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FUNDAMENTOS DA EDUCAÇÃO FÍSICA INCLUSIVA E ADAPTADA Camila Lopes de Carvalho Paulo Ross E d u ca çã o F U N D A M E N T O S D A E D U C A Ç Ã O F ÍS IC A IN C L U S IV A E A D A P T A D A C am ila L op es d e C ar va lh o P au lo R os s A participação da pessoa com deficiência e transtornos diversos nas práticas da Educação Física se consolidou a partir da estruturação da subárea da Educação Física Adaptada, hoje com caráter inclusivo. Para isso, novos conhecimentos e aspectos de práticas de ensino foram elaborados e discutidos durante o processo de formação do professor. Assim, esta obra tem por objetivo apresentar os aspectos históricos e conceituais da Educação Física Adaptada e do Esporte Adaptado, bem como conhecimentos a respeito das principais condições de deficiência e transtorno e suas respectivas possibilidades de práticas na Educação Física. Este tema é muito importante para a formação do futuro professor de Educação Física, que se depara com grupos heterogêneos de alunos, visando contribuir com a construção de um contexto social de respeito às singularidades e valorização das diferenças. Curitiba 2021 Fundamentos da Educação Física Inclusiva e Adaptada Camila Lopes de Carvalho Paulo Ross Ficha Catalográfica elaborada pela Editora Fael. C331f Carvalho, Camila Lopes de Fundamentos da educação física inclusiva e adaptada / Camila Lopes de Carvalho, Paulo Ross. – Curitiba: Fael, 2021. 304 p. ISBN 978-65-86557-85-5 1. Educação física 2. Educação especial I.Ross, Paulo II. Título CDD 796.0196 Direitos desta edição reservados à Fael. É proibida a reprodução total ou parcial desta obra sem autorização expressa da Fael. FAEL Direção Acadêmica Francisco Carlos Sardo Coordenação Editorial Angela Krainski Dallabona Revisão Editora Coletânea Projeto Gráfico Sandro Niemicz Imagem da Capa Stock.adobe.com/Dziurek Arte-Final Editora Coletânea Sumário Carta ao Aluno | 5 1. Educação Especial: conceitos e fundamentos | 7 2. Políticas públicas para Educação Especial | 39 3. Práticas de Educação Física inclusiva e adaptada | 69 4. Esporte adaptado | 91 5. Deficiência físico-motora e práticas esportivas | 115 6. Deficiência visual, cegueira e práticas esportivas | 143 7. Deficiência auditiva, surdez e práticas esportivas | 169 8. Deficiência intelectual e práticas esportivas | 197 9. Transtorno do Espectro do Autismo e as práticas de Educação Física | 223 10. Avaliação na Educação Física Adaptada | 251 Gabarito | 277 Referências | 289 Prezado(a) aluno(a), A Educação Física se transformou nas últimas décadas, e abriu espaço para que subáreas se desenvolvessem, fortalecendo o seu campo de estudo. Especificamente em relação à subárea da Educação Física Adaptada, esta proporcionou avanços em direção à participação das pessoas com deficiência e transtornos diversos nas práticas da área. Os autores oferecem nesta obra diversas faces possíveis de exploração das atividades físicas e esportivas para essa população, considerando o caráter social inclusivo em que estamos inseridos, a fim de que você esteja preparado para se empenhar em ações profissionais qualificadas para essa atuação. Tenha uma excelente leitura e bons estudos. Carta ao Aluno 1 Educação Especial: conceitos e fundamentos 1.1 Introdução O objetivo deste livro é compreender o modo como a defi- ciência foi percebida social e historicamente, estabelecendo relações com os valores e aspectos econômicos, políticos e culturais de cada época, passando pelas concepções sobrena- tural, mística, científica, médico-clínica e social, conforme os períodos da Primitividade, Antiguidade, Medieval, Moderni- dade e Contemporaneidade. O que determina a mudança no modo de pensar? Fundamentos da Educação Física Inclusiva e Adaptada – 8 – Desde os primórdios da humanidade, em diferentes espa- ços e tempos do planeta, a sociedade formulou varia- das concepções sobre as pessoas com deficiência que se refletiram no modo como estas eram tratadas. As concepções da humanidade não se transformam a par- tir de determinados acontecimentos. Por exemplo, o que separa o período da Primitividade da Antiguidade foi o apa- recimento da escrita. Entretanto, não foi um evento ocor- rido repentinamente, que de um dia para o outro transfor- mou o modo de pensar e agir em todas as sociedades. Por isso, nos diferentes períodos apresentados neste capítulo, as concepções coexistem e as transformações ocorrem lentamente. Por sermos humanos, nós expressamos as condições materiais e de existência de cada época. Fomos formando opiniões e identidade acerca do que vivemos com nossos familiares, colegas de escola, professores, enfim, nossas expressões se constituem de uma gama de experiências vivenciadas com outros. É sob essa mesma condição que nós, professores, comunicamos os valores que representam nossa identidade, como parte da sociedade a que pertencemos. Socialmente, propagamos nossos valores, crenças e hábitos. Nossas palavras e ações vão constituindo os seres mais jovens, ou seja, as crianças recebem a influência do comportamento, hábitos e costumes das socie- dades em que estão inseridas. Do mesmo modo, os movimentos socioes- paciais, como turismo, migrações, meios de comunicação, contribuíram para as mudanças de concepções sociais com as trocas de informações em diferentes culturas. Do ponto de vista físico-corporal, hoje, estamos libertos dos sacrifí- cios, da dor, da humilhação, do medo e do castigo. Hoje, lutamos contra todas as formas de discriminação, injustiças e desigualdades sociais e pela garantia dos direitos à dignidade de todas as pessoas. Neste livro, usa- remos o termo “pessoa com deficiência”, porque se trata da forma mais desenvolvida, prevista na Convenção da ONU sobre os Direitos da Pessoa com Deficiência, aprovada em 2006 e promulgada como Emenda Cons- – 9 – Educação Especial: conceitos e fundamentos titucional n. 6949/2009. Apontaremos as terminologias usadas em outros períodos históricos, indicando os fatores que determinaram a abolição de algumas e a modificação de outras. Relembramos que o que procuramos evidenciar nessas reflexões é o fato de que se há diferentes comporta- mentos em cada época podemos supor que a mesma coisa aconteceu em relação à deficiência. Vejamos. Você já ouviu falar na etapa do extermínio? No período que se estende desde a Primitividade, passando pela Anti- guidade, até o final da Idade Média, as exigências das aptidões físicas contribuíram para a exclusão, a eliminação e o abandono da pessoa com deficiência, e isso representava alternativas de sobrevivência do grupo social, não uma maldade deliberada. Logo, a etapa do extermínio tam- bém se constituía como um momento de luta e sobrevivência, mas aqueles cujas aptidões comprometessem o desenvolvimento do grupo, na maioria nômade, tinha que ser eliminado. As pessoas, suas deficiências, suas capacidades são apreendidas, valoradas de acordo com o desenvolvimento dos instrumentos tecnoló- gicos, o compartilhar dos valores e produtos culturais, a percepção do outro, o respeito aos direitos como ser humano, considerando-se suas necessidades no tempo e lugar em que se localizam. Nesse sentido, não é a deficiência, a perda de uma função biológica, que determina a aceitação ou a exclusão da pessoa. O estágio de formação das pessoas, instituições, programas e direitos à acessibilidade e ao usufruto dos bens culturais vão autorizar ou negar os benefícios das conquistas da civilização. A conquista do direito à vida e a superação daquelas crenças nega- tivas e daqueles limites materiais dependeram de transformações his- tóricas e de lutas políticas, porque nenhum direito nos é concedido espontaneamente. A relação entre a sociedade e a pessoa com deficiência tem produzido transformações em termos de direitos, crenças, pressupostos filosóficos e recursos de acessibilidade. Inicialmente, vamos compreender omodo Fundamentos da Educação Física Inclusiva e Adaptada – 10 – como a pessoa com deficiência era considerada e as razões que justifica- vam sua exclusão, ou a ausência da oportunidade de se tornar humano. 1.2 Deficiência na Primitividade e a concepção sobrenatural A relação da pessoa com deficiência sempre causou estranhamento à sociedade. Na Primitividade, a deficiência era concebida como algo sobre- natural. Naquele período, reinavam as forças da natureza, ou seja, o ser humano se subordinava à determinação natural. A existência humana era obtida mediante o enfrentamento dos limites materiais daquele momento histórico. Diante da necessidade da força física, a pessoa com deficiência apresentava limitações funcionais. Havia a fragilidade do biológico frente às agruras da natureza. Cada sociedade oferece aos membros do grupo os seus próprios limi- tes. Assim, a pessoa com deficiência necessitava ser abandonada, devol- vida à natureza, considerada a mãe superior, aquela que nutria os corpos famintos movidos pelo medo, pelo instinto de lutar e sobreviver ante os riscos do predador iminente. Dica de filme No filme O garoto selvagem (direção de François Truffaut), você poderá entender um pouco mais sobre a relação primitiva entre homem e natureza. O longa narra a história real de Victor de Aveyron, uma criança sel- vagem encontrada em 1798 após ter passado longo período de sua vida longe do convívio da sociedade. Semelhante a um animal em suas maneiras, o garoto é adotado pelo jovem médico Jean Marc Gaspard Itard, encarregado de sua educação e possível reinserção na comunidade. – 11 – Educação Especial: conceitos e fundamentos Figura 1.1 – Filme O garoto selvagem Fonte: filmes do Estação. Pensar e Produzir Você considera a deficiência um sofrimento resultante de uma culpa, ou um pecado cometido? Você acredita que a deficiência tem a ver com causas sobrenaturais? Justifique sua resposta. É comum ouvirmos relatos sobre a deficiência, como: “ele escolheu nascer com essa