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A OBRA DO ESPÍRITO SANTO NA TEOLOGIA DA REFORMA 
Gerald Bray 
Traduzido por Jurandy Bravo e revisado por Jonathan Silveira 
 
 
Quando discutem as implicações doutrinárias da Reforma, os teólogos se concentram 
nos meios da graça, nos sacramentos e na doutrina da igreja. Se chegam a tocar na 
doutrina de Deus, em geral é só para dizer que ela permaneceu basicamente inalterada 
na teologia reformada. Em certo sentido, claro que têm razão. Os reformadores 
aceitaram os credos da igreja primitiva do jeito que estavam, e em várias igrejas eles 
foram incorporados à adoração pública. Os comentários a respeito deles não falavam 
nada que não pudesse ser dito por qualquer comentarista pré-Reforma, e chegaram a ser 
considerados prova de que a doutrina básica das igrejas protestantes era plenamente 
católica e ortodoxa. Definida a heresia segundo os termos da igreja primitiva, os 
protestantes não podiam ser acusados dela. 
 Todavia, embora não houvesse dúvida quanto à veracidade disso, em outro nível 
ocorreu uma mudança profunda no modo pelo qual a teologia tradicional da igreja foi 
apropriada pelo pensamento. A natureza da mudança pode ser condensada nas 
expressões “a obra de Cristo” e “a obra do Espírito Santo”. Ambos os assuntos tinham 
sido discutidos com frequência nos quinze séculos de existência da igreja, mas antes da 
Reforma ninguém escreveria um livro intitulado A obra de Cristo. Quem chegou mais 
perto disso foi Anselmo de Cantuária (1033-1109), mas quando o fez, deu a seu livro o 
título Cur Deus homo, ou “Por que um Deus homem”, localizando sua discussão sobre a 
expiação de Cristo com grande firmeza no contexto da encarnação. A tese era de que 
Cristo pagara na cruz o preço pelos pecados do mundo inteiro, passados, presentes e 
futuros. Essa herança subira ao céu com ele e era agora dispensada conforme necessário 
àqueles que buscavam a graça de Deus pela mediação da igreja. Sempre que os crentes 
buscavam alívio de seus pecados, a igreja dispensava o suficiente da graça divina 
armazenada no sacrifício eterno de Cristo para lhe atender as necessidades imediatas. 
Quando pecavam de novo, o processo se repetia. Não acabava nunca nesta vida, pois a 
morte expiatória de Cristo bastava para cobrir todo pecado cometido e nunca se exauria 
seu estoque de graça. 
 Martinho Lutero pegou a teoria de Anselmo e a modificou de duas maneiras 
importantes. Primeiro, ele disse que Cristo morreu por pecadores, não por pecados — 
em outras palavras, por pessoas e não por coisas. Isso lhe permitiu declarar que era 
possível ser um pecador justificado — simul iustus et peccator, na famosa frase em 
latim —, um conceito que muitos de seus contemporâneos não conseguiam entender, 
que dirá aceitar. Também o levou a ressaltar a natureza penal da morte substitutiva de 
Cristo na cruz. Jesus morreu não tanto para levar nossos pecados embora, mas sim para 
pagar o preço por eles, para afastar a culpa que tinham incorrido à vista de Deus, o Pai, 
e para nos permitir comparecer na presença do Deus todo-poderoso, ainda pecadores, 
mas revestidos de uma justiça que não é nossa. 
