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A OBRA DO ESPÍRITO SANTO NA TEOLOGIA DA REFORMA Gerald Bray Traduzido por Jurandy Bravo e revisado por Jonathan Silveira Quando discutem as implicações doutrinárias da Reforma, os teólogos se concentram nos meios da graça, nos sacramentos e na doutrina da igreja. Se chegam a tocar na doutrina de Deus, em geral é só para dizer que ela permaneceu basicamente inalterada na teologia reformada. Em certo sentido, claro que têm razão. Os reformadores aceitaram os credos da igreja primitiva do jeito que estavam, e em várias igrejas eles foram incorporados à adoração pública. Os comentários a respeito deles não falavam nada que não pudesse ser dito por qualquer comentarista pré-Reforma, e chegaram a ser considerados prova de que a doutrina básica das igrejas protestantes era plenamente católica e ortodoxa. Definida a heresia segundo os termos da igreja primitiva, os protestantes não podiam ser acusados dela. Todavia, embora não houvesse dúvida quanto à veracidade disso, em outro nível ocorreu uma mudança profunda no modo pelo qual a teologia tradicional da igreja foi apropriada pelo pensamento. A natureza da mudança pode ser condensada nas expressões “a obra de Cristo” e “a obra do Espírito Santo”. Ambos os assuntos tinham sido discutidos com frequência nos quinze séculos de existência da igreja, mas antes da Reforma ninguém escreveria um livro intitulado A obra de Cristo. Quem chegou mais perto disso foi Anselmo de Cantuária (1033-1109), mas quando o fez, deu a seu livro o título Cur Deus homo, ou “Por que um Deus homem”, localizando sua discussão sobre a expiação de Cristo com grande firmeza no contexto da encarnação. A tese era de que Cristo pagara na cruz o preço pelos pecados do mundo inteiro, passados, presentes e futuros. Essa herança subira ao céu com ele e era agora dispensada conforme necessário àqueles que buscavam a graça de Deus pela mediação da igreja. Sempre que os crentes buscavam alívio de seus pecados, a igreja dispensava o suficiente da graça divina armazenada no sacrifício eterno de Cristo para lhe atender as necessidades imediatas. Quando pecavam de novo, o processo se repetia. Não acabava nunca nesta vida, pois a morte expiatória de Cristo bastava para cobrir todo pecado cometido e nunca se exauria seu estoque de graça. Martinho Lutero pegou a teoria de Anselmo e a modificou de duas maneiras importantes. Primeiro, ele disse que Cristo morreu por pecadores, não por pecados — em outras palavras, por pessoas e não por coisas. Isso lhe permitiu declarar que era possível ser um pecador justificado — simul iustus et peccator, na famosa frase em latim —, um conceito que muitos de seus contemporâneos não conseguiam entender, que dirá aceitar. Também o levou a ressaltar a natureza penal da morte substitutiva de Cristo na cruz. Jesus morreu não tanto para levar nossos pecados embora, mas sim para pagar o preço por eles, para afastar a culpa que tinham incorrido à vista de Deus, o Pai, e para nos permitir comparecer na presença do Deus todo-poderoso, ainda pecadores, mas revestidos de uma justiça que não é nossa. Hoje estamos familiarizados com esses desdobramentos e os consideramos o grande avanço teológico que produziu a Reforma. Examinando a questão mais de perto, no entanto, veremos que isso só foi possível porque Lutero tinha consciência cada vez maior de outro fato — a obra do Espírito Santo na vida do crente, a segunda marca distintiva da teologia da Reforma. Na história da Igreja, a doutrina do Espírito Santo custou a se desenvolver. Não porque o Espírito fosse desconhecido ou subestimado, mas porque até ficar claro quem eram o Pai e o Filho e o que tinham feito pela salvação da raça humana, era impossível expor a doutrina do Espírito Santo de maneira coerente e sistemática. Como o Espírito representa o Pai e o Filho em nosso coração e torna a obra de ambos relevante em nossa vida, a igreja precisou definir a pessoa e obra das duas primeiras pessoas da Trindade desenvolvendo um entendimento igualmente sofisticado da pessoa e obra da terceira. No centro dessa doutrina está o entendimento distinto de como o Espírito Santo opera na vida do crente individual, e assim, por extensão, de como ele constitui a igreja. Precisamos entender isso se quisermos avaliar qual a real diferença entre protestantismo