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Autor: Prof. Flaviano do Rosário de Melo Pierangeli Colaboradora: Profa. Elizabeth Nantes Cavalcante Ilicitude e Culpabilidade Professor conteudista: Flaviano do Rosário de Melo Pierangeli Mestre em Direito Penal pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC/SP (2008), e pós-graduando em Direito Corporativo e Compliance pela Escola Paulista de Direito – EPD. Tem especialização em Direito Penal Econômico e Europeu pela Universidade de Coimbra/Portugal (2008) e especialização lato sensu em Direito Processual Penal pela Escola Paulista da Magistratura – EPM (2003). É graduado em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC/SP, com especialização no ramo penal: direito penal, direito processual penal e medicina legal (1994). Membro do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais e da Associação dos Advogados de São Paulo, é professor de Direito Penal, Direito Processual Penal e Prática Forense da UNIP desde 2013. © Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida ou transmitida por qualquer forma e/ou quaisquer meios (eletrônico, incluindo fotocópia e gravação) ou arquivada em qualquer sistema ou banco de dados sem permissão escrita da Universidade Paulista. Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) P615i Pierangeli, Flaviano do Rosário de Melo. Ilicitude e Culpabilidade / Flaviano do Rosário de Melo Pierangeli. – São Paulo: Editora Sol, 2021. 104 p., il. Nota: este volume está publicado nos Cadernos de Estudos e Pesquisas da UNIP, Série Didática, ISSN 1517-9230. CDU 343.222 U510.95 – 21 Prof. Dr. João Carlos Di Genio Reitor Prof. Fábio Romeu de Carvalho Vice-Reitor de Planejamento, Administração e Finanças Profa. Melânia Dalla Torre Vice-Reitora de Unidades Universitárias Profa. Dra. Marília Ancona-Lopez Vice-Reitora de Pós-Graduação e Pesquisa Profa. Dra. Marília Ancona-Lopez Vice-Reitora de Graduação Unip Interativa – EaD Profa. Elisabete Brihy Prof. Marcello Vannini Prof. Dr. Luiz Felipe Scabar Prof. Ivan Daliberto Frugoli Material Didático – EaD Comissão editorial: Dra. Angélica L. Carlini (UNIP) Dr. Ivan Dias da Motta (CESUMAR) Dra. Kátia Mosorov Alonso (UFMT) Apoio: Profa. Cláudia Regina Baptista – EaD Profa. Deise Alcantara Carreiro – Comissão de Qualificação e Avaliação de Cursos Projeto gráfico: Prof. Alexandre Ponzetto Revisão: Kleber Souza Sumário Ilicitude e Culpabilidade APRESENTAÇÃO ......................................................................................................................................................9 INTRODUÇÃO ...........................................................................................................................................................9 Unidade I 1 TIPO ....................................................................................................................................................................... 11 1.1 Teoria do tipo penal ............................................................................................................................ 11 1.2 Conceito de tipo penal ....................................................................................................................... 12 1.3 Funções do tipo legal .......................................................................................................................... 13 1.3.1 Função de garantia ................................................................................................................................ 13 1.3.2 Função fundamentadora ..................................................................................................................... 13 1.3.3 Função indiciária da ilicitude ............................................................................................................. 13 1.3.4 Função diferenciadora do erro .......................................................................................................... 14 1.3.5 Função seletiva ........................................................................................................................................ 14 1.4 Espécies de tipo penal ........................................................................................................................ 14 1.5 Elementos estruturais do tipo: objetivos, subjetivos e normativos ................................. 18 1.5.1 Elementos objetivos ............................................................................................................................... 20 1.5.2 Elementos subjetivos ............................................................................................................................. 20 1.5.3 Elementos normativos .......................................................................................................................... 20 1.6 Classificação dos tipos penais ......................................................................................................... 20 1.7 A Estrutura do tipo penal conforme o elemento subjetivo ................................................ 22 1.7.1 Tipo penal nos crimes dolosos ........................................................................................................... 23 1.7.2 Tipo penal nos crimes culposos ........................................................................................................ 25 2 TIPICIDADE ......................................................................................................................................................... 32 2.1 Tipicidade conglobante ...................................................................................................................... 32 3 ANTIJURIDICIDADE ......................................................................................................................................... 33 3.1 Conceito ................................................................................................................................................... 33 3.2 Classificações ......................................................................................................................................... 34 3.3 Relação entre antijuridicidade e Ilicitude .................................................................................. 