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Filosofia, Ciência e Questões Epistemológicas O desenvolvimento científico contemporâneo exige uma reflexão filosófica sobre as novas formas de conhecimento. Nesta unidade, vamos estudar as relações entre a filosofia e o conhecimento científico no mundo contemporâneo, tendo por contraponto a valorização da vida humana frente à exacerbação dos valores materiais. Objetivo Ao final desta unidade, você deverá ser capaz de: • Elaborar uma reflexão crítica acerca do conhecimento, da ética e das novas tecnologias que se interpenetram e interagem no mundo globalizado. Conteúdo Programático Esta unidade está organizada de acordo com os seguintes temas: • Tema 1 - Filosofia e desenvolvimento científico • Tema 2 - Concepções éticas • Tema 3 - Globalização e conhecimento Veja abaixo algumas imagens do universo obtidas pelo telescópio SPITZER. Créditos: NASA/JPL-Caltech Créditos: NASA/JPL-Caltech Créditos: NASA/JPL-Caltech Créditos: NASA/JPL-Caltech Créditos: NASA/JPL-Caltech Créditos: NASA/JPL-Caltech De que outro modo poderíamos ter acesso a essas imagens sem o avanço científico? Tema 1 Filosofia e desenvolvimento científico Em que consiste a “fragmentação dos saberes” ocorrida na modernidade? Num primeiro momento da busca do saber, conforme já mencionamos, todas as áreas do conhecimento eram estudadas de forma abrangente pela filosofia, numa relação dialógica que vinculava todos os aspectos do campo racional, possibilitando uma visão ampla e universal dos saberes. Desse modo, na Antiguidade Clássica, a ciência fazia parte do conhecimento filosófico e, por estar ligada à filosofia, as pesquisas científicas eram qualitativas e não experimentais; o que significa que estavam separadas das técnicas cotidianas. Buscava-se o saber teórico distanciando-se da realidade prática – por isso, é comum afirmar que a ciência antiga era uma ciência contemplativa e desinteressada, pois não visava a aplicação ou o uso do conhecimento para a modificação do real. No entanto, com as intensas transformações ocorridas na Idade Moderna, tem início o estudo recortado da realidade, ou seja, os objetos de investigação científica passam a ser pesquisados de modo isolado, setorial e autônomo, desprendendo-se de seu conjunto geral. A ciência moderna se caracteriza também pela união entre teoria (ciência) e prática (técnica), promovendo a ciência ativa, capaz de interferir concretamente na realidade prática. Podemos observar ainda esta fragmentação das ciências sob duas formas: positiva, pois o objeto de estudo é focado e delimitado especificamente; mas também negativa, ao restringir a pesquisa e perder a visão do todo. Observação No pensamento grego, ciência e filosofia achavam-se ainda vinculadas e só vieram a se separar na Idade Moderna, no século XVII, com a revolução científica instaurada por Galileu. A ciência moderna nasce ao determinar seu objeto específico de investigação e ao criar um método confiável pelo qual estabelece o controle desse conhecimento. São os métodos rigorosos que possibilitam demarcar um conhecimento sistemático, preciso e objetivo que permita a descoberta de relações universais entre os fenômenos, a previsão de acontecimentos e também a ação sobre a natureza de maneira mais segura. A partir da modernidade, as ciências se multiplicaram, buscando cada uma delas seu próprio caminho, ou seja, seu próprio método. Cada ciência torna-se, então, uma ciência particular, pois delimita um campo de pesquisa e procedimentos específicos. (ARANHA; MARTINS. 