 Hoje estamos familiarizados com esses desdobramentos e os consideramos o 
grande avanço teológico que produziu a Reforma. Examinando a questão mais de perto, 
no entanto, veremos que isso só foi possível porque Lutero tinha consciência cada vez 
maior de outro fato — a obra do Espírito Santo na vida do crente, a segunda marca 
distintiva da teologia da Reforma. Na história da Igreja, a doutrina do Espírito Santo 
custou a se desenvolver. Não porque o Espírito fosse desconhecido ou subestimado, 
mas porque até ficar claro quem eram o Pai e o Filho e o que tinham feito pela salvação 
da raça humana, era impossível expor a doutrina do Espírito Santo de maneira coerente 
e sistemática. Como o Espírito representa o Pai e o Filho em nosso coração e torna a 
obra de ambos relevante em nossa vida, a igreja precisou definir a pessoa e obra das 
duas primeiras pessoas da Trindade desenvolvendo um entendimento igualmente 
sofisticado da pessoa e obra da terceira. 
 No centro dessa doutrina está o entendimento distinto de como o Espírito Santo 
opera na vida do crente individual, e assim, por extensão, de como ele constitui a igreja. 
Precisamos entender isso se quisermos avaliar qual a real diferença entre protestantismo 
e catolicismo. Por exemplo, se um protestante discute com um católico romano acerca 
da justificação pela fé, é provável que se depare com uma concordância ou com a 
incompreensão. A concordância virá da pequenina minoria de católicos teologicamente 
bem informados e a incompreensão de todos os demais. A bem da justiça, é preciso que 
se diga que a maioria dos protestantes também fica aturdida com essa doutrina, sobre a 
qual pode ter ouvido falar mas que não consegue explicar em nenhum nível de 
profundidade. Os debates sobre justificação são departamento de especialistas em 
teologia, portanto, não muito úteis para explicar por que a Reforma foi tão importante. 
Se quisermos ver por que protestantes e católicos não concordam uns com os outros, a 
melhor abordagem é começar com a pergunta simples: “Para onde vou quando 
morrer?”. Os protestantes responderão que é para o céu. Os católicos dirão que esperam 
ir para o céu, mas que provavelmente acabarão no purgatório porque não serão bons o 
suficientes para se juntarem aos santos na glória. Não têm a certeza da salvação que os 
protestantes proclamam como fundamental para nossa experiência de Deus. Para os 
protestantes, os católicos caíram na armadilha de um sistema que lhes nega paz com 
Deus. Para os católicos, os protestantes são um povo arrogante que pensa que vai para o 
céu apesar de não ser perfeito. 
 Aqui as diferenças teológicas entre nós ficam claras. Para o católico, santo é 
alguém que alcançou perfeição moral e espiritual, uma façanha possível nesta vida mas 
de extrema raridade. Para o protestante, esse tipo de perfeição é tanto impossível 
quando desnecessário. Fomos salvos apesar de nós mesmos. Mas como, o bom católico 
perguntará, pode alguém imperfeito comparecer à presença de Deus? 
 A resposta para isso foi explicada com clareza por João Calvino, que discorreu 
sobre o Espírito Santo como o Espírito de adoção. Como ele coloca: 
 