35 3.4 Causas excludentes de antijuridicidade ...................................................................................... 35 3.4.1 Denominações .......................................................................................................................................... 35 3.4.2 Previsão normativa ................................................................................................................................ 36 3.4.3 Excesso no exercício das causas excludentes .............................................................................. 38 4 CAUSAS EXCLUDENTES DA ILICITUDE .................................................................................................... 40 4.1 Estado de necessidade........................................................................................................................ 40 4.1.1 Conceito...................................................................................................................................................... 40 4.1.2 Natureza jurídica ..................................................................................................................................... 40 4.1.3 Teorias unitária e diferenciadora ...................................................................................................... 40 4.1.4 Requisitos ................................................................................................................................................... 41 4.1.5 Formas de estado de necessidade ....................................................................................................44 4.2 Legítima defesa ..................................................................................................................................... 45 4.2.1 Conceito...................................................................................................................................................... 46 4.2.2 Natureza jurídica ..................................................................................................................................... 46 4.2.3 Requisitos ................................................................................................................................................... 46 4.2.4 Excesso ........................................................................................................................................................ 49 4.2.5 Commodus discessus............................................................................................................................. 49 4.2.6 Ofendículos ............................................................................................................................................... 49 4.3 Estrito cumprimento do dever legal ............................................................................................. 50 4.3.1 Conceito...................................................................................................................................................... 50 4.3.2 Natureza jurídica ..................................................................................................................................... 51 4.3.3 Dever legal ................................................................................................................................................. 51 4.4 Exercício regular de direito ............................................................................................................... 52 4.4.1 Conceito...................................................................................................................................................... 52 4.4.2 Natureza jurídica ..................................................................................................................................... 53 4.4.3 Ofendículos ............................................................................................................................................... 53 4.4.4 Excesso punível ........................................................................................................................................ 53 Unidade II 5 CULPABILIDADE ............................................................................................................................................... 57 5.1 Conceito ................................................................................................................................................... 57 5.2 Teorias da culpabilidade .................................................................................................................... 57 5.2.1 Teoria psicológica da culpabilidade ................................................................................................. 58 5.2.2 Teoria normativa ou psiconormativo da culpabilidade ........................................................... 58 5.2.3 Teoria normativa pura da culpabilidade ........................................................................................ 58 5.2.4 Teoria extremada da culpabilidade ou teoria limitada da culpabilidade ......................... 59 5.3 Natureza jurídica .................................................................................................................................. 59 5.4 Espécies de culpabilidade .................................................................................................................. 59 5.4.1 Coculpabilidade ....................................................................................................................................... 60 5.5 Elementos da culpabilidade ............................................................................................................. 60 5.6 Dirimentes da culpabilidade ............................................................................................................ 61 6 CAUSAS EXCLUDENTES DA CULPABILIDADE ........................................................................................ 61 6.1 Imputabilidade ...................................................................................................................................... 