2009, p. 345) Em oposição ao caráter contemplativo e desinteressado da ciência na Antiguidade clássica, a modernidade apresenta uma nova postura diante do mundo. O conhecimento não parte de noções e princípios, porém da própria realidade observada e submetida a experimentações. A instauração do método científico, de ordenação de dados sistemáticos e passíveis de generalização, vai permitir, assim, uma considerável transformação na realidade, fazendo surgir novas formas de atuação e, também, de controle sobre esta concepção de ciência. Não devemos nos esquecer de que, especialmente no campo científico, foram muitos os fatores que contribuíram para essas mudanças: a invenção da bússola, da energia a vapor, da imprensa, além de novas teorias – como a teoria heliocêntrica, de Copérnico –, revolucionaram o campo do conhecimento, reformulando e, mesmo, superando antigas teorias. Saiba Mais Podemos considerar que são fundamentalmente duas as grandes transformações que levarão à revolução científica: 1) do ponto de vista da cosmologia, a demonstração da validade do modelo heliocêntrico [...]; 2) do ponto de vista da ideia de ciência, a valorização da observação e do método experimental, isto é uma ciência ativa, que se opõe à ciência contemplativa dos antigos; e a utilização da matemática como linguagem da física, proposta por Galileu sob inspiração platônica e pitagórica e contrária à concepção aristotélica. A ciência ativa moderna rompe com a separação antiga entre a ciência (episteme), o saber teórico, e a técnica (téchne), o saber aplicado, integrando ciência e técnica e fazendo com que problemas práticos no campo da técnica levem a desenvolvimentos científicos, bem como com que hipóteses teóricas sejam testadas na prática, a partir de sua aplicação na técnica. (MARCONDES, 1997, p. 151) Portanto, diferentemente da ciência antiga, o saber científico da modernidade modifica as bases do conhecimento e das relações sociais, interferindo diretamente no modo de vida de cada indivíduo. Esse tempo será marcado por um novo homem, capaz de autossuficiência e de domínio sobre o mundo. Ao se firmar como condição imprescindível para sustentar e comprovar a realidade, a ciência passou a ser considerada como a forma de conhecimento mais precisa e confiável, expandindo sua metodologia a todas as formas de investigação. O entusiasmo decorrente das transformações científicas atinge vários setores da sociedade, influenciando ainda outras áreas do conhecimento, como no caso do movimento filosófico do Iluminismo, pelo qual se privilegiava um novo saber, secularizado e, portanto, desligado de qualquer recurso aos dogmas, à religiosidade. Com o iluminismo – também conhecido como o Século das Luzes –, o homem consegue se libertar dos entraves do critério de autoridade, a fim de dar vazão à racionalidade plena e laicizada. Para refletir O iluminismo não foi um movimento coeso e, por isso mesmo, apresenta uma riqueza e complexidade que lhe são peculiares. Os pensadores iluministas foram, não há dúvida, “ideólogos da burguesia”, mas a análise de seu pensamento não deve parar aí. A própria postura do filósofo se modificou no século XVIII. Abandonando os círculos fechados de seus antecessores, ele circulava pelas ruas e salões, exibindo e exercitando a razão. Para esses filósofos propagandistas, como escreveu o pensador Ernst Cassirer (1874-1945), “a razão não era o cofre da alma onde se guardavam verdades eternas, mas era a força espiritual, a energia, capaz de nos conduzir ao caminho da verdade”. (COTRIM, 1999, p. 171-172) As extremas valorizações da ciência moderna e de sua metodologia levaram alguns pensadores à tentativa de priorizar o conhecimento científico, racional e comprovável, eliminando tudo aquilo que pudesse ocasionar qualquer tipo de questionamento. Um desses pensadores foi Augusto Comte (1798-1857), criador do positivismo, que desenvolve suas pesquisas com base, especialmente, em uma organização social fundamentada na mecânica e na biologia. O pensamento de Comte se caracterizava pela confiança e pelo privilégio total dado à industrialização e ao progresso. Ele elabora uma evolução histórica do conhecimento, a partir de sua teoria dos três estados (ou lei dos trêsestados). São eles: estado teológico (ou mítico), estado metafísico (ou filosófico) e estado positivo (ou científico), que corresponderiam respectivamente à infância, à juventude e à maturidade do ser humano. Desse modo, para Augusto Comte, a primeira etapa do desenvolvimento da inteligência do homem, a infância, a fase teológica, estaria ligada a uma pura aceitação de normas e dogmas; a segunda etapa, a juventude, seria