... ele é chamado de Espírito de adoção por ser a testemunha para nós da benevolência 
desmedida de Deus, com a qual Deus, o Pai, nos abraçou em seu amado Filho único a 
fim de se tornar um Pai para nós... (Institutas, 3.1.3). 
 
 O filho adotivo não compartilha da natureza dos pais e não tem nenhuma 
reivindicação física sobre eles. Foi aceito na família por escolha pessoal e seu 
parentesco com os novos pais não se dá por sangue, mas por amor. Assim acontece com 
os crentes. Não somos filhos de Deus por natureza e não temos nenhum direito inato de 
passar a eternidade no reino do céu, mesmo se alcançarmos de algum modo a perfeição 
moral e espiritual. Somos herdeiros por meio da esperança do reino de Deus porque 
fomos adotados — esse é o selo e a garantia da nossa salvação. Essa adoção é a obra do 
Espírito Santo, que entra em nosso coração e clama “Aba, Pai” (Gl 4.6). 
 A tragédia da Reforma foi essa verdade ter sido escondida em seguida, inclusive 
entre protestantes, devido em parte a um tradicionalismo irrefletido e em parte ao medo 
de que uma ênfase na presença residente do Espírito Santo pudesse levar a uma forma 
desordenada e nociva de pseudoespiritualidade. Em tempos modernos, ainda 
encontramos os mesmos problemas. Os que adotam uma visão reformada acentuada 
rejeitam com exagerada frequência qualquer forma de emoção por recear que se 
degenere em emocionalismo irracional, ao passo que outros dão tanta ênfase ao ser 
“cheio do Espírito” e “guiado pelo Espírito” que parecem perder todo contato com a 
realidade. 
 Muita gente se sente pressionada a escolher um desses extremos em detrimento 
do outro, é inevitável. E essa escolha, é preciso que se diga, costuma ter mais a ver com 
personalidade e temperamento do quecom uma compreensão bíblica da obra do 
Espírito Santo. Enquanto nos preparamos para comemorar meio milênio da Reforma, 
será que podemos não retornar às nossas raízes e considerar novamente o grande poder 
motivador que a redescoberta e a experiência renovada da obra do Espírito desencadeou 
no século 16? Podemos aprender a evitar os excessos do passado e a resistir aos temores 
do presente expondo uma doutrina sadia dessa obra que faça justiça à sua importância 
em nossa vida de crentes, sem perder de vista o contexto teológico mais amplo em que 
ela encontra seu lugar apropriado? 
 Conseguimos fazer isso se nos lembrarmos como era fundamental para o 
pensamento dos reformadores protestantes a obra do Espírito Santo. Nas palavras de 
Lutero: 
 
O Espírito, a graça divina, dá força e poder ao coração; de fato, cria um novo homem 
que tem prazer nos mandamentos de Deus e faz tudo que deve com alegria. O espírito 
[que nele habita] jamais pode ser contido na letra. Não há como escrevê-lo como a lei, 
com tinta, sobre pedra ou em livros. Em vez disso, ele é gravado só no coração como 
uma escrita viva do Espírito Santo [...] todos que creem em Cristo recebem a graça de 
Deus e o Espírito Santo, por meio dos quais todos os pecados são perdoados, toda a lei é 
cumprida e eles se tornam filhos de Deus, abençoados eternamente (De littera et spiritu, 
29:182,183). 
 
 Em geral ainda se concorda que a justificação só pela fé foi o ponto sobre o qual 
Lutero disse que a igreja se coloca se prega a doutrina, ou cai se não o faz. Todavia, 
embora este seja um tema proeminente para ele desde suas primeiras séries de 
conferências sobre Gálatas (1519), não se tornou o centro do seu ensinamento senão 
algum tempo depois. Na Confissão de Augsburgo de 1530, por exemplo, que se tornou 
a declaração definidora do que era um protestante (luterano), a doutrina da justificação 
foi tratada de maneira muito breve: 
 
... os homens não podem ser justificados diante de Deus pela sua própria força, méritos 
ou obras, mas são justificados gratuitamente pela fé em virtude de Cristo, quando creem 
que foram recebidos na graça e que seus pecados foram perdoados em virtude de Cristo, 
que com sua morte pagou por nossos pecados. Deus considera essa fé como justiça aos 
seus olhos (Rm 3.4) (Confissão de Augsburgo 4). 
 
 Não existe elaboração adicional do tempo e, em sentido mais específico, não há 
nenhuma discussão do lugar das boas obras após a justificação. Só na segunda série 
magistral de palestras de Lutero sobre Gálatas, em 1535, o assunto seria objeto de uma 
exposição completa, depois do que ele ocuparia um lugar mais significativo nas 
confissões das igrejas protestantes. Nos artigos de Wittenberg, composto em 1536, 
lemos o seguinte: 
 
Como a renovação ocorre na justificação, essa nova vida é obediência a Deus. Logo, a 
justificação não pode ser retida a menos que o mesmo aconteça a essa obediência 
incipiente [...] o valor dessa obediência incipiente é grande, pois embora imperfeita, 
ainda assim, pelo fato de as pessoas envolvidas estarem em Cristo, ela é computada 
como um tipo de cumprimento da lei e é justiça, como costumam chamá-la [...] Isso não 
deveria ser entendido como se obtivéssemos a remissão dos pecados e a reconciliação 
em razão das nossas obras, mas que ambas as justiças são necessárias. Primeiro, a fé é 
necessária, pois por ela somos justificados diante de Deus [...] e depois uma outra 
justiça é necessária e devida, a justiça das obras e de uma boa consciência (Artigos de 
Wittenberg, 5). 
 