61 6.1.1 Conceito...................................................................................................................................................... 61 6.1.2 Elementos da imputabilidade ............................................................................................................ 61 6.1.3 Actio libera in causa .............................................................................................................................. 62 6.2 Causas excludentes da imputabilidade ....................................................................................... 63 6.3 Critérios ou sistemas de aferição da inimputabilidade ........................................................ 63 6.3.1 Biológico ou etiológico ........................................................................................................................ 63 6.3.2 Psicológico ................................................................................................................................................. 63 6.3.3 Biopsicológico .......................................................................................................................................... 64 6.4 Doença mental ...................................................................................................................................... 64 6.4.1 Dependência de substância psicotrópica ...................................................................................... 65 6.5 Desenvolvimento mental incompleto .......................................................................................... 66 6.6 Desenvolvimento mental retardado ............................................................................................. 69 6.7 Embriaguez completa proveniente de caso fortuito ou força maior ............................. 70 6.7.1 Conceito de embriaguez ...................................................................................................................... 70 6.7.2 Fases da embriaguez .............................................................................................................................. 70 6.7.3 Modalidades de embriaguez .............................................................................................................. 70 6.7.4 Responsabilidade penal decorrente de embriaguez ................................................................. 71 6.7.5 Embriaguez patológica ......................................................................................................................... 72 6.7.6 Embriaguez preordenada ..................................................................................................................... 72 6.7.7 Panorama sobre a embriaguez e a imputabilidade ................................................................... 73 6.8 Emoção e paixão ................................................................................................................................... 74 6.8.1 Efeitos legais decorrentes da emoção e paixão ......................................................................... 74 6.9 Semi-imputabilidade .......................................................................................................................... 75 6.9.1 Conceito......................................................................................................................................................75 6.9.2 Requisitos ................................................................................................................................................... 76 6.9.3 Responsabilidade penal decorrente da semi-imputabilidade .............................................. 76 6.10 Potencial consciência da ilicitude ............................................................................................... 77 6.10.1 Conceito ................................................................................................................................................... 77 6.11 Causa de exclusão da potencial consciência da ilicitude .................................................. 78 6.11.1 Erro de proibição escusável .............................................................................................................. 79 6.11.2 Erro de proibição inescusável .......................................................................................................... 80 6.12 Exigibilidade de conduta diversa ................................................................................................. 80 6.13 Causas de inexigibilidade de conduta diversa ....................................................................... 81 6.13.1 Coação moral ......................................................................................................................................... 81 6.13.2 Obediência hierárquica ...................................................................................................................... 81 6.13.3 Conceito de ordem de superior hierárquico ............................................................................. 82 6.13.4 Espécies de ordem e consequências legais ................................................................................ 82 Unidade III 7 CONCURSO DE PESSOAS.............................................................................................................................. 87 7.1 Conceito ................................................................................................................................................... 87 7.2 Teorias sobre o concurso de pessoas ............................................................................................ 87 7.2.1 Teoria pluralista ....................................................................................................................................... 87 7.2.2 Teoria dualista .......................................................................................................................................... 87 7.2.3 Teoria unitária .......................................................................................................................................... 88 7.3 Espécies de crimes quanto ao concurso de pessoas .............................................................. 