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Estado de Direito e direito de resistência

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Estado de Direito e direito de resistência. 
É verdade que a partir da instauração do Estado de Direito, nos tempos modernos, se imaginou que esse problema já não mais suscitasse maior interesse.
O Estado de Direito, dentro da experiência político-jurídica do Ocidente moderno, atravessou diferentes etapas transformativas, mas seu significado permanece fundamentalmente intacto, correspondendo à ideia de uma ordem política regida pelo Direito e nele baseada. 
Assim, entendemos que o conceito de Estado de Direito não se define por via meramente formal, isto é, pelo aspecto correspondente à legalidade, é necessária a presença de uma efetiva legitimidade que fundamente a ação estatal, bem como, de valores jurídicos e sociais que realmente plenifiquem, na ordem política, a atuação dos poderes governamentais. 
Portanto, o questionamento da legitimidade do direito de resistência encontra ressonância em Estados que pretendem ser de "direito".  De fato, os freios e contrapesos do Estado democrático contemporâneo, sobretudo no que concerne ao controle da constitucionalidade das leis, oferecido pelo Estado, institucionalizaram na ótica de BURDEAU, várias sanções jurídicas contra a opressão. 
Contra as leis injustas, não faltam meios constitucionais para neutralizá-las. Assim, o habeas corpus, o mandado de segurança, o mandado de injunção, bem como o próprio controle de constitucionalidade, constituem instrumentos garantidores da cidadania, combatendo as injustiças da lei. No caso de isso não bastar, há ainda, para obviar a opressão, o impeachment, instituto adequado para afastar a autoridade máxima do Poder Executivo. Entretanto, mesmo com tais instrumentos valiosos, eles se mostram inoperantes em determinadas circunstâncias excepcionais em países onde as desigualdades sociais são exacerbadas. 
O problema da resistência à opressão ocupa no domínio da Teoria Geral do Estado; não só pela larga experiência política que lhe possibilitou a História, como pelas relevantes e múltiplas questões que dele derivam e a ele convergem. Como diz BURDEAU, as sanções estabelecidas pelo direito positivo mostram-se insuficientes. Das deficiências sistêmicas da própria dogmática surge, eventualmente, a necessidade de mecanismos excepcionais que, solucionando incongruências relevantes, mantém a própria organicidade do sistema. 
O problema da resistência não perde a oportunidade: o abuso de poder é fruto de contingência humana, da fragilidade da natureza do próprio homem. Se a tirania pode partir tanto de uma só pessoa, como de um grupo de pessoas, neste último caso é sempre mais difícil de ser corrigida e extirpada. 
Hoje, ainda pode aplicar-se o que já dizia há quarenta anos passados JOÃO C. DE OLIVEIRA TORRES: "o dinheiro e a propaganda permitem que qualquer um se faça eleger e consiga impor a sua vontade ao Povo. O resultado de tudo isto é que o mundo vive sob ameaça de tiranias por parte de grupos minoritários, falando em nome de toda a comunidade nacional". 
Saber se há o direito de resistência e quais são os limites e o titular desse direito é problema dos mais relevantes, porque está envolvido diretamente com os superiores interesses do Povo e com o funcionamento da própria dogmática jurídica. 
Dentro de caráter, tanto quanto possível, científico e antidemagógico, será o assunto apreciado, aqui sob o ponto de vista filosófico, político e jurídico, inclusive à luz do direito positivo moderno e dos imperativos constitucionais correlacionados com a matéria. 
Demarcaremos as diretrizes que nos parecem fundamentais ao equacionamento do assunto, buscando evitar a instabilidade das instituições e a arbitrariedade dos governantes. 
2.1. O chamado direito de resistência como resultante natural da insuficiência das sanções jurídicas institucionalizadas. 
Frequentemente as sanções jurídicas postas contra o abuso do Poder não se apresentam suficientes para conter a injustiça da lei ou dos governantes, pois estes, quando extrapolam os naturais limites, muitas vezes não podem ser contidos por normas superiores que, eventualmente eles próprios desrespeitam. 
Nesse sentido, ressalte-se a indagação de COLUCIO SALUTATI: "Mas o problema que sobretudo nos interessa discutir é se é lícito insurgir-se contra o senhor ou o príncipe que, ainda que tendo o pleno direito de governar, tenha por soberba começado a abusar do poder".
CANOTILHO, na conhecida obra Direito Constitucional, ensina que um dos MEIOS DE DEFESA NÃO JURISDICIONAL é o direito de resistência, verbis: "O direito de resistência é a última “'ratio” do cidadão ofendido nos seus direitos, liberdades e garantias, por atos do poder público ou por ações de entidades privadas". 
Desse modo, o constitucionalista português chancela que os "tradicionais" meios de proteção dos direitos fundamentais, muitas vezes não são suficientes para a garantia desses direitos, surgindo à necessidade de utilização de mecanismos extravagantes tendo em vista a insuficiência das sanções jurídicas pré-postas. 
Em razão do abuso de poder, malgrado a própria dogmática, reconhece-se, aos governados, em certas condições, a recusa da obediência. 
2.2. Delimitação do chamado direito de resistência: características que o distinguem do direito de revolução. 
Pelo direito de resistência rebelam-se os indivíduos contra as chamadas leis injustas, concretizando-se a repulsa de um preceito particular ou de um conjunto de prescrições em discordância com a lei moral. De modo genérico, a resistência à lei injusta é de iniciativa individual ou de um grupo limitado. 
