, ao
1" di/i á-los como belicosose admitir que astropas repressivastive-
111I dificuldades para cornbatê-los. Defensor do regime escravista,
111 poupou elogios aosdestruidores de quilombos, como assinalado.
I prcssandoo ponto de vista da sociedade escravista, Varnhagen
I I ' Irou que a destruição de quilombos e a apreensão de cativos
I I ti m bom negócio e uma obra de civilização.
53
VISÕES SOBRE O QUILOMBO: DA REPÚBLICA
AO GOLPE DE 1964
I .rlmares: "a maior das ameaças à civilização do futuro povo
It,' ileiro"
I':m 1862,no Maranhão, nasciaRaimundo Nina Rodrigues, Em
I HH ,ele mudou-se para Salvador a fim de estudar Medicina, Após
.unpletar, em 1888, o curso, no Rio de Janeiro, tornou-se professor
'I I':s ola de Medicina da Bahia, onde conquistaria reconhecimento
1111 ional lecionando "Higiene e Medicina Legal", Morreu em Paris
\'1 'Í'Í anos,deixando, entre outros legadosintelectuais, investigações
',1 IIa, sadoeda cultura dascomunidades africanaseafro-brasileiras.'
Rodrigues "aderiu às teorias social-darwinistas, deterministas
I 10 i.iis eeugenistaseuropeias.Paraaprofundar o conhecimento cien-
I tlh o sobrea composição racial da população brasileira, dedicou-se
,1111 afinco à investigação do passadoe da cultura das comunidades
III It anase afro-brasileiras".
M AESTRI, Mário. "Benjamin Péret: Um olhar heterodoxo sobrePalma-
II'~".In PÉRET, Benjamin. O quilombo dosPalmares?Edição e introdução:
M AESTRI & PONGE, Robert. Porto Alegre: EdUFRGS, 2002.
Publicou artigos mais tarde apresentadosem livro - Osafricanos
no Brasil. A terceira parte dessetrabalho trata das sublevaçõesde
cativos no Brasil anteriores aoséculo 19.Essecapítulo foi publicado
pelo autor no Diário da Bahia, de 20, 22 e 23 de agosto de 1905,
sob o título ''A Troia negra:errose lacunas da História de Palmares".
Refere-seao quilombo de PaImares designando-o como Estado.
Para ele, Palmares teve seu início antes de 1630: "[ ...] por aqueles
sítios se refugiaram, das fazendas vizinhas, os negros que se esca-
pavam aosrigores do cativeiro". "[ ...] Estado negro que nos recessos
das brenhas assim se constituíra e fortalecera, tinha tido começos
mais modestos em diminuta reunião de escravosfugidos, que iam
aumentando de número com o tempo.'?
Segundo o autor, ospalmarinos "tiveram de raptar asmulheres
de que careciam; pois, menos aptasa fugir dos engenhos e fazendas
do que os homens, estavamelasem grande falta nos quilombos". A
carência de mulheres no quilombo, citada pelo autor, decorria, em
parte, do próprio tráfico. Nos portos brasileiros, desembarcaram
mais homens do que mulheres escravizadas.
Discordando de Rocha Pita, que qualificara o qui lombo de
PaImares como uma república rústica, bem ordenada a seu modo,
Rodrigues escreveuque "estaqualificação de república sólhe poderia
convir na acepçãolata de Estado, jamais como justificação da forma
de governo por elesadotada". Ele

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