e catolicismo. Por exemplo, se um protestante discute com um católico romano acerca da justificação pela fé, é provável que se depare com uma concordância ou com a incompreensão. A concordância virá da pequenina minoria de católicos teologicamente bem informados e a incompreensão de todos os demais. A bem da justiça, é preciso que se diga que a maioria dos protestantes também fica aturdida com essa doutrina, sobre a qual pode ter ouvido falar mas que não consegue explicar em nenhum nível de profundidade. Os debates sobre justificação são departamento de especialistas em teologia, portanto, não muito úteis para explicar por que a Reforma foi tão importante. Se quisermos ver por que protestantes e católicos não concordam uns com os outros, a melhor abordagem é começar com a pergunta simples: “Para onde vou quando morrer?”. Os protestantes responderão que é para o céu. Os católicos dirão que esperam ir para o céu, mas que provavelmente acabarão no purgatório porque não serão bons o suficientes para se juntarem aos santos na glória. Não têm a certeza da salvação que os protestantes proclamam como fundamental para nossa experiência de Deus. Para os protestantes, os católicos caíram na armadilha de um sistema que lhes nega paz com Deus. Para os católicos, os protestantes são um povo arrogante que pensa que vai para o céu apesar de não ser perfeito. Aqui as diferenças teológicas entre nós ficam claras. Para o católico, santo é alguém que alcançou perfeição moral e espiritual, uma façanha possível nesta vida mas de extrema raridade. Para o protestante, esse tipo de perfeição é tanto impossível quando desnecessário. Fomos salvos apesar de nós mesmos. Mas como, o bom católico perguntará, pode alguém imperfeito comparecer à presença de Deus? A resposta para isso foi explicada com clareza por João Calvino, que discorreu sobre o Espírito Santo como o Espírito de adoção. Como ele coloca: ... ele é chamado de Espírito de adoção por ser a testemunha para nós da benevolência desmedida de Deus, com a qual Deus, o Pai, nos abraçou em seu amado Filho único a fim de se tornar um Pai para nós... (Institutas, 3.1.3). O filho adotivo não compartilha da natureza dos pais e não tem nenhuma reivindicação física sobre eles. Foi aceito na família por escolha pessoal e seu parentesco com os novos pais não se dá por sangue, mas por amor. Assim acontece com os crentes. Não somos filhos de Deus por natureza e não temos nenhum direito inato de passar a eternidade no reino do céu, mesmo se alcançarmos de algum modo a perfeição moral e espiritual. Somos herdeiros por meio da esperança do reino de Deus porque fomos adotados — esse é o selo e a garantia da nossa salvação. Essa adoção é a obra do Espírito Santo, que entra em nosso coração e clama “Aba, Pai” (Gl 4.6). A tragédia da Reforma foi essa verdade ter sido escondida em seguida, inclusive entre protestantes, devido em parte a um tradicionalismo irrefletido e em parte ao medo de que uma ênfase na presença residente do Espírito Santo pudesse levar a uma forma desordenada e nociva de pseudoespiritualidade. Em tempos modernos, ainda encontramos os mesmos problemas. Os que adotam uma visão reformada acentuada rejeitam com exagerada frequência qualquer forma de emoção por recear que se degenere em emocionalismo irracional, ao passo que outros dão tanta ênfase ao ser “cheio do Espírito” e “guiado pelo Espírito” que parecem perder todo contato com a realidade. Muita gente se sente pressionada a escolher um desses extremos em detrimento do outro, é inevitável. E essa escolha, é preciso que se diga, costuma ter mais a ver com personalidade e temperamento do quecom uma compreensão bíblica da obra do Espírito Santo. Enquanto nos preparamos para comemorar meio milênio da Reforma, será que podemos não retornar às nossas raízes e considerar novamente o grande poder motivador que a redescoberta e a experiência renovada da obra do Espírito desencadeou no século 16? Podemos aprender a evitar os excessos do passado e a resistir aos temores do presente expondo uma doutrina sadia dessa obra que faça justiça à sua importância em nossa vida de crentes, sem perder de vista o contexto teológico mais amplo em que ela encontra seu lugar apropriado? Conseguimos fazer isso se nos lembrarmos como era fundamental para o pensamento dos reformadores protestantes