deficiência, porque necessitava aprender com essa expe- riência e, quem sabe, superar um estágio de sua evolução”. Fundamentos da Educação Física Inclusiva e Adaptada – 12 – É verdade que a condição e a história de vida transformam a sub- jetividade humana. A deficiência era percebida como uma determinação sobrenatural. Os seres humanos mantinham relações diretas com a natu- reza, face ao predomínio do trabalho agrícola, o que os fazia dependentes da terra, de onde a vida era extraída. Os seres humanos endeusavam a natureza, afastando a função da sociabilidade. O Império Romano se des- moronava e deixava um vazio de referências jurídicas, o que permitiu a propagação das crenças metafísicas de mundo e a associação entre a pes- soa com deficiência e a encarnação do mal. Figura 1.2 – A roda dos expostos Fonte: portoarc.com Saiba mais O Brasil passou a adotar a roda dos enjeitados (ou expostos) como uma herança do reino português. O primeiro registro de que se tem notícia de uma Casa de Enjeitados no país é na capital baiana, Salvador (1726); – 13 – Educação Especial: conceitos e fundamentos depois, aparece uma no Rio de Janeiro (1738) e outra no Recife (1791). Segundo o professor de arquivologia Renato Pinto Venâncio, da Uni- versidade Federal de Minas Gerais, durante o Brasil colonial existiram quatro rodas (fora as citadas, havia uma em Campos/RJ). “Mas, após 1840, elas chegaram a ser 14, depois começaram a fechar. A última foi a de São Paulo, que encerrou as atividades em 1950.” Gazeta do Povo (texto publicado na edição impressa de 16 de julho de 2011). Com a ascensão das ideias cristãs, as pessoas com deficiência não poderiam mais ser exterminadas, pois eram tomadas como criaturas de Deus. Havia as crenças necessárias para a formação dos primeiros abrigos, o que se verificou no século XIII. Entretanto, a rigidez ética, centrada na noção de culpa e de respon- sabilidade pessoal, conduziu a uma visão intolerante e pessimista do ser humano, que foi tomado como “uma besta demoníaca, quando lhe venha a faltar a razão ou a graça divina”. Nas palavras de Pintner (1933, apud PESSOTTI, 1984), o final da Idade Média foi a época dos açoites e das algemas na história da deficiência mental. Segundo Lutero, “o homem é o próprio mal quando lhe faleça a razão ou lhe falte a graça celeste a iluminar- -lhe o intelecto. Nesse pensamento, pessoas com deficiência e pecadores são seres diabólicos”, condenados por Deus. As ações consequentemente recomendadas eram o castigo, por meio de aprisionamento e açoitamento, para expulsão do demônio (PESSOTTI, 1984). Se na Antiguidade a pessoa com deficiência não era considerada humana, no Período Medieval, passou a ser entendida como uma pos- sessão do mal, expiadora de culpas alheias, um meio para aplacar a cólera e a vingança celeste (PESSOTTI, 1984). Figura 1.3 – Expulsão do demônio Fonte: DP/CC BY 3.0. Fundamentos da Educação Física Inclusiva e Adaptada – 14 – Tanto a igreja quanto a burguesia viabilizavam a manutenção de seu poder, promovendo o isolamento e a segregação das pessoas com deficiência ou doentes. Nessas instituições, aplicavam as ações assisten- cialistas, logrando, desse modo, a ampliação de seu grau de influência na sociedade. O poder da igreja produzia conflitos com a burguesia, a qual visava tão somente afastar-se do mundo da miséria. Nesse sentido, confundiam-se as ações de ajuda e a necessidade de reprimir; o dever de caridade e a vontade de punir. A racionalidade integrou a caridade e a repressão, optando pelo isolamento, a institucionalização. Os leprosários da Idade Média, que estiveram vazios durante a Renascença, foram reati- vados durante o século XVII. Figura 1.4 – Período da Renascença Fonte: stacasameneghello.com.br. Saiba mais Nos tempos da Idade Média, os leprosos anunciavam a sua presença portando sinos, obrigatoriamente. Nessa imagem, pintada por Brugel, não apenas leprosos, mas, também, pobres e andarilhos eram obrigados a andar com rabos de raposa afixados nas roupas como marca para dis- tinção dos “normais”. – 15 – Educação Especial: conceitos e fundamentos Figura 1.5 – Idade Média Fonte: Bruegel, Pieter. Leprosos. Óleo sobre madeira, 18 x 21 cm, 1568, Museu do Louvre, Paris. No Brasil, também existiam leprosários. Os portadores de lepra eram obrigados a viver isolados. O Sanatório Aimorés, em Bauru/SP, e o Hos- pital Curupaiti, em Jacarepaguá/RJ, eram leprosários. 1.3 Idade Moderna: o internamento e o misticismo A racionalidade Moderna reinventou o internamento. A sociedade racional não poderia adaptar-se à natureza, como os antigos, nem se subor- dinar à ordem sobrenatural, como o cristão do medievo, mas criar instru- mentos para regular a liberdade e a ordem. No plano discursivo, porém, a institucionalização congrega as visões da predestinação, do castigo e a resposta à ordem econômica, social e moral. O interno ficaria com a “vir- tude” da paciência para aliviar o juízo imposto por Deus. Paciência, em sua origem latina patiendi, significa aprender a sofrer. Era preciso aceitar a condição da segregação, definida pelo especialista, a autoridade do poder econômico e religioso. Tanto a pobreza quanto a obra de caridade que a socorria não ques- tionavam a condição social daquelas pessoas. A pobreza, a deficiência e a Fundamentos da Educação Física Inclusiva e Adaptada – 16 – caridade significavam a prova da resignação e da fé enraizada em Deus. Com o movimento da Reforma, os grandes monastérios são convertidos em hospitais e os conventos, em asilos. Seus bens são confiscados para aliviar a miséria social. Saiba mais O termo “hospital” tem sua origem no latim hospitale, adjetivo derivado de hospes (hóspede, viajante, estrangeiro), significando aquele que dá o agasalho ou que hospeda. Do primitivo latim, originaram-se os termos hospital e ospedale, aceitos em diversos países. Entretanto, nos primór- diosda era cristã, a terminologia mais utilizada relacionava-se com o grego latinizado, salientando-se: 2 nosodochium – lugar para receber doentes. 2 ptochotrophium – asilo para pobres. 2 poedotrophium – asilo para crianças. 2 xenotrophium – asilo e refúgio para viajantes estrangeiros. 2 gynetrophium – asilo para velhos. 2 hospitum – lugar que recebia enfermos incuráveis ou insanos. Figura 1.6 – Hospital da Idade Média Fonte: mundo.com. – 17 – Educação Especial: conceitos e fundamentos As primeiras iniciativas de caráter educacional aplicadas nas ativi- dades dos regimes de internato limitavam-se a aprender a ler, escrever, contar, comportar-se, ser honesto e decente com os visitantes da casa, ler as santas Escrituras e assistir aos ofícios divinos. Havia que afastar os indivíduos do mundo, pois a fraqueza de que se revestiam seria um convite ao pecado. Era preciso encarná-los de seus anjos da guarda, instruí-los, consolá-los e proporcionar-lhes a salvação. Essa questão religiosa era a nova razão de ser da internação. Esse vínculo entre religião e internamento persistiu ao longo dos anos e se diversificou de tal modo que várias denominações religiosas, pregadores do evangelho e missionários se dirigem a essas instituições com vistas a consolar aque- las almas consideradas sofredoras. A partir da Reforma Protestante, o protestantismo e o catolicismo foram os sistemas políticos e religiosos que concebiam a deficiência como fenômenos metafísicos, de natureza negativa, ligados à rejeição de Deus, atrelados ao pecado, ou à possessão demoníaca. Com o advento do modo de produção capitalista, conforme diz Bian- chetti (1998, p. 36): O corpo começou a ser definido e visto como uma máquina em funcionamento. Dessa visão vai emergir um resultado desastroso para a questão da diferença. Se o corpo é a máquina, a excep- cionalidade ou qualquer diferença nada mais é que a disfunção de alguma peça dessa máquina, ou seja, se, na Idade Média, a deficiência estava associada ao pecado, agora, passa a ser rela- cionada à disfuncionalidade. 1.3.1 Dogma do diagnóstico A ciência apresenta o diagnóstico não para servir de instrumento de luta contra a discriminação, mas para atestar a necessidade da segregação ou a institucionalização das pessoas com deficiência. As pessoas com deficiência receberam atribuições consideradas cien- tíficas e verdadeiras. O indivíduo com deficiência intelectual passou a ser identificado, no final do século XVIII, pelos médicos Esquirol e Pinel, como idiota, cretino e imbecil, trazendo a marca do irreversível, incurável Fundamentos da Educação Física Inclusiva e Adaptada – 18 – e inapelável (PESSOTTI, 1984), variando de acordo com a severidade ou a gravidade. A educação passou a obrigar os surdos a aprenderem a língua oral, amarrando seus braços para impedir a expressão gestual, corporal, visual. Dica de filme O homem elefante é um filme britânico e estadunidense de 1980, do gênero drama biográfico, dirigido por David Lynch. Trata-se de uma narrativa sobre a forma como a sociedade lida com a deficiência, evidenciando contextos em que Joseph Merrick é tratado como aberração no circo, até o momento em que passa a ser tratado pela medicina. Figura 1.7 – O homem elefante Fonte: CC BY 3.0. – 19 – Educação Especial: conceitos e fundamentos 1.4 Educação Especial no Brasil A atenção formal às pessoas com deficiência iniciou-se com a cria- ção de internatos, ainda no século XIX, sendo ideia importada da Europa, no período imperial. Segundo Bueno (1993), Januzzi (2004) e Pessotti (1984), foram criados o Imperial Instituto dos Meninos Cegos, atual Ins- tituto Benjamin Constant (IBC), por Dom Pedro II, por meio do Decreto Imperial n. 1.428, de 12 de setembro de 1854, e o Instituto dos Surdos Mudos, atual Instituto Nacional de Educação de Surdos (INES), na então capital do Império, o Rio de Janeiro, em 26 de setembro de 1857. Figura 1.8 – Instituto Nacional de Educação de Surdos Fonte: Instituto Nacional de Educação de Surdos (Ines). Em 1872, no Brasil, existia uma população