uma fase de transição, quando começa a existir uma crítica aos modelos, mas de forma abstrata e não determinada; já a última etapa, a maturidade, constituiria o ponto culminante do espírito humano, quando o homem atinge sua plenitude, graças ao auxílio das ciências. O seu projeto de organização social teria três fundamentos: o amor por princípio, a ordem por base e o progresso por fim. Em consequência do privilégio irrestrito dado à cientificidade, à pretensão de obter cada vez mais resultados rigorosos e eficazes, algumas críticas a esse modelo começam a surgir, pois o ser humano não pode ser totalmente enquadrado em modelos passíveis de matematização. Duas destas críticas, apresentadas no quadro abaixo, merecem destaque. Clique em cada uma delas para conhecer mais detalhes. Mito do cientificismo Mito da neutralidade científica O mito do cientificismo (ou da cientificidade) decorre da crença dada à prioridade do saber científico, desvinculado de outros modos de conhecimento. Ou seja, a ciência, com seus métodos e objetividade, poderia resolver todos os problemas humanos, e seria a única forma racional e evidente de saber: o saber verdadeiro. O mito da neutralidade científica considera que os cientistas, ao elaborarem suas investigações, estariam isentos de influências pessoais. Isso quer dizer que, na formulação de suas pesquisas, eles não sofreriam pressão externa de qualquer tipo. Contudo, em ambos os casos, esses mitos não se sustentam, já que todo homem, cientista ou não, está imerso em valores de diversas procedências. Daí, a importância da reflexão filosófica sobre os rumos das investigações científicas, fundadas na racionalidade moderna, a fim de observar se a ciência caminha a favor ou contra o homem. Observação Ao contrário do senso comum, [...], a ciência propõe-se atingir conhecimentos precisos, coerentes e abrangentes. Enfim, ela se caracteriza por tentar, deliberadamente, alcançar resultados que o senso comum, por sua natureza, não pode alcançar. Isso não significa que os conhecimentos científicos sejam inquestionavelmente certos, coerentes e infalíveis. Como observou, ironicamente, Bernard Shaw: “a ciência nunca resolve um problema sem criar pelo menos dez outros”. O estudo da história das ciências nos revela que inúmeras teorias científicas que, no passado, reinaram como absolutamente sólidas e corretas, atualmente estão refutadas, substituídas ou modificadas por outras teorias. (COTRIM, 1999, p. 195) Tema 2 Concepções éticas Do ponto de vista filosófico, qual a diferença entre ética e moral? Se observarmos etimologicamente os termos ética e moral, eles, em última análise, poderão ser considerados sinônimos: de fato, ethos (grego) e mores (latim) significam respectivamente hábito, comportamento, costume, conduta. Contudo, para alguns autores, é possível estabelecer uma distinção conceitual entre os dois vocábulos, pois enquanto a moral se relacionaria mais concretamente com as normas de conduta e os códigos de cada sociedade, a ética estaria ligada aos fundamentos da moral, a uma investigação teórica sobre as normas morais. Saiba Mais A ética é teoria, investigação ou explicação de um tipo de experiência humana ou forma de comportamento dos homens, o da moral, considerado porém na sua totalidade, diversidade e variedade. O que nela se afirme sobre a natureza ou fundamento das normas morais deve valer para a moral da sociedade grega, ou para a moral que vigora de fato numa comunidade humana moderna. É isso que assegura o seu caráter teórico e evita sua redução a uma disciplina normativa ou pragmática. O valor da ética como teoria está naquilo que explica, e não no fato de prescrever ou recomendar com vistas à ação em situações concretas. (VÁSQUEZ, 2005, p. 21) Para o mundo ocidental, as discussões sobre ética surgem com o nascimento da reflexão filosófica, na Grécia, por volta do século VI a.C., quando os primeiros pensadores se preocuparam, conforme já estudamos, com a descrição racional do universo e, principalmente, elaboraram uma visão antropológica do conhecimento, voltando o foco das pesquisas para a