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Este DVD apresenta depoimentos de produtores, realizadores e pesquisadores ligados ao cenário do documentário no Brasil. Trata de questões relacionadas aos modos de fazer e pensar esta produção, suas particularidades regionais e o impacto das novas tecnologias. SO B R E FA Z ER D O C U M EN TÁ R IO S Este DVD apresenta depoimentos de produtores, realizadores e pesquisadores ligados ao cenário do documentário no Brasil. Trata de questões relacionadas aos modos de fazer e pensar esta produção, suas particularidades regionais e o impacto das novas tecnologias. SOBRE FAZER DOCUMENTÁRIOS São Paulo, 2007 Apresentação Outros Retratos – Ensaiando um panorama do documentário independente no Brasil Cláudia Mesquita A realidade como crítica de cinema – O cinema como crítica da realidade José Carlos Avellar Tendências e perspectivas do documentário contemporâneo: um olhar histórico retrospectivo Sheila Schvarzman Documentário expandido – Reinvenções do documentário na contemporaneidade Francisco Elinaldo Teixeira O filme-dispositivo no documentário brasileiro contemporâneo Consuelo Lins Tendências do documentário contemporâneo Liliana Sulzbach A expressão cinematográfica no território do documental Luiz Eduardo Jorge Documentário e subjetividade – Uma rua de mão dupla Cao Guimarães O documentário como experiência Érika Bauer Filme livre Carlos Nader Outros novos rumos Paschoal Samora Rumos Itaú Cultural Cinema e Vídeo: trajetória e perspectiva Roberto Moreira S. Cruz Relatório de viagem Flavia Celidônio 8 16 30 38 44 52 60 68 74 82 92 96 108 Sumário 6 Sobre fazer documentários / Vários autores. – São Paulo : Itaú Cultural, 2007. 124 p. Acompanha 1 DVD 1. Audiovisual 2. Documentários 3. Técnica 4. Produção 5. Brasil I. Título CDD 791.43 6 7 Desde a retomada da produção cinematográfica no país, em meados da década de 1990, o documentário cada vez mais tem ocupado espaço nos festivais e salas exibidoras, despertando a atenção do público e gerando interesse pelas imagens do gênero. Em sincronia com essa tendência, o Itaú Cultural desenvolveu uma política de difusão e fomento à produção de documentários por meio do programa Rumos Itaú Cultural Cinema e Vídeo. Nos últimos dez anos foram realizadas atividades estimulando o pensamento crítico, criando ações de difusão, exibição e apoiando a realização de mais de 35 filmes e vídeos. Sobre Fazer Documentários apresenta reflexões e opiniões de cineastas e pesquisadores, tratando dos processos de realização, tendências e modelos de linguagem e perspectivas históricas sobre essas produções. O livro é o resultado de uma série de palestras realizadas em 13 cidades durante o período de lançamento e apresentação da 5ª edição do programa Rumos Itaú Cultural Cinema e Vídeo. Uma contribuição pontual para o leitor que se interessa pelos rumos do audiovisual no país, especialmente pelo documentário. Apresentação 8 9 Proponho com este artigo um panorama breve e sintético da produção documental brasileira a partir dos anos 1960, quando ganha força e relevância estética o documentário independente no país. A idéia é relacionar condições de produção e opções estéticas e temáticas tendo como recorte a questão da alteridade, ou as representações do “outro de classe”1. O texto está estruturado segundo uma periodização da produção, dividida em três “momentos”: documentário moderno (1960-1984), tempos de vídeo (1984-1999) e documentário da “retomada” (1999 em diante). A demarcação desses períodos não é rigorosa ou exata, mas aproximada, guiando-se por marcos simbólicos2; eu a utilizo para apresentar características dominantes em cada “momento”, bem como para sugerir transformações no decorrer desse percurso histórico. Documentário moderno (1960-1984): a emergência do “outro” Sabemos que, no Brasil, o enfrentamento da alteridade ganhou especial interesse, expressão e atenção a partir da entrada dos anos 19603. Com a emergência do documentário independente, entram em pauta, sob olhares críticos, as histórias, os problemas e as experiências das classes populares. Nesse período, dominaram os curtas e os médias- metragens, produzidos com baixos orçamentos e com o apoio de instituições que detinham e emprestavam os equipamentos básicos. Quando se fala em documentário moderno brasileiro, portanto, deve-se pensar num contexto não profissionalizado e na circulação extremamente restrita das obras – rejeitadas pelo circuito comercial, elas circulavam em festivais, cineclubes ou organizações políticas e culturais (Bernardet, 1987: 169). Em Cineastas e Imagens do Povo (1985), livro sobre o documentário moderno brasileiro que se tornou referência indispensável, Jean-Claude Bernardet estabeleceu como eixo para o entendimento de sua trajetória uma questão posta justamente pela relação de alteridade: Cláudia Mesquita Professora da Universidade Federal de Santa Catarina. Jornalista formada pela UFMG, mestre em cinema pela ECA/USP e doutoranda na mesma instituição, onde desenvolve pesquisa sobre representações da experiência religiosa pelo documentário brasileiro. Atuou como pesquisadora nos documentários Peões (Eduardo Coutinho, 2004) e Em Trânsito (Henri Gervaiseau, 2005), e como assistente de direção em Saudade do Futuro (Cesar e Marie-Clemence Paes, 2000). Realizou Terra da Lua (1992, com Anna Karina e Tania Caliari), A Folia de Adão (2001) e 5 Mulheres de Paraisópolis (2004). Outros Retratos – Ensaiando um panorama do documentário independente no Brasil 1 Como aponta Bernardet (1987: 168), dois filmes curtos realizados em 1959 es- boçam tendências iniciais para o moder- no documentário brasileiro: de um lado, O Poeta do Castelo (Joaquim Pedro de Andrade) propõe um retrato intimista de um indivíduo “especial”, o poeta Manuel Bandeira; de outro, Arraial do Cabo (Paulo César Saraceni) se volta à abordagem crítica da problemática vivida por uma comunidade pobre de pescadores. É esse veio aberto pelo segundo filme que estará em pauta neste artigo. 2 Estou ciente das ilusões da “periodiza- ção”, tão bem expostas por Bernardet em Historiografia Clássica do Cinema Brasileiro (2004). Será possível seccionar a história do documentário brasileiro em “fatias temporais que tenham uma significação dominante intrínseca, bem como uma significação para os diversos elementos que a compõem?” (2004: 59). Apesar dos limites do método, que certamente não dá conta da diversidade da produção em cada “momento”, opto pela periodização por sua eficácia didática. Aqui, o perío- do do “documentário moderno” inicia-se com Aruanda (Linduarte Noronha, 1960) e se encerra com Cabra Marcado para Morrer (Eduardo Coutinho, 1984). O do- cumentário da “retomada” inicia-se com Santo Forte (Eduardo Coutinho, 1999), situando-se o período dos “tempos de vídeo” entre os dois marcos (1984-1999). 3 Antes da emergência do cinema novo, a maioria dos documentários produzidos – mesmo aqueles sob muitos aspectos notáveis – estava vinculada ao Instituto Nacional de Cinema Educativo (Ince) e, portanto, orientada ideologicamente no sentido de promover uma imagem favorável e harmoniosa do país. Sem falar nos curtas e matérias de cinejornais, es- timulados nos anos 1930 e 1940 pela exibição compulsória de complemen- tos nacionais nos cinemas (legislação de 1932), mas resultando, de modo geral, em propaganda paga por em- presas e instituições. 10 Cláudia Mesquita Outros retratos – Ensaiando um panorama do documentário independente no Brasil 11 “quem é o dono do discurso?” (Saraiva, 2004). Com base na análise pormenorizada de 23 filmes, o autor identificou diferentesmodos de construção cinematográfica do “outro de classe” (“o modelo sociológico ou a voz do dono”, “a voz do documentarista”, “a voz do outro” etc.). Para caracterizar o que chamou de “modelo sociológico”, dominante nos anos 1960, o autor toma Viramundo (1965), de Geraldo Sarno, como exemplo paradigmático. Nesse filme, já são utilizadas entrevistas, possibilitadas pela emergência técnica de gravação de som direto. Mas esse uso ainda é bastante restrito, limitado pelas condições materiais de produção e pelo paradigma documental clássico, ainda dominante. A “voz do povo” já se faz presente, portanto, mas ela não é o elemento central, sendo mobilizada na obtenção de informações e ilustrações que apóiam o documentarista na estruturação de um argumento (via de regra elaborado de antemão) sobre a situação real focalizada. De maneira geral, os documentários desse período estão interessados em estabelecer diagnósticos sobre situações sociais abrangentes e candentes. Almeja-se a macroanálise: o homem singular, a situação particular e o local específico são transformados em “categorias”, pelas quais se tecem significações genéricas, com a pretensão de iluminar dinâmicas sociais que conformam a experiência (de modo geral problemática) de muitos brasileiros. A relação observada nesse “modelo” é clássica, centrada na intransponível “exterioridade” do sujeito que filma em relação aos objetos filmados, como problematizou Omar (1978: 407): “Para haver um documentário é preciso uma exterioridade do sujeito e do objeto. Cada qual de um lado da linha, sem se tocarem. Só se documenta aquilo de que não se participa”. Segundo o julgamento implícito em Cineastas e Imagens do Povo, esse “modelo” resultaria em representações autoritárias do “outro de classe”, reduzido a objeto de uma interpre- tação exterior, erudita, unívoca. Em resposta aos limites desse “modelo”, Bernardet