a obra do Espírito Santo. Nas palavras de Lutero: O Espírito, a graça divina, dá força e poder ao coração; de fato, cria um novo homem que tem prazer nos mandamentos de Deus e faz tudo que deve com alegria. O espírito [que nele habita] jamais pode ser contido na letra. Não há como escrevê-lo como a lei, com tinta, sobre pedra ou em livros. Em vez disso, ele é gravado só no coração como uma escrita viva do Espírito Santo [...] todos que creem em Cristo recebem a graça de Deus e o Espírito Santo, por meio dos quais todos os pecados são perdoados, toda a lei é cumprida e eles se tornam filhos de Deus, abençoados eternamente (De littera et spiritu, 29:182,183). Em geral ainda se concorda que a justificação só pela fé foi o ponto sobre o qual Lutero disse que a igreja se coloca se prega a doutrina, ou cai se não o faz. Todavia, embora este seja um tema proeminente para ele desde suas primeiras séries de conferências sobre Gálatas (1519), não se tornou o centro do seu ensinamento senão algum tempo depois. Na Confissão de Augsburgo de 1530, por exemplo, que se tornou a declaração definidora do que era um protestante (luterano), a doutrina da justificação foi tratada de maneira muito breve: ... os homens não podem ser justificados diante de Deus pela sua própria força, méritos ou obras, mas são justificados gratuitamente pela fé em virtude de Cristo, quando creem que foram recebidos na graça e que seus pecados foram perdoados em virtude de Cristo, que com sua morte pagou por nossos pecados. Deus considera essa fé como justiça aos seus olhos (Rm 3.4) (Confissão de Augsburgo 4). Não existe elaboração adicional do tempo e, em sentido mais específico, não há nenhuma discussão do lugar das boas obras após a justificação. Só na segunda série magistral de palestras de Lutero sobre Gálatas, em 1535, o assunto seria objeto de uma exposição completa, depois do que ele ocuparia um lugar mais significativo nas confissões das igrejas protestantes. Nos artigos de Wittenberg, composto em 1536, lemos o seguinte: Como a renovação ocorre na justificação, essa nova vida é obediência a Deus. Logo, a justificação não pode ser retida a menos que o mesmo aconteça a essa obediência incipiente [...] o valor dessa obediência incipiente é grande, pois embora imperfeita, ainda assim, pelo fato de as pessoas envolvidas estarem em Cristo, ela é computada como um tipo de cumprimento da lei e é justiça, como costumam chamá-la [...] Isso não deveria ser entendido como se obtivéssemos a remissão dos pecados e a reconciliação em razão das nossas obras, mas que ambas as justiças são necessárias. Primeiro, a fé é necessária, pois por ela somos justificados diante de Deus [...] e depois uma outra justiça é necessária e devida, a justiça das obras e de uma boa consciência (Artigos de Wittenberg, 5). Encontramos aqui mais um tema notório no ensino de Lutero — a existência de dois tipos de “justiças”, que ele distinguiu chamando-as de “passiva” e “ativa”. A justiça passiva só podia ser recebida pela fé em Cristo, e assim, era exclusiva para crentes. A justiça ativa provinha das obras humanas e era restrita aos assuntos deste mundo por natureza, embora também pudesse ser obtida por descrentes, que inevitavelmente haveriam de querer usá-la para se justificarem. Como Lutero expressou no prefácio a sua segunda série de palestras sobre Gálatas: Meu ensino é que existe uma clara distinção entre dois tipos de justiça, a ativa e a passiva, de modo que a moralidade não deve ser confundida com a fé, as obras não devem tomar o lugar da graça e a sociedade secular não deve prevalecer sobre a religião. Ambos os tipos de justiça são necessários, mas cada um deles tem seus limites. A justiça cristã se aplica ao novo homem e a justiça da lei, ao velho homem, nascido da carne e do sangue. [...] No cristão, a lei deveria governar apenas sobre a carne e não sobre a consciência. Dê à carne o que lhe é devido, mas não lhe permita ultrapassar sua jurisdição. A justiça passiva validava seu equivalente ativo pois só uma justiça recebida de Cristo haveria de ter poder para justificar. Do início ao fim, o refrão constante de Lutero era que não podemos fazer nada para nos salvarmos, mas devemos nos manter unidos a Cristo, a fim de que sua justiça seja estendida de modo a nos cobrir por imputação. A justiça ativa, por outro