 Encontramos aqui mais um tema notório no ensino de Lutero — a existência de 
dois tipos de “justiças”, que ele distinguiu chamando-as de “passiva” e “ativa”. A 
justiça passiva só podia ser recebida pela fé em Cristo, e assim, era exclusiva para 
crentes. A justiça ativa provinha das obras humanas e era restrita aos assuntos deste 
mundo por natureza, embora também pudesse ser obtida por descrentes, que 
inevitavelmente haveriam de querer usá-la para se justificarem. Como Lutero expressou 
no prefácio a sua segunda série de palestras sobre Gálatas: 
 
Meu ensino é que existe uma clara distinção entre dois tipos de justiça, a ativa e a 
passiva, de modo que a moralidade não deve ser confundida com a fé, as obras não 
devem tomar o lugar da graça e a sociedade secular não deve prevalecer sobre a 
religião. Ambos os tipos de justiça são necessários, mas cada um deles tem seus limites. 
A justiça cristã se aplica ao novo homem e a justiça da lei, ao velho homem, nascido da 
carne e do sangue. [...] No cristão, a lei deveria governar apenas sobre a carne e não 
sobre a consciência. Dê à carne o que lhe é devido, mas não lhe permita ultrapassar sua 
jurisdição. 
 
 A justiça passiva validava seu equivalente ativo pois só uma justiça recebida de 
Cristo haveria de ter poder para justificar. Do início ao fim, o refrão constante de Lutero 
era que não podemos fazer nada para nos salvarmos, mas devemos nos manter unidos a 
Cristo, a fim de que sua justiça seja estendida de modo a nos cobrir por imputação. A 
justiça ativa, por outro lado, é válida apenas desde que estejamos unidos a Cristo e sua 
justiça opere em nós, pois antes mesmo de sermos justificados continuamos sendo 
pecadores. 
 Essas declarações provam que, por volta de 1536, a obra do Espírito Santo na 
justificação estava não apenas sendo claramente articulada mas se tornara um ponto 
importante da doutrina protestante. 
 A importância da obra do Espírito Santo na justificação fica mais clara quando 
constatamos que, para Lutero, o cristão não é uma pessoa que parou de pecar, feito 
impossível nesta vida, mas alguém levado a perceber qual o seu verdadeiro estado 
espiritual e que confia na justiça de Cristo para sua salvação. Lutero defendeu essa ideia 
com energia em seus comentários sobre Gálatas 3.6, que resumem muito bem seu 
ensinamento: 
 
O cristão é justo e pecador ao mesmo tempo (simul iustus et peccator), santo e profano, 
inimigo de Deus e filho de Deus. Só aqueles que compreendem o verdadeiro significado 
da justificação entenderão esse aparente paradoxo. 
 