inves- tigou, em curtas documentais dos anos 1970, experimentos que buscavam “promover” o sujeito da experiência à posição de sujeito do discurso. Uma dessas vias se materializou no ímpeto de “dar a voz”, notável em curtas como Tarumã (1975), de Aloysio Raulino, em que se observa certa “magreza estética” ou “estilo pobre”, que reduz sua forma de expressão ao mínimo, para que “o outro de classe assuma o discurso e não seja abafado pela voz do cineasta” (1985: 110). Mas, como escreve Bernardet, “o olhar continua sendo o do cineasta” (p. 110); não se problematiza a contento o gesto de “dar a voz”, a natureza da mediação (ainda obviamente presente) entre o espectador e a experiência do “outro”. Como adverte ao leitor, Bernardet finalizou seu livro antes de assistir a Cabra Marcado para Morrer. Lançado em 1984, o filme de Eduardo Coutinho foi saudado como um “divisor de águas”. Entre as primeiras filmagens (interrompidas pelo golpe militar de 1964) e o lançamento definitivo, 20 anos se passaram. Cresceu a influência da TV, notável na retomada do projeto, quando Coutinho incorpora a experiência da reportagem televisiva, treinada no Globo Repórter. Em 1964, tentou-se a ficção de matriz neo-realista, os camponeses como atores de suas histórias, roteirizadas em cenas e diálogos. Em 1984, domina a entrevista como palco do encontro/desencontro (sem roteiro prévio) entre “desiguais”: o cineasta, os camponeses. A entrevista aqui não é simples “depoimento”, não é “dar a voz”. Assumida no filme como diálogo, ela é permanente negociação. Marcando sua voz e presença em cena, Coutinho abre caminho para uma reflexão mais amadurecida sobre a elaboração de sentidos pelo documentário, pondo em crise tanto as ilusões de conhecimento objetivo do “modelo sociológico” quanto a falsa neutralidade do “dar a voz”: tudo é negociação, mediação, elaboração de versões, de discursos. Além de realizar uma espécie de “balanço crítico” do período moderno, Cabra sonda o futuro, estabelecendo parâmetros de linguagem que se tornariam muito influentes – tanto em termos de estratégias de abordagem e estilística (domínio da entrevista, assumida como “palco”, desnaturalizada) quanto de temática (a experiência dos “homens ordinários” como foco privilegiado de interesse4). Tempos de vídeo (1984-1999): discursos “de dentro” A carreira de Coutinho é emblemática. Depois do sucesso de Cabra Marcado para Morrer, o cineasta levaria 15 anos para voltar a produzir documentários longos em formato 35 milímetros, destinados às salas de cinema5. Nesse período, produziu quase exclusivamente em vídeo. Com a crise do cinema brasileiro, a penetração progressiva da TV e a popularização dos aparelhos de vídeo, desenvolve-se uma significativa produção documental nesse formato no Brasil. Essa produção não chega ao cinema e se limita a circuitos exibidores específicos: festivais, associações, TVs comunitárias. Portanto, diferentemente do cinema ficcional (notadamente em longa-metragem), o documentário não “sucumbiu” à virada dos anos 1980 para os 1990. Seguiu seu destino de gênero “menor”, apartado do mercado de salas, situação que parece se modificar razoavelmente a partir da chamada “retomada” do cinema brasileiro, como veremos. De um lado, a produção documental dos “tempos de vídeo” tem fortes relações com os movimentos sociais, que surgiram ou reconquistaram espaço com a redemocratização. Desde o começo dos anos 1980, desenvolve-se a realização de vídeos em que o exercício do “processo” de registro e discussão importa tanto quanto os produtos. No chamado “movimento do vídeo popular”, não vale a escalada da profissionalização em curso no mercado audiovisual brasileiro daquela época, observando-se uma notável imbricação entre produtores de vídeo e atores dos movimentos sociais. Não tematizarei aqui tal produção, que por suas particularidades mereceria um estudo à parte. Não poderia, entretanto, deixar de notar a grande influência (temática, estética e de produção) do vídeo popular sobre o documentário independente, num período em que os movimentos sociais davam o tom das representações. É muito freqüente, por exemplo, o projeto de elaborar, “de dentro”, as identidades dos grupos sociais retratados, em oposição ao estigma; de dar-lhes visibilidade de uma 4 Sobre a noção de “homem ordinário” e sua presença no documentário brasileiro contemporâneo, ver o trabalho de César Guimarães (2005). 5 A exceção parcial é O Fio da Memória, longa em 16 milímetros lançado – de modo restrito – em 1991. 12 Cláudia Mesquita Outros retratos – Ensaiando um panorama do documentário independente no Brasil 13 perspectiva que se propõe “interna”. Em termos de abordagem, a entrevista é o carro- chefe, revelando o ímpeto de “dar a voz”, de abrir o microfone aos sujeitos da experiência, opção que tem como correspondente a ausência progressiva de voz over interpretativa ou totalizadora (numa espécie de continuação do cinema anti-retórico da “voz do outro”). É o caso de Santa Marta – Duas Semanas no Morro (1987) e Boca de Lixo (1992), de Eduardo Coutinho. Embora possam ser considerados trabalhos autorais, eles se vinculam (em termos de produção) a entidades relacionadas ao movimento do vídeo popular6. Em ambos, a estratégia de abordagem dominante é a entrevista, embora ainda estejamos distantes da radicalidade de seu uso na obra recente de Coutinho. Em Santa Marta, sobretudo, ainda se observa um esforço “contextualista”: o projeto de associar as experiências dos entrevistados às de um grupo maior, do qual fariam parte e ao qual dariam expressão (a “comunidade”). Visivelmente está em pauta a reconstrução do espaço público no Brasil, após 20 anos de regime autoritário, e os movimentos sociais organizados (notadamente as associações de moradores) são vistos como atores políticos fundamentais. Para além das relações formais de trabalho, outras formas de vínculo e de pertencimento entram em cena: a população carcerária, os moradores defavelas e de ruas, as prostitutas, os trabalhadores informais. Entram em cena outros “sujeitos” – que “buscam”, na nova conjuntura, sua identidade (Oliveira, 2001: 11). É, portanto, nos anos 1980, na esteira do vídeo popular, que se inicia a elaboração de “auto-representações” ou representações efetivamente “de dentro” – tal busca será uma das tônicas a partir dos anos 2000, como veremos adiante7. O documentário da “retomada” (1999...): subjetividades e auto-representações Convencionou-se falar em “retomada” do cinema brasileiro a partir de meados dos anos 1990. Será essa periodização aplicável à produção de documentários? Também se fala em boom do documentário. Mas boom em que sentido? Convém lembrar que o documentário continuou sendo produzido no Brasil nos anos 1980 e 1990, à margem do mercado de salas. Por outro lado, seria exagerado afirmar que o gênero conquistou na atual década um mercado sólido8. Mas, mesmo que o público não seja expressivo, há uma novidade considerável, como aponta Carlos Augusto Calil: o fato de o documentário ter “superado a barreira da tela grande” do cinema, “janela do mercado até então interditada a este gênero” (Calil, 2005: 159). Desde 1992, foram lançados comercialmente mais de 50 longas documentais (o formato tradicional até os anos 1990 eram os curtas e os médias- metragens, com raras exceções). Essa intensificação da produção de documentários para o cinema tem razões objetivas. Há maior agilidade e barateamento da produção pela captação com câmeras digitais e montagem com equipamento não-linear. Também há estímulo objetivo à produção por meio de uma legislação de incentivo ancorada em mecanismos de renúncia fiscal, que atrai patrocinadores privados. Mas o incentivo à produção ainda esbarra no problema da distribuição. Muitos longas documentais são produzidos, poucos são distribuídos satisfatoriamente. Por outro lado, a produção documental independente mantém a histórica dificuldade de acesso à televisão, embora alguns experimentos recentes sugiram, se não mudanças efetivas de rota, novos percursos possíveis9. Anomalias e distorções de mercado à parte, creio que a “retomada” documental já merece um balanço estético, sendo possível levantar características marcantes e recorrentes. Entre elas, destacaria uma tendência à particularização do enfoque: em vez de almejarem grandes sínteses, os documentários atuais buscam seus temas pelo recorte mínimo, abordando histórias e expressões circunscritas a pequenos grupos10. Nesse sentido, é freqüente a abordagem de experiências estritamente individuais, a investigação de singularidades. Há uma valorização da subjetividade do homem comum, um investimento no que, para além das determinações e normatizações sociais, é expressão “autêntica”, singular (Senra, 2004). Relacionada a essa investigação de subjetividades, há uma tônica de abordagem empírica das situações – via experiência, via “encontro” com os personagens, evitando interpretações prévias. As experiências focalizadas são, de modo geral, tratadas como irredutíveis. Nem tipos, nem exemplos, nem casos raros ou comuns, entre outros casos. O valor está no “registro” e no trato respeitoso com elas, expondo suas singularidades – e não no “olho” que vê mais longe, relacionando essas experiências à conjuntura ou à estrutura social. Como bem observou Ismail Xavier (2000: 104), “a vontade agora é explorar mais os sujeitos no que têm de singular (…) evitam-se generalizações, a busca dos porquês”. Santo Forte (1999), que marcou a volta de Coutinho à