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Panorama Cultural de Literatura Brasileira Mitizi Gomes 1 Unidade 1 A CONDIÇÃO COLONIAL E O BARROCO NO BRASIL Mitizi Gomes Caro(a) aluno(a), o objetivo desta unidade é entender os relatos dos viajantes e colonizadores como uma forma de dar a conhecer usos e costumes dos habitantes da nova terra para o Velho Mundo, bem como ver o Barroco como uma manifestação literária e cultural fundamentada existente no Brasil no período colonial. 1.1 Os Relatos dos viajantes Minha tenção não foi outra neste sumário (discreto e curioso leitor) senão denunciar em breves palavras a fertilidade e abundância da terra do Brasil, para que esta fama venha a notícia de muitas pessoas que nestes Reinos vivem com pobreza, e não duvidem escolhê-la para seu remédio; porque a mesma terra é tão natural e favorável aos estranhos, que a todos agasalha e convida com remédio por pobres e desamparados que sejam. Pero de Magalhães Gândavo, “Tratado de Terra do Brasil” Para falarmos do período do nascimento da produção cultural brasileira, é necessário abordar, brevemente, os relatos dos viajantes conquistadores das Américas. Conhecemos a “certidão de nascimento” do Brasil, a carta que Pero Vaz de Caminha – escrivão mor da frota de Cabral – escreveu para o rei de Portugal, Dom Manuel, mas nem sempre paramos para compará- la com as demais produções escritas dos demais conquistadores e viajantes. Nelas, podemos entender a forma como os conquistadores e cronistas viam o povo habitante do Novo Mundo, já que ali estão registrados os primeiros contatos entre os dois povos de culturas tão diferentes. Para compor esse quadro, podemos citar mais relatos de conquistadores, tais como os de Cristóvão Colombo, de Américo Vespúcio, de Jean de Léry, de Gândavo, de Hans Staden1, que acabam se complementando, ainda que sem conhecimento das escritas uns dos outros. A partir da análise dos textos escritos por eles, é possível detectar uma série de pontos em comum, o que podemos atribuir à ideologia da época. Nesse sentido, veremos que tanto Caminha quanto os demais aqui citados abordaram, seja em cartas, seja em diários, pontos convergentes que nos auxiliam na leitura e análise dos relatos maravilhosos. As narrativas de viagem, segundo Heloísa Reichel2, são fontes utilizadas para pesquisa pela historiografia por oferecerem descrições sobre os aspectos da vida privada dos habitantes, dos lugares visitados pelos viajantes, bem como da cultura e da sociedade. Através de tais relatos, recebemos informações sobre o cotidiano, a alimentação, o lazer e a sociedade dos nativos, além disso, podemos perceber no discurso de cada um a ideologia dominante de uma época específica – qual seja, a do período das grandes navegações. Quando nasceu o descobridor da América, em Gênova, no ano de 1451, muitas descobertas marítimas já haviam sido feitas, inclusive da Ilha da Madeira, das Canárias e dos Açores, e os avanços portugueses na costa Africana eram significativos. Aos vinte e dois anos de 1 Além dos relatos desses colonizadores citados, podemos apontar outros viajantes que vieram para o Novo Mundo e registraram suas impressões. São eles: Cabeza de Vaca, Hernán Cortez, Antonio Pigafetta, Frei Bartolomé de Las Casas. 2 REICHEL, Heloísa Jochims. Relatos de viagens como fonte histórica para estudo de conflitos étnicos na região platina - séc. XIX. In: PRATT, Mary Louise [et al]. Literatura & história: perspectivas e convergências. Bauru, SP: EDUSC, 1999. Panorama Cultural de Literatura Brasileira Mitizi Gomes 2 idade, Colombo era comandante de um navio e, poucos anos mais tarde, marcou sua vida com navegações para diferentes localidades. Em 1483, Colombo, em Portugal, iniciou a campanha para atingir a Ásia pela rota Ocidente, mas seu projeto fora rejeitado depois de quatro anos de estudo, pois os Teólogos afirmavam que a Terra era plana. Durante as negociações entre Colombo e o rei Dom João II, Bartolomeu Dias dobrou o Cabo da Boa Esperança e abriu o caminho para as Índias pela rota do Oriente. Logo, Cristóvão deixou Lisboa. Com a expulsão dos mouros da Espanha, a rainha, entusiasmada, permitiu a primeira expedição de Colombo, que partiu de Palos no dia 3 de agosto de 1492 e atingiu o arquipélago das Bahamas em 12 de outubro do mesmo ano. Américo Vespúcio nasceu em Florença em 1451, era cartógrafo, astrônomo e piloto de navegação. Das quatro viagens feitas por ele com intuito exploratório, em três esteve em terras brasileiras, cujas peculiaridades ele relata em suas cartas. As correspondências do explorador geram polêmica quanto a sua autenticidade, mas alguns estudiosos afirmam ser verdadeiras as informações presentes por existirem os lugares descritos. Américo Vespúcio3 não reivindica a descoberta da América para ele, pois, em sua carta referente à segunda viagem, faz menção a Cristóvão Colombo e à descoberta da ilha Espanhola: Depois de navegar mais de 700 léguas, e necessitados de mantimentos e reparos nos navios, resolvem ir para a Espanhola, que é aquela que descobriu o Almirante Colombo seis anos atrás […], isso porque habitada por Cristãos […]. (VESPÚCIO, 1984, p.60) Das origens de Caminha, pouco se sabe, apenas que tinha em torno de 40 anos de idade e que fora nomeado escrivão Mor da frota de Cabral. Além disso, sabe-se que, ao final da carta, solicita ao Rei a volta de seu genro degredado, Jorge de Osório, da Ilha se São Tomé. Os relatos dos exploradores aproximam a história da literatura, pois o conhecimento real é modificado pelas imagens mentais dos escritores, mostrando-se através da linguagem que estes utilizam. Essa linguagem usada pelos cronistas é carregada de subjetividade e constitui-se de uma reinvenção da realidade. O olhar particular de cada um constrói imagens que se objetivam pela representação do real, as quais estão a serviço de componentes ideológicos apoiados em equipamentos culturais trazidos consigo. A forma do relato dos viajantes está ligada à