lado, é válida apenas desde que estejamos unidos a Cristo e sua justiça opere em nós, pois antes mesmo de sermos justificados continuamos sendo pecadores. Essas declarações provam que, por volta de 1536, a obra do Espírito Santo na justificação estava não apenas sendo claramente articulada mas se tornara um ponto importante da doutrina protestante. A importância da obra do Espírito Santo na justificação fica mais clara quando constatamos que, para Lutero, o cristão não é uma pessoa que parou de pecar, feito impossível nesta vida, mas alguém levado a perceber qual o seu verdadeiro estado espiritual e que confia na justiça de Cristo para sua salvação. Lutero defendeu essa ideia com energia em seus comentários sobre Gálatas 3.6, que resumem muito bem seu ensinamento: O cristão é justo e pecador ao mesmo tempo (simul iustus et peccator), santo e profano, inimigo de Deus e filho de Deus. Só aqueles que compreendem o verdadeiro significado da justificação entenderão esse aparente paradoxo. “O verdadeiro significado da justificação” deveria agora ser o campo de batalha e a causa de divisão irremediável entre os seguidores de Lutero e os que permaneceram leais a Roma. Os protestantes do século 16 se apresentavam em diferentes formas e tamanhos, mas neste ponto todos estavam concordes. Quando as autoridades romanas enfim se reuniram para decidir o que fazer acerca deles, a justificação foi um dos primeiros assuntos ao qual voltaram a atenção, desse modo emprestando credibilidade adicional à afirmação de Lutero de que essa doutrina afirmaria ou quebraria a igreja. Em 1545, o papa convocou a reunião de um concílio em Trento, cidade italiana nos domínios do santo imperador romano, por isso considerada território “neutro”. Em sua sexta sessão (de 13 de janeiro de 1547), quase um ano após a morte de Lutero, o concílio emitiu um longo decreto acerca da justificação, deixando abundantemente clara sua posição no que dizia respeito aos protestantes. Em alguns aspectos, o concílio de Trento concordou com Lutero. Excomungou qualquer um que dissesse ser possível a justificação pelas próprias obras, ou que afirmasse que as pessoas podiam escolher ser salvas ou amar a Deus sem o auxílio da graça de Deus (Cânones 1-3). Dito isso, no entanto, ele então negou os elementos-chave do ensinamento de Lutero. Afirmou que a graça de Deus era concedida de modo a capacitar a pessoa a exercitar seu livre-arbítrio cooperando com ele (Deus) com o intuito de obter a justificação e rejeitou especificamente o conceito de justiça “passiva” (Cânone 4). A partir disso, prosseguiu rejeitando a subordinação da vontade e a crença protestante de que as boas obras realizadas antes da justificação são pecaminosas por natureza (Cânones 5,7). A ideia de que só a fé justificava o perverso foi condenada, bem como a alegação de Lutero de que só pela justiça de Cristo podemos ser justificados(Cânones 9-14). Além disso, o concílio de Trento negou que qualquer pessoa pudesse ter certeza da salvação baseada na justificação só pela fé e rejeitou o argumento de Lutero de que inclusive aqueles que estão justificados e em estado de graça não podem satisfazer os mandamentos divinos (Cânones 15-18). Do ponto de vista do concílio de Trento, unir-se a Cristo não era ser salvo de uma vez por todas, mas ser liberto para cooperar com ele no pagamento das penas incorridas pelo pecado tanto antes quanto depois do recebimento da graça. Desse modo, o concílio validou e reforçou o sistema penitenciário tradicional que estivera debaixo de forte ataque dos protestantes e fechou a porta para qualquer reforma da igreja que a levasse em uma direção luterana. Lutero entendia que mudar para a doutrina da justificação pela fé seria mudar também a igreja, o que a princípio ele não quis fazer e não considerou ser necessário. Durante algum tempo continuou a acreditar que a igreja romana era o corpo de Cristo, que só operava em e por meio dela, e muito lentamente ele e seus seguidores começaram a entender que o corpo de Cristo não se encontrava na igreja de Roma conforme existente então. Lutero morreu bem quando o concílio estava começando e, por isso, nunca teve a oportunidade de lhe responder. Mas a situação foi diferente com a geração seguinte, e nas obras de João Calvino encontramos toda a questão da justificação exposta de modo