tela grande, estabeleceu parâmetros de linguagem bastante influentes. O filme compõe-se da montagem de entrevistas com 11 moradores de uma favela na Zona Sul do Rio, que conversam com o cineasta sobre suas experiências religiosas. Optando pela circunscrição espacial, o cineasta evita a tipicidade na escolha dos personagens. Ênfase total é posta na entrevista (ou conversa) como forma de abordar suas subjetividades. Na montagem, há uma minimização dos recursos narrativos, bastante reduzidos (evita-se narração, música, imagens de cobertura etc.) para não impor (aos sujeitos da experiência) qualquer tipo de comentário externo. Investindo em seqüências individuais, o diretor evita tomar os entrevistados como casos “representativos” ou “tipos” portadores de características que poderiam ser estendidas a um grupo maior de indivíduos. Por meio da ênfase em expressões verbais, todo o poder é dado aos sujeitos na elaboração de sentidos e interpretações sobre sua própria e singular experiência. Outro marco é O Prisioneiro da Grade de Ferro (Auto-Retratos), de 2003, de Paulo Sacramento, principal longa da tendência de “auto-representações”, muito presente na produção audiovisual brasileira atual (ainda que nem sempre chegue à tela grande)11. O Prisioneiro é resultado de iniciativa independente que promoveu oficinas de vídeo com detentos do extinto Carandiru. Já por seu desenho de produção, como escreveu Saraiva (2004: 176), o filme “provoca reflexões cruciais para o cinema, em especial para o documentário”. A busca pela afirmação dos sujeitos da experiência (como “donos do discurso”) foi possibilitada, nesse caso, pelo uso de pequenas câmeras digitais, de fácil manuseio. Trata-se, portanto, de 9 O DOCTV, por exemplo, representa um esforço inédito de relacionamento entre a TV aberta e a produção independen- te. Parceria entre Ministério da Cultura, TV Cultura e Associação Brasileira das Emissoras Públicas, Educativas e Culturais (Abepec), o programa, ba- seado em concursos estaduais, tem viabilizado a produção regional de do- cumentários e sua veiculação em rede nacional, sem a “obediência” a mode- los de conteúdo ou formatos prévios. 10 Karla Holanda (2004) diagnosticou uma tendência à particularização do enfoque no documentário contempo- râneo brasileiro – tendência que ela compara à metodologia da micro-his- tória, em oposição às macroanálises. 11 Há uma série de experimentos (via oficinas de formação) que visam à elabo- ração de representações pelos sujeitos da experiência, apartados dos meios de produção e difusão de imagens. Citaria, além do Vídeo nas Aldeias, as Oficinas Kinoforum, realizadas na periferia de São Paulo, desde 2001, pelo Festival Internacional de Curtas. 6 Santa Marta foi produzido pela ONG carioca Instituto de Estudos da Religião (Iser); Boca de Lixo teve apoio do Centro de Criação de Imagem Popular (Cecip), uma das principais entidades respon- sáveis pela produção de vídeos para os movimentos sociais no Rio a partir de meados dos anos 1980. 7 Um dos mais interessantes experimen- tos surgiu nos anos 1980: o Vídeo nas Aldeias. Sua proposta inicial era oferecer aos índios instrumentos para criarem suas próprias imagens, usadas para troca de informações entre diferentes povos. Desde 1998, por meio de oficinas, o pro- jeto tem formado realizadores indígenas, que assinam seus próprios documentá- rios e são hoje “mestres” nos processos de formação. 8 Basta dizer que, de todo o montante arrecadado com filmes nacionais em 2003, 92% correspondeu a produções da Globo Filmes (todas elas ficcionais). 14 Cláudia Mesquita Outros retratos – Ensaiando um panorama do documentário independente no Brasil 15 “uma formulação criativa das potencialidades trazidas pela nova tecnologia” (Saraiva, 2004: 176). Ao final, é notável a desmistificação do espaço do Carandiru promovida por esses “auto-retratos”. O que aparece é um presídio bem menos violento e mais cotidiano do que se poderia imaginar: a prisão como uma imensa cidade feita e refeita de práticas variadas (artesanato, serviços, comércio), compondo “um tecido social que parece prescindir da instituição” (Xavier, 2004: 12). Por fim, chamaria a atenção para Estamira (2005), de Marcos Prado, um longo retrato do personagem de mesmo nome,trabalhadora de um lixão na periferia do Grande Rio. O filme talvez possa ser visto como uma síntese entre a busca de formas mais plásticas (numa tendência documental contemporânea que dialoga com a videoarte12) e a atenção ao encontro praticada por Eduardo Coutinho. O resultado é surpreendente. Não apenas um trabalho de apreensão e expressão estética do ambiente e do contexto, mas de longo e denso relacionamento com o personagem, recorridas vezes visitado pela equipe de gravação. Com seu esforço de contaminação pela subjetividade arrebatada e irredutível de uma mulher socialmente à margem, Estamira diz muito sobre as questões e enfoques privilegiados pelo documentário brasileiro atual, em seu renovado enfrentamento da alteridade de classe e dos abismos sociais. Referências bibliográficas BERNARDE, Jean-Claude. Cineastas e imagens do povo. 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In: Sinopse – Revista de cinema, n. 10, ano IV, dez. 2004. p. 6-15. 12 Como se nota nos trabalhos de Marília Rocha (Aboio, 2005) e Cao Guimarães (O Fim do sem Fim, 2001, com Beto Magalhães e Lucas Bambozzi; A Alma do Osso, 2004; e Acidente, 2006, com Pablo Lobato). 16 17 1No começo do século XIX, quase no mesmo instante em que Nicéphore Niépce inventava a fotografia comportando-se como um pintor, deixando-se ficar longo tempo diante da paisagem (exageremos um pouco: a objetiva da câmera ficou aberta durante todo um dia de sol para que se pudesse gravar a imagem), John Constable pintava comportando-se como se fosse um fotógrafo (exageremos um pouco: fazendo um quadro numa fração de segundo), registrando instantâneos de nuvens. Óleo ou aquarela sobre papel, madeira ou tela, pouco mais que esboços para as paisagens que iria pintar mais tarde, quase fotos jornalísticas que traziam uma espécie de legenda com local, dia, mês, ano, hora e condições meteorológicas do instante registrado; estudo de nuvens com horizonte de árvores, meio-dia, depois da chuva, um pouco de vento (Cloud study with an horizon of trees: noon, September 27, 1821, after rain, wind). Dez da manhã, olhando para o sudeste, nuvens cinzas correndo rápidas sobre o leito de um céu tingido de amarelo (5th september, 1821, 10 o‘clock, morning, looking south-east, very bright and fresh greys clouds running fast over a yellow bed, about half way in the sky). Constable antecipava assim o que primeiro a fotografia, que ia sendo inventada então, e depois o cinema, a fotografia em movimento inventada no fim do século, iriam fazer adiante: documentário, um registro (objetivo subjetivo) do que se passa no instante em que se passa. O cinema, e em particular o filme documentário, nasceu como expressão desse desejo que se formulou primeiro na pintura. Entre a pintura e o cinema existe uma relação semelhante à que se encontra entre as nuvens pintadas muito rapidamente por Constable para preparar as paisagens que ele iria produzir mais tarde – a pintura, de certo modo, esboçou o que o cinema iria fazer em seguida. Se examinarmos a questão do ponto de vista do cinema documentário, interessados em examinar a relação que se estabeleceu entre o filme documentário e o filme de ficção, encontraremos na experiência de Constable uma antecipação do que viria a ocorrer no cinema brasileiro (não apenas, mas especialmente no cinema brasileiro) no José Carlos Avellar Crítico de cinema, autor de ensaios sobre cinema brasileiro e latino-americano, entre eles: Glauber Rocha, Madri, Editorial Cátedra, 2002; A Ponte Clandestina, Teorias de Cinema na América Latina, São Paulo, Editora 34, 1996; Deus e o Diabo na Terra do Sol, Rio de Janeiro, Rocco, 1995; O Chão da Palavra: Cinema e Literatura no Brasil, Editorial Prêmio, 1994. Foi diretor cultural da Embrafilme (1985-1987) e diretor-presidente da Riofilme (1994-2000). Atualmente é consultor de cinema do Programa Petrobras Cultural. A realidade como crítica de cinema – O cinema como crítica da realidade . 