ideologia expansionista e colonizadora e nem sempre se constitui como a única realidade. Se os colonizados relatassem o processo, certamente enfocariam e dariam um rumo diferente aos acontecimentos, mas os relatos que chegaram até nós pertencem aos colonizadores e estão cravejados de tais ideologias. Para refletir... “Enquanto nos faziam o relato éramos atacados por grande quantidade de pedras, lançadas por também grande quantidade de índios que nos cercavam. Tentamos conversar com eles com o testemunho do escrivão, mas como não paravam de nos atacar, tratamos de nos defender como podíamos. Eram mais de cem mil índios que lutaram conosco até uma hora antes do pôr-do-sol. Com seis escopetas, quarenta balistas e uma meia dezena de outros tiros, além de treze cavalos, consegui fazer muitos danos neles sem sofrer nada além do cansaço da luta e da fome. Até parece que foi Deus que lutou por nós, tamanha era a multidão que nos cercava e sua disposição para a luta.” (CORTEZ, Hernán. O fim de Montezuma: relatos da conquista do México. Porto Alegre: L&PM, 1999, p.16) 3 VESPÚCIO, Américo. Novo mundo: cartas de viagens e descobertas. Porto Alegre: L&PM, 1984. Panorama Cultural de Literatura Brasileira Mitizi Gomes 3 Esse trecho faz parte dos relatos de Cortez, o conquistador do México, e está presente na segunda carta enviada ao imperador Carlos I da Espanha e V da Alemanha, em 1519. Pesquise sobre como se deu a colonização do México. O diário das expedições de Cristóvão Colombo4, as cartas de Américo Vespúcio bem como a Carta de Caminha5 possuem a linguagem carregada das marcas do colonizador. As palavras utilizadas mostram uma preocupação constante com a catequização, a busca de riquezas, a exploração e a tomada de terras. Outra característica apontada é a falha na linguagem, a pobreza do léxico de quem descrevea fauna e a flora, bem como os habitantes e seus costumes. Para tanto, eles precisam constantemente realizar comparações, como vemos tão nitidamente nos relatos do francês Jean de Léry. Os trechos que se seguem foram extraídos das cartas de Vespúcio, do diário de Colombo e da Carta de Caminha. Nos referidos textos, é possível constatar o quanto a ideologia da época está em sintonia. O desejo da descoberta está associado à dominação dos povos e, ao perceberem que os índios não eram cristãos, os exploradores tomavam suas coisas, suas vidas em nome de Deus e do rei, sem que houvesse qualquer pesar nisso. Os relatos são feitos detalhadamente, sendo que o destinatário das cartas, no caso de Vespúcio, é conivente com os rumos dos acontecimentos. A ideologia cristã está entranhada no discurso dos relatores, pois há constantemente súplicas de bom desempenho a Deus e agradecimentos em relação à vitória em batalhas. Queira nosso Senhor dar-me saúde, e boa viagem […]. (VESPÚCIO, 1984, p.62) […] naveguei até […] as Ilhas Canárias, e depois de ter me provido de todas as coisas necessárias, feitas as nossas orações e súplicas […]. (idem, p.49) Depois de navegar mais de 700 léguas, e necessitados de mantimentos e reparos nos navios, resolvem ir para a Espanhola, que é aquela que descobriu o Almirante Colombo seis anos atrás […], isso porque habitada por Cristãos […]. (idem, p.60) “Acabada a missa, desvestiu-se o padre e subiu a uma cadeira alta, com todos nós espalhados pelo areal. E pegou uma solene e proveitosa pregação, da história do Evangelho, ao fim da qual tratou de nossa vinda e do achamento desta terra, referindo à luz, sob cuja obediência viemos, palavras que foram muito a propósito e que provocaram muita devoção. (CAMINHA, 1996, p.83) Mesmo que primeiramente não percebamos o intuito evangelizador, notamos que há uma ideia de superioridade religiosa, pois, no episódio em que morreram muitos índios na travessia, não há pesar no relato, já que Vespúcio fala como de algo comum - ao passo que, no que se refere à morte de alguns da tripulação, há o tom de lamento. Chegados à Cádiz, vendemos muitos escravos, que haviam 200 deles, e o resto até 232 tinham morrido no golfo; […] sobrou obra de 500 ducados, os quais se tiveram de repartir em 55 partes, e foi pouco aquilo que tocou a cada um; no entanto com a vida nos contentamos, e rendemos graças a Deus, que em toda 4 COLOMBO, Cristóvão. Diários da descoberta da América. Porto Alegre, L&PM, 1999. 5 CASTRO, Silvio. A carta de Pero Vaz de Caminha. Porto Alegre, L&PM, 1996. Panorama Cultural de Literatura Brasileira Mitizi Gomes 4 viagem de 57 homens Cristãos que éramos, não morreram exceto dois que mataram os Índios. (VESPÚCIO, 1984, p.61) Colombo também se refere a Deus constantemente, principalmente no que diz respeito ao pedido de proteção: O almirante encontrou muito prazer e consolo nas coisas que estava vendo e sentiu diminuir a angústia e o pesar que tinha com a perda da nau, percebendo que Nosso Senhor a havia feito encalhar ali a fim de que pudesse conhecer esse lugar. (p.103, 1ª viagem) Cheguei ao cabo de "Graças a Deus" e ali Nosso Senhor me concedeu vento e corrente propícios. (p.196, 4ª viagem) A evangelização também faz parte dos interesses de Colombo nas expedições, pois, ao afirmar que os habitantes "demonstraram grande amizade", percebeu que "eram pessoas que melhor se entregariam e converteriam à nossa fé pelo amor e não pela força" (1999, p.52). Há, em Colombo, o destaque dado à condição dos habitantes de não ter religião e de serem rapidamente domesticados: “Devem ser bons serviçais e habilidosos, pois noto que repetem logo o que a gente diz e creio que depressa se fariam cristãos, me pareceu que não tinham nenhuma religião.” (p.53,1ª viagem) Tal qual Colombo, Caminha aborda a questão da evangelização nos índios brasileiros: Parece-me gente de tal inocência que, se nós entendêssemos a sua fala e eles a nossa, seriam logo cristãos, visto que não têm nem entendem crença alguma, segundo as aparências. E, portanto, se os degredados que aqui hão de ficar aprenderem bem a sua fala e os entenderem, não duvido que