de 15.848 cegos e 11.595 surdos. Nessa época, havia a atenção mínima às pessoas cegas e surdas e ausência de atendimento às pes- soas com deficiência física e intelectual. Eram atendidos ape- nas 35 cegos e 17 surdos (MAZZOTTA, 1996, p. 29). Há que se destacar que a fundação desses dois institutos constitui marco histórico na educação de cegos e de surdos, inspirando, no século XX, a criação de vários outros nas capitais brasileiras. Fundamentos da Educação Física Inclusiva e Adaptada – 20 – Ambos institutos foram criados pela intercessão de pessoas institu- cionalmente próximas ao Imperador. José Álvares de Azevedo, pessoa cega, filho do médico de Dom Pedro II, fora estudar na França. Ao regres- sar, sua capacidade de ler em Braille sensibilizara o Imperador, levan- do-o a ordenar a criação do Instituto Nacional de Cegos, o primeiro da América Latina. Essa prática da caridade revela o caráter assistencialista que caracterizou a política e a Educação Especial no Brasil. O caráter assistencialista significa que as ações públicas voltadas à sociedade não são expressão do reconhecimento dos direitos, não promovem a transfor- mação das condições sociais da vida, mas visam à satisfação de interesses pessoais, políticos e econômicos. O assistencialismo, o clientelismo e o patrimonialismo são diferentes manifestações da fusão entre o público e o privado presente na cultura brasileira. Entre 1912 e 1913, segundo Januzzi, (2004), foi criado o chamado Laboratório de Pedagogia Experimental ou Gabinete de Psicologia Experi- mental, na Escola Normal de São Paulo, atual Escola Caetano de Campos. Em 1917, foram estabelecidas as normas para a seleção de “anormais”. Na época, havia preocupação com a eugenia da raça, o que provocava o medo da degenerescência e das taras. As crianças com deficiência intelectual eram encaminhadas à educa- dora sanitária, que devia assegurar que a escola só as aceitasse se não atrapa- lhassem o bom andamento da classe. Subordinada à Medicina, a Educação Especial assumia uma concepção voltada para a cura e para a reabilitação. Não havia a pesquisa sobre o conhecimento válido nem sobre as metodolo- gias que valorizassem as diferenças e capacidades singulares. Profissionais da área da Medicina e da Psicologia concediam o laudo para a segregação dos que prejudicavam o bom andamento da escola (BUENO, 1993). Havia duas tendências relacionadas à atenção às pessoas com defi- ciência intelectual: a médico-pedagógica e a psicopedagógica. A tendên- cia médico-pedagógica era centrada no princípio higienizador, resultando na instalação de escolas em hospitais, o que ampliou a segregação e os estigmas negativos da deficiência. Já a tendência psicopedagógica visava a identificação dos graus de severidade da deficiência, mediante a aplica- ção de testes psicológicos e escalas de inteligência, originando a criação de classes ESPECIAIS públicas nas escolas comuns, destinadas aos estu- dantes considerados com deficiência Leve ou moderada, de acordo com – 21 – Educação Especial: conceitos e fundamentos a classificação da época (JANNUZZI, 2004; MENDES, 1995). Sassaki (2005, p. 62) afirma que Ao longo da história, muitos conceitos existiram e a pessoa com esta deficiência já foi chamada, nos círculos acadêmicos, por vários nomes: oligofrênica; cretina; tonta; imbecil; idiota; débil profunda; criança subnormal; criança mentalmente anormal; mongoloide; criança atrasada; criança eterna; criança excepcional; retardada men- tal em nível dependente/custodial, treinável/adestrável ou educável; deficiente mental em nível leve, moderado, severo ou profundo (nível estabelecido pela Organização Mundial da Saúde, 1968); criança com déficit intelectual; criança com necessidades especiais; criança especial, etc. Mas, atualmente, quanto ao nome da condição, há uma tendência mundial (brasileira também) de se usar otermo deficiência intelectual, com o qual concordo por duas razões. A primeira razão tem a ver com o fenômeno propriamente dito. Ou seja, é mais apro- priado o termo intelectual por referir-se ao funcionamento do intelecto especificamente e não ao funcionamento da mente como um todo. Em 1926, foi criado o Instituto Pestalozzi, destinado à atenção às pessoas com deficiência intelectual. Em 1945, nesse instituto, foi implantado o serviço de atendimento às pessoas com altas habilidades/superdotação. Em 1954, foi inaugurada a APAE – Associação dos Pais e Amigos dos Excepcionais. Saiba mais Johann Heinrich Pestalozzi foi um pedagogista suíço e educador pio- neiro da reforma educacional. As faculdades do homem têm de ser desenvolvidas de tal forma que nenhuma delas predomine sobre as outras. Figura 1.9 – Faculdade do Homem Fonte: pestalozzi-canoas.org.br. Fundamentos da Educação Física Inclusiva e Adaptada – 22 – Nos anos 50, ocorreu a expansão de entidades assistenciais, de cará- ter privado, o que desobrigava o poder público de oferecer atendimento educacional especializado. Em 1957, 58 e 60, o sistema público instituiu as campanhas nacionais para a educação dos cegos, dos surdos e da pessoa com deficiência intelectual. São organizados dois sistemas paralelos de educação para os estu- dantes com deficiência: a educação comum, com as classes especiais, e as escolas especiais, com os centros de reabilitação, tendo como objetivo a aquisição de habilidades para a integração social e preparação para o tra- balho. As escolas especiais exerciam um papel revolucionário, pois ofere- ciam o acesso à educação aos sujeitos que não tinham esse direito previsto em lei. Essa é a prova de que a organização social e política é transforma- dora do Estado, do direito, das políticas e do próprio ser humano. A Lei de Diretrizes e Bases (LDB) – Lei n. 4.024/61 – veio explicitar o compromisso do poder público brasileiro com a Educação Especial, nos artigos 88 e 89, no momento em que ocorria um aumento crescente das escolas públicas no País. No Art. 88, a Educação Especial é enquadrada no sistema geral de educação. Ou seja, estudante deve ser integrado na comunidade, quando for possível. No Art. 89, o Estado encarrega-se de conceder subvenção às escolas. Na década de 60, ocorreu forte expansão das escolas especiais, com os centros de reabilitação para todos os tipos de deficiência. Em 1969, o Brasil já contava com mais de 800 escolas especiais, quatro vezes mais do que no início da década. Ocorreu também grande expansão de classes especiais. Os estudantes eram classificados, retirados da escola comum e encaminhados para as classes especiais ou para as escolas especiais, devendo adquirir os pré-requisitos intelectuais e sociais para retornar à escola comum posteriormente. Era o início do Paradigma de Serviços, que visava a aqui- sição de habilidades para a integração social e prepara- ção para o trabalho. O princípio da integração significa que o estudante precisa adaptar-se às exigências da escola, como pré-condição para seu ajustamento social. – 23 – Educação Especial: conceitos e fundamentos Em 1971, a Lei n. 5.692/71 definiu que os alunos com deficiência física, intelectual ou superdotação, que apresentassem defasagem na idade de matrícula, receberiam tratamento especializado (BRASIL, 1971). O Parecer do Conselho Federal de Educação (CFE) n. 848/72 recomenda a implementação de técnicas e serviços especializados para atender o alu- nado da Educação Especial. Isso significava a ênfase na Educação Espe- cial e não na integração do aluno com deficiência. Entre 1972 e 1974, a Educação Especial é incluída no rol das priorida- des educacionais no País. Em 1972, sob orientação do especialista James Gallagher, constitui-se uma comissão científica para elaborar diagnóstico da Educação Especial. Assim, em 1973, foi criado, por meio do Decreto n. 72.425, de 3 de julho de 1973, o CENESP, Centro Nacional de Educa- ção Especial. Tratava-se do primeiro órgão público federal vinculado ao Ministério da Educação e Cultura, responsável pelas políticas da Educa- ção Especial, desde a Educação Infantil ao Ensino Superior. Em 1986, o CENESP foi transformado na Secretaria de Educação Especial (SEESP). O CENESP promoveu as seguintes ações: 2 regulamentação de escolas especiais e classes especiais. 2 formação de professores e técnicos no Brasil e no exterior. 2 repasse de recursos pedagógicos e financeiros para Estados e escolas especiais, a maioria da iniciativa privada. 2 gradativamente, os Estados passaram a estabelecer convênios de apoio técnico e financeiro com as entidades mantenedoras, contribuindo com o pagamento dos salários dos professores das escolas especiais, sem fins lucrativos. Em 1977, sob coordenação do CENESP, foi elaborado o I Plano Nacional de Educação Especial, cujo objetivo era ampliar o atendimento educacional das pessoas com deficiência nas escolas especiais e nas esco- las regulares. Em 1979, foi solicitado a algumas universidades a elaboração de pro- postas curriculares com conteúdos atenuados (JANUZZI, 2004). Em 1985, foi elaborada pelo CENESP nova proposta de educação, visando ampliar as oportunidades de acesso à educação por parte das Fundamentos da Educação Física Inclusiva e Adaptada – 24 – pessoas com deficiência. Aquela proposta de integração, tal como ocor- ria na Lei n. 4.024 de 1961, não previa a oferta de apoio especializado (JANUZZI, 2004). A institucionalização é “um lugar de residência e de trabalho, onde um grande número de pessoas, excluídas da sociedade mais ampla, por um longo período de tempo, levam juntas uma vida enclausurada e formal- mente administrada” (GOFFMAN, 1962). As críticas a esse paradigma e a esse sistema apontam sua inadequação e ineficiência para realizar o que se propõe: favorecer a preparação, ou a recuperação das pessoas com defi- ciência para a integração social. No contexto institucional, haveria práti- cas descoladas das demandas sociais, o que tornaria a pessoa incapaz para adaptar-se à sociedade. Face às barreiras rígidas da sociedade, nos anos 70, fortaleceram-se os movimentos pela emancipação social e política das pessoas com defi- ciência. Assim, foram criadas centenas de associações de pessoas cegas, de pessoas surdas, de pessoas com deficiência física, as quais voltaram-se para as práticas desportivas, profissionalização, lazer e a empregabilidade. 