tentativa de compreender o lugar que o homem ocupa em nosso planeta. Assim, para o entendimento do que é o homem, não basta saber que ele pensa, fala ou sonha, mas, especialmente, por que ele pensa, fala ou sonha. Ou seja, as questões propriamente humanas derivam de indagações que ultrapassam a existência comum e visam encontrar possíveis respostas para a vida integral do ser humano, por meio do convívio harmonioso de cada indivíduo no seu respectivo grupo social. O movimento da sofística propõe um modelo de moral laica, de acordo com as convenções sociais. Para os pensadores desta corrente, as ações dos homens devem estar ligadas à contextualidade. Por exemplo, o filósofo Górgias (século V a.C.) sustenta uma ética do kairós (da ocasião, do momento oportuno), salientando a relevância do contexto na concepção de uma ação digna e justa. Sócrates (470-399 a.C.) e Platão (428-347 a.C.), ao contrário, priorizam uma ética universal, que alcance indistintamente a humanidade inteira, independentemente do tempo e da história. Para eles, a busca do bem coincide com a dedicação ao conhecimento da verdade, que implica no desejo de uma vida virtuosa, honesta e digna. Segundo Sócrates (considerado o iniciador da filosofia moral) e Platão, existem valores intemporais, abstratos e universais que ultrapassam e superam os contextos históricos. Já para Aristóteles (384-322 a.C.), o ser humano busca sempre a felicidade, como um bem maior. Contudo, esta felicidade despreza as riquezas e os bens materiais, valorizando a capacidade racional do homem, que pode ser feliz a partir do bem pensar. Por isso, para atingir esse objetivo maior, que é a felicidade, todo indivíduo deve desenvolver a virtude, segundo a natureza da justa medida, o justo meio – os excessos ou faltas são incompatíveis com a natureza humana –, sem deixar de considerar a vida em sociedade. Assim, a coragem é o justo meio entre a covardia (falta) e a temeridade (excesso). Observação A ética aristotélica é um estudo da virtude (areté, ou mais propriamente, excelência), uma vez que, segundo o próprio Aristóteles, “nosso objetivo é tornar-nos homens bons, ou alcançar o grau mais elevado do bem humano. Este bem é a felicidade; e a felicidade consiste na atividade da alma de acordo com a virtude” (Ética a Nicômacos). Uma das principais contribuições da ética aristotélica é a sua famosa tese segundo a qual a virtude está no meio (meson) [...]. O homem virtuoso deve assim conhecer o ponto médio, a justa medida das coisas, e agir de forma equilibrada de acordo com a prudência ou moderação (sophrosine), que pode ser entendida como a própria caracterização do saber prático. (MARCONDES, 1997, p. 76-77) Epicuro (341-270 a.C.) considera que o fim último do homem é a busca do prazer (hedoné). Para ele, não deve haver conflito entre a razão e os prazeres, naturais e moderados. Este prazer, no entanto, costuma estar distante dos prazeres corporais, passíveis, muitas vezes, de ocasionar dissabores e sofrimentos. A busca do prazer, para Epicuro, significa a eliminação da dor; os prazeres estão relacionados, principalmente, ao equilíbrio, à vida espiritual e às amizades. Desse modo, a filosofia poderia afastar o ser humano de todos os seus medos (da morte, do destino). Ele enfatizatambém que “o homem de caráter verdadeiro será honesto mesmo que ninguém se encontre presente”. Zenão de Cício (c. 334-262 a.C.), considerado fundador da filosofia estoica, acredita que o ser humano deve se abster das paixões e dos prazeres, privilegiando a atividade intelectual, além de suportar corajosa e resolutamente as dores físicas. Para esta corrente filosófica, o homem precisa se afastar de todas as coisas que produzam inquietude, já que a felicidade é decorrente da prática virtuosa. A ataraxia (imperturbabilidade) é o objetivo maior da vida estoica. Devemos ressaltar, mais uma vez, que uma das características principais da filosofia grega é a separação existente entre o conhecimento racional – que abarca também o comportamento humano – e os assuntos ligados aos mitos, ao sagrado. A ética, portanto, assim como a