eles, segundo a santa tenção de Vossa Alteza, se farão cristãos e hão de crer na nossa santa fé, à qual praza a Nosso Senhor que os traga, porque certamente esta gente é boa e de bela simplicidade. (CAMINHA, 1996, p.94) A descrição feita dos locais visitados pelos exploradores está ligada à idéia de que existia, em algum lugar distante daqueles em que viviam, o paraíso terreal, segundo as crendices do momento. A visão do paraíso está explícita na forma como descrevem a paisagem, os animais, as riquezas e, inclusive, a forma de vida dos nativos. Colombo, em sua primeira viagem, diz: Aqui tem grandes lagunas e, dentro delas e em volta, o arvoredo é uma maravilha, e aqui em toda a ilha está tudo verde e as folhagens lembram o mês de abril em Andaluzia; e o canto dos passarinhos dá vontade de nunca mais ir embora, e os bandos de papagaio chegam a escurecer o sol. (1996, p.64) Creiam-me, Vossa Majestade, que esta terra é a melhor e mais fértil, temperada, plana e boa que tem no mundo. (idem, p.62) Américo Vespúcio não faz um relato muito diferente do realizado por seu precursor, a não ser pelas características literárias que aparecem nestes trechos quase líricos, e a alusão direta ao paraíso terrestre: […] fomos à terra, e descobrimo-la tão cheia de árvores, que era coisa maravilhosa não somente a grandeza delas, mas o seu verdor, que jamais perdem as folhas, e o cheiro suave que saía, que são todas aromáticas, dava tanto conforto ao olfato, que grande recreio tiramos disto. (1984, p.50) Panorama Cultural de Literatura Brasileira Mitizi Gomes 5 O que aqui vi foi uma feíssima coisa de pássaros de diversas formas, e cores, e tantos papagaios, e de tantos tipos diversos, que era maravilhoso; alguns corados como carmim, outros verdes e corados, e cor de limão, e outros todos verdes, e outros negros, e encarnados, e o canto dos pássaros que estavam nas árvores era coisa tão suave e de tanta melodia, que nos aconteceu estarmos parados pela doçura deles. As suas árvores são de tanta beleza e de tanta suavidade que pensávamos estar no Paraíso terrestre […]. (idem, p.53) Os elementos literários de ambos os relatos estão ligados à imaginação e à tentativa de relatar o exótico para pessoas que teriam que apreender o visto apenas através do discurso escrito. Vespúcio chega a citar poetas para melhor exemplificar seu sentimento diante do novo. Não assinalei estrela que tivesse menos de dez graus de movimento ao redor do movimento [firmamento], de modo que não fiquei satisfeito em mim mesmo de nomear nenhuma […] e lembrei-me de um dito de nosso poeta Dante […] quando finge elevar-se deste hemisfério e encontrar-se no outro, querendo descrever o pólo antártico […]. (VESPÚCIO, 1984, p.54) A 15 léguas da terra firme, desembarcaram em outra ilha: encontramos uma povoação obra de 12 casas onde não encontramos exceto sete fêmeas, e de tão grande estatura, que não havia nenhuma que não fosse mais alta que eu um palmo e meio […], vieram 36 homens e entraram na casa onde estávamos bebendo e eram de tão alta estatura, que cada um deles era mais alto estando ajoelhados, que eu ereto. (idem, p.59) Muitas vezes, ao referirem-se às características dos habitantes, afirmam o exotismo de tal raça pelas características físicas e pelas diferentes línguas que possuíam; também ressaltam a condição que mostravam para o trabalho. Colombo, no primeiro contato com os índios, relatado na primeira viagem, ressalta suas características físicas. E todos os que vi eram jovens, nenhum com mais de trinta anos de idade: muito bem feitos, de corpos muitos bonitos e cara muito boa; os cabelos grossos, quase como o pêlo do rabo de cavalos, e curtos[…]. Eles se pintam de preto, e são da cor dos canários, nem negros nem brancos […]. (1999, p.52) Nesse ponto específico, os relatos de Vespúcio e os de Caminha não diferem dos de Colombo, visto que tentam descrever os nativos da forma mais fiel que o olhar pode captar, não conseguindo esconder a surpresa de ver como os índios andavam naturalmente nus. […] a primeira terra que encontramos ser habitada foi uma ilha […] vimos grande multidão na orla do mar que nos estava olhando como coisa de maravilha […] armamos as barcas e fomos a terra 22 homens bem armados; e a gente quando nos viu saltar à terra e conheceu que éramos gente desconforme da sua natureza, porque não têm barba nenhuma nem vestem vestimento nenhum assim os homens como as mulheres […] (VESPÚCIO, 1984, p.56) São gente de gentil disposição, e de bela estatura; vão desnudos de todos, as suas armas são armas com setas […] são gente esforçada, e de grande ânimo. (idem, p.56) Todos vão nus como nascem sem ter vergonha nenhuma, que se tudo se tivesse de contar de quanta pouca vergonha têm, seria entrar em coisa desonesta, e melhor é calar. (idem, p.57) Panorama Cultural de Literatura Brasileira Mitizi Gomes 6 A feição deles é parda, algo avermelhada; de bons rostos e bons narizes. Em geral são bem feitos. Andam nus, sem cobertura alguma. Não fazem o menor caso de cobrir ou mostrar suas vergonhas, e nisso são tão inocentes como quando mostram o rosto. (CAMINHA, 1999, p.79) Outro ponto que chamava a atenção dos conquistadores era a diversidade linguística encontrada no novo lugar. Vespúcio não deixou de registrar as diferentes línguas que conheceu durante as expedições. […] cada dia descobríamos uma infinidade de gente, e várias línguas (1984, p.58) […] encontrando continuamente gente brava, e uma infinidade de vezes combatemo-los, e prendemos deles cerca de 20, entre os quais havia 7 línguas, que não se entendiam uma a outra; diz-se que no mundo não existem mais do que 77 línguas, e eu digo que existem mais de 1000 que só as que eu ouvi são mais de 40. (idem, p.60) Além dos três conquistadores aqui brevemente expostos, não devemos esquecer de que outros nomes também passaram em terras brasileiras e registraram suas impressões. Dentre eles temos o francês Jean de Léry, que chegou ao Brasil em 1556 e aportou na Baía de