1981 foi o Ano Internacional da Pessoa com Deficiência, momento em que os movimentos sociais passaram a debater os problemas da educa- ção, a inserção no mundo do trabalho e a participação social. A sociedade começou a abrir espaços de trabalho e promover eventos esportivos e cul- turais, com apresentações artísticas de danças, teatro, música, artesanato, etc. Despontava o sujeito de direitos, que estava sufocado pelos duros critérios da normalização. Em 1986, foi criada a Coordenadoria Nacional para Integração Social da Pessoa com Deficiência (CORDE). Em 1989, com a promulgação da Lei n. 7.853, a CORDE passou a representar os interesses e assumir res- ponsabilidades relacionadas aos direitos, educação, saúde, trabalho, lazer, previdência social da pessoa com deficiência. Em 1993, com o Decreto n. 914, é proclamada a referida Política Nacional para Integração Social da Pessoa com Deficiência. Em 1994, é publicada a Política Nacional de Educação Especial, defi- nindo o alunado, os objetivos, os fundamentos axiológicos, os conceitos, – 25 – Educação Especial: conceitos e fundamentos as modalidades de atendimento e as diretrizes da Educação Especial. Uma das diretrizes daquela política era a de “desenvolver ações articuladas e integradas, entre as áreas de educação, ação social, saúde e trabalho, para os processos de avaliação, acompanhamento, diagnóstico diferencial, atendimento educacional e preparação para o trabalho” (BRASIL, 1994). Essa política está situada na perspectiva integradora, visandofavore- cer a educação do estudante com deficiência, desde que “possua condições de acompanhar e desenvolver as atividades curriculares programadas no ensino comum” (BRASIL, 1994). A partir da década de 90, o Brasil aderiu à Declaração da Educação para Todos, produzida em Jomtien, Tailândia, em 1990, e foi signatário da Declaração de Salamanca, produzida em Salamanca, Espanha, em 1994 (BRASIL, 1994), ambas conferências mundiais da UNESCO. Ao assumir tais compromissos, passou a promover ações políticas, culturais, sociais e pedagógicas, para acolher a todos, indiscriminadamente, com qualidade e igualdade de condições. Desde 1995, o Brasil compromete-se com a construção de um sistema educacional inclusivo. Em 1998, os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN) vieram nortear e orientar os profissionais da educação quanto à relação profes- sor/aluno no desenvolvimento de um processo de ensino e aprendiza- gem eficaz e significativo. Como passo subsequente a essa coletânea, o MEC/ SEESP publicou os PCN – Adaptações Curriculares em Ação, objetivando fortalecer o suporte técnico-científico aos profissionais da educação, de maneira geral. Em 1999, o Decreto n. 3.298 regulamenta a Lei n. 7.853, de 1989, e dispõe as competências da Política Nacional para Integração da Pessoa com Deficiência, fixando-as sob a responsabilidade da CORDE, cuja fina- lidade é elaborar políticas e programas relacionados às necessidades da pessoa com deficiência, orientando e acompanhando sua execução. Nas Políticas Nacionais de Educação Especial, na Perspectiva da Educação Inclusiva, que será analisada no Capítulo 3 deste livro, a Educação Inclusiva [...] constitui um paradigma educacional fun- damentado na concepção de direitos humanos, que conjuga a igualdade e Fundamentos da Educação Física Inclusiva e Adaptada – 26 – diferença como valores indissociáveis, que avança em relação à ideia de equidade formal ao contextualizar as circunstâncias históricas da produ- ção da exclusão dentro e fora da escola (BRASIL, 2008, p. 1). As políticas, a cultura e as pedagogias inclusivas tomam a pessoa humana como sujeito de direitos, com igualdade de oportunidades, igual- dade jurídica, diversidade de condições, recursos de acessibilidade, de comunicação e códigos linguísticos. Figura 1.10 – Direito à diversidade Fonte: Portal MEC. 1.5 Contribuições teórico-metodológicas de alguns autores na área de Educação Especial 1.5.1 Jean Itard (1774-1838) Segundo o médico Jean Itard (1797) “o homem não nasce como homem, mas é construído como homem”. Em 1800, Itard recebeu a – 27 – Educação Especial: conceitos e fundamentos guarda de um menino capturado na floresta e que vivia há 12 anos como selvagem, conhecido como Victor de Aveyron. O menino selvagem de Aveyron, retirado da floresta francesa e levado ao Instituto dos Surdos, em Paris, foi diagnosticado por Pinel como radicalmente incapaz de apren- dizagem, desprovido de recursos intelectuais. Mas Itard acreditava que aquela deficiência era resultado de privações sociais e culturais, o que o levou a implementar um programa educativo. Victor foi educado por Itard e aprendeu hábitos, rudimentos de escrita e resposta a testes de inteligência. O menino apresentava o diagnóstico de deficiência intelectual grave, denominada de profundo, na época. Foi diagnosticado como incapaz de discriminações, mesmo grosseiras, entre odores, ruídos e imagens, incapaz de articular qualquer som vocal humano e fixar sua atenção em um dado objeto ou evento. Ao não aceitar o diagnóstico de Victor, Itard apontou o problema da deficiência intelectual na área da avaliação. O diagnóstico elaborado por Pinel era omisso com relação às causas da deficiência. Analisando-as, Itard passou a prognosticar a curabilidade da deficiência de Victor, cuja causa foi atribuída por Itard à carência de experiências de exercício inte- lectual. Assim, Itard investia esforços na educação de Victor por meio da estimulação e ordenação da experiência. Itard prescrevia, também, atendi- mento psicológico e psiquiátrico, a medicina moral da época, o que con- sistia em propiciar condições emocionais e ambientais para a ocorrência de comportamentos desejáveis e para a cessação do não desejado (PES- SOTTI, 1984, p. 42). Para obter progressos, Itard explorava uma aquisição como pré-re- quisito de outra. Ele aplicava estímulos externos, “excitantes internos ou morais”, objetivando o ajustamento social e emocional de Victor. As fases da pedagogia itardiana – “analisar o repertório comportamen- tal e sua produção; adequar materiais e graduar as instruções aos limiares perceptivos peculiares do órgão sensorial implicado” (PESSOTTI, 1984, p. 50) – estão ainda presentes na Educação Especial. No início do século XIX, a deficiência intelectual é tomada como um problema médico, passível de tratamento, mediante intervenção comportamental. A deficiência intelectual passa das mãos do inquisidor às mãos do médico. Fundamentos da Educação Física Inclusiva e Adaptada – 28 – A experiência desenvolvida com Victor de Aveyron proporcionou a Itard trabalhar com a educação de surdos, ao longo de quatro décadas, utilizando o método oralista. Figura 1.11 – Cena do filme O garoto selvagem em que o Dr. Itard estimula o menino Victor à oralidade Fonte: educomunicacion.es. 1.5.2 Eduard Séguin (1812-1880) Nasceu na cidade de Clamecy, na França, e viveu na época do Ilu- minismo Francês. Antes de dedicar-se aos estudos de crianças com defi- ciência intelectual, Séguin cursava Direito, mas abandonou sua carreira e iniciou o curso de Medicina na França. De acordo com Mazzota (1996), foi discípulo de Itard aos 25 anos, ocasião em que ajudou nos cuidados de uma criança diagnosticada com idiotismo, denominação utilizada na época para o que hoje chamamos de deficiência intelectual. Entretanto, superou seu mestre ao demonstrar a importância de se abordar aspec- tos sociais e cognitivos, inserindo as crianças no coletivo, destacando a importância de suas experiências e vivências cotidianas, encorajando-as a criarem sua autonomia, com o apoio da família e da escola. Cada aluno era diagnosticado em sua individualidade, sendo considerados os aspectos subjetivos, como o temperamento e o contexto no qual estava inserido. Séguin abandonou os estudos da Medicina para tornar-se um educa- dor e foi o primeiro especialista na atenção à pessoa com deficiência inte- lectual. Por isso, foi considerado um dos fundadores da Educação Especial, – 29 – Educação Especial: conceitos e fundamentos pois sistematizou sua metodologia, por ele denominada método médico- -pedagógico, no qual considerava as anomalias fisiológicas e psicológicas (CAPUL E LEMAY, 2003). Ficou conhecido como “instrutor dos idiotas” e dedicava-se aos estudos com pessoas com síndrome de Down. Ele considerava o professor um pesquisador, e seu objeto de pesquisa eram os alunos e as práticas pedagógicas. Recomendava o uso de um diá- rio para registrar suas impressões e evoluções dos educandos, à medida em que iam superando obstáculos. Defendia o trabalho com sentidos, em que o educando, ao realizar atividades físicas, ia tomando consciência do próprio corpo, pois considerava que as pessoas com deficiência eram sub- metidas ao sedentarismo. Hoje, a coordenação das noções e dos gestos denomina-se movimento psicomotor. Segundo Tezzari (2010), Séguin defendia também um processo de ensino-aprendizagem lúdico e a alfabetização partindo do simples para o complexo, um trabalho coletivo de profissionais. Desenvolveu técnicas educativas, jogos lúdicos e atividades ao ar livre. Ele propunha problemas educativos, não aprendizagens automatizadas, prática comum na época. O fundamental era possibilitar ao aluno a manipulação concreta da reali- dade, explorando todos os sentidos. Isso inspirou Maria Montessori, pos- teriormente. Ele criou a primeira escola de tempo integral para crianças com deficiência intelectual. Posteriormente, em 1848, mudou-separa os Estados Unidos, onde ganhou espaço no meio acadêmico e conseguiu expressar