“O verdadeiro significado da justificação” deveria agora ser o campo de batalha e a 
causa de divisão irremediável entre os seguidores de Lutero e os que permaneceram 
leais a Roma. Os protestantes do século 16 se apresentavam em diferentes formas e 
tamanhos, mas neste ponto todos estavam concordes. Quando as autoridades romanas 
enfim se reuniram para decidir o que fazer acerca deles, a justificação foi um dos 
primeiros assuntos ao qual voltaram a atenção, desse modo emprestando credibilidade 
adicional à afirmação de Lutero de que essa doutrina afirmaria ou quebraria a igreja. Em 
1545, o papa convocou a reunião de um concílio em Trento, cidade italiana nos 
domínios do santo imperador romano, por isso considerada território “neutro”. Em sua 
sexta sessão (de 13 de janeiro de 1547), quase um ano após a morte de Lutero, o 
concílio emitiu um longo decreto acerca da justificação, deixando abundantemente clara 
sua posição no que dizia respeito aos protestantes. 
 Em alguns aspectos, o concílio de Trento concordou com Lutero. Excomungou 
qualquer um que dissesse ser possível a justificação pelas próprias obras, ou que 
afirmasse que as pessoas podiam escolher ser salvas ou amar a Deus sem o auxílio da 
graça de Deus (Cânones 1-3). Dito isso, no entanto, ele então negou os elementos-chave 
do ensinamento de Lutero. Afirmou que a graça de Deus era concedida de modo a 
capacitar a pessoa a exercitar seu livre-arbítrio cooperando com ele (Deus) com o 
intuito de obter a justificação e rejeitou especificamente o conceito de justiça “passiva” 
(Cânone 4). A partir disso, prosseguiu rejeitando a subordinação da vontade e a crença 
protestante de que as boas obras realizadas antes da justificação são pecaminosas por 
natureza (Cânones 5,7). A ideia de que só a fé justificava o perverso foi condenada, bem 
como a alegação de Lutero de que só pela justiça de Cristo podemos ser justificados(Cânones 9-14). Além disso, o concílio de Trento negou que qualquer pessoa pudesse 
ter certeza da salvação baseada na justificação só pela fé e rejeitou o argumento de 
Lutero de que inclusive aqueles que estão justificados e em estado de graça não podem 
satisfazer os mandamentos divinos (Cânones 15-18). 
 Do ponto de vista do concílio de Trento, unir-se a Cristo não era ser salvo de 
uma vez por todas, mas ser liberto para cooperar com ele no pagamento das penas 
incorridas pelo pecado tanto antes quanto depois do recebimento da graça. Desse modo, 
o concílio validou e reforçou o sistema penitenciário tradicional que estivera debaixo de 
forte ataque dos protestantes e fechou a porta para qualquer reforma da igreja que a 
levasse em uma direção luterana. Lutero entendia que mudar para a doutrina da 
justificação pela fé seria mudar também a igreja, o que a princípio ele não quis fazer e 
não considerou ser necessário. Durante algum tempo continuou a acreditar que a igreja 
romana era o corpo de Cristo, que só operava em e por meio dela, e muito lentamente 
ele e seus seguidores começaram a entender que o corpo de Cristo não se encontrava na 
igreja de Roma conforme existente então. 
 Lutero morreu bem quando o concílio estava começando e, por isso, nunca teve 
a oportunidade de lhe responder. Mas a situação foi diferente com a geração seguinte, e 
nas obras de João Calvino encontramos toda a questão da justificação exposta de modo 
claro, conciso e lógico. Calvino estabeleceu uma distinção clara entre a obra de Cristo, 
efetivada para a salvação dos eleitos pelo sacrifício que ele apresentara ao Pai, e a obra 
do Espírito Santo, por quem os crentes são unidos a Cristo. Em especial, Calvino 
ressaltou que o Espírito Santo vem para os crentes em e por meio de Cristo, a quem foi 
dado em seu ofício como mediador da nova aliança. Em outras palavras, o Espírito 
Santo vem para os crentes não apenas como o Espírito do Filho de Deus, mas também 
como o Espírito do homem Jesus Cristo, em quem habita “de modo especial, a fim de 
que pudesse nos separar do mundo e a ele nos unir na esperança de uma herança eterna” 
(Institutas, 3.1.12). Calvino declarou isso de maneira bastante explícita quando 
escreveu: 
 
O Espírito é chamado de Espírito de Cristo, não só devido ao fato de o Verbo eterno de 
Deus estar unido ao Pai e ao Espírito, mas também em virtude de seu ofício de 
mediador, porque se não tivesse sido dotado da energia do Espírito, teria vindo a nós em 
vão (Institutas, 3.1.12). 
 