política, pertence ao âmbito da filosofia prática. Na Idade Média, entretanto, os valores éticos estavam intrinsecamente vinculados aos cânones da Igreja, já que é dela que emana o grande poder unificador da Europa Ocidental. Para a Igreja, portanto, o homem ético, temente a Deus, é aquele que se submete aos valores religiosos, sem contestação. Saiba Mais Nesta sociedade, caracterizada também pela sua profunda fragmentação econômica e política, devido à existência de uma multidão de feudos, a religião garante uma certa unidade social, porque a política esta na dependência dela e a Igreja – como instituição que vela pela defesa da religião – exerce plenamente um poder espiritual e monopoliza toda a vida intelectual. A moral concreta, efetiva, e a ética – como doutrina moral – estão impregnadas, também, de um conteúdo religioso que encontramos em todas as manifestações da vida medieval. (VÁSQUEZ, 2005, p. 275- 276) O início da modernidade (século XVI) coincide com as críticas aos procedimentos medievais. O progresso das ciências e do conhecimento, de modo geral, não pode mais aceitar passivamente as normas e regras ditadas pelo critério de autoridade, sem argumentos comprobatórios. Desse modo, passam a ser priorizados os critérios laicizados e racionais, bem como as justificativas baseadas nas evidências, que permeiam, também, as condutas e os valores humanos. No período do iluminismo (século XVIII), pode-se dizer que o homem atinge a sua maioridade, já que a ele cabe discernir racionalmente sobre a noção de bem e de mal. Para Kant (1724-1804), o próprio homem, como ser autônomo, é capaz de estabelecer e seguir aquilo que está de acordo como a moral – o que remete ao famoso imperativo categórico kantiano: “Age de tal maneira que a tua ação possa servir de exemplo para a humanidade inteira”. Nesse sentido, deve haver conformidade entre a vontade e o dever. O século XIX é marcado por discussões e críticas acerca das concepções éticas anteriores, insuficientes, a partir de então, para avaliar as ações do novo homem. Friedrich Nietzsche (1844- 1900), por exemplo, elabora uma crítica profunda e contundente com relação aos valores e às normas morais existentes. Segundo ele, muitas normas foram criadas a fim de podar a criatividade e os instintos do homem, impedindo a plenitude da vida humana, a qual não poderia ser controlada por uma razão preestabelecida; na superação destas velhas normas, é preciso que o homem privilegie as paixões, as possibilidades de invenção, consideradas como forças vitais de sua humanização. Nietzsche afirma que o controle dos instintos possibilitou a coação do ser humano às regras ditadas pelas sociedades; ele destaca duas expressões decorrentes do enquadramento do homem: o “processo de domesticação”, vinculado à submissão do indivíduo; e a “moral de rebanho”, contrária à liberdade e espontaneidade do ser humano. Atualmente, novos modelos se impõem, sustentados pelo desenvolvimento da alta tecnologia, que interfere decisivamente nas ações e nos valores humanos. O intenso progresso dos meios de comunicação, por exemplo, deveriam interligar as comunidades, valorizar a diversidade cultural e promover o bem comum. Por isso, hoje em dia, torna-se importante a reflexão sobre uma ética planetária – capaz de abranger os variados aspectos da vida social, propiciando o respeito mútuo e a igualdade de direito entre os povos, sem qualquer tipo de segregação – e uma bioética, a ética da vida em seus aspectos científicos, biológicos, médicos, jurídicos, religiosos, que se ocupa, entre outras questões, do aborto, da eutanásia e da pesquisa genética. Tema 3 Globalização e conhecimento Podemos afirmar que todas as descobertas científicas e tecnológicas trouxeram benefícios para a humanidade inteira? Retomando a questão do progresso do pensamento e das teorias que provocaram mudanças profundas no modo de existir humano – e com base no desenvolvimento das ciências –, constatamos que os modelos válidos em uma determinada época tendem a sofrer modificações posteriores, ocasionando transformações significativas na sociedade