claro, conciso e lógico. Calvino estabeleceu uma distinção clara entre a obra de Cristo, efetivada para a salvação dos eleitos pelo sacrifício que ele apresentara ao Pai, e a obra do Espírito Santo, por quem os crentes são unidos a Cristo. Em especial, Calvino ressaltou que o Espírito Santo vem para os crentes em e por meio de Cristo, a quem foi dado em seu ofício como mediador da nova aliança. Em outras palavras, o Espírito Santo vem para os crentes não apenas como o Espírito do Filho de Deus, mas também como o Espírito do homem Jesus Cristo, em quem habita “de modo especial, a fim de que pudesse nos separar do mundo e a ele nos unir na esperança de uma herança eterna” (Institutas, 3.1.12). Calvino declarou isso de maneira bastante explícita quando escreveu: O Espírito é chamado de Espírito de Cristo, não só devido ao fato de o Verbo eterno de Deus estar unido ao Pai e ao Espírito, mas também em virtude de seu ofício de mediador, porque se não tivesse sido dotado da energia do Espírito, teria vindo a nós em vão (Institutas, 3.1.12). Calvino prosseguiu então dizendo-nos que conferir fé aos crentes era a obra primeira e mais importante do Espírito. Citando diversas passagens do Novo Testamento que sustentam essa visão, ele culminou sua exposição com uma rápida discussão das palavras de Cristo aos discípulos antes da crucificação, quando prometeu lhes enviar “o Espírito da verdade, o qual o mundo não pode receber...” (Jo 14.17). Após discursar longo tempo sobre a natureza da fé como um dom divino e de refutar diversos erros que se haviam imiscuído no ensinamento da igreja medieval, Calvino enfim chegou à questão central da justificação, pela qual os capítulos sobre fé foram evidente preparação. Em oito capítulos substanciais, seguidos por um adicional sobre a liberdade cristã, ele expôs a doutrina da justificação só pela fé, ignorando as objeções levantadas contra o ensino de Lutero pelo concílio de Trento e se concentrando, em vez disso, no falso ensinamento de Andreas Osiander, teólogo luterano que, nas palavras de Calvino, ensinava “que não somos justificados por mera graça do mediador, e que a justiça não nos é simples ou inteiramente oferecida em sua pessoa, mas que somos feitos participantes da justiça divina quando Deus se une a nós em sua essência” (Institutas, 3.11.5). Calvino, acompanhado de Melâncton e outros teólogos luteranos, opôs-se a Osiander baseado em que ele distorcia o que o Novo Testamento ensinava sobre a obra do Espírito Santo na vida do crente. Utilizando a imagem do sol, que ao mesmo tempo é luz e calor, Calvino argumentou que assim como não podemos dizer que a Terra é aquecida pela luz do sol ou iluminada por seu calor, tampouco podemos confundir os dois aspectos da graça de Deus em operação em nossa vida. Justificação e santificação são inseparáveis, mas não idênticas. O Pai nos aceita em sua presença graças à intercessão do Filho, nosso mediador, mas em seguida nos dá seu Espírito de adoção a fim de que possamos ser re-formados à sua imagem (Institutas, 3.11.6). O erro de Osiander, na visão de Calvino, ocorreu devido a um entendimento equivocado da fé, que é o meio indicado para um fim, qual seja, a união com Cristo, mas que não deve ser confundido com o fim propriamente dito. Calvino comparava a fé a um vaso de barro em que se deposita ouro (a justificação) — não é a fé, sempre frágil e inadequada, que conta, mas o dom que ela traz, que é nosso real tesouro e salvação (Institutas, 3.11.7). O vaso de barro em que o tesouro é encerrado representa, antes de mais nada, a natureza humana do Filho encarnado e, em segundo lugar, nós que partilhamos dessa natureza humana. Jesus foi feito justo por nós não em função de sua divindade, mas porque sua natureza humana foi transformada pela presença residente de Deus. Se fosse justo em razão de sua natureza divina ele não seria nosso Salvador, pois seríamos incapazes de partilhar dessa justiça de qualquer maneira. Mas como a justiça divina foi imputada à sua natureza humana, assim também ela nos é imputada pela presença residente do Espírito Santo. Permanecemos vasos de barro e jamais podemos ser qualquer outra coisa além disso, mas o Espírito divino no interior desses vasos opera seu poder de regeneração em nós, de modo que nos tornamos, pela graça, algo que jamais poderíamos ser (ou nos tornar) por