 Calvino prosseguiu então dizendo-nos que conferir fé aos crentes era a obra 
primeira e mais importante do Espírito. Citando diversas passagens do Novo 
Testamento que sustentam essa visão, ele culminou sua exposição com uma rápida 
discussão das palavras de Cristo aos discípulos antes da crucificação, quando prometeu 
lhes enviar “o Espírito da verdade, o qual o mundo não pode receber...” (Jo 14.17). 
 Após discursar longo tempo sobre a natureza da fé como um dom divino e de 
refutar diversos erros que se haviam imiscuído no ensinamento da igreja medieval, 
Calvino enfim chegou à questão central da justificação, pela qual os capítulos sobre fé 
foram evidente preparação. Em oito capítulos substanciais, seguidos por um adicional 
sobre a liberdade cristã, ele expôs a doutrina da justificação só pela fé, ignorando as 
objeções levantadas contra o ensino de Lutero pelo concílio de Trento e se 
concentrando, em vez disso, no falso ensinamento de Andreas Osiander, teólogo 
luterano que, nas palavras de Calvino, ensinava “que não somos justificados por mera 
graça do mediador, e que a justiça não nos é simples ou inteiramente oferecida em sua 
pessoa, mas que somos feitos participantes da justiça divina quando Deus se une a nós 
em sua essência” (Institutas, 3.11.5). Calvino, acompanhado de Melâncton e outros 
teólogos luteranos, opôs-se a Osiander baseado em que ele distorcia o que o Novo 
Testamento ensinava sobre a obra do Espírito Santo na vida do crente. Utilizando a 
imagem do sol, que ao mesmo tempo é luz e calor, Calvino argumentou que assim como 
não podemos dizer que a Terra é aquecida pela luz do sol ou iluminada por seu calor, 
tampouco podemos confundir os dois aspectos da graça de Deus em operação em nossa 
vida. Justificação e santificação são inseparáveis, mas não idênticas. O Pai nos aceita 
em sua presença graças à intercessão do Filho, nosso mediador, mas em seguida nos dá 
seu Espírito de adoção a fim de que possamos ser re-formados à sua imagem (Institutas, 
3.11.6). 
 O erro de Osiander, na visão de Calvino, ocorreu devido a um entendimento 
equivocado da fé, que é o meio indicado para um fim, qual seja, a união com Cristo, 
mas que não deve ser confundido com o fim propriamente dito. Calvino comparava a fé 
a um vaso de barro em que se deposita ouro (a justificação) — não é a fé, sempre frágil 
e inadequada, que conta, mas o dom que ela traz, que é nosso real tesouro e salvação 
(Institutas, 3.11.7). O vaso de barro em que o tesouro é encerrado representa, antes de 
mais nada, a natureza humana do Filho encarnado e, em segundo lugar, nós que 
partilhamos dessa natureza humana. Jesus foi feito justo por nós não em função de sua 
divindade, mas porque sua natureza humana foi transformada pela presença residente de 
Deus. Se fosse justo em razão de sua natureza divina ele não seria nosso Salvador, pois 
seríamos incapazes de partilhar dessa justiça de qualquer maneira. Mas como a justiça 
divina foi imputada à sua natureza humana, assim também ela nos é imputada pela 
presença residente do Espírito Santo. Permanecemos vasos de barro e jamais podemos 
ser qualquer outra coisa além disso, mas o Espírito divino no interior desses vasos opera 
seu poder de regeneração em nós, de modo que nos tornamos, pela graça, algo que 
jamais poderíamos ser (ou nos tornar) por natureza. Após uma longa discussão desse 
assunto, Calvino resumiu tudo como segue: 
 
Quando Deus nos reconcilia consigo pela intervenção da justiça de Cristo, e conferindo 
a nós o perdão gratuito dos pecados, considera-nos como justos, sua bondade se associa 
simultaneamente à misericórdia, de modo que ele habita em nós por seu Espírito Santo, 
por cuja obra os desejos da nossa carne são todos os dias mortificados e nós, 
santificados, o que significa que somos consagrados ao Senhor para a pureza de vida e 
nosso coração é treinado para obedecer a lei (Institutas, 3.14.9). 
 