e, consequentemente, no conhecimento; isto é, essas mudanças provocam o surgimento de novos modelos, de novos paradigmas que substituem antigas teorias. Devemos observar que tais mudanças podem se dar de modo regular e paulatino, como um simples processo evolutivo, ou de forma brusca e radical; assim, consideramos que uma mudança de paradigma é aquela que ocorre no aperfeiçoamento natural dos modelos vigentes. Como exemplo de mudanças paradigmáticas, podemos citar, no campo científico, os avanços tecnológicos e, no comportamento humano, as modificações nos valores. Contudo, uma ruptura paradigmática constitui uma negação, uma superação de certo modelo, um rompimento com as estruturas estabelecidas. Por exemplo: a teoria heliocêntrica, de Copérnico (1473-1543), rompe definitivamente com o milenar modelo geocêntrico que vigorou até o início da modernidade. O filósofo Gaston Bachelard (1884-1962) utiliza a expressão “corte epistemológico” para se referir à demolição de antigos paradigmas. O que significa também “o ponto de não retorno”, quando não é mais possível retomar teorias anteriores. Na construção do saber, Bachelard enfatiza as descontinuidades, as crises e as rupturas, na formulação de novas possibilidades e novas propostas. Observamos, assim, que as ciências contemporâneas revolucionaram as formas de investigação e pesquisa motivando a reavaliação, ou mesmo a implosão, de teses consideradas até então legítimas e definitivas. A mudança na visão de mundo abala também a concepção moderna da centralidade do homem face à natureza, já que não seria epistemologicamente admissível, hoje, entender o homem como uma criatura separada de seu próprio meio. Três fatores, mostrados no quadro abaixo se destacam como fundamentais, em épocas diversas, para ocasionar as grandes rupturas que abalaram o mundo. Clique em cada um deles e conheça mais detalhes. Heliocentrismo de Copérnico “A primeira fonte de ruptura se encontra na teoria heliocêntrica de Copérnico (1543), assim chamada de revolução copernicana. Ao deslocar a Terra o centro do Universo, do cosmo antigo, e ao colocá-la em movimento em torno do Sol, Copérnico retira da Terra seu lugar central [...]”. (MARCONDES, 1997, p. 254-255) No caso de Copérnico, que, quando questionou a tese milenar do geocentrismo – a Terra como centro do universo –, com seus seguidores Giordano Bruno e Galileu, abalou profundamente as bases do conhecimento de seu tempo ao defender a sua teoria heliocêntrica – o Sol como centro do universo. Teoria da evolução de Charles Darwin “A segunda grande ruptura é provocada pelo que se poderia chamar, por analogia com a primeira, a revolução darwiniana, resultado da obra de Charles Darwin, A origem das espécies pela seleção natural (1859) [...]. Darwin abala profundamente a crença na superioridade humana, no homem como ‘rei da criação’, como tendo uma naturezanão só superior como radicalmente distinta dos demais seres.” (MARCONDES, 1997, p. 254-255) Também as pesquisas de Darwin afetaram profundamente as condições de conhecimento, pois, ao afirmar que o ser humano é apenas o resultado de uma evolução natural, retira do homem a sua pretensa superioridade. Esta teoria, como não podia deixar de ser, causou grande comoção e foi ferozmente combatida por católicos e protestantes. Teoria do inconsciente de Sigmund Freud “A terceira grande ruptura se encontra no que poderíamos chamar, seguindo a mesma linha, de revolução freudiana, e é consequência da teoria psicanalítica de Sigmund Freud (1856-1939) e de sua descoberta do inconsciente [...]