18 José Carlos Avellar A realidade como crítica de cinema – O cinema como crítica da realidade 19 começo da década de 1960: o documentário (como as rápidas anotações ao vivo das nuvens) como esboço necessário para a ficção (as paisagens pintadas em estúdio). De certo modo, a fotografia e o cinema concretizaram o que já vinha sendo esboçado pela pintura desde o começo do século XIX. Francisco de Goya, por exemplo: a seqüência feita entre 1806 e 1807 (no acervo do Art Institute de Chicago), El Maragato Amenaza con el Fusil a Fray Pedro de Zaldivia, e as outras cinco telas que complementam a ação da primeira – frei desvia o fuzil; frei luta para desarmar o Maragato; frei golpeia o Maragato com o fuzil; frei dispara o fuzil; e frei amarra o Maragato. O que temos aqui é um filme documentário antes do cinema, tanto nesses seis quadros como nos dois pintados em 1814 (no acervo do Museu do Prado de Madri): El Dos de Mayo de 1808 en Madrid, la Lucha con los Mamelucos e El Tres de Mayo de 1808 en Madrid: los Fusiliamentos de la Montaña del Príncipe Pío. Documentário antes do cinema são também as gravuras que José Guadalupe Posada publicou da Gaceta Callejera do México no fim do século XIX, como Ballazos en Calle de San Hipolito, ou El Motín de los Estudiantes en Mayo de 1892, ou ainda Fusiliamento del Capitán Clodomiro Cota. Outro exemplo de representação visual que tem algo a ver com o que se concretizaria na prática do cinema documentário é o quadro que J. M. W. Turner pintou em 1842 e que surpreende primeiro pela indicação precisa em seu longo título: Snow Storm – Steamboat off a Harbour’s Mouth Making Signals in Shallow Water, and Going to theLead. The Author Was in this Storm on the Night the Ariel left Harwich. Algo que surpreende ainda mais quando o título se liga à imagem, pois a pintura parece contrariar a promessa de documentário contida no seu meio título, meio legenda. Nenhum detalhe da tempestade de neve imobilizado para uma observação minuciosa, nenhuma forma claramente identificável como o navio Ariel que sinaliza ao tentar deixar o porto. Somente manchas pouco precisas que compõem um ritmo nervoso. Talvez um traço fino no centro do quadro possa ser compreendido como o mastro de um navio, mas, de fato, nada do registro preciso que se poderia esperar do relato de alguém que esteve lá, na tempestade, amarrado no mastro do navio, como diz o pintor, que garante ter estado lá: “Pedi aos marinheiros que me amarrassem ao mastro do vapor para contemplar a tempestade. Fiquei amarrado durante quatro horas, cheguei a achar que não iria sobreviver; mas só pensava em registrar a tempestade se porventura saísse vivo dela”. Registrar, documentar, sim, mas registrar de outro modo, documentar outra questão. A tempestade de neve em Harwich na noite em que o Ariel deixou o porto foi pintada no exato momento em que os franceses Nicéphore Niépce, Louis Daguèrre e Hippolyte Bayard, o alemão Peter Voitgländer e o inglês William Fox Talbot aperfeiçoavam os processos, as objetivas e os aparelhos fotográficos. Consciente ou não (pouco importa) do registro essencialmente objetivo da aparência das coisas por meio da fotografia, Turner pinta movido por uma vontade de documentar de um modo não (ou além do) fotográfico: “Não pintei a tempestade para que ela pudesse ser compreendida, mas porque queria mostrar algo parecido com esse espetáculo. Queria mostrar o que se sente com um tal espetáculo”1. A questão levantada por Turner na metade do século XIX é, a rigor, a mesma que alimenta a discussão em torno da prática do cinema documentário desde a metade do século XX: como ir além do registro puramente (fotográfico? jornalístico?) da superfície, da aparência visual primeira das coisas? Como levar o espectador a sentir mais do que simplesmente ver o que se passa? Como fazer da imagem do documentário algo que mostre a realidade não exatamente como ela é, mas como foi percebida e sentida pelo realizador? Talvez seja possível dizer que, em Rocha que Voa (2002), Eryk Rocha pinta sua imagem assim como Turner fotografou sua tempestade de neve. E que em Ônibus 174 (2002) José Padilha grava um incidente trágico da vida do Rio de Janeiro tal como Posada fotografou tiroteios, motins e fuzilamentos em sua gazeta de rua do fim do século XIX. Isto é, esses filmes não se apoiaram na pintura de Turner ou na gravura de Posada, mas lembrar imagens produzidas mais de um século antes permite situar melhor em que tradição de representação visual se insere o cinema documentário e reconhecer o que se faz hoje no cinema como a realização de um desejo sonhado muito antes da invenção dos meios técnicos para realizá-lo; e permite verificar que, de certo modo, o cinema documentário, hoje, parece voltar-se para o instante em que foi sonhado. 2. Rio de Janeiro, 13 de maio de 1988, 13 horas, avenida 13 de maio: os 13 integrantes da Confraria do Garoto comemoram a seu modo o aniversário da confraria e o centenário da abolição – diz o narrador de O Fio da Memória sobre imagens que mostram um pequeno e animado grupo que se diverte ao som de Cidade Maravilhosa. Como parte da festa, prossegue o narrador, preparam a coroação da rainha do centenário da abolição em frente à Igreja do Rosário e de São Benedito. Surge então uma imagem que se move para todos os lados, que pega o espectador de assalto, que não deixa tempo para organizar a visão. Em frente ao quadro, a festa da coroação: Fátima Ju – anos antes escolhida a mulata mais bonita do Brasil no programa do Chacrinha – recebe a faixa e a coroa de rainha do centenário da abolição. Por trás da coroação, outra festa na Igreja do Rosário, a da escrava Anastácia, que muita gente diz ser responsável por milagres e que, insiste um garoto entrevistado em sala de aula, foi quem de verdade libertou os escravos. Ela, porque ela é que brigou mesmo pela libertação, ela, a escrava Anastácia, num 13 de maio, seu dia, e não a Princesa Isabel, que apenas assinou a lei que pôs fim ao cativeiro. Uma festa ruidosa em frente: alguém coloca nos braços de Fátima Ju um menino de pouco mais de 1 ano e tenta deslocar a coroa da cabeça dela para a da criança, que protesta e chora. Outra festa menos barulhenta lá atrás, na igreja. Tudo isso se mistura dentro da imagem, e de quando em quando algo que o enquadramento empurra para um canto ou para trás salta para o primeiro plano. É assim que, de repente, perdemos Fátima Ju de vista e nos encontramos diante de uma mulher negra que protesta com força e chama a 1 O relato de Turner nem sempre é acei- to como autêntico. Ele tinha 67 anos ao pintar a tempestade de neve, e não há informações de um navio Ariel deixando o porto de Harwich, nem de uma esta- da do pintor naquela região. O quadro pode ter sido uma livre invenção a par- tir da memória de uma tempestade de neve que ele atravessara nos Alpes 30 anos antes. Com base nela ele desenhou diversas notas para “fotografar” rapida- mente no papel o que via e pintou em 1812 Snow Storm: Hannibal and his Army Crossing the Alps. Esses esboços podem ter servido também para outra Snow Storm pintada em 1836 na Suíça. De qualquer modo, a pintura realizada com base em anotações, em esboços feitos ao vivo (como uma filmagem?) e depois organizados num quadro (como numa montagem?) que não reproduz objetiva, fiel, fotograficamente o acontecido, mas expressa a sensação sentida durante o acontecimento, aproxima sua pintura de certo modo de fazer cinema documen- tário hoje. 20 José Carlos Avellar A realidade como crítica de cinema – O cinema como crítica da realidade 21 atenção de todos: “está provado, a escravidão nunca que acabou!”. Ela fala com voz firme, se movimenta enquanto fala. A mistura indisciplinada – o riso da rainha, o choro do garoto com a coroa enfiada na cabeça, a música alegre, o vozeirão zangado da mulher negra, o sorriso de ironia de quem passa mais interessado na rainha meio nua do que na festa, a seriedade que passa com olhos só para a escrava Anastácia, o riso malandro de quem está só querendo ser filmado –, a aparente desordem da imagem segue sua ordem. A mulher negra segue protestando: “o preconceito não vai acabar”; a rainha coroada, “magricela, parece mais homem que mulher”; ela “prova e reprova com toda a confiança do fundo da alma que o branco não gosta mesmo de preto”; e segue com frases que param na metade porque um homem branco entra na conversa, decidido a mostrar que não existe preconceito de cor no Brasil. Ele corta a fala da mulher negra, mas também não consegue concluir o que queria dizer. “Cinqüenta e um por cento da população brasileira...”, tenta uma primeira vez sem conseguir atenção. Tenta de novo, e de novo, e de novo, mas ninguém parece interessado em ouvi-lo. A mulher negra não lhe dá ouvidos, diz que não está falando com ele, que está falando com o repórter. As pessoas em volta entram na discussão, muita gente fala ao mesmo tempo, ninguém escuta nada. Num instante, aproveitando uma brecha na gritaria, o homem branco solta a voz e quase completa o que queria dizer: “Cinqüenta e um por cento da população brasileira tem a raça negra. Em qualquer companhia, quem tem 51% das ações controla a empresa. Se o negro não consegue controlar o país...” Ao que parece ele ia dizer algo como “é por falta de capacidade” ou “é por falta de organização”, ou um qualquer outro “por falta de”. Não consegue. Aí, sim, toda a gente em volta interfere ruidosamente. Adivinham a conclusão da frase e... exatamente aí, quando a ação começa a esquentar mesmo,a cena se interrompe, o filme muda de assunto. Esse fragmento é insuficiente para dar uma idéia precisa do documentário que Eduardo Coutinho iniciou às vésperas do 13 de maio de 1988 e terminou três anos depois, mas é um bom exemplo da narração fragmentada e aberta para todos os lados de O Fio da Memória. Esse modo de narrar aparece como parte da coisa narrada, como uma representação do modo de viver imposto ao negro. Primeiro sinal da fragmentação: dois diferentes narradores. Uma só narração, mas dois narradores. O primeiro – o texto é de Coutinho, a voz é de Ferreira Gullar – dá informações imediatas, introduz as diversas situações, como a festa da Confraria do Garoto. Diz, por exemplo, que com a abolição o negro, analfabeto, desaculturado, sem cidadania e sem família, teve de lutar contra a desagregação e reunir os estilhaços de sua identidade. Esse primeiro narrador volta mais tarde para anunciar a marcha de militantes do movimento negro do Rio de Janeiro, no dia 20 de novembro, aniversário da morte de Zumbi dos Palmares e Dia da Consciência Negra. Volta também, sempre como uma voz de poucas palavras, para apresentar brevemente os entrevistados, entre outros Manuel Deodoro Maciel, ex-escravo de 120 anos de idade; a família que criou o Cacique de Ramos, os