Guanabara. Em seus escritos, destacamos um ponto que parece significativo, que diz respeito à forma como relata o que vê e o que ouve, pois sua percepção é mais perspicaz, parecendo menos carregada de subjetividade e menos preconceituosa. Ao relatar uma conversa que teve com um velho tupinambá sobre a importância que o pau-brasil adquiriu para os estrangeiros, de Léry nos mostra a visão do velho acerca das atitudes dos brancos de se submeterem a grandes desconfortos apenas para acumularem riquezas para os descendentes: “Mas os selvagens são grandes discursadores e costumam ir em qualquer assunto até o fim, por isso perguntou-me de novo: e quando morrem para quem fica o que deixam? - Para seus filhos se os têm, respondi; na falta dêstes para os irmãos ou parentes mais próximos. - Na verdade, continuou o velho, que, como vereis, não era nenhum tolo, agora vejo que vós outros maírs sois grandes loucos, pois atravessais o mar e sofreis grandes incômodos, como dizeis quando aqui chegais, e trabalhais tanto para amontoar riquezas para vossos filhos ou para aquêles que vos sobrevivem! Não será a terra que vos nutriu suficiente para alimentá-los também? Temos pais, mães e filhos a quem amamos; mas estamos certos de que depois da nossa morte a terra que nos nutriu também os nutrirá, por isso descansamos sem maiores cuidados”. (LÉRY, 2011, p.38) Dos escritos de Pero de Magalhães Gândavo, produzidos por volta de 1570 (mas publicados apenas no século XIX), principalmente no que se refere ao “Tratado de Terra do Brasil”, destacamos a naturalidade com que ele fala acerca da matança de índios pelos portugueses, e, ao mesmo tempo, como justifica essa ação pela própria condição da língua do nativo: “Havia muitos destes índios pela Costa junto das Capitanias, tudo enfim estava cheio deles quando começaram os portugueses a povoar a terra; mas porque os mesmos índios se alevantaram contra eles e faziam-lhes muitas traições, os governadores e capitães da terra destruíram-nos pouco a pouco e mataram muitos deles, outros fugiram para o sertão, e assim ficou a Costa despovoada Panorama Cultural de Literatura Brasileira Mitizi Gomes 7 de gentio ao longo das Capitanias. Junto delas ficaram alguns índios destes nas aldeias que são de paz, e amigos dos portugueses. A língua deste gentio toda pela Costa é uma, carece de três letras, convém a saber, não se acha nela F, nem L, nem R, coisa digna de espanto, porque assim não têm Fé, nem Lei, nem Rei; e desta maneira vivem sem Justiça e desordenadamente.” (GÂNDAVO, 2011, p.12) De acordo com Bosi (1997, p.15), os escritos de Gândavo, por seus intuitos de realizar “propaganda de imigração”, têm características descritivistas. Podemos perceber isso ao lermos as descrições que faz das capitanias e da forma como vê as potencialidades que a colônia oferece para quem for explorá-la. Segundo Bosi (1997, p.16), a respeito da obra de Gândavo, “o tom predominante é sóbrio e a sua simpleza vem de um espírito franco e atento ao que se lhe depara, sem apelo fácil a construções imaginárias”. O alemão Hans Staden6, com seu relato quase maravilhoso, nos mostra como escapou de ser devorado por uma tribo de índios antropófagos. O livro escrito e ilustrado em 1557, após a volta ao seu país, depois de duas viagens feitas ao Brasil, descreve o modo de vida dos habitantes da terra, bem como a fauna e a flora. Ao sair de Bremen para a Holanda, encontrou naus que iriam a Portugal. Ao chegar a Lisboa, decidiu ir para as Índias, mas acabou embarcando em uma nau com destino ao Brasil. A segunda viagem partiu de Sevilha, na Espanha, com destino ao Río de La Plata, província da América. Entretanto, antes de chegar ao destino, a embarcação naufragou em São Vicente, terras brasileiras. Nesse ínterim, Staden foi aprisionado pelos selvagens, junto com outros cristãos, os quais seriam todos comidos. Após narrar suas aventuras e de como conseguiu fugir de seu cativeiro, Staden ressalta que foi salvo pela graça divina de Nosso Senhor, já que era cristão. Quase em frente a minha cabana ficava a do chefe Tatamiri, possuidor de um cristão assado. Segundo seu costume, mandou preparar a beberagem, e para isso reuniram-se vários selvagens, cantando, dançando e divertindo-se muito. No dia seguinte prepararam e comeram a carne assada. Quanto à carne do outro, de Jerônimo, ficou por quase três semanas pendurada na cabana em que eu também vivia […] (STADEN, 1999, p.111) Ao lermos e observarmos cada relato de cada conquistador perceberemos que, conforme dito anteriormente, pouco se diferem. Entretanto, parecem complementares entre si, independentemente da nacionalidade do viajante em questão, pois o espanto com o novo causou impressões e desejos de divulgar ao mundo suas descobertas. E foi esse desejo de registrar cada detalhe e de relatar as novidades para os monarcas que financiavam e apoiavam as conquistas que fez com que tivéssemos hoje os documentos dessas primeiras impressões acerca do Novo Mundo. Mas, de todos os documentos citados, é a carta escrita por Caminha que consideramos o marco do “nascimento do Brasil”, bem como da cultura brasileira. ATIVIDADE 1 Após conhecer um pouco da ideologia dos viajantes dos séculos XV e XVI, faça um breve relato de 350 até 600 palavras acerca da forma como os colonizadores chegaram e visualizaram as terras americanas, a partir da apreciação da seguinte sentença: 6 STADEN, Hans. A verdadeira história dos selvagens, nus e ferozes devoradores de homens... Rio de Janeiro: Dantes,1999. Panorama Cultural de Literatura Brasileira Mitizi Gomes 8 A língua deste gentio toda pela Costa é uma, carece de três letras, convém a saber, não se acha nela F, nem L, nem R, coisa digna de espanto, porque assim não têm Fé, nem Lei, nem Rei; e desta maneira vivem sem Justiça e desordenadamente.” (GÂNDAVO, 2011, p.12) ATIVIDADE COMPLEMENTAR Assista ao filme “1492, A Conquista do Paraíso”, do diretor Ridley Scott, lançado em 1992, e avalie a forma como é construída a personagem Cristóvão Colombo frente ao descobrimento de terras americanas, e exponha no FÓRUM sua análise. 