. Ao formular uma nova explicação do aparelho psíquico humano, sobretudo com sua hipótese do inconsciente, Freud mostra que não temos controle pleno de nossas ações e que há causas determinantes de nossa ação que nos são desconhecidas.” (MARCONDES, 1997, p. 254-255) Já a teoria do inconsciente de Freud promoveu, como pudemos observar, uma considerável turbulência nas investigações psicanalíticas. Para esta teoria, o homem não é capaz de ter o pleno controle racional de suas ações, porque, algumas vezes, seus atos podem vir a se constituir reflexos de situações sublimadas. Do ponto de vista filosófico, a teoria freudiana abala a concepção racional do homem no mundo, pois o sujeito autônomo, antropocêntrico e solipsista (de consciência individual subjetiva, isolada em si mesma), tão valorizado na modernidade, é colocado em xeque. Essas fontes de ruptura desempenharam uma importante modificação nas formas do conhecimento humano, afetando, assim, o modo de se pensar a realidade, pois as novas ciências e a tecnologia perpassam todos os campos da vida humana, interferindo no modo de ser do indivíduo. Outras importantes teorias contemporâneas modificaram os paradigmas existentes, possibilitando novos enfoques da realidade. Entre elas, podemos destacar a teoria da relatividade de Albert Einstein (1879-1955) e a teoria quântica do alemão Max Planck (1858-1947). Clique nos quadros abaixo para saber mais sobre elas. Teoria da relatividade Teoria quântica A teoria da relatividade, desenvolvida por Einstein, tem por característica o princípio de que a noção de espaço e tempo é relativa; isto é, as coordenadas espaço e tempo deixam de ter um significado objetivo e absoluto, pois não são entidades isoladas e, por isso, No desenvolvimento de sua teoria quântica, Max Planck constatou que as trocas de energia não acontecem de modo contínuo, mas aparecem em “pacotes” (os “quanta”), englobando princípios que poderiam explicar o comportamento da matéria e da luz em dependem da descrição de cada observador. Diferentemente da física clássica – que estabelece uma definição absoluta da matéria –, a teoria da relatividade demonstra a impossibilidade de uma definição única da totalidade do universo. escalas mínimas que se modificam em função de diferentes metodologias de observação. Não se pode, segundo Planck, decompor o universo em unidades isoladas e independentes, pois a matéria se manifesta como uma teia de relações que interagem com o todo, incluindo-se nessa perspectiva o próprio observador. As modificações no campo científico também se estendem a outras áreas do conhecimento, engendrando novos caminhos e fazendo com que outros modelos sejam instaurados no âmbito das investigações gerais e tecnológicas, bem como na vida social, visto que o progresso científico exige constante renovação. Observamos que o desenvolvimento das investigações científicas promove transformações impactantes sobre a realidade; porém, estas pesquisas – invenções tecnológicas, aperfeiçoamento de instrumentos, criação de novos medicamentos – devem ser examinadas também com base na reflexão filosófica, para que possam trazer reais benefícios para a humanidade. As ciências alcançaram, de fato, um desenvolvimento extraordinário, e várias descobertas farmacológicas trouxeram possibilidades, até bem pouco tempo impensáveis, de intervenção no próprio corpo físico do homem. Mas, um dos mais sérios problemas a ser aqui discutido é o domínio da patente desses medicamentos por parte de um único laboratório farmacêutico, o que caracterizaria uma espécie de “monopólio da saúde”. Cabe então perguntar: será que todos terão acesso aos medicamentos? E, além disso, até que ponto a identificação prévia de uma doença não vai causar a discriminação do enfermo, no campo pessoal, profissional e social? Infelizmente, tais descobertas, atreladas muitas vezes a interesses políticos e econômicos e não acessíveis a todos os indivíduos, podem trazer consequências danosas para o ser humano. Um exemplo clássico dos riscos decorrentes da utilização boa ou má que se pode fazer das pesquisas científicas é o da fissão nuclear, cujo uso deveria ser para fins pacíficos, mas logo apropriado com fins militares, para a destruição da vida (Hiroshima e Nagasaki, 1945). Também no campo da informação, verificamos as consequências do avanço científico, pois a comunicação e a transmissão do conhecimento, no tempo real da internet, permitem a aproximação e a interação de pessoas geograficamente isoladas e distantes. Com o advento da cibernética, as mudanças se tornaram impactantes, não apenas na velocidade e capacidade de armazenamento de dados, mas