88 7.4 Espécies de concurso de pessoas ................................................................................................... 89 7.5 Requisitos do concurso de pessoas ............................................................................................... 89 7.6 Formas de concurso de pessoas ..................................................................................................... 90 7.7 Autoria ...................................................................................................................................................... 90 7.7.1 Modalidades de autoria ....................................................................................................................... 91 7.7.2 Autoria colateral ..................................................................................................................................... 92 7.7.3 Autoria incerta ......................................................................................................................................... 92 7.7.4 Autoria ignorada ..................................................................................................................................... 92 7.7.5 Coautoria sucessiva ............................................................................................................................... 93 7.7.6 Coautoria de escritório ......................................................................................................................... 93 7.8 Participação ............................................................................................................................................ 93 7.8.1 Espécies de participação ...................................................................................................................... 94 7.8.2 Natureza jurídica da participação .................................................................................................... 94 7.8.3 Conivência e participação negativa ................................................................................................ 94 7.8.4 Participação em cadeia......................................................................................................................... 95 7.8.5 Participação sucessiva .......................................................................................................................... 95 8 PUNIBILIDADE NO CONCURSO DE PESSOAS ....................................................................................... 96 8.1 Participação de menor importância ............................................................................................. 96 8.2 Cooperação dolosamente distinta................................................................................................. 96 8.3 Comunicabilidade e incomunicabilidade de elementares e circunstâncias do crime ............................................................................................................................ 97 8.4 Hipóteses de impunibilidade ........................................................................................................... 98 9 APRESENTAÇÃO Prezado aluno, O conteúdo do presente livro-texto visa a vários objetivos, a começar por propiciar o prosseguimento no contato com a Parte Geral do Código Penal e sua linguagem técnica. Quem conhece a Parte Geral reúne melhores condições de compreender não apenas a Parte Especial do Código Penal, mas também a legislação penal extravagante. Afinal de contas, o avanço nos estudos sobre as regras gerais capacita o aluno a conhecer e interpretar diversas figuras jurídicas, formando juízos de valor acerca do seu cabimento ou não. A partir deste módulo, a fixação do conteúdo programático contribui para a compreensão das diferentes estruturas que compõem um tipo penal. Além disso, com a ilicitude se completa o estudo dos elementos do crime e suas diferentes hipóteses de exclusão de responsabilidade penal. Por sua vez, a culpabilidade e suas excludentes levam à compreensão da reprovação social acerca de um comportamento criminoso, analisada pelo magistrado, ao impor a sanção àquele que viola a legislação penal, seja como autor, seja como partícipe. INTRODUÇÃO O Direito Penal é uma ciência complexa e dinâmica em nossa sociedade. Não há dia que se passe sem notícia sobre a ocorrência de algum fato que envolva tal ciência. Basta acessarmos as grandes mídias para comprovarmos que as manchetes divulgam a ocorrência de um sem-número de eventos dos mais variados crimes que assolam a sociedade. Por outro lado, o ele não se mostra a primeira via de solução para os problemas que afligem a coletividade em geral. Ao contrário, somente após as demais áreas do Direito porventura revelarem insuficiência para a superação de conflitos é que o Direito Penal deve ser acionado para o desate de tais questões. A sucessividade do acionamento de respostas decorre do fato de o Direito Penal implicar possível restrição, senão privação de liberdade, em contrariedade ao estado natural doser livre. Por outras palavras, não se deve empregar as soluções próprias ao Direito Penal sem antes se buscar o equilíbrio das relações interpessoais que os demais ramos do Direito tiverem aptidão para o necessário apaziguamento. Em especial neste livro-texto, a construção dos tipos penais em suas diferentes modalidades enseja uma visão técnico-redacional, bem ainda uma reflexão sobre o seu conteúdo e alcance jurídicos. 10 De outra parte, o estudo da ilicitude e respectivas causas excludentes dimensiona o delito; enquanto o primeiro o completa, o segundo traz hipóteses que o justificam. Mais adiante, a culpabilidade e suas hipóteses de exclusão enfrentam a adequação da punição ao violador da norma penal. Para além da existência de um delito, avalia-se se a resposta estatal punitiva é condizente com a situação pessoal do seu autor. Por fim, contemplaremos as diferentes espécies de concorrências delinquencial e correlatas responsabilidades penais, conforme a importância do comportamento de cada indivíduo para a realização de um delito. A partir do conteúdo da disciplina Ilicitude e Culpabilidade, será possível que se reúna condições para elaboração de juízos críticos cada vez mais elaborados em relação ao ordenamento jurídico e sua correlação com os fenômenos sociais que se apresentam em nosso dia a dia. Assim, se perfaz o presente material, que acompanhará você, estimado aluno, ao longo dos seus estudos e, decerto, de sua vida profissional, dada a relevância de seu conteúdo. Bons estudos! 