1.2 O Barroco no Brasil Mitizi Gomes “Neste mundo é mais rico o que mais rapa: Quem mais limpo se faz, tem mais carepa; Com sua língua, ao nobre o vil decepa: O velhaco maior sempre tem capa. Mostra o patife da nobreza o mapa: Quem tem mão de agarrar, ligeiro trepa; Quem menos falar pode, mais increpa: Quem dinheiro tiver, pode ser Papa.” Gregório de Matos. “As cousas do mundo” Antes de falarmos da produção literária no período colonial, vamos expor um pouco das discussões entre críticos e teóricos brasileiros. Para tanto, vamos resgatar a polêmica existente entre o confronto de ideias de Antonio Candido, Silviano Santiago e Haroldo de Campos. No Brasil, a literatura comparada já era praticada no final do século XIX. Dentre os teóricos que se destacaram na segunda metade do século XX (BITTENCOURT, 1996, p.58-73), cita-se Antonio Candido, Afranio Coutinho, Aderaldo Castello, Silviano Santiago e Haroldo de Campos. Antonio Candido afirma ser inevitável o confronto entre a literatura brasileira e as européias, visto que os historiadores literários do fim do século XIX e início do século XX tinham a comparação como prática, na tentativa de individualizar a literatura produzida no Brasil, bem como de detectar suas peculiaridades. Dessa forma, ao discutir aspectos importantes, como os conceitos de fonte e influência (já tratados por Antonio Candido), Haroldo de Campos aborda a situação da literatura brasileira frente à literatura de outros países. Nessa discussão, muito se fala sobre dependência cultural e econômica, sendo que, para dialogar com ele, somam-se outros críticos como Silviano Santiago e Roberto Schwarz. Evidentemente que, ao resgatar tal discussão, não podemos deixar de falar da relação existente entre o pensamento de Antonio Candido e a polêmica referida. Como reforça Sandra Nitrini, o “ponto de referência comum a todos é o pensamento de Antonio Candido, seja para contestá-lo, seja para concordar em parte, seja para inserir-se na sua tradição, de modo que ele se encontra no centro desse diálogo”. (NITRINI, 2000, p.211) Em tal contexto, Haroldo de Campos está na posição de contestador das ideias de Antonio Candido, que, ao executar o projeto de Formação da Literatura Brasileira, exclui o estudo do Barroco e inicia a história a partir do Arcadismo. A explicação dada pelo crítico está Panorama Cultural de Literatura Brasileira Mitizi Gomes 9 embasada no conceito de literatura como sistema, no qual os escritores têm consciência de sua atividade e da tradição que é formada por esse conjunto de elementos, os quais se somam a um público e a um veículo transmissor (tríade: autor-obra-público). O sistema (CANDIDO, 1981, p.24) pressupõe uma interação entre os elementos, sendo que, a inexistência de um o invalida, e, mesmo existindo obras de valor, a falta as transforma em manifestações isoladas (é o caso de alguns escritores importantes do Barroco que não contribuíram literariamente para o sistema – segundo Candido). Haroldo de Campos acredita que este projeto de composição da literatura nacional é falho, bem como a rotulação da literatura brasileira como braço da portuguesa é problemático. Ao caracterizar a produção nacional dessa forma, os antigos conceitos usados na literatura comparada de fonte e influência se fazem presentes e estabelecem uma relação hierárquica entre as culturas. Porém, se a relação entre as culturas é inevitável, as novas vertentes da literatura comparada afirmam que pode a cultura considerada inferior utilizar-se da outra para a reescritura. Silviano Santiago (1978, p.13-24) argumenta que a cultura inferiorizada pode extrapolar aquela que é seu modelo e construir algo original; e a que serviu de modelo pode rever-se em contraste com a outra. Ainda para Silviano (idem, p.11-28), o discurso latino-americano não é uma escrita pura, pois é contaminado pelo do europeu; porém, não devemos encarar a cultura americana como uma simples cópia, uma vez que a assimilação feita pelo escritor é consciente e questionadora da verdade instituída. E vai além, porque também questiona a dependência cultural da América, afirmando que a dominação deu-se de forma violenta e arbitrária. Para o crítico, a conquista do espaço da América Latina na cultura ocidental deve-se ao fato de ela ter se desviado da norma, destruindo conceitos importados. O fato de uma literatura apropriar-se de outras para existir é tratado como um movimento natural, visto que o cruzamento de discursos é inevitável e salutar. Para tanto, Haroldo de Campos traz à discussão a Antropofagia oswaldiana, que faz pensar o nacional relacionado dialógica e dialeticamente com o universal. Nessa relação, não há um processo de submissão, mas de transvaloração. A “Antropofagia” oswaldiana […] é o pensamento da devoração crítica do legado cultural universal, elaborado não a partir da perspectiva submissa e reconciliada do “bom selvagem” […], mas segundo o ponto de vista desabusado do “mau selvagem”, devorador de brancos, antropófago. Ela não envolve uma submissão (uma catequese), mas uma transculturação: melhor ainda, uma “transvaloração” […]. (CAMPOS, 1983, p.109) Ao afirmar que Gregório de Matos é o próprio antropófago, Haroldo lhe dá um caráter intertextual, lhe concede um lugar de destaque no painel da literatura brasileira, e contesta, veementemente, a postura de Antonio Candido. Ao explicitar a vida do poeta, Haroldo nada mais faz do que mostrar sua multifacetada atuação no cenário do qual participava. Contudo, lastima seu resgate tardio, mas não nega sua influência na sociedade em que viveu. Nesse contexto, a literatura latino-americana nunca será tributária da europeia, visto que o movimento de apropriação (transvaloração) é algo natural a qualquer produção. Transpondo para conceitos de literatura comparada, o autor apropria-se do discurso do outro e reescreve-o, criando um novo. Este novo só é