também nas formas de conhecimento produzidas ou reproduzidas. Por isso, a relevância, uma vez mais, de pensarmos de modo filosófico nas possíveis consequências do avanço tecnológico, considerando a responsabilidade do cientista ao desenvolver suas pesquisas, de modo que suas descobertas não tragam prejuízos ao ser humano nem, tampouco, ao nosso planeta. Muito embora a noção de “mundo globalizado” anteceda a contemporaneidade, é necessário destacar que uma das maiores transformações do século XX foi justamente o processo da globalização. O projeto de um mundo sem fronteiras, sem barreiras, sem entraves em todos os níveis, possibilitaria – era o que se pensava – o bem-estar de toda comunidade global – de nossa aldeia global. A utopia da globalização consistiria, assim, na instauração de uma comunidade planetária que propiciasse o acesso de todos aos resultados teóricos e práticos dos avanços científicos e, portanto, aos bens conquistados. No entanto, sabemos que a possibilidade de um mundo assim ainda não se concretizou, pois a ganância de certos grupos oprime a maioria dos povos, provocando fome, doenças, guerras e mortes. Para refletir No final do século XX, houve sem dúvida um aprofundamento na integração econômica e social entre os países do mundo, em função da abertura do comércio internacional e do progresso das tecnologias da informação e da comunicação. Nesse sentido, a globalização é um progresso do capitalismo. Contudo, como todo progresso, carrega consigo inúmeras contradições. [...] Afinal, qual é essa nova ordem mundial sustentada pela globalização? Comunicação instantânea com todos os lugares do mundo e possibilidades infinitas de trocas de informações e recursos? Mas muitos países e pessoas continuam pobres, ou até mais pobres do que antes. [...] Portanto, a globalização deve ser analisada criticamente, em função de seus pontos positivos e negativos, e não como se fosse a solução milagrosa e inquestionável para todos os problemas do mundo. (MATTAR, 2010, p. 244) Desse modo, como podemos constatar, a pretensão de igualdade e tolerância não se estendeu a todos, visto que globalizar significa, também, um processo de dominação disseminado pelos países mais poderosos, com base em interesses predominantemente econômicos. Daí, a importância da reflexão filosófica, para que se possa avaliar com isenção e profundidade, caso a caso, o que realmente representa a globalização, no sentido de trazer benefícios reais paratoda a humanidade, principalmente no que tange à paz e à justiça social. Vídeo Para saber mais sobre as consequências do avanço científico e da necessária responsabilidade do cientista frente a esse avanço, assista agora ao vídeo: Filosofia e responsabilidade científica. Clique na imagem para visualizar o vídeo. https://player.vimeo.com/video/344182637?badge=0&autopause=0&player_id=0&app_id=58479 Encerramento Em que consiste a “fragmentação dos saberes” ocorrida na modernidade? A “fragmentação dos saberes” consiste na divisão das ciências em áreas isoladas e específicas, contemplando um único objeto de investigação. Do ponto de vista filosófico, qual a diferença entre ética e moral? A moral diz respeito às normas de conduta, às regras comportamentais de cada sociedade; enquanto a ética consiste na reflexão teórica sobre os fundamentos da moral. Podemos afirmar que todas as descobertas científicas e tecnológicas trouxeram benefícios para a humanidade inteira? Não. Embora os avanços tecnológicos tenham possibilitado um desenvolvimento considerável, nem todos puderam usufruir deles, haja vista a situação dos chamados países do “terceiro mundo”. Resumo da Unidade Na busca do conhecimento, o ser humano desenvolveu importantes investigações, que aperfeiçoaram a tecnologia e aprofundaram as pesquisas científicas. Nesta unidade, procuramos destacar momentos relevantes da ciência que devem ser observados à luz da crítica filosófica, a fim de refletir sobre as consequências do avanço científico, de sua interferência na realidade e, consequentemente, na vida do homem.
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