suas ideias. Assim, concluiu o curso de Medicina e influenciou a criação de escolas especiais. Séguin criticou a visão médica organicista de Pinel e Esquirou, que consideravam a deficiência mental sem a possibilidade de mudança do quadro médico. Argumentava que eles não trabalhavam diretamente com os sujeitos, delegando o trabalho a auxiliares. Portanto, publicavam seus artigos baseados em suposições. Séguin também era organicista, pois não negava a questão orgânica de seus pacientes, entretanto, apontava a pos- sibilidade de progressão se houvesse a intervenção, ou seja, um processo educativo do treino sensório-motor. A progressão do paciente dependeria de três fatores: o grau de comprometimento de suas funções orgânicas, o quanto de inteligência que o sujeito com deficiência apresentava e a habi- lidade na aplicação do método. Defendia a existência de uma continuidade Fundamentos da Educação Física Inclusiva e Adaptada – 30 – dos graus ou níveis de inteligência, sendo possível comparar o desenvol- vimento normal e o atrasado em diferentes áreas da educação, por meio de uma teoria psicogenética (TEZZARI, 2010). Autor de Lê Traité dês Sensations, Deficiência mental e seu trata- mento pelo método fisiológico e de Tratamento moral, higiene e educa- ção dos idiotas, que, segundo Pessotti, apresenta uma concepção teórica e metodológica do que posteriormente foi denominado Educação Especial. Antes, as denominações de idiota, imbecilidade e debilidade eram entendidas como falta de funções intelectuais. Séguin apresentou a nova concepção de enfermidades e etiologias diferentes, o que provocou uma ruptura na área científica voltada para deficiências (CANEVARO E GAU- DREAU, 1989). Apesar de suas ideias avançadas, sua obra não teve o devido reconhe- cimento em sua terra natal. Séguin conseguiu, de certo modo, a inserção de crianças que eram segregadas do convívio social. 1.5.3 Maria Montessori (1870-1952) Maria Montessori nasceu em Chiaravelli, Itália. Conforme aponta Nicolau (2005), aos 12 anos ela decidiu estudar engenharia na Regia Scuela Tecnica Michelangelo Buonarroti, em Roma, mas sofreu precon- ceito por ser a única mulher da turma. Entretanto, Tezzari (2009) relata que, ao ingressar para o ensino superior, decidiu estudar Medicina, con- trariando seu pai, que desejava que sua filha seguisse carreira na área da educação. Segundo Nicolau (2005, p. 6), ela e seu pai não se falavam, em decorrência de sua escolha acadêmica. Por causa da cultura machista pre- dominante na época, Montessori teve que pedir autorização para o Papa XIII para estudar Medicina. Ao iniciar seus estudos, continuou sofrendo com o preconceito de seus colegas. Em 1894, passou a atuar na área da Medicina, ganhou premiações por sua competência e conquistou reconhecimento acadêmico, tornando- -se a primeira médica italiana. Segundo Tezzari (2009, p. 117), passou a atuar na área de psiquiatria e a interessar-se pelos estudos de crianças com deficiência intelectual. Nessa ocasião, conheceu as obras de Itard e Edouard Séguin, que influenciou significativamente a elaboração de sua – 31 – Educação Especial: conceitos e fundamentos metodologia. Defendeu que as crianças deficientes deveriam ter um pro- fessor formado nessa função. Foi convidada para ministrar palestras na área de educação de deficientes intelectuais. Segundo Nicolau (2005, p. 9), Montessori ingressou para o curso de Filosofia e Psicologia experi- mental na Universidade de Roma para compreender melhor as necessida- des educacionais das crianças. Ocupou o cargo de educação de crianças carentes, filhos de operários na Casa Dei das Crianças, fundada em 1906, sendo uma instituição pri- vada. Em 1976, Montessori publica o livro intitulado A criança, em que relata com detalhes essa experiência, na qual notou a progressão das crian- ças após desenvolver atividades na aplicação do método desenvolvido por ela. Nele, o educador não impõe o conteúdo a ser ministrado, mas atua como um mediador da aprendizagem. Por isso sua metodologia influen- ciou diretamente a corrente chamada Escola Nova, que posteriormente foi implantada em diversas escolas do mundo. Montessori defende que os materiais devem ficar dispostos em prate- leiras à disposição das crianças, e elas devem ficar livres para escolher o que querem aprender, desde que seja com responsabilidade de respeitar o espaço do outro e trabalhar com cooperação, o que ajuda no desenvolvi- mento da personalidade. A partir de suas experiências, Montessori classi- ficou os níveis de desenvolvimento humano: 2 0 a 3 anos – mente absorvente inconsciente, em que a criança desenvolve a língua materna, hábitos, costumes, memória, etc. (ANTUNES, 2005, p. 34). 2 3 a 6 anos – mente absorvente consciente, em que a criança age sobre o ambiente. 2 6 a 12 anos – quando a criança desenvolve sua consciência moral e sua sociabilidade. 2 12 a 15 anos – o indivíduo passa pela puberdade, com transfor- mações abruptas. 2 15 a 18 anos – o indivíduo sente a necessidade de fazer parte de um grupo por afinidade, conquista a independência e autossufi- ciência econômica, entrando para a vida adulta. Fundamentos da Educação Física Inclusiva e Adaptada – 32 – Montessori aliava a teoria à prática, pesquisou e desenvolveu mate- riais de caráter concreto, voltados para o manuseio da criança e a educação por meio dos sentidos, pois, assim, as crianças “decodificam o mundo ao seu redor” (FERRARI, 2008, p. 32). Por meio do concreto, a criança pode conhecer o abstrato. O educador pode observar o uso dos materiais e, se perceber que a criança faz um mau uso do material, pode em outro momento oferecer o material à criança. Além disso, deve sempre anotar em um diário as observações sobre o aprendizado do aluno, suas dificul- dades, para depois fazer a avaliação de forma processual e individual, de acordo com as especificidades de cada criança. 1.5.3.1 Algumas atividades propostas por Montessori Lição do silêncio A autora defende que as crianças façam um momento de silêncio para proporcionar o aprendizado de concentração e autocontrole. Lição dos três tempos Foi desenvolvida por Séguin e utilizada por Montessori. Primeiro, o professor mostra dois objetos e diz o nome, ou seja, transmite a infor- mação. Segundo, diz o nome de um dos objetos e pede para que o aluno demonstre qual é, ou seja, associa-se o nome ao fato. Terceiro, aponta-se para um dos objetos e pergunta “Qual é este?”, para testar o aprendizado da criança. Você sabia Maria Montessori – Uma vida dedicada às crianças é uma minissérie que mostra os momentos de maior destaque da vida da educadora: a gra- duação em Medicina, a militância feminina, o trabalho pioneiro com crianças deficientes, a fundação da Casa das Crianças, a relação com o filho Mário, entre outros eventos que marcaram a vida dessa mulher inacreditável e extraordinária. Trata-se de uma cinebiografia de Maria Montessori (1870-1952), médica, educadora e pedagoga italiana que criou um método educa- cional revolucionário. – 33 – Educação Especial: conceitos e fundamentos Figura 1.12 – Método educacional montessoriano Fonte: Versátil Filmes. 1.5.4 Helen Keller (1880-1968) Nasceu em 27 de junho, nos Estados Unidos, na cidade de Tuscum- bia, Alabama, e ficou cega e surda aos 18 meses devido a uma doença que causou febre altíssima, tendo sido provavelmente escarlatina ou sarampo. Até os seis anos, uma criança surdocega permaneceu sem orientação peda- gógica adequada. Escreveu o livro A história de minha vida, publicado em 1903, e O diário de Helen Keller, em 1938. Sua história foi transformada em filme, intitulado Helen Keller e o Milagre de Anne Sullivan. Helen Keller relata que utilizava alguns sinais para comunicação com sua família para apresentar suas necessidades, mas tinha grandes dificuldades. Em 1887, quando Helen tinha seis anos, a professora AnneSullivan, que trabalhava na escola Perkins School for the Blind, em Boston, foi contratada por indicação de Alexander Graham Bell, que era amigo da família. Anne Sullivan foi uma criança com deficiência visual, tendo recu- perado a visão após nove cirurgias. Fundamentos da Educação Física Inclusiva e Adaptada – 34 – Helen tinha um comportamento agressivo por não conseguir se comunicar e expressar seus desejos. Sua família pretendia enviá-la para um asilo. A chegada de Anne Sullivan mudou radicalmente a vida e o futuro de Helen Keller, como relata em seu livro: O dia mais importante de toda minha vida foi o da chegada de minha professora Sullivan. Fico profundamente emocionada, quando penso no contraste imensurável das duas vidas que se jun- taram. Ela chegou no dia 3 de março do 1887, três meses antes de eu completar sete anos. Belos dias como estes fazem o coração bater ao compasso de uma música que nenhum silêncio poderá destruir. É maravilhoso ter ouvidos e olhos na alma. Isto completa a glória de viver. Anne Sullivan era rigorosa em seus objetivos de desenvolver auto- nomia na aquisição de habilidades cotidianas, como comer, vestir-se e autocuidado, além de ensinar a comunicar-se. Por isso, resolveu trabalhar com Helen em uma casa em separado, durante algumas semanas, para que pudesse ensiná-la sem a interferência da família. Movida pelo sentimento de pena, a família de Helen Keller a deixava fazer tudo que desejasse, caracterizando a ausência da cultura, das trocas afetivas e comunicativas, instalando-se uma forma de abandono. A metodologia de Anne para a alfabetização era entregar um objeto em sua mão e depois fazer sinais táteis, o alfabeto manual, que represen- tavam o nome do objeto. Assim, conseguiu estabelecer comunicação por meio das mãos, do tato. O primeiro objeto foi uma boneca confeccionada por uma ex-aluna surdocega de Anne Sullivan. Helen tocava a boneca e Anne representava em suas mãos as letras que correspondiam à pala- vra doll. Posteriormente, passou a ensinar outras palavras, como “bolo” e “água”. Conforme Helen ia progredindo no aprendizado das palavras, Anne passou a histórias fictícias e explicações detalhadas, o que motivou Helen a se interessar pela leitura e pelo aprendizado. Após aprender a comunicar-se, Helen modificou seu comportamento de agressividade. Anne Sullivan foi a única professora de Helen Keller, focando todos os seus esforços no seu aprendizado, ajudando-a a superar suas dificulda- des. Posteriormente, Helen aprendeu a ler por meio do sistema Braille e a falar colocando a mão na boca e na garganta de sua professora para sentir o movimento dos lábios e a vibração da voz. Atualmente, esse método é – 35 – Educação Especial: conceitos e fundamentos conhecido como Tadoma. Permaneceram juntas até a morte de Anne Sul- livan, em 1935. Helen Keller teve contato com outras crianças com deficiência visual e pôde comunicar-se com outras pessoas além da professora, pois antes Sullivan era a mediadora na comunicação. Ingressou para a universidade Colégio Radcliffe, graduando-se em Filosofia, em 1904. Anne acompanhou Helen durante todo período de sua graduação, transmitindo os livros que não existiam em Braille por meio do alfabeto manual. Helen criticou a quantidade de leituras obrigatórias, que não a permitiam pensar e refletir. Pensava ela que “a experiência humana não seria tão rica e gratificante se não existissem obstáculos a superar”. Considerou que antes a leitura era prazerosa, permitindo compreender o mundo, mas quando se torna uma obrigação, não estabelece uma liga- ção emocional com a imaginação. Após formada, passou a redigir artigos científicos sobre cegueira e fazer conferências em todo o mundo. Figura 1.13 – Cena do filme The miracle worker, quando Helen percebeu que aqueles sinais simbolizavam coisas e palavras Fonte: Playfilm Productions. Anne Sullivan ensinou a Helen o método de comunicação chamado de Tadoma, em que a pessoa toca os lábios e garganta de outras enquanto eles conversam, combinado com soletrar (em alfabeto Fundamentos da Educação Física Inclusiva e Adaptada – 36 – de linguagem dos sinais) na palma da mão da criança as palavras. Mais tarde, Helen aprendeu Braille e com ele aprendeu não somente a ler em inglês, mas também em alemão, latim, grego e francês. Helen Keller nos ensina a importância de darmos plena atenção ao que fazemos no presente, pois somente nessas condições podemos extrair algum aprendizado. Eu, que sou cega, posso dar uma sugestão aos que veem – um con- selho àqueles que deveriam fazer completo uso do dom da vista: servi-vos dos vossos olhos como se amanhã fosse cegar. O mesmo princípio é válido para o restante dos sentidos. Ouça a música das vozes, o canto de uma ave, os poderosos acordes de uma orquestra, como se amanhã fosse tornar-se surdo. Toque em tudo que desejar, como se amanhã fosse ficar privado do tato. Aspire o perfume das flores, saboreie com deleite os vossos alimentos, como se amanhã fosse perder o olfato e o paladar (SULLIVAN, 2000, p. 98). Helen Keller escreveu um texto denominado Três dias para ver (dis- ponível em: http://www.cerebromente.org.br/n16/curiosidades/helen. htm) que pode ser fonte inspiradora para organização de práticas pedagó- gicas. Por exemplo, o professor pode solicitar a um grupo de alunos que observem o caminho que fazem da casa para a escola, prestando atenção nos aspectos naturais e humanos da paisagem, elaborando um texto como resultado dessas observações. 1.6 História vivida pelo autor deste livro No fim dos anos 70 do século XX, as pessoas com deficiência toma- vam consciência do lugar de tutelados, infantilização e subserviência a que eram submetidas. Fortalecidas pela ideia da emancipação social e política, as pessoas com deficiência mobilizavam-se na fundação de asso- ciações para defesa de seus direitos, expressão de suas vozes, reconheci- mento de suas capacidades, conquista de autonomia e superação da con- dição de dependência e de inferioridade, tal como eram vistas na época. Elas enfrentaram a primeira fronteira da invisibilidade: o isolamento, a aceitação da incapacidade, a naturalização do não acesso aos bens sociais, o medo de tomar decisões e de produzir a nova materialidade jurídica, conceptual, valorativa e estrutural do mundo no qual desejavam viver. – 37 – Educação Especial: conceitos e fundamentos Diante de uma história de tutela, infantilização e silenciamento, a primeira barreira a vencer está localizada na autoimagem de cada pessoa. A crença na própria inferioridade é uma marca doída e dura para ser remo- vida. O sentimento de menos produz um automatismo que anula o pensa- mento e mata o desejo. Essa sensação de inferioridade resulta na natura- lização e na aceitação do isolamento em relação às oportunidades sociais. As pessoas eram cegas e a sociedade não as enxergava. O isolamento e a incapacidade eram uma construção social. Propagavam-se o assisten- cialismo e as limitações laborais da pessoa cega. Era necessário transfor- mar essa carga pesada, essas dificuldades associadas à deficiência visual: a infantilização e a condenação à inferioridade social e política. As pessoas com deficiência eram convencidas a aceitar “contingências” desse mundo. Havia que naturalizar o sofrimento decorrente da deficiência, as perdas e as desigualdades sociais. Então, nós, pessoas com deficiência, organizamo-nos, fundamos associações em diferentes centros urbanos do Brasil. Desde os anos 80, passamos a participar de discussões em âmbito local, regional, nacional e internacional. Compartilhamos experiências entre importantes persona- gens com deficiência visual, tais como: Luiz Geraldo de Mattos, Édson Lemos, Adilson Ventura, Ari Paulo de Souza, Hersem Ildebrandt, Maurí- cio Zeni, Valdomiro Valentim Teodoro e outros companheiros. O profes- sor Valdomiro Valentim Teodoro, presidente da Associação dos Deficien- tes Visuais do Paraná (ADEVIPAR), da qual sou umdos fundadores, era uma das principais lideranças e dizia: “nós queremos ter o direito de errar e assumir as consequências das nossas decisões”. Pessoas com deficiência começavam a entender aquela falsa natu- ralização da desigualdade. Palavras que evidenciam que nós entendemos a necessidade de organizar os eventos sociais, esportivos e educativos. Fomos movidos a planejar e lutar para obtenção da estrutura e das condi- ções materiais. Enfrentando a busca dos próprios objetivos, aos poucos, as pessoas foram tomando consciência de suas próprias necessidades. Reunidos, os mais experientes, movidos pela consciência crítica sobre a deficiência, alimentavam nos mais jovens o sonho de poder lutar em prol da satisfação dos próprios interesses. Na participação social, a palavra simboliza o nascimento da pessoa. Fundamentos da Educação Física Inclusiva e Adaptada – 38 – Havia a percepção de um abismo que separava as oportunidades sociais, profissionais e a vida segregada das pessoas com deficiência. Ini- cialmente, elas pisaram o próprio chão. Elas pensaram juntas quais eram seus sonhos principais, suas necessidades principais. Elas sentiram o pul- sar do desejo em seus corpos, ávidos por novos encontros e novas expe- riências. Elas enxergaram o lugar que ocupavam. Sentiam-se conduzidas, mas desejavam sua autodeterminação. As pessoas com deficiência visual já frequentavam escolas comuns e já cursavam o Ensino Superior, mas não havia organização social e polí- tica. Não havia a consciência dos próprios direitos. Não havia participa- ção. Então, não havia o desejo de acessos sociais e profissionais para além do universo simbólico das próprias mãos. As mãos permitiam o acesso à leitura em Braille, as mãos propiciavam a realização de certo trabalho, mas aquilo não era nem poderia ser tudo. Assumir o protagonismo social e político significava participar do mundo do trabalho e superar a exploração do trabalho manual precarizado. Era fundamental romper com os estigmas da defi- ciência associada a visões sobrenaturais, como a piedade, o pecado, a ausência de vontade, a consciência ingênua, a infantilização da sexualidade, a docilidade, a ignorância, a escuridão, a segrega- ção e a incapacidade para tomar decisões e atuar no mundo. Rompiam-se as crenças estigmatizadas, veiculadas no contexto social em que fomos educados. Rompia-se a tutela dos nossos porta-vozes. Era necessário organizar cursos de formação pro- fissional. Aprendemos a buscar os apoios de que necessitáva- mos para nos tornarmos mais autônomos e independentes. Figura 1.14 – Professor Dr. Paulo Ricardo Ross ministrando palestra Fonte: Agência da Hora/Eduarda Wilhelm Possenti 2 Políticas públicas para Educação Especial 2.1 Introdução Qual é a Educação Especial que temos? Não há planeja- mento eficaz se não conhecermos nossa realidade, os problemas que precisamos enfrentar, quem são as pessoas a quem temos de dar atenção adequada. Precisamos saber onde estamos para definir aonde queremos chegar. No presente, podemos identificar avanços significativos, como o AEE – Atendimento Educacional Especializado (conforme Instrução n. 6/2016 SEED/SUED de 29 de setembro de 2016). Programas de acessibilidade urbana, polí- ticas de acesso ao trabalho. Mas há muito o que afrontar. As pes- soas com deficiência sonham e lutam pelo direito a tratamento digno, à não discriminação, à participação social e à eliminação de todas as barreiras sociais e comunicativas que dificultam a manifestação das suas vozes, seu poder de escolha, o exercício pleno do trabalho e das trocas sociais. Fundamentos da Educação Física Inclusiva e Adaptada – 40 – Qual é a Educação Especial que queremos? O objetivo deste capítulo é apresentar os conceitos, as responsabilidades, as finalidades atribuídas à Educação Especial, os programas de atenção aos direitos das pessoas com deficiência, previstos pelas políticas públicas. O que é a Educação Especial? Tradicionalmente, a Educação Espe- cial foi uma modalidade de educação ofertada aos sujeitos com