possível porque o diálogo com o mundo que o cerca é inevitável, considerando-se que a obra está inserida em um contexto cultural que a constitui e que também é constituído por ela. É na percepção desses elementos que vamos construir a intertextualidade, tão cara à prática comparatista. Panorama Cultural de Literatura Brasileira Mitizi Gomes 10 Baseado nesse pensamento, Campos critica as posturas de Antonio Candido e Afrânio Coutinho frente à produção de uma história literária brasileira, sendo que, enquanto aquele subtrai o Barroco com argumentos sociológicos (já citados), este o resgata, porém com uma crítica estilístico-periodológica. O que encontra em comum entre os dois historiadores é a busca da “constituição do espírito (ou consciência) nacional” (CAMPOS, 1983, p.113). A utilização por Candido de um corpus com traços comuns para delinear a evolução da literatura brasileira, além de excluir produções do Barroco, demonstra que sua origem é simples, no entanto, Campos considera a obra de Gregório de Matos como adulta e formada, além de múltipla. O poeta barroco é utilizado para sustentar a tese da presença de uma literatura brasileira já no século XVI, uma vez que, ao ser sequestrado do Barroco brasileiro, este se torna inexistente. À guisa de conclusão, muitos são os pontos discutidos por Haroldo de Campos acerca da problemática da literatura brasileira e latino-americana,porém, um aspecto referente à literatura defendido por ele é a capacidade de recriação, muitas vezes a partir da própria tradição, o que é uma característica de produções pertencentes a sociedades economicamente dependentes. Grosso modo, do ponto de vista comparatista, qualquer literatura nacional é composta por diferentes leituras realizadas, o que parece uma assertiva por demais óbvia para se discutir uma evolução literária histórico-linear ou uma produção cultural dependente. 1.2.1 Gregório de Matos – Boca do Inferno Retábulo da capela-mor da Igreja de São Francisco em São João del-Rei – obra de Aleijadinho.7 Se pensarmos o Barroco em termos de manifestação literária, artística e cultural, poderemos concluir que foi um período bastante fértil para as artes em geral. No continente americano, ele chegou trazido pelos colonizadores e difundiu-se principalmente através da arte sacra, que se espalhava pelas igrejas que iam se erguendo ao longo dos séculos, até inícios do século XIX. Nas regiões mais ricas do Brasil, as obras possuíam maiores detalhes com relevos recobertos de camadas de ouro. Entretanto, em regiões mais pobres, fora do ciclo da cana-de-açúcar e da mineração, as obras eram mais modestas. Para refletirmos sobre as artes no Brasil, basta pensarmos nas obras de Aleijadinho (1738?-1814) e nas pinturas de Mestre Ataíde (1762-1830). Nelas, encontraremos a riqueza de detalhes, típica das produções do período. Ambos os artistas são expoentes no que diz respeito à produção artística do período colonial. Suas obras carregam em si o peso da estética, no que se refere às artes plásticas e à escultura. Nossa Senhora cercada de anjos músicos, no teto da igreja de São Francisco de Assis, Ouro Preto8 Em relação à produção literária, Vitor Manuel de Aguiar e Silva9 nos alerta que o Barroco não foi propriamente um fenômeno homogêneo na Europa. Suas várias feições são resultantes das diversidades culturais, sociais e 7 Disponível em: <http://pt.wikipedia.org/wiki/Ficheiro:SFrancis-SJdelRei2-CCBYSA.jpg> Acesso em: 02 de maio de 2011. 8 Disponível em: <http://pt.wikipedia.org/wiki/Mestre_Ata%C3%ADde> Acesso em: 02 de maio de 2011. 9 AGUIAR E SILVA, Vitor Manuel. Teoria da Literatura. Coimbra: Almedina, 2000, p.455. Panorama Cultural de Literatura Brasileira Mitizi Gomes 11 religiosas das diferentes regiões da Europa Ocidental. Aguiar e Silva realiza uma distinção entre o Maneirismo e o Barroco, sendo aquele a ponte, a transição, entre este e o Renascimento. Segundo o crítico português, O barroco é profundamente sensorial e naturalista, apela gozosamente para as sensações fruídas na variedade incessante do mundo físico […]; o barroco é uma arte acentuadamente realista e popular, animada de um poderoso ímpeto vital, comprazendo-se na sátira desbocada e galhofeira, dissolvendo deliberadamente a tradição poética petrarquista […]; o barroco caracteriza-se pela ostentação, pelo esplendor e pela proliferação dos elementos decorativos, pelo senso da magnificência que se revela em todas as suas manifestações, tanto nas festas de corte como nas cerimônias fúnebres […]; o barroco tende frequentemente para o ludismo e o divertimento […]. (2000, p.477-8) Ainda que apontemos características importantes que delineiam a estética barroca, podemos destacar temas comuns a ela. Tais temas apareciam já no maneirismo, mas é no barroco que adquirem suas formas mais expressivas. Entre esses elementos apontaremos: os temas do engano e do desengano da vida e da transitoriedade das coisas humanas; o gosto dos contrastes; a propensão para o surpreendente, a predileção pela agudeza e pelo concetti, pelas metáforas e pelas complicações verbais. (AGUIAR E SILVA, 2000, p.478) Muitos contrastes presentes nas obras produzidas nesse período estão fortemente ligados aos conflitos de toda a ordem, tais como sociais, políticas e religiosas. Os ares renascentistas que já se instauravam na sociedade foram abalados pela tentativa da restauração do teocentrismo medieval, através da Contra-Reforma religiosa – que teve em Portugal e Espanha seu terreno mais fértil. Assim, a sociedade adquire um estado de tensão que se reflete em todas as manifestações do homem. Nesse contexto, podemos apontar, por exemplo, as produções de Sor Juana Inês de La Cruz, no México, de Padre Antônio Vieira e de Gregório de Matos, no Brasil. As influências da produção de Góngora são nítidas na obra desses escritores tão diversos. Tanto nos sonetos de Sor Juana, como nos sermões de Vieira e nas poesias de Gregório de Matos, vamos encontrar as características mais