11 ILICITUDE E CULPABILIDADE Unidade I 1 TIPO O conceito de crime varia conforme a acepção jurídica que se busca alcançar. Dentre tais, sob visão analítica, crime pode ser conceituado como o fato típico, antijurídico e culpável, como sustenta a teoria tripartida ou, como preferimos, crime é o fato típico e antijurídico, sendo a culpabilidade o pressuposto da pena, de acordo com a teoria bipartida. Nesse diapasão, o estudo do tipo e da tipicidade estão inseridos no primeiro elemento do crime - o fato típico - porquanto neste são analisados a conduta, o resultado, o nexo causal e a tipicidade. 1.1 Teoria do tipo penal Em 1906, Ernst Beling escreveu “A teoria do tipo”, provocando uma revolução no Direito Penal, graças à inovadora forma de interpretar o fato criminoso, o que conduziu à reelaboração do conceito analítico de crime. Em constante evolução, a teoria do tipo apresentou diversas fases: Fase do tipo neutro ou da independência Desprovido da antijuridicidade e da culpabilidade, o tipo penal se caracteriza por tão somente descrever a conduta humana, ‘livre de valor’, como ensina Cezar Roberto Bitencourt (2014, p. 340): A função do tipo, para Beling, era definir delitos, e por isso se caracterizava pela sua natureza objetiva e neutra, isto é, livre de valor. O caráter objetivo do tipo significava a ausência de elementos subjetivos ou anímicos que, nessa época, integravam a culpabilidade; o caráter neutro, por sua vez, significava a ausência de valorações legais ou normativas que pudessem estar relacionadas com o ‘juízo de antijuridicidade’. Fase do tipo indiciário ou da ratio cognoscendi Com a contribuição de Max Ernst Mayer (“Tratado de direito penal”, de 1915), a tipicidade não se limita a descrever um fato juridicamente relevante, constituindo um ‘indício de antijuridicidade’, embora se reconheça a independência entre a tipicidade e a antijuridicidade. Como bem leciona Juarez Tavares (1980, p. 23): 12 Unidade I O tipo tem, antes de tudo, um caráter formal, não sendo mais do que um objeto, composto de caracteres conceituais objetivo-descritivos do delito, sobre o qual, posteriormente (na antijuridicidade), incidirá um juízo de valor, deduzido das normas jurídicas em sua totalidade. Fase da ratio essendi da ilicitude Contando com os estudos de Edmund Mezger (“Tratado de direito penal”, de 1931), o tipo legal ostenta função constitutiva da antijuridicidade. Assim, se o fato for considerado lícito, deverá ser considerado atípico; ao contrário, se houver tipicidade, deverá a ela corresponder a antijuridicidade. Como exemplificam André Estefam e Victor Rios Gonçalves (2016): “A ilicitude faz parte da tipicidade. O tipo penal do homicídio não seria matar alguém, mas matar alguém fora das hipóteses de legítima defesa, estado de necessidade etc.”. Observação Em decorrência da ratio essendi, duas teorias foram concebidas: Teoria dos elementos negativos do tipo: se o fato for acompanhado por causa eximente da ilicitude (estado de necessidade, legítima defesa, exercício regular de direito ou estrito cumprimento do dever legal), a tipicidade será excluída, pois atua como elemento negativo do tipo penal. Teoria do tipo de injusto penal: a tipicidade está inserida na ilicitude, sendo-lhe estranha a culpabilidade. 1.2 Conceito de tipo penal Tipo penal é a denominação recebida pelos dispositivos legais “em que o legislador prevê condutas delituosas”, como ensina JANAÍNA PASCHOAL, e acrescenta “cada conduta proibida pelo direito penal constitui um tipo penal” (PASCHOAL, 2015, p. 48). Nesse sentido, podemos ir além: tipo penal é todo artigo de lei de natureza penal, que apresente conteúdo proibitivo, como é o caso do “tipo do furto” ou do “tipo do roubo”, que incriminam um comportamento e preveem uma punição correspondente, ou conteúdo não proibitivo, a exemplo do art. 10, que trata da contagem de prazo, ou o art. 6º, que dispõe sobre o lugar do crime, de natureza explicativa ou permissiva. Concebido por Ernst Beling (“A teoria do tipo”, de 1906), o “delito-tipo” representaria um molde, uma estampa, um modelo no qual podem se encaixar os fatos da vida comum. 13 ILICITUDE E CULPABILIDADE Segundo Beling, o crime poderia ser identificado como um quadro, uma estampa, na qual estão presentes todos os fatos da vida comum. Como toda figura delitiva é formada por certos elementos, suas identidades caracterizam um certo crime. Desde então, exatamente por ser genérico e abstrato, o tipo legal descreve conduta criminosa ou da conduta permitida, sob proteção de determinado bem jurídico, definido como “fruto do consenso democrático em um Estado de Direito” (BITENCOURT, 2014, p. 349). 1.3 Funções do tipo legal Além de criar infrações penais, o tipo legal possui relevantes funções, tais como: de garantia, fundamentadora, indiciária da ilicitude, diferenciadora do erro e seletiva. 1.3.1 Função de garantia Decorrente da previsão constitucional do princípio da reserva legal, somente a lei em sentido material (isto é, norma geral e abstrata que regula a relação jurídica) e formal (aquela que atende ao processo legislativo constitucional) pode criar um tipo incriminador. Trata-se de garantia do indivíduo, pois ao conhecer as condutas compreendidas como ilícitas pelo Direito Penal, o ser humano pode praticar livremente todas as demais não incriminadas. 1.3.2 Função fundamentadora A previsão de uma conduta criminosa por um tipo penal ‘fundamenta’ o direito de punir do Estado quando o indivíduo viola a lei penal, legitimando-se e limitando-se o poder-dever estatal. 1.3.3 Função indiciária da ilicitude O tipo penal delimita a conduta penalmente ilícita. Dessa forma, se a ação ou omissão é típica, presume-se que tal seja impregnada de ilicitude, ou seja, contrária ao ordenamento jurídico. Referida presunção é relativa, devendo ser provada caso a caso. Assim, se o agente sustentar a licitude do fato, caberá ao mesmo a prova da existência de uma das excludentes do art. 23 do Código Penal. Exemplo: o policial que atende ao chamado de socorro, não responde por invasão de domicílio se tiver de arrombar porta da residência para salvar seus moradores de um incêndio que expunha a risco suas vidas. 