Calvino contrapôs isso com o ensino dos escolásticos medievais, os quais agrupava 
como uma coisa só. Começou dizendo não haver nenhuma diferença entre eles e os 
reformados no que diz respeito ao princípio básico, uma vez que ambos concordam que 
os pecadores são libertos gratuitamente da condenação e recebem justificação por meio 
do perdão de seus pecados. Mas ele prosseguiu a fim de chamar a atenção para o fato de 
que: 
 
... debaixo do termo “justificação” os escolásticos incluem a renovação pela qual o 
Espírito nos conforma de novo para a obediência à lei, e ao descrever a justiça do 
homem regenerado, eles mantêm que estando ele reconciliado com Deus em Cristo, é 
considerado justo devido a suas boas obras, e aceito [por Deus] com base nisso 
(Institutas, 3.14.11). 
 
 Dessa maneira sutil, os escolásticos transferiram a obra do Cristo assentado à 
direita do Pai (como nosso mediador) para a obra do Espírito Santo residente em nosso 
coração pela fé, desse modo tornando nossa salvação dependente não da perfeita 
mediação de Cristo mas do recebimento imperfeito de poder espiritual. Isso nada mais 
foi que dizer que a perdemos por completo, uma vez que nossa resposta inadequada 
jamais poderia satisfazer as exigências da justiça divina (Institutas, 3.11.12,13). Calvino 
encerrou a discussão sobre a justificação com chave de ouro por meio de um capítulo 
sobre a liberdade cristã, a qual ele admitiu que estava implícita em tudo que já dissera 
sobre o assunto, mas por sentir que ela se baseava em determinados princípios, ele 
precisava colocar tudo em um só lugarem nome da clareza. Em momento algum ele 
mencionou o Espírito Santo pelo nome nesse resumo, mas a leitura deixa evidente que o 
capítulo inteiro pressupunha a presença do Espírito habitando o coração do crente. 
Como Calvino exprimiu a questão: 
 
Deve-se observar com grande cuidado que a liberdade cristã é em todos os aspectos uma 
questão espiritual, que consiste em dar paz a consciências trepidantes, estejam elas 
ansiosas e aborrecidas para saber se obtiveram o perdão dos pecados, ou se suas obras 
imperfeitas [...] são agradáveis a Deus, ou se estão preocupadas em fazer coisas que não 
importam nem em um sentido, nem no outro (Institutas, 3.19.9) 
 
 Vemos aqui o que para Calvino era fundamental — o papel da consciência na 
formação da vida cristã. Em questões espirituais, a consciência é liberta da necessidade 
de obedecer o padrão exterior da lei, pois é impossível fazer por merecer a salvação 
pelas obras. Mas nas coisas temporais, o crente está por sua consciência a obedecer as 
leis do Estado, pois o Estado foi estabelecido por Deus como governo civil. Nenhum 
cristão tinha o direito de apelar para sua liberdade espiritual como desculpa para 
infringir as leis que promovem a paz, a ordem e o bom governo na Terra (Institutas, 
3.19.5). 
 Calvino definiu a consciência como conhecimento fortalecido pela convicção. O 
crente é alguém que sabe que é certo em termos intelectuais (o que Calvino chamou de 
“ciência”), mas que também está convencido pelo Espírito de Deus de que deve fazer o 
que é certo e buscar perdão para seu pecado, se falhar. Como até a pessoa mais dedicada 
à lei deixará de alcançar a perfeição, a consciência age como um cão de guarda 
espiritual a policiar o comportamento do crente, acusando-o de não atingir o objetivo e 
levando-o para Cristo em busca de reconciliação e justificação. É a obra suprema do 
Espírito Santo, que dá testemunho ao nosso espírito de que somos filhos de Deus (Rm 
8.16). Foi também o alicerce sobre o qual a próxima geração de teólogos reformados, 
em particular os puritanos, haveria de construir seu próprio ensino distinto acerca da 
certeza da salvação e de se ter paz com Deus.

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