próprias do Barroco. Para refletir... Pesquise quem foi Luis de Góngora. Busque informações sobre sua nacionalidade, sua vida e sua produção poética. No hay persona que hablar deje al necesitado en plaza; todo el mundo le es mordaza aunque él por señas se queje; que tiene cara de hereje, y aun fe la necesidad: ¡verdad! GÓNGORA, Luis de. Poemas. Disponível em: <http://www.uv.es/ivorra/Gongora/Romances/Verdad.htm> Acesso em: 08/05/2011. Panorama Cultural de Literatura Brasileira Mitizi Gomes 12 Gregório de Matos Guerra, também conhecido como Boca do Inferno (Bahia 1633 - Recife 1696), foi nosso maior expoente seiscentista. Sua obra é considerada a primeira a ter feições literárias na colônia, apesar de Bento Teixeira já ter escrito Prosopopéia, poema épico que cantava o donatário da capitania de Pernambuco (BOSI, 1997, p.36). Gregório retratou em seus poemas com tom satírico o ambiente político e social em que vivia no Brasil, mas paralelamente também compunha poesia com temática religiosa. Sua formação humanística provinha da Universidade de Coimbra, em Portugal, onde residiu por muito tempo. A produção literária de Gregório de Matos encerra em si o mais próprio da escrita barroca do período. No que concerne à produção de temática religiosa encontraremos o homem dividido entre a fé a vida mundana. Para Candido (2010, p.102), Gregório: Apesar de conhecido sobretudo pelas poesias burlescas, talvez seja nas religiosas que Gregório alcance a expressão mais alta, manifestando a obsessão com a morte, tão própria da sua época, e nele muito pungente, porque vem misturada à exuberância carnal e ao humorismo satírico, desbragados e saudáveis. A partir dessa afirmação de Candido, ao analisarmos as poesias que possuem essa temática, podemos inferir que suas tensões religiosas são latentes na linguagem que usa e na forma como contrasta as sensações e os argumentos impressos na poesia. Analisemos o soneto a seguir: A Christo N.S. Crucificado estando o poeta na última hora de sua vida Meu Deus, que estais pendente em um madeiro, Em cuja lei protesto viver, Em cuja santa lei hei de morrer Animoso, constante, firme, e inteiro. Neste lance, por ser o derradeiro, Pois vejo a minha vida anoitecer, É, meu Jesus, a hora de se ver A brandura de um Pai manso Cordeiro. Mui grande é vosso amor, e meu delito, Porém pode ter fim todo o pecar, E não o vosso amor, que é infinito. Esta razão me obriga a confiar, Que por mais que pequei, neste conflito Espero em vosso amor de me salvar.10 Ao lermos o soneto, não deixamos de perceber que o conflito do eu-lírico se traduz na forma como interpela Deus e como coloca nEle a responsabilidade de salvar a alma do fiel no leito de morte. Apesar da consciência acerca da vida de pecados cometidos, somente Deus, com seu infinito amor, é a esperança de salvação. A salvação depende mais de Deus do que do próprio indivíduo. 10 MATOS, Gregório de. Seleção de Obras Poéticas. Disponível em: <http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/bv000119.pdf> Acesso em: 16/01/2011. Panorama Cultural de Literatura Brasileira Mitizi Gomes 13 Em relaçãoao seu veio satírico, perceberemos que sua condição de poeta crítico, educado em outra cultura, mas residente em uma sociedade que gestava e fundamentava uma série de atitudes diferentes daquelas que considerava adequada à moral, possibilitou-lhe um olhar perscrutador sobre a constituição e a manutenção dessa sociedade. Tanto os políticos como os demais habitantes da Bahia, brancos e mestiços, senhores de engenho, fidalgos e escravos são alvo de críticas. À Cidade da Bahia A cada canto um grande conselheiro Que nos quer governar cabana e vinha; Não sabem governar sua cozinha E podem governar o mundo inteiro. Em cada porta um bem frequente olheiro Que a vida do vizinho e da vizinha Pesquisa, escuta, espreita e esquadrinha Para o levar à praça e ao terreiro. Muitos mulatos desavergonhados, Trazidos sob os pés os homens nobres, Posta nas palmas toda a picardia, Estupendas usuras nos mercados, Todos os que não furtam muito pobres: E eis aqui a cidade da Bahia. (MATOS, 2011) Entretanto, vemos que, mais do que criticar uma classe social ou uma etnia, os poemas apontam para as ações desses indivíduos. Nesse poema, um dos mais conhecidos do autor, o principal foco de críticas são as atitudes, dentre elas temos a usura, o roubo, a fofoca, o engano, a falta de vergonha, enfim, uma série de atitudes que se somam para compor a cidade da Bahia. Outro poema significativo é o que serviu de epígrafe para este subcapítulo. Nele, há a denúncia de que quem age de forma torpe tem sempre vantagens sobre os demais. Podemos considerar Gregório de Matos o maior expoente brasileiro do período Barroco. Entretanto, não podemos esquecer de que outras produções literárias ocorreram no período do Brasil colônia. Antes mesmo de abordarmos a produção dos poetas árcades, vamos falar brevemente da escrita dos jesuítas. 1.2.2 Os escritos dos jesuítas Mas o que vemos praticar em todos os reinos do mundo é tanto pelo contrário que, em vez de os reis levarem consigo os ladrões ao Paraíso, os ladrões são os que levam consigo os reis ao inferno. Padre Antônio Vieira. Sermão do Bom Ladrão. 