menores do centro de triagem de meninas abandonadas de Charitas, em Niterói; e, ainda, é ele que nos apresenta o segundo narrador, Gabriel Joaquim dos Santos, que viveu no distrito de Vinhadeiro, município de São Pedro d’Aldeia, quase divisa com Cabo Frio, a menos de 200 quilômetros do Rio de Janeiro, nasceu em 13 de maio de 1892 e morreu no começo de 1985, aos 92 anos. O primeiro narrador apresenta e praticamente cede o lugar ao segundo narrador. A voz é de Milton Gonçalves, o texto é de um depoimento gravado no fim dos anos 1970 e dos cadernos em que Gabriel anotava (como quem faz um documentário?) alternadamente fatos de seu cotidiano, da história da região e da história do Brasil. Gabriel conta que, por volta de 1926, depois de entrar para a Igreja Batista, conheceu “um menino bem sabido” que ensinou “alguma coisa de leitura” para ele numa “cartilha de criança” e que desde então começou a anotar o que se passava num caderninho. Fala de tudo, e a informação mais importante não vem propriamente dos fatos narrados, mas de seu modo descontínuo de narrar, que salta de uma frase para outra e de um fato a outro por meio de um corte seco. É esse segundo narrador, Gabriel, quem determina o modelo de construção do filme e o sentimento que o comanda, porque, em algum momento do processo de realização, o homem com a câmera viu a vida de Gabriel, seu jeito de falar e de fazer as coisas, como uma imagem da condição do negro brasileiro que constrói seu espaço à margem do país, tal como Gabriel construiu sua Casa da Flor com pedaços de coisas apanhadas no lixo: “Quando acabei a obra da casinha, aí veio um pensamento para enfeitar essa casinha. Enfeitar de que maneira?, pensei. A gente não tinha dinheiro para comprar certas coisas, então imaginei de apanhar aqueles caquinhos de louça do lixo. Apanhar caco de vidro, fazer aquelas florzinhas de vidro para pregar na parede da casa para enfeitar. Veio aquela coisa na mente. Só apanhar os cacos, resto das grandes obras da cidade”. A casa se impôs como exemplo da força do pobre, diz Gabriel: “Os moços do Rio chegam aqui e eu digo a eles: lá no Rio tem tanta coisa linda. Eles: não, aquilo não é lindo, nos conformemos com o Rio de Janeiro porque lá é a força da riqueza, é a força da engenharia – tem casa, tem palacete, mas é a coisa bem organizada da riqueza. Eles vêm aqui para ver a força da pobreza. Eu quero que eles admirem é a força da pobreza”. Ele conta que começou a trabalhar na salina em 1912 e “saiu de lá no ano 1960, cansado e encostado pelo instituto”. Naquele tempo os operários ganhavam por dia: “no ano de 1912, dois cruzeiros; 1920, três cruzeiros; 1930, seis cruzeiros; 1940, sete cruzeiros; 1950, chegou a 60 cruzeiros”. Logo em seguida anota: “as leis do cativeiro no Brasil começou no tempo da colonização no ano de 1532”. E continua, somando outros fragmentos: “Guilherme me deu um vintém feito em 1869. Me deu em 30 de abril de 1955. O preço dos gêneros alimentícios em 1963: 1 quilo de carne, 700 cruzeiros; 1 quilo de feijão, 180 cruzeiros; 1 quilo de açúcar, 140 cruzeiros; 1 quilo de arroz, 200 cruzeiros; 1 quilo de farinha, 70 cruzeiros; um pão, 15 cruzeiros. No dia 17 de abril de 1963 começou a greve na salina. O papa de Roma morreu em 3 de julho de 1963”. 22 José Carlos Avellar A realidade como crítica de cinema – O cinema como crítica da realidade 23 Lembra, adiante, que “José de França amaziou-se com Almerinda em 12 de fevereiro de 1964. Santos Dumont fez o primeiro vôo em 1906. A reforma agrária foi assinada no dia 13 de março de 1964 pelo presidente da República. João Goulart assinou às quatro da tarde no Rio de Janeiro. A ordem é: quem não obedecer vai para a Ilha das Flores. O marechal Castelo Branco tomou posse em presidente da República em início de abril de 1964. Getúlio Vargas enviou as forças brasileiras para a guerra na Europa no dia 13 de novembro de 1943”. O texto de Gabriel tem uma construção tão indisciplinada quanto a cena da coroação da rainha do centenário da abolição. Filme e texto obedecem a um mesmo princípio de composição e levam o espectador a sentir (não afirmam diretamente, não explicam, sugerem, levam o espectador a sentir sem se dar conta disso de forma consciente) que a desagregação imposta ao negro foi transformada por ele num diferente modo de se agregar e se expressar culturalmente. Ao selecionar uma fala em que Gabriel conta que é governado pelo sonho, O Fio da Memória abre espaço para se explicar por meio de Gabriel. O documentário está, como sempre, interessado em ouvir, mas está ao mesmo tempo falando, explicando sua dramaturgia: “Eu me deito muito cedo. Não para dormir, para pensar. Eu tenho um pensamento vivo. Meu pensamento é vivo, e quando chega meia-noite fico adormecido. Sonho toda noite. Sou governado para fazer essas coisas no pensamento e no sonho. Ninguém me ensinou, é coisa espiritual. A senhora pensa que eu tinha inteligência para fazer isso? Eu mesmo faço, eu mesmo me admiro”. Imaginar um documentário (modo de fazer cinema que em princípio se pretende tão objetivo, direto e controlado pela razão quanto possível) como forma governada pelo sonho define a questão principal de O Fio da Memória: um diálogo entre seus dois narradores, o filme está mesmo interessado em conversar: com a câmera, com as pessoas diante dela no instante da filmagem, com o espectador na sala de projeção depois do filme pronto. Estamos todos (a expressão popular é o que melhor traduz o que se passa) jogando conversa fora. Os entrevistados estão à vontade na imagem, mas essa sensação o espectador só recebe porque a documentação se organiza com um rigor que parece mais coisa solta, contraditória, indisciplinada, que rigorosa. Assim, o espectador percebe cada depoimento como uma informação dupla, como uma representação do diálogo entre os dois narradores que orienta sua estrutura. De quando em quando a imagem é longa, porque se trata de deixar que o entrevistado se revele na conversa: ele não apenas conta determinado episódio que viveu ou presenciou no passado: conta sua memória, conta o que ele próprio é, se revela nos gestos, nas expressões, no modo de falar. De quando em quando a conversa é curta, porque uma ou duas frases são o suficiente para levar o homem com a câmera a engolir em seco diante de gente de quem se tirou a possibilidade de se expressar, como as crianças abandonadas em centros de triagem: a menina que nem sabe como veio para o centro responde de cabeça baixa que não veio, está ali desde sempre; o menino que com o rosto escondido na sombra diz que já fez “umapá de coisas nessa vida”, já fez de tudo, roubou, matou, traficou. Longas ou breves, as conversas são sempre abertas, inconclusivas, um primeiro encontro. O entrevistado não repete para a câmera um depoimento previamente ensaiado. Ele não se encontrara antes com o diretor. Coutinho envia um assistente para combinar a conversa, mas só se encontra com a pessoa que vai filmar no instante da filmagem. E começa a filmar logo que chega, sem combinar previamente sobre o que vai ser a conversa. Entrevistador e entrevistado se surpreendem ao mesmo tempo um com o outro. Alguma coisa nova, única, imprevista, se dá então, alguma coisa aberta como a pequena confusão diante da Igreja do Rosário pouco depois das 13 horas do dia 13 de maio de 1988. A arquitetura dramática desestruturada, porque inspirada na Casa da Flor e nos textos de Gabriel Joaquim dos Santos, porque preocupada em ser uma imagem viva do tema que a inspira, porque solta como uma conversa, não é o que primeiro aparece em O Fio da Memória. Enquanto o filme está na tela o que prende mesmo a atenção não é a câmera, mas as pessoas diante dela. O desenho do quadro e a forma de organização do filme só se percebem depois de terminada a projeção, quando volta à memória o texto de Gabriel que abre e encerra a narração: “O Brasil já foi mandado por Portugal. O Brasil já foi uma roça portuguesa. Aqui já foi tudo. Existiu aqui um cativeiro muito perigoso, os portugueses a carregar negros da costa da áfrica pra botar aqui pra trabalhar na enxada. E essas coisas tudo já passou. Aí o português entregou isso. D. Pedro I fez a independência. Botou o Brasil pra cá e Portugal pra lá. E ficou o Brasil por conta de nós próprio”. 3. Imaginemos que o cinema documentário se realize num espaço entre a pintura (o desejo de reproduzir o movimento se movimentando, Goya, Constable, Turner, por exemplo) e a pintura (a proibição de reproduzir, René Magritte e La Reproduction Interdite, por exemplo). Numa tela de 1937, Magritte antecipa e resume a questão que os filmes documentários (os brasileiros, mas não só) começaram a se propor mais recentemente. A tela La Reproduction Interdite se propõe como um retrato de Edward James. Nela, um homem diante do espelho vê refletida não a imagem de seu rosto, mas aquela mesma figura que o espectador do quadro vê: no espelho ele aparece de costas, como se o essencial de sua imagem não pudesse se refletir no espelho. Magritte pinta quase como quem fotografa, reproduzindo tal e qual as costas de um homem diante do espelho – melhor, de uma pessoa em particular, Edward James, com seu penteado, seu porte físico e as dobras do paletó. Pinta como quem fotografa o livro sobre a bancada de mármore em que se apóia o espelho (e igualmente refletido no espelho como o vemos, do mesmo ângulo de visão). É evidente que Magritte não pintou La Reproduction Interdite para discutir o documentário (por mais que gostasse de cinema; por mais que tivesse, à margem de sua expressão visual, feito experiências com fotografia e cinema). Mas como tudo na imagem parece fotografar documentalmente o homem que diante do espelho vê não o seu rosto, mas as suas costas, o quadro pode ser 24 José Carlos Avellar A realidade como crítica de cinema – O cinema como crítica da realidade 25 tomado como uma representação do problema que o cinema documentário enfrenta agora: como revelar no quadro o espaço mais amplo fora de quadro? O assunto, o tema, a questão registrada são somente uma forma de compor um quadro que durante todo o tempo joga o olhar para fora dele, para documentar no que está ali, imediatamente visível, o que não se traduz para o olhar: reproduction interdite. 