14 Unidade I Lembrete Vale a pena recordar: a presunção relativa é aquela que depende de efetiva aferição para a sua adoção, isto é, deve ser alegada e provada. Por outro lado, a presunção absoluta independe de prova no caso concretoporque deriva da própria lei, ou seja, é a lei que dispõe em determinado sentido, conferindo juízo de certeza ao seu conteúdo. 1.3.4 Função diferenciadora do erro O dolo do agente deverá alcançar todas as elementares do tipo legal, sendo que eventual ignorância sobre elementar do tipo penal configura erro de tipo, afastando o dolo, de acordo com o preceito inserto no art. 20 do Código Penal: Erro sobre elementos do tipo: Art. 20 – O erro sobre elemento constitutivo do tipo legal de crime exclui o dolo, mas permite a punição por crime culposo, se previsto em lei. Por conseguinte, o autor de um fato típico somente poderá ser responsabilizado pela prática de crime doloso quando conhecer as circunstâncias de fato. 1.3.5 Função seletiva Compete ao tipo penal ‘selecionar’ as condutas que deverão ser proibidas (crimes comissivos) ou ordenadas (crimes omissivos) pela lei penal, considerando os princípios do Direito Penal. 1.4 Espécies de tipo penal Os tipos penais são divididos em incriminador e não incriminador, sendo que este se subdivide em permissivo e explicativo. Tipo incriminador ou legal Trata-se da síntese legal da conduta criminosa, isto é, o comando normativo que prevê um comportamento proibido pelo Estado. Exemplos: • art. 121 do CP, ao tratar da vedação da supressão da vida humana por outro ser humano; • art. 33 da Lei n. 11.343/2006, cujo tipo ‘incrimina’ dezoito comportamentos que revelam a conduta criminosa de tráfico de drogas ilícitas. 15 ILICITUDE E CULPABILIDADE Além da descrição de um comportamento proibido, o tipo penal traz, necessariamente, uma sanção, como consequência lógica do descumprimento da norma. Imagine alguém se comportando tal como prevê o art. 155 do CP: a pessoa subtrai alguma coisa móvel de sua vítima, acrescentando tal bem ao seu patrimônio, ou ao de outra pessoa, ilicitamente. Quem assim age, se submete à sanção penal, como consequência lógica de seu comportamento criminoso, ou seja, à pena, de reclusão, de um a quatro anos, e multa. Observação No tocante ao Código Penal, esta espécie de tipo não é encontrada na Parte Geral, que trata de regras gerais e não de hipóteses específicas de delitos. Já em relação às leis extravagantes, não há divisão do texto legal entre partes geral e especial, sendo reservado capítulo próprio para tratar dos crimes em espécie. Estrutura do tipo incriminador Nomen juris, título ou rubrica é a anotação lançada na margem de cada artigo e, por vezes, nos parágrafos ou mesmo nos incisos. Seu objetivo é identificar um delito, nomeando-o em sua modalidade fundamental, bem ainda especificando sua eventual forma privilegiada, qualificada ou circunstâncias atenuantes ou agravantes. Acompanhe o exemplo a seguir: Homicídio simples (caput) Homicídio qualificado (§2º) Caso de diminuição de pena (§1º) Homicídio culposo (§3º) Homicídio Figura 1 Como se depreende da figura anterior, no tocante ao crime de homicídio, destacamos o nomen juris, título ou rubrica, dentre outras, as hipóteses do homicídio simples, caso de diminuição de pena, sua forma qualificada e, por fim, o homicídio culposo. 16 Unidade I Preceitos primário e secundário Os tipos incriminadores contêm duas preceitos: o primário e o secundário. O preceito primário diz respeito ao comportamento que o Estado proíbe, enquanto o preceito secundário corresponde à consequência lógica que decorre da violação ao preceito primário, ou seja, a sanção penal. A elaboração de preceitos primário e secundário é exclusiva dos tipos penais incriminadores porque somente nesses é que temos um comportamento normativo, cuja violação sujeita o agente a uma sanção penal. Art. 123 - Matar, sob a influência do estado puerperal, o próprio filho, durante o parto ou logo após. Pena - detenção, de dois a seis anos. Preceito primário Preceito secundário Figura 2 Na figura anterior, uma vez violado o comportamento previsto no art. 123 CP, o Estado poderá exercer seu poder-dever de punir o agente (jus puniendi), com a aplicação de sanção penal de dois a seis anos, sob regime de detenção. Tipo não incriminador O tipo penal não incriminador não traz em seu conteúdo a descrição de um crime. Ao contrário, descreve (VENERAL; FERREIRA, 2020, p. 127): “as situações que admitem a conduta apesar de o fato ser típico, referindo-se à causas de exclusão da ilicitude (eximentes ou justificantes)”. São modalidades do tipo penal não incriminador o permissivo e o final, explicativo ou complementar. O tipo penal permissivo é a forma fundamental pela qual se define casos de exclusão de ilicitude ou de culpabilidade. Exemplo: art. 23 CP, que traz as hipóteses legais de excludentes da ilicitude: Art. 23 - Não há crime quando o agente pratica o fato: (Redação dada pela Lei n. 7.209, de 11.7.1984) I - em estado de necessidade; II - em legítima defesa; 17 ILICITUDE E CULPABILIDADE III - em estrito cumprimento de dever legal ou no exercício regular de direito. Por exemplo: art. 26 e seu parágrafo único, do CP, que contemplam as hipóteses de inimputabilidade e semi-imputabilidade, respectivamente: Art. 26 - É isento de pena o agente que, por doença mental ou desenvolvimento mental incompleto ou retardado, era, ao tempo da ação ou da omissão, inteiramente incapaz de entender o caráter ilícito do fato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento. (Redação dada pela Lei n. 7.209, de 11.7.1984) Redução de pena Parágrafo único - A pena pode ser reduzida de um a dois terços, se o agente, em virtude de perturbação de saúde mental ou por desenvolvimento mental incompleto ou retardado não era inteiramente capaz de entender o caráter ilícito do fato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento. (Redação dada pela Lei n. 7.209, de 11.7.1984). O tipo penal final, explicativo ou complementar, por sua vez, enuncia conceito e delimita o âmbito de sua aplicação. Exemplo: art. 14 CP, que aborda as hipóteses de crime consumado, de tentativa e sua correspondente forma de punição: Art. 14 - Diz-se o crime: (Redação dada pela Lei n. 7.209, de 11.7.1984) Crime consumado (Incluído pela Lei n. 7.209, de 11.7.1984) I - consumado, quando nele se reúnem todos os elementos de sua definição legal; (Incluído pela Lei n. 7.209, de 11.7.1984) Tentativa (Incluído pela Lei n. 7.209, de 11.7.1984) II - tentado, quando, iniciada a execução, não se consuma por circunstâncias alheias à vontade do agente. (Incluído pela Lei n. 7.209, de 11.7.1984) Pena de tentativa (Incluído pela Lei n. 7.209, de 11.7.1984) Parágrafo único - Salvo disposição em contrário, pune-se a tentativa com a pena correspondente ao crime consumado, diminuída de um a dois terços. 