1665. Ainda no período de reconhecimento das terras do Novo Mundo, fundamentou-se a ideia de que era preciso povoá-las, a fim de concretizar os domínios da corte. Para tanto, além de desembarcarem na América muitos colonizadores vindos para explorar as novas possibilidades de riqueza, conforme apontavam todos os relatos do Novo Mundo, vieram também os jesuítas, com Panorama Cultural de Literatura Brasileira Mitizi Gomes 14 o objetivo de catequizar os gentios que aqui viviam e de defender as terras contra os estrangeiros. Dentre eles podemos citar Manuel de Nóbrega, Fernão Cardim e José de Achieta, que, ainda no século XVI, empenharam-se em salvar as almas pagãs, numa tentativa de convertê-las ao catolicismo. O trabalho dos jesuítas possuía um cunho pedagógico, além disso, mantinham uma ligação estreita com a cultura portuguesa, considerando a formação que traziam da metrópole. Mas foi nas obras de Padre Vieira (1608-1697), no século XVII, que se obteve uma produção elaborada, que vai além do caráter meramente informativo ou catequizante, atingindo uma qualidade estética no âmbito da prosa. Bosi, ao falar da obra de Pe. Vieira, afirma: De Vieira ficou o testemunho de um arquiteto incansável de sonhos e de um orador complexo e sutil, mais conceptista do que cultista, amante de provar até o sofisma, eloqüente até à retórica, mas assim mesmo, ou por isso mesmo, estupendo artista da palavra. (BOSI, 1997, p. 45) Em suas batalhas diárias, combatia assuntos de âmbitos religiosos e profanos, tais como a escravidão dos nativos ou a invasão dos holandeses em terras brasileiras. Segundo Candido, Padre Vieira foi o maior orador luso-brasileiro do período colonial. Estamos, além disso, no gênero ideal para o tempo e o meio, em que o falado se ajusta às condições de atraso da colônia, desprovida de prelos, de gazetas, quase de leitores. Nunca o verbal foi tão importante e tão adequado, sendo ao mesmo tempo a via requerida pela propaganda ideológica e o recurso cabível nas condições locais. E nunca outro homem encarnou tão bem este conjunto de circunstâncias, que então cercavam a vida do espírito do Brasil – pois era ao mesmo tempo missionário, político, doutrinador e incomparável artífice da palavra, penetrando com a religião como ponta de lança pelo campo do profano. (CANDIDO, 2010, p.102) Ao lermos seus sermões, percebemos a qualidade da construção narrativa e argumentativa. No trecho que segue, que foi extraído do Sermão pelo bom sucesso das armas de Portugal contra as de Holanda, é possível vislumbrar a qualidade retórica do padre. O que venho a pedir ou protestar, Senhor, é que nos ajudeis e nos liberteis: Adjuva nos, et redime nos. Mui conformes são estas petições ambas ao lugar e ao tempo. Em tempo que tão oprimidos e tão cativos estamos, que devemos pedir com maior necessidade, senão que nos liberteis: Redime nos? E na casa da Senhora da Ajuda, que devemos esperar com maior confiança, senão que nos ajudeis: Adjuva nos? Não hei de pedir pedindo, senão protestando e argumentando; pois esta é a licença e liberdade que tem quem não pede favor, senão justiça. Se a causa fora só nossa e eu viera a rogar só por nosso remédio, pedira favor e misericórdia. Mas como a causa, Senhor, é mais vossa que nossa, e como venho a requerer por parte de vossa honra e glória, e pelo crédito de vosso nome – Propter nomen tuum - razão é que peça só razão, justo é que peça só justiça. Sobre este pressuposto vos hei de argüir, vos hei de argumentar; e confio tanto da vossa razão e da vossa benignidade, que também vos hei de convencer. Se chegar a me queixar de vós e a acusar as dilatações de vossa justiça, ou as desatenções de vossa misericórdia: Quare obdormis? Quare oblivisceris? não será esta vez a primeira em que sofrestes semelhantes excessos a quem advoga por vossa causa. As custas de toda a demanda também vós, Senhor, as haveis de pagar, porque me há de dar vossa mesma graça as razões com que vos hei de arguir, a eficácia com que vos hei de apertar e todas as Panorama Cultural de Literatura Brasileira Mitizi Gomes 15 armas com que vos hei de render. E se para isto não bastam os merecimentos da causa, suprirão os da Virgem Santíssima, em cuja ajuda principalmente confio. Ave Maria.11 Nesse texto percebemos o quanto Vieira estava ligado aos assuntos políticos da colônia, pois tratava de assuntos públicos em sermões que pregava aos fiéis na igreja. Assim, as causas, muitas vezes, misturavam-se, deixando de ser exclusivamente sacras para fundirem-se às profanas. Diante desse contexto, é possível entrever nos escritos de Vieira traços da sociedade brasileira do período colonial, ainda que pelo viés de um jesuíta. Seus sermões abordam os mais variados assuntos, que interessam a estudiosos da literatura, historiadores, religiosos. Sua produção foi numerosa, pois compreende em torno de duzentos sermões, centenas de cartas, relatórios, diversos tipos de “documentos de natureza política e diplomática, além de opúsculos religiosos ou de exegese profética, e de defesa perante a Inquisição.” (SARAIVA, LOPES, 1955, p.477) ATIVIDADE 2 O expoente brasileiro do Barroco é a figura do poeta Gregório de Matos Guerra. Dos muitos matizes presentes nas produções literárias do referido autor, podemos destacar a poesia de cunho religioso. Analise a poesia a seguir e aponte as dualidades e conflitos existentes nela. Após, vá até o FÓRUM e exponha a seus colegas suas ideias e impressões. Utilize o intertexto bíblico para enriquecer sua análise (Mateus 18: 12-14 / Lucas 15: 4-7) A Jesus Cristo Nosso Senhor Pequei, Senhor; mas não porque hei pecado, Da vossa alta clemência me despido, Porque, quanto mais tenho delinqüido, Vos tenho a perdoar mais empenhado. Se basta a vos irartanto pecado, A abrandar-vos sobeja um só gemido, Que a mesma culpa, que vos há ofendido, Vos tem para o perdão lisonjeado. Se uma ovelha perdida e já cobrada Glória tal e prazer tão repentino vos deu, como afirmais na Sacra História: Eu sou, Senhor, a ovelha desgarrada, Cobrai-a; e não queirais, Pastor divino, Perder na vossa ovelha a vossa glória. 11 VIEIRA, Pe. Antônio. Sermão pelo bom sucesso das armas de Portugal contra as de Holanda. Disponível em: <http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/bv000031.pdf> Acesso em: 08/05/2011 Panorama Cultural de Literatura Brasileira Mitizi Gomes 16 ATIVIDADE COMPLEMENTAR Considerando a obra de Gregório de Matos, contextualize o ambiente brasileiro no que diz respeito ao aspecto social e político no período em que o autor escreveu seus poemas satíricos. Eleja um dos poemas com esse cunho e analise-o. REFERÊNCIAS AGUIAR E SILVA, Vitor Manuel. Teoria da Literatura. Coimbra: Almedina, 2000. ALEIJADINHO. 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