deficiên- cia, ou seja, havia escolas para cegos, escolas para surdos, escolas para pessoas com deficiência intelectual. Estas, porém, foram alvo de críticas, sendo vistas como segregadoras, não propiciando o convívio entre crian- ças com e sem deficiência. Desde suas origens, até a efetivação do Atendimento Educacional Especializado (AEE), em 2009, a Educação Especial configurava-se como um sistema paralelo ao ensino comum, isto é, em classes especiais, esco- las especiais, centros de reabilitação. Nesse sistema paralelo, a Educação Especial exercia a função substitutiva para aqueles que não conseguiam acompanhar a educação comum regular. Essa posição paralela da Educa- ção Especial era considerada discriminatória, o que indicava a necessi- dade de políticas que implementassem um único modelo de educação: a Educação Inclusiva. Em razão disso, a matrícula preferencialmente nas escolas regulares, constante no artigo 208 da Constituição Federal, passava a ser um desafio a ser superado, por meio da organização da Educação Especial na perspec- tiva da inclusão escolar. Assim, em 2007, era constituído um grupo de trabalho, com renoma- dos pesquisadores, os quais viriam apresentar, em 2008, a proposta que se tornava a Política Nacional de Educação Especial. A Educação Especial, no Art. 29 da Resolução n. 4 do CNE de 2010, é definida como modalidade transversal a todos os níveis, etapas e moda- lidades de ensino. É parte integrante da educação regular, devendo ser prevista no projeto político-pedagógico da unidade escolar. Os Parâmetros Curriculares Nacionais apresentam o conceito de transversalidade. O documento considera que: A transversalidade diz respeito à possibilidade de se estabelecer, na prática educativa, uma relação entre aprender na realidade e da – 41 – Políticas públicas para Educação Especial realidade de conhecimentos teoricamente sistematizados (aprender sobre a realidade) e as questões da vida real (aprender na realidade e da realidade) [...] Os Temas Transversais, portanto, dão sentido social a procedimentos e conceitos próprios das áreas convencio- nais, superando assim o aprender apenas pela necessidade escolar (BRASIL, 1998, p. 30). Toda política precisa conter os princípios e as metas. Os princípios são os valores que servem como sustentação para planejar todas as ações educativas, desde os recursos financeiros, até o modo como avaliar os estudantes. Os princípios fundamentam as escolhas dos conhecimentos, os procedimentos e as atitudes que contribuem para formação de cada estu- dante singular. Já as metas expressam os sonhos, as utopias, os resultados que almejamos, no sentido de qual ser humano pretendemos formar e em qual sociedade conviver. Se considerarmos que a sociedade é desigual, complexa, consti- tuída por sujeitos, instituições, grupos organizados, que se comunicam, disputam, aproximam-se e afastam-se, podemos escolher, por exemplo, não normatizar todos os comportamentos, não separar, não classificar, valendo-se de critérios, como condição física, sensorial, intelectual, gênero e outras diferenças. Podemos escolher produzir a experiência de aprender e conviver com o outro, não com o mesmo, aquele com a mesma condição social, física e intelectual. Aprender e interagir com o outro pode motivar a busca de novos códigos de comunicação, novas atitudes e expectativas. Um pressuposto fundamental para analisar as políticas é a desigual- dade dos direitos relacionados às pessoas com deficiência, às mulheres, aos negros, aos indígenas, às pessoas homoafetivas, às crianças, aos ido- sos, etc. A história atesta que os direitos são desiguais para grupos sociais e pessoas distintas. A constatação da diversidade cultural, das necessida- des e das capacidades das pessoas com deficiência clama por outras prá- ticas pedagógicas. Uma política que pretenda ser inclusiva necessita reconhecer e iden- tificar os processos históricosde produção da exclusão e de negação dos direitos fundamentais. Há conquistas sobre as quais podemos nos apoiar, como ponto de partida, mas há lacunas, feridas, processos de discrimina- ção, de rotulação, inferiorização que precisam ser enfrentados. Fundamentos da Educação Física Inclusiva e Adaptada – 42 – Vamos conhecer os documentos que orientam as políticas públicas, pois quem fiscaliza e denuncia o desrespeito às leis são os cidadãos e o Ministério Público. É de extrema importância o conhecimento das leis por parte de pessoas com deficiência, familiares e professores. 2.2 Declarações de direitos 1948 – Declaração Universal dos Direitos Humanos Esse documento, pela primeira vez, estabelece a proteção universal dos direitos humanos. A Educação Inclusiva está fundamentada na con- cepção dos direitos humanos, em que igualdade e diferença são valores indissociáveis. Em seu Art. 1º, temos que “Todos os seres humanos nas- cem livres e iguais, em dignidade e direitos” (DECLARAÇÃO, 1948). Os direitos humanos enumerados na Declaração Universal podem ser classificados em três grandes categorias: a primeira delas compreende os direitos civis relativos à proteção da integridade física, psicológica e moral dos indivíduos, visando preservá-los de abusos, da tortura ou da ditadura. Provocado pelos movimentos das pessoas com deficiência, o Estado brasileiro organiza, hoje, políticas para proteger e salvaguardar da vul- nerabilidade social de que são vítimas as pessoas com deficiência e sua manifestação nas diversidades geracionais, ciclos de vida, de gênero, étni- co-racial, sexual e outras. Assim, o Estado dirige as políticas para as crian- ças com deficiência, os idosos com deficiência, as mulheres com deficiên- cia, pessoa com deficiência em situação de pobreza (baixa renda), pessoas com deficiência vulneráveis à violência social, abuso sexual, negligência e abandono familiar. Em uma segunda categoria, encontram-se os direitos econômicos, sociais e culturais que permitem às pessoas participar ativamente da socie- dade, como o direito à educação, ao trabalho, ao lazer e a uma remunera- ção decente. Na defesa dessa categoria de direitos, o Estado promove ações, como: o Atendimento Educacional Especializado, Promotoria do Minis- tério Público para proteção dos direitos civis, individuais, sociais, traba- – 43 – Políticas públicas para Educação Especial lhistas e de outra natureza, visando assegurar a dignidade, a liberdade, a autonomia, a equidade e outros direitos da pessoa com deficiência. Os direitos políticos constituem a terceira categoria e se referem ao exercício de poder nas atividades públicas da sociedade democrática. A Convenção da ONU, Decreto n. 6949/2009, explicita o direito da pessoa com deficiência de ser ouvida em todas as situações que se relacionem com seus interesses. A história da inclusão social das pessoas com deficiência corresponde ao reconhecimento e ao exercício dessas três categorias de direitos, além da quarta geração: o direito à dignidade humana. Nesse sentido, é assegu- rada às pessoas com deficiência o direito à participação social, à educação e à não discriminação, o que proporciona relações e trocas sociais, nas quais cada indivíduo possa aprender com as diferenças. 1988 – Constituição Federal (CF) A Constituição Federal de 1988 garante, como dever do Estado, a oferta do atendimento educacional especializado, preferencialmente na rede regular de ensino (Art. 208). Assumiu os mesmos princípios postos na Declaração Universal dos Direitos Humanos. A partir da promulgação dessa Constituição, os municípios passaram a ter mais autonomia política e, assim, implementar as ações necessárias para melhorar a qualidade de vida da população. Na medida em que a sociedade brasileira tornou-se democrática, sua constituição garante o direito de todos à educação, oferecendo atendi- mento educacional especializado e condições de acesso e permanência às pessoas com deficiência. 1989 – Lei n. 7853 sobre a integração das pessoas com deficiência Essa lei tem por objetivo promover a integração social das pessoas com deficiência, tratando de assuntos como acessibilidade, educação, saúde, trabalho, lazer, previdência social, amparo à infância e à materni- dade e de instituir a tutela jurisdicional de interesses coletivos ou difusos Fundamentos da Educação Física Inclusiva e Adaptada – 44 – do segmento. Um grande marco dessa lei foi considerar como crime negar a matrícula de alunos em escolas por motivo de deficiência. Nesse sentido, a lei também atribui responsabilidades ao Ministério Público de instalar inquéritos para investigação. 1990 – Declaração Mundial Sobre Educação Para Todos Ocorreu em Jomtien, Tailândia. Assim como a Declaração Universal dos Direitos Humanos, defende que “A educação é um direito fundamen- tal de todos, mulheres e homens, de todas as idades, no mundo inteiro”, considerando a educação como de fundamental importância para o desen- volvimento das pessoas e das sociedades, pois “pode contribuir para con- quistar um mundo mais seguro, mais sadio, mais próspero e ambiental- mente mais puro, e que, ao mesmo tempo, favoreça o progresso social, econômico e cultural, a tolerância e a cooperação internacional” (BRA- SIL, 1990). No Brasil, foi lançado um novo relatório pela Unesco, em 1998, que pode ser encontrado em: <http://www.todosnos.unicamp.br:8080/lab/ legislacao/legislacao-internacional/declaracao%20de%20jomtiem.pdf/ view>. Nele, são apresentados e comentados os artigos da declaração. No artigo 3º, que propõe universalizar o acesso à educação e promover a equi- dade, é citado que “As necessidades básicas de aprendizagem das pessoas portadoras de deficiências requerem atenção especial. É preciso tomar medidas que garantam a igualdade de acesso à educação aos portadores de todo e qualquer tipo de deficiência, como parte integrante do sistema educativo” (UNESCO, 1998). O texto da lei utilizava o termo “portador”, hoje não mais utilizado. 