18 Unidade I Observação Há crimes que punem a tentativa de igual forma à sua consumação, como ocorre com o art. 352 do CP, que trata da “evasão mediante violência contra a pessoa”. ou Fugir Tentar fugir ou Figura 3 Art. 352 - Evadir-se ou tentar evadir-se o preso ou o indivíduo submetido a medida de segurança detentiva, usando de violência contra a pessoa: pena - detenção, de três meses a um ano, além da pena correspondente à violência. 1.5 Elementos estruturais do tipo: objetivos, subjetivos e normativos Para descrever um comportamento punível, o tipo penal é estruturado com um núcleo e suas elementares, além de eventuais circunstâncias – relativas à qualifi cadoras e fi guras privilegiadas. O núcleo do tipo penal é a primeira etapa para a construção de um tipo penal incriminador. Ele é formado por um ou mais verbos, cujo objetivo consiste em, ao lado dos demais elementos que integram um tipo penal, conferir perfeita compreensão acerca de um interesse que se pretende proteger, ou seja, um bem jurídico. Como exemplos de núcleo de tipo penal, temos: “subtrair” (furto e roubo); “matar” (homicídio); “constranger” (constrangimento ilegal, extorsão, estupro). 19 ILICITUDE E CULPABILIDADE Observação Os tipos penais constituídos por vários verbos típicos são denominadostipos mistos alternativos, de ação múltipla ou conteúdo variado. Nesses tipos penais é empregado o princípio da alternatividade, pelo qual basta a prática de uma das condutas previstas no seu conteúdo para já configurar o delito. Então, ainda que o agente adote mais de uma conduta (“verbo tipo”), haverá um só crime. Exemplo: o art. 33 da Lei de Drogas é bem esclarecedor. Referido tipo penal trata da figura do “tráfico de drogas”. Uma só conduta basta para configurar o mencionado crime. Mas o art. 33 é composto por nada menos que 18 (dezoito) verbos. Confira: “Art. 33. Importar, exportar, remeter, preparar, produzir, fabricar, adquirir, vender, expor à venda, oferecer, ter em depósito, transportar, trazer consigo, guardar, prescrever, ministrar, entregar a consumo ou fornecer drogas, ainda que gratuitamente, sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar” Como se vê, são múltiplas as possibilidades de se praticar a conduta que configura a expressão “traficar”. Logo, pela aplicação do princípio da alternatividade, não importa que o agente tenha realizado mais de uma conduta descrita nos diversos verbos que compõem o tipo penal do art. 33 da Lei de Drogas. O agente se sujeita a responder por um só crime. Sem dúvida, o núcleo é importante para a construção de um tipo penal. Todavia, tão só o núcleo não é suficiente para a perfeita compreensão da proteção legal ao bem jurídico. Afinal de contas, como mencionado no exemplo anterior, o mesmo verbo “constranger” foi empregado na elaboração dos delitos de constrangimento ilegal (art. 146), extorsão (art. 158) e estupro (art. 213), dentre outros. Isto posto, é imprescindível somar ao verbo outros elementos para a adequada elaboração de um tipo penal. Tratam-se de elementares ou elementos objetivos, subjetivos e normativos, além de ocasionais circunstâncias, que são agregados em torno do núcleo, com o objetivo de proporcionar perfeita descrição da conduta criminosa. 20 Unidade I 1.5.1 Elementos objetivos Elementos objetivos são aqueles que descrevem um comportamento criminoso, sem levar em consideração o estado anímico do agente. Revela um juízo de certeza, constatável por qualquer pessoa. Exemplo: “alguém” (art. 121 CP) significa outra pessoa humana, que não seja o agente. 1.5.2 Elementos subjetivos Elementos subjetivos dizem respeito ao estado anímico do agente, isto é, à atitude psíquica interna que cada tipo objetivo requer. Exemplo: no furto (art. 155 CP) não basta a subtração de coisa alheia móvel; exige-se o ânimo de assenhoreamento definitivo (‘animus rem sibi habendi’). 1.5.3 Elementos normativos Elementos normativos agregam um juízo de valor ao tipo penal para a sua perfeita compreensão. Dividem-se em: Elementos normativos jurídicos ou impróprios exigem um juízo de valor eminentemente jurídico. Exemplo: cheque; funcionário público; ilicitude; duplicata. Elementos normativos culturais, morais ou extrajurídicos envolvem conceitos próprios de outras áreas do conhecimento humano, tais como artes, literatura ou ciências. Exemplo: ato obsceno; ato libidinoso; dignidade; decoro. 1.6 Classificação dos tipos penais Os tipos penais podem ser classificados, doutrinariamente, em tipos normal e anormal; fundamental e derivado; fechado e aberto; simples e misto; congruente e incongruente. Tipo normal e tipo anormal • Tipo normal: contém apenas elementos objetivos, ou seja, não depende de valoração por parte do intérprete. Exemplo: art. 121 CP – “Matar alguém”. O significado da palavra ‘alguém’ já é suficiente para compreender que se trata de outra pessoa humana, que não o agente. 