4. No começo de Passaporte Húngaro (2002), Sandra Kogut fala ao telefone. Ela pergunta ao consulado da Hungria se uma pessoa com um avô húngaro tem direito a um passaporte daquele país. Na verdade, são duas conversas, em francês, montadas como uma fala contínua, mas feitas em momentos e em telefones diferentes. A voz masculina que atende a uma das chamadas acha que não, que um neto de húngaro não tem direito a Passaporte Húngaro. A voz feminina que atende à outra chamada pergunta se ela poderia reunir documentos capazes de provar a origem húngara de seus avós. No começo de 33 (2003), Kiko Goifman fala com o espectador. Diz que sempre gostou de contar que é filho adotivo em momentos inesperados e observar como as pessoas se sentem nessas ocasiões. Diz que tem 33 anos, que foi adotado por Berta, que nasceu em 1933, e que naquele dia, 9 de setembro de 2001, começava a remexer no passado, partindo em busca de sua mãe biológica por 33 dias e por “um caminho metódico e torto”. Decidira ir ao escritório de detetives para pedir dicas, usar as manhãs e tardes para as investigações e as noites para “a procura de imagens, nas poucas luzes e nos vazios“. O que aproxima esses dois filmes não é apenas o começo, com imagens diferentes mas parecidas entre si: um breve discurso para apresentar uma busca e definir seus limites. São documentários próximos um do outro porque neles os realizadores estão no centro das histórias que contam; porque radicalizam algo presente em todo documentário de forma velada: o pedaço em que o documentário, filme voltado para o outro, até certo ponto determinado pelo outro, sem tirar os olhos do outro, se refere a si mesmo, fazendo do retrato do outro também um auto-retrato, como quem diz “ eu sou o outro”. A imagem aqui é um espelho como o de La Reproduction Interdite. Sandra e Kiko, no centro do filme desde o primeiro instante, aparecem como Edward James na pintura de Magritte: rostos invisíveis. Em muitos planos de 33 vemos a câmera na mão de Kiko. Ele não filma a si mesmo num espelho, apenas deixa visível em qualquer superfície lisa capaz de refletir uma imagem a câmera com que (se) filma. Conscientemente ou não, define-se como um homem com uma câmera; reafirma a importância de seu instrumental sensível, o cinema; indica que manter a atenção voltada para a câmera, para o cinema, é aqui tão importante quanto observar as ações documentadas durante a busca de sua mãe biológica. O personagem que está em cena filma a cena. O Kiko diretor e o Kiko personagem em cena são ao mesmo tempo dois e um só, e reiteram: eu e meu eu/outro, antes de qualquer coisa, fazemos cinema. O Kiko diretor busca (busca talvez mais importante que a da mãe biológica efetuada pelo Kiko personagem) imagens para dizer o que ele sente e pensa durante a procura. Também em Passaporte Húngaro a pessoa que filma participa da cena com a câmera na mão, age na cena que está filmando2. Usa um pequeno vídeo digital, e as pessoas que estão sendo filmadas nem percebem a câmera, ou, se percebem, acham natural que ela esteja ali, objeto semelhante a uma caneta, bolsa, livro ou caderneta. Em cena as pessoas filmadas conversam na presença de um terceiro olhar, pequenino, discreto, silencioso. Sem esse terceiro olhar, a cena seria diferente ou talvez nem viesse a existir. Na verdade, trata-se de um jogo em que a intervenção é de mão dupla. Sandra, a realizadora, age primeiro como um personagem de seu filme. Lida com a câmera como se estivesse também sendo observada pela objetiva. Vive o instante que filma como personagem da cena, não como quem a dirige. Não domina a cena nem sabe o que vai acontecer com ela. Busca Passaporte Húngaro e documenta o processo – que se estendeu por dois anos entre idas a consulados e arquivos, além de visitas a familiares, todos filmados. O mesmo ocorre com o projeto de Kiko Goifman: 33, tal como planejado, só teria sentido se ele mesmo se filmasse3. A idéia de procurar e filmar a procura da mãe biológica e a idéia de pedir e documentar o pedido de Passaporte Húngaro parecem ter surgido ao mesmo tempo, em fusão, uma dentro da outra. Observando a questão sob um ponto de vista exclusivamente cinematográfico, é possívelsupor, com algum exagero, que o fato de procurar a mãe biológica e o de pedir Passaporte Húngaro tenham surgido primeiro como idéia de filme. Adotando a expressão com que Geraldo Sarno resumiu a questão4, o que um documentário documenta com veracidade não é o que está em quadro, e sim o modo de compor o quadro, a maneira de documentar do documentarista, seu modo de reagir às questões concretas que surgem durante a realização do filme, aquelas criadas pelo objeto a ser documentado e as provocadas pelo sistema de produção. Nos filmes de Sandra e de Kiko, além disso, mais do que se mostrar indiretamente no modo de estruturar o discurso, o documentarista documenta a si mesmo. Filma o seu outro eu. Filma sua família. É o que documenta e o que está sendo documentado. Está no centro da história, bem no centro – se aceitarmos a possibilidade de um centro excêntrico. Nas imagens iniciais de Passaporte Húngaro vemos um telefone e logo um outro filmados, ao que tudo indica, sob o ponto de vista de quem fala ao telefone. A imagem que se produz então equivale à que se obtém com o gesto automático de riscar uma coisa qualquer no papel durante uma conversa telefônica. O espectador vê o telefone na tela assim como Sandra, no instante da filmagem, viu a imagem: ela foi construída para mostrar a conversa e não o aparelho. Olhamos o telefone e vemos Sandra, que fala aqui, e o homem e a mulher que respondem do outro lado da linha. O que vemos nesse momento não é o que está ao alcance dos olhos, mas o que se constrói pela estrutura de composição – porque num filme cada plano, quadro, fragmento é apreendido pelo espectador não somente como a expressão do que a imagem imediatamente revela, mas como um gesto da ordem expressiva que organiza a imagem. Não importa que Sandra não esteja ali; o que o documentário então documenta é Sandra, fora de quadro, refletida num falso espelho como o de Magritte. Kiko está igualmente fora de quadro no falso espelho de 33. A imagem apenas sugere um pouco 2 Em depoimento feito para o site de Passaporte Húngaro (http://www.repú- blicapureza.com.br/passaporte), Sandra Kogut conta por que não aparece na imagem do filme: “Foi uma decisão que tomei na hora da edição. Achei que, num filme sobre identidade, seria redutor ter uma imagem, um corpo... Ao mesmo tempo, não é um filme autobiográfico, acho mais importante estar presente com o olhar: o que me interessa é, atra- vés do meu olhar, mostrar outras pessoas [...] Não existe um motivo central. Se eu estivesse pedindo um passaporte por- que queria uma cidadania européia, acho que não faria um filme. Eu só quis fazer o filme porque era uma coisa complexa, porque não havia um único motivo”. 3 Sobre 33, de Kiko Goifman, ver também na internet a página do filme: http:// www. uol.com.br/33. 4 SARNO, Geraldo. Quatro notas e um depoimento sobre o documentário. In: Cinemais, n. 25, set./out. 2000. 26 José Carlos Avellar A realidade como crítica de cinema – O cinema como crítica da realidade 27 do que está fora de quadro: Kiko aparece numa espécie de fusão conseguida graças ao ângulo da câmera diante da janela, meio vidro, meio espelho, que, enquanto deixa ver o lado de fora, reflete parte do lado de dentro, a televisão ligada iluminando o rosto de Kiko. Mostrar-se assim, fora do campo visual, é um modo de levar o espectador a se dar conta da composição como elemento essencial do documentário, que deixa de ser um simples registro visual e sonoro do fragmento da realidade diante dele. Um documentário não repete, não reapresenta a realidade: representa, pensa. 