1994 – Política Nacional Para Educação Especial Nos anos 90, a Educação Especial orientava sua ação pedagógica por princípios específicos, previstos na Política Nacional para Educação Especial, de 1994. Normalização: considerada a base filosófico-ideológica da integração. – 45 – Políticas públicas para Educação Especial Integração: são os valores da igualdade, da participação social, ajustamento aos padrões da sociedade. Individualização: visava a adequação da Educação Especial às carac- terísticas individuais, identificadas nas avaliações psicopedagógicas. Interdependência: tratava-se das parcerias entre diferentes enti- dades da sociedade. Construção do real: apoiava-se no princípio educativo da expe- riência e da sensorialidade, como princípio pedagógico que se acreditava atender às necessidades dos educandos com deficiência. Efetividade dos modelos de atendimento educacional: havia a perspectiva da racionalidade instrumental, expressa em infraestru- tura, hierarquia do poder e consenso político em torno das funções sociais e educativas. Ajuste econômico com a dimensão humana: valor que se deve atri- buir à dignidade dos sujeitos com deficiência, como seres integrais. Legitimidade: participação direta ou indireta das pessoas com deficiência na formação de políticas públicas, planos e programas (BRASIL, 1994). Essa política orientava-se pelo princípio da integração. Naquele mesmo ano, em 1994, era elaborada a proposta educacional conhecida como Declaração de Salamanca, a qual viria a substituir o fundamento integracionista pelo princípio inclusivista. Assim, o Brasil passou a organizar a Educação Especial sob duas visões: a integracionista, proclamada pela Política Nacional de 1994, e a perspectiva da Educação Inclusiva, proclamada pela Declaração de Sala- manca. Essa dualidade de perspectivas políticas se prolongou até 2008, quando o MEC promulgou a Proposta de Educação Especial na perspec- tiva da Educação Inclusiva,por meio do Decreto n. 6.571/2008, que pos- teriormente foi revogado pelo Decreto n. 7.611/2011. 1994 – Declaração de Salamanca Ocorreu em Salamanca, Espanha, no ano de 1994, a Conferência Mun- dial sobre Necessidades Educativas Especiais: acesso e qualidade, tam- bém promovida pela Unesco. Os países concordaram em atender e inte- grar diferentes tipos de pessoas com necessidades educacionais especiais Fundamentos da Educação Física Inclusiva e Adaptada – 46 – nos programas a serem implementados nos sistemas educativos em escolas comuns, a fim de combater a discriminação. Assim, os governos devem: a) dar prioridade política e orçamentária à melhoria de seus siste- mas educativos, para que possam abranger todas as crianças, inde- pendente de suas diferenças ou dificuldades individuais; b) adotar, com força de lei ou como política, o princípio da Educação Inclusiva, que permita a matrícula de todas as crian- ças em escolas comuns, a menos que haja razões convincentes para o contrário; c) criar mecanismos descentralizados e participativos de planeja- mento, supervisão e avaliação do ensino de crianças e adultos com necessidades educacionais especiais; d) promover e facilitar a participação de pais, comunidades e orga- nizações de pessoas com deficiência, no planejamento e no pro- cesso de tomada de decisões, para atender a alunos e alunas com necessidades educacionais especiais; e) assegurar que, num contexto de mudança sistemática, os progra- mas de formação do professorado, tanto inicial como continuada, estejam voltados para atender às necessidades educacionais espe- ciais, nas escolas inclusivas (BRASIL, 1994, p. 10). O legado da conferência de Salamanca refere-se à caracterização de uma educação de qualidade. A escola inclusiva atende a todas as crian- ças e valoriza suas diferenças; combate todas as formas de discriminação; estimula a criação de comunidades acolhedoras; modifica-se para atender às necessidades de todos os estudantes. A educação de qualidade é uma escola inclusiva, e as crianças têm o direito de frequentá-la. De acordo com a Declaração de Salamanca, o conceito de inclusão é um desafio para a educação, uma vez que estabelece que o direito à educação é para todos e não só para aqueles que apresentam necessidades educacionais especiais. As escolas devem acolher todas as crianças, independentemente de suas condições físicas, intelectuais, sociais, emocionais, linguísti- cas ou outras. Devem acolher crianças com deficiência e crianças bem-dotadas; crianças que vivem nas ruas e que trabalham; crian- ças de populações distantes ou nômades; crianças de minorias lin- guísticas, étnicas ou culturais e crianças de outros grupos ou zonas desfavorecidas ou marginalizadas (BRASIL, 1994, p. 17-18). – 47 – Políticas públicas para Educação Especial Na Declaração de Salamanca, o termo “necessidades educacionais especiais” refere-se a crianças ou jovens com deficiências ou dificuldades de aprendizagem. 1996 – Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) Na LDB n. 9.394/1996, a Educação Especial é dever do Estado, pública, gratuita e ofertada preferencialmente na rede regular de ensino. Essa obrigatoriedade do atendimento ao aluno com deficiência manteve a política das parcerias com as iniciativas e organizações da sociedade civil. Os artigos 59, 60 e 61 da LDB n. 9.394/96 versam sobre a Educação Espe- cial. A Lei n. 12.796, que será apresentada posteriormente, alterou a LBD. 1999 – Decreto n. 3298 O Decreto n. 2.298, que regulamenta a Lei n. 7.853/89, dispõe sobre a Política Nacional para a Integração da Pessoa Portadora de Deficiência E define a Educação Especial como uma modalidade transversal a todos os níveis e modalidades de ensino, enfatizando a atuação complementar da Educação Especial ao ensino regular. Esse decreto traz a contribuição do conceito de deficiência, que será destacado no capítulo específico sobre cada deficiência. Os seguintes con- ceitos são destacados: 2 deficiência – toda perda ou anormalidade de uma estrutura ou função psicológica, fisiológica ou anatômica que gere incapaci- dade para o desempenho de atividade, dentro do padrão conside- rado normal para o ser humano; 2 deficiência permanente – aquela que ocorreu ou se estabilizou durante um período de tempo suficiente para não permitir recu- peração ou ter probabilidade de que se altere, apesar de novos tratamentos; e 2 incapacidade – uma redução efetiva e acentuada da capacidade de integração social, com necessidade de equipamentos, adapta- Fundamentos da Educação Física Inclusiva e Adaptada – 48 – ções, meios ou recursos especiais para que a pessoa portadora de deficiência possa receber ou transmitir informações necessárias ao seu bem-estar pessoal e ao desempenho de função ou ativi- dade a ser exercida. 2001 – Decreto n. 3.956 de 2001 Promulga a Convenção Interamericana para a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Pessoas com Deficiência. Essa convenção ocorreu na Guatemala, em 1999, e se trata de um marco importante, pois traz a ideia de discriminação relacionada às defi- ciências, ao citar que: As pessoas portadoras de deficiência têm os mesmos direitos humanos e liberdades fundamentais que outras pessoas e que estes direitos, inclusive o de não ser submetido a discriminação com base na deficiência, emanam da dignidade e da igualdade que são inerentes a todo ser humano (BRASIL, 2001). Conceitua discriminação como: Toda a diferenciação, exclusão ou restrição baseada em deficiência [...] que tenham efeito ou propósito de impedir ou anular o reco- nhecimento, gozo ou exercício por parte das pessoas portadoras de deficiência de seus direitos humanos e suas liberdades fundamen- tais (BRASIL, 2001, p. 3). Também define que não constitui discriminação: [...] a diferenciação ou preferência adotada pelo Estado-parte para promover a integração social ou desenvolvimento pessoal dos por- tadores de deficiência desde que a diferenciação ou preferência não limite em si mesmo o direito a igualdade dessas pessoas e que elas não sejam obrigadas a aceitar tal diferenciação (BRASIL, 2001). Esse Decreto tem importante repercussão na educação, exigindo uma reinterpretação da Educação Especial, compreendida no contexto da dife- renciação adotada para promover a eliminação das barreiras que impedem o acesso à escolarização. Essa Convenção situa a pessoa com deficiência no contexto da diver- sidade humana e lhe confere a condição de sujeito de direitos, sujeito com- – 49 – Políticas públicas para Educação Especial pleto, produtor da cultura. Criminalizar a discriminação é uma forma de obrigar a sociedade a produzir adequações dos instrumentos, da comu- nicação e das oportunidades sociais. Tratava-se de uma Declaração de alcance mundial que retirava da pessoa com deficiência o ônus por não se beneficiar das oportunidades sociais. Etimologicamente, a discriminação pode ser associada à ideia de diferenciar, discernir, distinguir. Mas, ao longo da história, a pessoa com deficiência foi discriminada por causa da deficiência, isto é, recebeu tratamento desigual, foi excluída socialmente, como consequência do não reconhecimento dos direitos de usufruir dos benefícios produzidos pela sociedade. No início deste século, as políticas públicas reconhecem que a igual- dade formal ante a lei pode ser discriminatória, caso não sejam garantidas as condições de acessibilidade e de comunicação, extensivas a todos os espaços da vida em sociedade. O conceito de discriminação positiva passa a constituir-se em elemento ético e jurídico que rompe com a hegemonia de quase quinhentos anos da proclamação que marcou toda a Moderni- dade: afirmava-se “todos são livres, logo todos são iguais”. A liberdade e a igualdade abstratas exerciam dupla função ideológica: 1. estabelecer contratos com autonomia, respondendo pelas con- sequências; 2. ocultar as condições desiguais dos contratantes, forjando uma igualdade aparente,
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