Mediante tal direito, decorrente da delegação de poderes deferida ao Estado, concretiza-se a revolta contra a violação pelos governantes da ideia de direito de que procede ao Poder. Nesse direito, não há a proposta de ruptura institucional, mas sim uma provocação para modificação das políticas de governo, como ocorre com o Movimento dos Sem Terra (MST), que de forma indireta, foi objeto de análise do Acórdão anteriormente analisado. 
Pela revolução, ao contrário, concretiza-se a vontade de estabelecer uma ordem nova, em face da falta de eco da ordem vigente na consciência jurídica dos membros da coletividade. 
Apesar dos muitos sentidos que possa ter a palavra revolução, sua essência para o presente trabalho consiste "em uma súbita e variável transição de uma situação política total a outra, especialmente de uma ordem ou sistema de direito público a outro".
Consoante doutrina o insigne publicista brasileiro PINTO FERREIRA: "O traço característico da revolução é, portanto, a mudança de estilo, ou por outra, a descontinuidade do conteúdo cultural. Não é essencial que ela se realize repentinamente e uno actu ou violenta e abruptamente. Não raro se trata de um processo de longa duração. Pode haver um golpe de Estado (ato único), mas o essencial é que a sociedade em seu conjunto sofra um revolvimento radical" 
Por sua vez ORTEGA Y GASSET acentua que a violência é requisito secundário para as verdadeiras revoluções, verbis: "A revolução não é a barricada, senão um estado de espírito. Este estado de espírito não se produz em qualquer tempo: como as frutas, tem sua estação". 
Como anota aquele brilhante pensador, as revoluções são sempre fruto das eras não tradicionais, das eras racionalistas. Por isso, "o filósofo, o intelectual anda sempre entre os bastidores revolucionários". Assim, na Idade Média, por amor à tradição, desconheceu-se o verdadeiro espírito revolucionário. O homem medieval, ao rebelar-se, "rebela-se contra os abusos dos senhores." O autêntico revolucionário, porém, "não se rebela contra os abusos, senão contra os usos"
HANS KELSEN, com sua famosa Teoria Pura do Direito, afirma que: "Uma revolução no sentido amplo da palavra, compreendendo também o golpe de Estado, é toda modificação ilegítima da Constituição, isto é, toda modificação da Constituição, ou a sua substituição por uma outra, não operada segundo as determinações da mesma Constituição".
Segundo o autor, pouco importa que a modificação da situação jurídica seja produzida através do emprego da forçadirigida contra o governo legítimo ou pelos membros desse governo, através de movimento de massas populares ou de pequeno grupo de indivíduos. Decisivo é o fato de haja uma modificação não convencional da Constituição vigente. 
Diz textualmente KELSEN: "Com efeito, o imediato fundamento de validade das normas jurídicas recebidas sob a nova Constituição, revolucionariamente estabelecida, já não pode ser a antiga Constituição, que foi anulada, mas apenas o pode ser a nova. O conteúdo destas normas permanece, na verdade, o mesmo, mas o seu fundamento de validade de toda a ordem mudou".
Segundo o autor, se a revolução não fosse bem sucedida, se a Constituição revolucionária não se tivesse tornado eficaz, se os órgãos por ela previstos não tivessem ditado quaisquer leis, mas se, pelo contrário, a antiga Constituição tivesse permanecido eficaz, não haveria qualquer motivo para pressupor nova norma fundamental no lugar da antiga. Logo, a revolução não seria interpretada como processo produtor de Direito novo, mas - segundo a antiga Constituição e a lei penal que sobre ela se funda e que se considera ainda válida - como crime de alta traição. 
Ao contrário da revolução, a resistência não se dirige contra a comunidade política ou contra sua forma; dirige-se somente, contra o abuso do poder, podendo, então, realiza-se sem que ocorra a ruptura institucional. 
Dessas duas expressões progressivas de recusa de obediência dos governados, vamos focalizar, somente, o direito de resistência. 
Apesar de individual em seu fundamento, a resistência à opressão é tipicamente coletiva por seu exercício. Desde que uma parte pelo menos do povo não tenha um determinado governo por opressor, não há falar em opressão, no sentido político do termo. 
Contudo, a opressão não se conceitua in abstracto, mas sempre com correlação à ideia de direito; implica, por isso, em julgamentos individuais, necessários, em sua origem, para motivar a resistência. 
O cidadão que resiste à autoridade não é sempre um mero rebelde. Tem muitas vezes o sentido mais elevado da ordem. Não desobedece por desobedecer. Desobedece para alcançar o respeito e a harmonia da ordem que julga violada. 
Se, de fato, de acordo com a fórmula clássica, "os reis são feitos para os povos e não os povos para os reis", há de tornar-se legítima a resistência contra o abuso e o arbítrio dos governantes quando estes desrespeitem a ordem jurídica que se tornou o fundamento da própria vida coletiva. 
O ato do que resiste à opressão é, por isso mesmo, sobretudo, um ato de julgamento, de julgamento que os cidadãos fazem dos governantes ou das políticas públicas desenvolvidas por estes. Aliás, o valor da admissibilidade da resistência não está tanto na prerrogativa que os governados podem invocar para desobedecer quanto, sobretudo, como diz BURDEAU, no julgamento que estão autorizados a fazer com relação aos governantes.
No fundo do conceito político da resistência - como diz LOJENDIO - duas ideias cardeais gravitam: "1ª) a concepção da lei injusta, e 2ª) o princípio da mediação do Estado e da retenção última da soberania pelo povo."

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