5. “Não há como negar, Nelson Freire é feito de lacunas.” João Moreira Salles definiu assim seu trabalho, depois de lembrar o que conseguiu registrar: “Nelson tocando o Segundo Concerto de Brahms no Municipal do Rio, tocando o mesmo concerto no sul da França com a Filarmônica de São Petersburgo, tocando a quatro mãos e dois pianos com sua grande amiga Martha Argerich, tocando a Fantasia de Schumann em pelo menos três ocasiões diferentes (todas elas de tirar o fôlego), tocando Villa-Lobos dentro de uma igreja barroca com vista para o Mediterrâneo. Porém, não há como negar”, conclui, “Nelson Freire (2003) também é feito de lacunas”. E essa é a primeira informação que se recebe do filme. No pedacinho inicial do que ainda vai ser a primeira imagem se anuncia com clareza: o filme se constrói como fragmento, pedaço, parte, estilhaço, intervalo, fora de quadro. O fragmento primeiro é uma unidade mínima de som logo cortada – mal começa, acaba. Um golpe seco, não se percebe nada além disso. A música acabou, a orquestra parou, a platéia aplaude. O pianista curva-se para agradecer e, ao lado do maestro, caminha na direção da câmera, que está no fundo do palco, por trás dos músicos, escondida nos bastidores. O quase-som que ouvimos dura pouco e é logo esquecido porque – sem intervalo algum, quase sem silêncio entre um e outro – novo som forte cobre a imagem: o aplauso da platéia. E, ao contrário da batida inicial, o som do aplauso se alonga, continua. Continua. E continua. Entusiasmado, mais forte e presente na imagem que a conversa entre o pianista e o maestro nos bastidores. Eles trocam poucas palavras. Comentam que tudo correu bem. O pianista diz que gostaria de um cigarro, mas, instado pelo maestro, volta ao palco para agradecer. A câmera o acompanha. A longa duração dessa primeira imagem pode, à primeira vista, dar a sensação contrária, de que o filme não é assim como dissemos que ele é. Para fragmento, o plano de abertura parece grande demais. É um longo plano-seqüência. Quanto dura? Dois, três, quatro minutos? Parece mais. Não importa o tempo real, parece mais. Mas igualmente não importa aqui a duração real nem a sensação de que dura mais do que o que realmente dura. O plano se estica no tempo, mas estruturalmente é um fragmento, mostra só o intervalo entre duas apresentações do pianista. Ele volta ao palco e a câmera sai dos bastidores, avança, esgueirando-se entre os músicos, para ver de perto o agradecimento e o entusiasmo da platéia. Os aplausos seguem, o pianista volta aos bastidores, e a câmera vem com ele. Bebe um pouco d’água, pede um cigarrinho, mas o maestro insiste: “cigarrinho, depois”. Antes, um extra, um brinde, “um docinho de coco para o público”, para agradecer. Pianista e maestro voltam à cena, curvam- se diante dos aplausos, que não diminuem. De novo nos bastidores, o maestro insiste: um extra, um brinde. O pianista diz que não dá. Depois desse concerto, não seria possível. Pede ao maestro que o acompanhe ao palco para novo agradecimento – porque a platéia segue aplaudindo. Os dois cumprimentam os músicos. O maestro faz um gesto para que toda a orquestra se levante e volta para os bastidores com o pianista. O plano não acaba aí. Renova-se o apelo: uma peça pequenina, diz o maestro, um docinho de coco. Cigarrinho só depois. E nova entrada em cena para mais um agradecimento. Um plano-seqüência mais intervalo que seqüência. Uma observação detalhada de um entreato. O concerto, que não vimos, acabou. Vai começar outra coisa que igualmente não veremos. Nessa nova entrada em cena o pianista senta-se ao piano para tocar algo, e o plano acaba. Vemos o vazio entre o último pedaço de som do concerto e o gesto de sentar-se ao piano – o gesto e só: agora nenhum som – para o extra. O que acabou importa pouco. O que vai começar não faz falta. Vemos o vazio entre uma coisa e outra e, graças a ele, percebemos melhor e mais acuradamente o que de fato importa. “Documentaristas têm a estranha mania de achar que tudo, ou quase tudo, deve ser filmado. Não precisa ser necessariamente assim”, diz João Moreira Salles. “Uma boa parte do público de música erudita gosta de ver o seu pianista dando golpes de braço à direita e à esquerda, como se o teclado fosse um mar, e ele, um afogado.O problema desse destempero é que quase sempre a música acaba desaparecendo por trás da ginástica. Com Nelson isso nunca acontece. O seu piano é um mar calmíssimo. Acredito que essa elegância seja uma decisão estética; é como se ele dissesse: ‘Prestem atenção na música e não se deixem ludibriar pela performance’. E suspeito também que se trata de uma questão de recato [...] Num mundo cada vez mais exibido, esse recato é o traço mais belo de Nelson e, na minha opinião, a razão da extraordinária pureza de sua música”5. Recato. Lacuna. Intervalo. Bem no instante em que a tecnologia digital aponta concretamente para a possibilidade de filmar tudo, e bem de perto, até invadir e vencer toda e qualquer intimidade, o que começa a aparecer nos filmes como construção mais refinada – Nelson Freire, 33 e Passaporte Húngaro, por exemplo – pode ser resumido nas palavras acima. O documentário, experiência em que o diretor quase se reduz a um espectador do filme que dirige, começa a ser pensado como uma expressão recatada, a se perguntar se, por acaso, em vez de ser o que mostra todas as coisas do mundo, não seria, de fato, o que mostra só o intervalo entre as coisas. Intervalo, autoria. Quando, em O Prisioneiro da Grade de Ferro (2003), Paulo Sacramento entregou a câmera a detentos do presídio do Carandiru para que eles se filmassem, não estava renunciando à autoria de seu filme, mas passando a atuar como um espectador ativo da realidade ou do filme que produz para discuti-la. É um filme que se realiza estimulado por ele mas quase independente dele. Até certo ponto, todo documentário 5 Em “O elogio do recato”, entrevista a Daniel Schenker Wajnberg, Marcelo Ja- not e Maria Sílvia Camargo publicada na edição de 9 de maio de 2003 da revista criticos.com.br. 28 José Carlos Avellar A realidade como crítica de cinema – O cinema como crítica da realidade 29 é isso mesmo, filme feito por um espectador ativo, meio distante ou no centro da cena. Não é a primeira vez que isso ocorre num documentário, nem é tão incomum assim que um realizador construa seu filme montando imagens que não filmou. Aqui, ou porque os presos passaram antes por uma breve oficina sobre o uso de câmeras digitais, ou porque, como toda a gente hoje, foram “educados” visualmente pelo contato regular com cinema e televisão, ou ainda porque o manejo das câmeras de vídeo digital é relativamente fácil graças a controles automáticos, por qualquer uma dessas razões separar o que foi filmado por eles e o que foi registrado pelo realizador não é tão simples nem colabora para a melhor compreensão do projeto. O diretor não estava presente em boa parte da filmagem, mas em nenhum instante se ausentou da concepção do filme, porque de certo modo procurou se comportar como o outro, ser um deles, sentir a prisão como uma metáfora do mal-estar de nossa sociedade. O Prisioneiro da Grade de Ferro remonta o cotidiano do presídio recém-destruído numa implosão, trabalha no eco do massacre de detentos ocorrido há pouco mais de dez anos. O que os presos filmam revela a prisão como um microcosmo da sociedade do lado de fora. Exagerando um pouco, corredores e celas do presídio não são muito diferentes dos corredores e apartamentos conjugados do Edifício Master, de Eduardo Coutinho. Nem as histórias contadas pelos presos do Carandiru são muito diferentes daquelas contadas pelos moradores do edifício de Copacabana. Uns e outros são excluídos, não são um desvio ou deformação dos ideais da sociedade. Não é a primeira vez que o cinema sugere o cárcere como uma metáfora da sociedade, nem a primeira vez que a câmera procura pensar o mundo do ponto de vista de um prisioneiro – efetivamente preso ou em liberdade condicional, como os moradores de conjugados. O que importa é observar como os diferentes presos conversam entre si, confessando a meia-voz o sonho comum a todos os excluídos: mudar de vida. 6. Os documentários que fazemos hoje parecem abraçar uma construção cinematográfica que parte de idéias esboçadas entre nós na década de 1960: o cinema como busca/ afirmação/invenção de uma identidade em permanente busca de si mesmo, o impulso documentário como forma de levar o cinema ao direto enfrentamento do presente. São filmes que partem do que se esboçou na década de 1960 e que passam pela experiência de Cabra Marcado para Morrer (1984), de Eduardo Coutinho, e de Di (1977)6, de Glauber Rocha. No primeiro, o realizador se situa no centro da história e fora de quadro (20 anos depois, no Nordeste, em busca dos companheiros de trabalho no filme interrompido pelo golpe militar de 1964). No segundo, o realizador começa gritando a apresentação do filme (que não tem letreiros e se anuncia pelo som): “Di Cavalcanti. Título do filme: ninguém assistirá ao formidável enterro de sua última quimera, somente a ingratidão, aquela pantera, foi sua companheira inseparável”. Em seguida, voz alta, exaltada, Glauber lê uma notícia de jornal sobre a filmagem: “Filmagem causa espanto e irrita família e amigos. Jornal do Brasil, quinta-feira, 28 do 10 de 76, primeiro caderno, página 15: Filmagem causa espanto e irrita filha e amigos. Um, dois, três, quatro, cinco, seis, sete, oito, nove, dez, onze, doze... Corta! Agora dá um close na cara dele! Barba por fazer, calça de brim azul-marinho, casaco azul-escuro, camisa esporte quadriculada, sapatos marrons, o cineasta Glauber Rocha está parado ao lado do caixão do pintor Di Cavalcanti no Museu de Arte Moderna...” . Dominando a imagem com sua voz, entrando em cena e acompanhando o enterro, no centro do plano, à frente do caixão (e não com o jeito discreto e encolhido com o qual o diretor de um filme documentário costuma aparecer na imagem), Glauber filma a si mesmo para falar do pintor, para falar de cinema. Retomemos a possibilidade de que a idéia de pedir Passaporte Húngaro e buscar a mãe biológica tenha surgido para Sandra e para Kiko primeiro como idéia de filme. Ou seja: mais do que o pedaço de realidade que documentam, os filmes de Sandra e de Kiko, como os de Paulo e de Eryk, e antes deles todos os de Coutinho e Glauber, são filmes. Ao mesmo tempo em que nos revelam as buscas objetivas em que seus realizadores estão empenhados (e sem sair delas, pois elas é que dão corpo à idéia), expressam a busca subjetiva de seus diretores: discutir na realidade (o cinema então como um instrumento crítico dela) o cinema (a realidade então como instrumento crítico dele), discutir a condição do espectador durante a projeção quando (para melhor criticar uma coisa e outra) abre mão de sua identidade como passaporte necessário para melhor perceber o filme como expressão vizinha à de Constable, Turner, Goya ou Posada, vizinha, sobretudo, ao espelho de Magritte. 