natureza. Após uma longa discussão desse assunto, Calvino resumiu tudo como segue: Quando Deus nos reconcilia consigo pela intervenção da justiça de Cristo, e conferindo a nós o perdão gratuito dos pecados, considera-nos como justos, sua bondade se associa simultaneamente à misericórdia, de modo que ele habita em nós por seu Espírito Santo, por cuja obra os desejos da nossa carne são todos os dias mortificados e nós, santificados, o que significa que somos consagrados ao Senhor para a pureza de vida e nosso coração é treinado para obedecer a lei (Institutas, 3.14.9). Calvino contrapôs isso com o ensino dos escolásticos medievais, os quais agrupava como uma coisa só. Começou dizendo não haver nenhuma diferença entre eles e os reformados no que diz respeito ao princípio básico, uma vez que ambos concordam que os pecadores são libertos gratuitamente da condenação e recebem justificação por meio do perdão de seus pecados. Mas ele prosseguiu a fim de chamar a atenção para o fato de que: ... debaixo do termo “justificação” os escolásticos incluem a renovação pela qual o Espírito nos conforma de novo para a obediência à lei, e ao descrever a justiça do homem regenerado, eles mantêm que estando ele reconciliado com Deus em Cristo, é considerado justo devido a suas boas obras, e aceito [por Deus] com base nisso (Institutas, 3.14.11). Dessa maneira sutil, os escolásticos transferiram a obra do Cristo assentado à direita do Pai (como nosso mediador) para a obra do Espírito Santo residente em nosso coração pela fé, desse modo tornando nossa salvação dependente não da perfeita mediação de Cristo mas do recebimento imperfeito de poder espiritual. Isso nada mais foi que dizer que a perdemos por completo, uma vez que nossa resposta inadequada jamais poderia satisfazer as exigências da justiça divina (Institutas, 3.11.12,13). Calvino encerrou a discussão sobre a justificação com chave de ouro por meio de um capítulo sobre a liberdade cristã, a qual ele admitiu que estava implícita em tudo que já dissera sobre o assunto, mas por sentir que ela se baseava em determinados princípios, ele precisava colocar tudo em um só lugarem nome da clareza. Em momento algum ele mencionou o Espírito Santo pelo nome nesse resumo, mas a leitura deixa evidente que o capítulo inteiro pressupunha a presença do Espírito habitando o coração do crente. Como Calvino exprimiu a questão: Deve-se observar com grande cuidado que a liberdade cristã é em todos os aspectos uma questão espiritual, que consiste em dar paz a consciências trepidantes, estejam elas ansiosas e aborrecidas para saber se obtiveram o perdão dos pecados, ou se suas obras imperfeitas [...] são agradáveis a Deus, ou se estão preocupadas em fazer coisas que não importam nem em um sentido, nem no outro (Institutas, 3.19.9) Vemos aqui o que para Calvino era fundamental — o papel da consciência na formação da vida cristã. Em questões espirituais, a consciência é liberta da necessidade de obedecer o padrão exterior da lei, pois é impossível fazer por merecer a salvação pelas obras. Mas nas coisas temporais, o crente está por sua consciência a obedecer as leis do Estado, pois o Estado foi estabelecido por Deus como governo civil. Nenhum cristão tinha o direito de apelar para sua liberdade espiritual como desculpa para infringir as leis que promovem a paz, a ordem e o bom governo na Terra (Institutas, 3.19.5). Calvino definiu a consciência como conhecimento fortalecido pela convicção. O crente é alguém que sabe que é certo em termos intelectuais (o que Calvino chamou de “ciência”), mas que também está convencido pelo Espírito de Deus de que deve fazer o que é certo e buscar perdão para seu pecado, se falhar. Como até a pessoa mais dedicada à lei deixará de alcançar a perfeição, a consciência age como um cão de guarda espiritual a policiar o comportamento do crente, acusando-o de não atingir o objetivo e levando-o para Cristo em busca de reconciliação e justificação. É a obra suprema do Espírito Santo, que dá testemunho ao nosso espírito de que somos filhos de Deus (Rm 8.16). Foi também o alicerce sobre o qual a próxima geração de teólogos reformados, em particular os puritanos, haveria de construir seu próprio ensino distinto acerca da certeza da salvação e de se ter paz com Deus.
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