6 Di, Prêmio Especial do Júri no Festival de Cannes de 1977, foi um dos filmes debatidos por Roberto Rosselini no se- minário aberto que ele, presidente do júri, organizou para discutir o cinema de autor e os filmes em concurso naquele ano. Rosselini discutia a perda de potên- cia do cinema de autor (“o filme de autor virou uma espécie de gênero, os autores renunciam à invenção e se repetem ao infinito”), e identificou no filme de Glau- ber uma nova atitude autoral, em que o autor se inseria na história que narrava como parte inseparável dela. 30 31 O documentário, gênero que nasce com o cinema, procura lançar a câmera para mostrar e desvendar o real. Isso significa conhecer as paisagens, a natureza, as práticas e os modos de viver dos homens. Significa também interrogar o próprio exercício de documentar. Sendo assim, questionar o documentário é interrogar a forma como se busca e se expressa o conhecimento, a empatia ou a rejeição do outro, que está diante da câmera. A questão central, portanto, é saber como o documentário fez e faz da alteridade o sujeito das imagens, sobretudo no Brasil,uma vez que o artista – o cineasta – depara com uma relação com o outro, que envolve, em geral, uma diferença social marcante. Esta não deixa de influir de forma significativa no resultado do seu trabalho. Em busca de um objeto Se iniciarmos nosso questionamento pelo documentário clássico brasileiro, produzido pelo Instituto Nacional de Cinema Educativo (Ince) entre os anos de 1936 e 1945, por exemplo, veremos que o que se enfoca ali são seres e situações edificantes, buscando criar modelos pedagógicos a ser seguidos numa sociedade autoritária. São assim os grandes heróis cultos que o arqueólogo e diretor do Ince, Roquette Pinto, associado ao realizador Humberto Mauro, tratou de construir, forjando um panteão de homens exemplares por seus feitos e obras, que deveriam restar como modelos para as novas gerações: Machado de Assis, Castro Alves, Rui Barbosa, Princesa Isabel ou Barão do Rio Branco. Eles eram os grandes mortos, heróis românticos em que se deveria inspirar o Brasil extraordinário que aqueles filmes buscavam moldar. Nesse mesmo momento histórico, as reportagens do Departamento de Imprensa e Sheila Schvarzman Historiadora do Condephaat, professora do curso de audiovisual das Faculdades Senac, professora convidada do Departamento de Multimeios da Unicamp. Realizou pós-doutorado sobre a obra de Octávio Gabus Mendes. É autora de Humberto Mauro e as Imagens do Brasil, São Paulo, Edunesp, 2004, e “Humberto Mauro e o Documentário”, no livro organizado por Francisco Elinaldo Teixeira Documentário no Brasil – Tradição e Transformação, São Paulo, Summus Editorial, 2004. Tendências e perspectivas do documentário contemporâneo: um olhar histórico retrospectivo 32 Sheila Schvarzman Tendências e perspectivas do documentário contemporâneo: um olhar histórico retrospectivo 33 Propaganda (DIP) traziam para a tela homens vivos excepcionais – começando pelo presidente Getúlio Vargas, artistas como o pintor Pancetti, artesãos e trabalhadores de extração simples, que haviam se destacado em suas atividades. Mas o verdadeiro foco desses filmes, o sujeito dessas ações, era antes de tudo o Estado que, na figura do presidente, resguardava o cidadão, ou dava àqueles profissionais a chance de sobressair. Tanto em um como em outro exemplo, era muito clara a separação total entre os personagens da tela e os da vida real. Na tela, todos eram parte da mesma ficção construída pelo regime por meio do cinema. Nos anos 1950, finda a ditadura, e com novos tempos políticos e culturais, os heróis e as virtudes pedagógicas construídos pelo Ince se desfizeram. A forma documental se impôs sobre a pedagogia, e Humberto Mauro passou a registrar de forma sistemática os modos de vida tradicionais que o avanço da modernização pareceu ameaçar. São filmes como Fabricação da Rapadura (1958), Pedra Sabão (1957), ou canções populares românticas – as várias Brasilianas (1945-1958). Entretanto, em todas as obras o homem ainda não aparece como personagem importante. Ele é parte de um sistema no qual está imerso, junto com o Carro de Bois (1956) ou o engenho (Engenhos e Usinas, 1955); estes, verdadeiros sujeitos dos filmes que abordavam a cultura brasileira tradicional num momento de forte transformação, com a industrialização e a urbanização. Em Aruanda, de Linduarte Noronha e Rucker Vieira (1960), o homem já tem consistência e existência própria, não é mais a entidade abstrata dos momentos anteriores. É nele que se edificam os traços do homem popular como depositário da verdadeira tradição e dos valores brasileiros. A construção romântica se transfere do grande homem para o homem simples. Ainda que pobre, ele é a verdadeira nacionalidade – sua inconsciente salvaguarda. Em 5 Vezes Favela (Carlos Diegues e outros, 1962), a beleza e a poesia não escondem o viés romântico que permeia a abordagem dos tipos populares; viés cujo ponto de vista certamente era motivo de conflito entre os diretores cinema-novistas. Nesse sentido, Opinião Pública (1967), de Arnaldo Jabor, muda o tom e evita o romantismo, ao abordar a população de classe média de Copacabana, no Rio. A magnificação do homem do povo é marcante nos filmes da Caravana Farkas, que procurou registrar o “verdadeiro homem brasileiro” a partir de meados dos anos 1960. Tratava-se, no dizer de Geraldo Sarno, um de seus realizadores, de mostrar a “nobreza intrínseca do ocupado e a sua competência”. Uma obrigação tão nobre que certamente não oculta, no tratamento da imagem e na eloqüência da narração, a culpa e a má consciência dos realizadores pelos débitos sociais que se explicitam nos filmes. Essa frase demonstra o grau de idealização em relação ao homem das camadas populares: num país de tanta desigualdade, é difícil tratar o outro de forma igualitária sem chamar para si – cineasta culto e bem alimentado do Sul – a responsabilidade pela mudança. Em filmes como Viramundo (Geraldo Sarno, 1965), apesar de as mudanças técnicas e de concepção cinematográfica do cinema direto terem permitido “dar voz ao povo”, deixando patentes as carências dos homens que ali se enfocavam, a “voz sociológica” se sobrepôs às novas vozes; falou por elas, falou no seu lugar1. Isso certamente falou com mais eloqüência da visão do realizador do que daquele que é alvo da câmera. Esse viés persiste ainda nos anos 1970 e 1980. Mas essa tendência muda, e muito, em meados dos anos 1980 e 1990. Os anos 1980, fortemente marcados pelo neoliberalismo, sepultaram as utopias socializantes que faziam do povo um objeto a ser salvo e amparado. Ao ruírem, essas crenças permitiram a livre manifestação da persistente linhagem conservadora de parte do pensamento nacional que, desde o final do Império, sempre viu o povo de forma negativa. Se, até os anos 1980, o Nordeste era o objeto de interesse e os filmes documentavam um modo de vida tido como arcaico, pobre, miserável – mas respeitosamente tradicional, como se vê em A Bolandeira (Vladimir Carvalho, 1969), por exemplo –, a partir desse mo- mento o foco muda. O centro das atenções passam a ser os marginalizados urbanos, que os efeitos deletérios do “milagre brasileiro” só fizeram multiplicar. Assim, são documenta- dos a vida no morro, as favelas, o apego à religião, o tráfico de drogas, a delinqüência e, ao mesmo tempo, seus antídotos ou mecanismos de defesa como o rap etc. A imagem cruenta, ou intensa, como lembra Fernão Ramos, parece ser a forma de “tematizar, no documentário contemporâneo, a exclusão e a violência social que permeiam a sociedade brasileira.(...) um narcisismo às avessas”2. Se mudou a geografia, se o urbano substituiu o rural, se o jovem substituiu os homens maduros envolvidos em profissões e atitudes tradicionais, é como se a própria humanidade tivesse se transformado na imagem. Depurado do viés romântico que alimentava no povo a idéia de raiz, de autenticidade, o elemento popular aparece desprovido de qualidades, imensamente carente. Como já observou Ramos, em alguns filmes da época3, “o espectador, através de uma postura auto-agressiva, aceita e se deleita com a crueldade narrativa, embutida na enunciação, na imagem do HORROR (imagens do grito, da morte, da miséria, da sordidez, do sofrimento, do dilaceramento corporal, do sangramento, da humilhação, da sujeira). A favela, os cortiços, a prisão, os lixões, os esgotos, o campo devastado são os cenários privilegiados dessa imagem. É a fratura de classes da sociedade brasileira que permite a representação desse ‘outro’ que denominamos ‘representação do popular’ ”4. Por outro lado, persiste ainda como característica dessa fase – talvez pela urgência dessas questões – um olhar exterior que continua a permear a relação com o outro. Um olhar exterior e de classe, que denuncia, mas também revela, na maior parte das vezes, a má consciência em relação ao outro pobre. Mesmo nas formas cinematográficas mais despojadas
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