21 ILICITUDE E CULPABILIDADE • Tipo anormal: contém elementos normativos ou subjetivos, acerca dos quais recai valoração por parte do intérprete. Exemplo: art. 155 CP: “Subtrair, para si ou para outrem, coisa alheia móvel”. A expressão “para si ou para outrem” revela a intenção do agente de assenhoreamento da coisa subtraída. Tipo fundamental e tipo derivado • Tipo fundamental ou básico: trata-se da forma mais simples da conduta criminosa. Em regra, está situado no caput do dispositivo legal. Exemplo: furto simples (art. 155, caput, CP). • Tipo derivado: é aquele estruturado a partir do tipo básico, contendo circunstâncias que aumentam ou diminuem a pena. Exemplo: homicídio qualificado (art. 121, § 2º, CP); homicídio privilegiado (art. 121, § 1º, CP). Tipo fechado e tipo aberto • Tipo fechado ou cerrado: é o que possui descrição completa da conduta criminosa. Exemplo: furto; homicídio. • Tipo aberto: é o que não possui descrição típica completa, exigindo atividade valorativa, a cargo do julgador. Exemplo: Art. 134 CP – “Expor ou abandonar recém-nascido, para ocultar desonra própria”. O magistrado deve identificar, no caso concreto, a presença e o real alcance do que vem a ser ‘desonra própria’. Tipo simples e tipo misto • Tipo simples: é o que apresenta um único núcleo, um verbo típico. Caracteriza crime de “ação única”. Exemplo: art. 157 CP. A conduta identificada como “roubo” se dá por meio de um único verbo típico, qual seja, “subtrair”. • Tipo misto: é o que tem na sua descrição típica dois ou mais núcleos. Caracteriza os crimes de “ação múltipla” ou “conteúdo variado”. Exemplo: art. 33 da Lei de Drogas. Embora baste a prática de apenas um verbo nuclear constante do caput, a conduta de ‘tráfico de substâncias ilícitas’ pode ser caracterizada por nada menos que dezoito formas diferentes, a saber: ”importar, exportar, remeter, preparar, produzir, fabricar, 22 Unidade I adquirir, vender, expor à venda, oferecer, ter em depósito, transportar, trazer consigo, guardar, prescrever, ministrar, entregar a consumo ou fornecer drogas, ainda que gratuitamente, sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar”. Tipo congruente e tipo incongruente • Tipo congruente: trata-se do tipo em que há perfeita coincidência entre a vontade do autor e o fato descrito na lei penal. Exemplo: art. 121 CP: homicídio simples. Querendo matar, o agente age de acordo com a sua vontade e, efetivamente, provoca tal resultado. • Tipo incongruente: é aquele em que não há perfeita coincidência entre a vontade do autor e o fato descrito na lei penal Exemplo: tentativa. Não é a vontade do agente ‘tentar’ violar a legislação penal. Assim, embora desejando praticar um homicídio e, agindo de acordo com tal intenção, o agente não alcança seu objetivo por circunstâncias alheias à sua vontade. Sua responsabilidade penal só é identificada mediante a combinação das figuras do homicídio e da tentativa – arts. 121 e 14, II, ambos do Código Penal. Isto porque o tipo penal relativo ao homicídio, prevê tal resultado e não a sua forma tentada. 1.7 A Estrutura do tipo penal conforme o elemento subjetivo Como já visto ao longo da disciplina Teoria Geral do Crime, dentre vários critérios diferenciadores, os delitos podem ser dolosos, culposos e preterdolosos, levando-se em consideração sua intenção delitiva. Crimes dolosos são aqueles em que o sujeito quer o resultado ou assume o risco de produzi-lo. Exemplo: tráfico de drogas (art. 33 da Lei n. 11.343/06). Crimes culposos são aqueles em que o sujeito, embora não deseje, dá causa ao resultado por imprudência, negligência ou imperícia. Exemplo: homicídio culposo na direção de veículo automotor (art. 302 da Lei n. 9.503/97 – Código de Trânsito Brasileiro). Em princípio, os tipos penais contemplam a conduta dolosa. Apenas excepcionalmente, e desde que previstas em lei, será punível a forma culposa. As definições anteriores estão previstas no art. 18 do CP, bem como a regra da excepcionalidade do crime culposo, em seu parágrafo único. Vejamos: Art. 18 - Diz-se o crime: Crime doloso I - doloso, quando o agente quis o resultado ou assumiu o risco de produzi-lo; 23 ILICITUDE E CULPABILIDADE Crime culposo II - culposo, quando o agente deu causa ao resultado por imprudência, negligência ou imperícia. Parágrafo único -Salvo os casos expressos em lei, ninguém pode ser punido por fato previsto como crime, senão quando o pratica dolosamente. Crimes preterdolosos ou preterintencionais são aqueles em que o agente adota conduta dolosa, agravada por um resultado provocado por negligência, imprudência ou imperícia, não querido, ou seja, não intencional. Exemplo: o agente agride a vítima, lesionando o seu corpo. Com o ataque, a vítima perde o equilíbrio, cai, vindo a falecer em razão de bater a cabeça contra o solo (art. 129, § 3º, do CP). Como não poderia deixar de ser, a intenção delitiva conduz às estruturas típicas diferentes, conforme se trate de crimes dolosos ou de crimes culposos. 1.7.1 Tipo penal nos crimes dolosos Por definição, dolo é a vontade e a consciência de realizar os elementos constantes do tipo penal. Ressalte-se que a dita vontade significa querer algo; objetivar alguma coisa, ao passo que a consciência diz respeito ao conhecimento acerca do fato delituoso. Não uma, mas duas são as teorias que orientam o delito doloso, como se depreende da definição legal constante do art. 18, I, do Código Penal. • Teoria da vontade: dolo significa a vontade, de forma consciente, de realizar o resultado descrito no tipo penal, que se sabe contrário à lei penal. • Teoria do assentimento: é suficiente a aceitação de produzir o resultado, a partir da sua previsão ou consciência. Quanto às suas espécies, temos as seguintes classificações doutrinárias: • Dolo natural ou neutro: vontade do agente de realizar os elementos objetivos do tipo legal, sendo irrelevante a consciência da ilicitude. Ou seja, basta a consciência e a vontade. Trata-se de concepção dominante, na atualidade. • Dolo híbrido ou normativo: contém, além da consciência e vontade, a consciência relativa à ilicitude. Trata-se de concepção ultrapassada, hoje em dia, porque a consciência sobre a ilicitude integra a culpabilidade. • Dolo direto ou imediato: o agente quer produzir o resultado criminoso. Exemplo: agente quer desferir uma facada em região vital com o fim de matar alguém. 24 Unidade I O dolo direto se subdivide em 1º e 2º graus. — Dolo direto de 1º grau: relaciona-se com o fim visado pelo sujeito para alcançá-lo. — Dolo direto de 2º grau ou de consequências necessárias: relaciona-se com os meios escolhidos (efeitos colaterais) da conduta, considerados necessários. Exemplo: terrorista visa matar “A”, durante voo. Para tanto, aciona dispositivo explosivo que mata seu alvo (dolo direto de 1º grau), além de todos os demais passageiros (dolo direto de 2º grau ou de consequências necessárias). • Dolo indireto, indeterminado ou mediato: a vontade do agente não se dirige a certo e determinado resultado. O dolo indireto se subdivide em dolo alternativo e dolo eventual. — Dolo alternativo: a vontade do agente se dirige à produção de um ou outro resultado, indistintamente. Exemplo: “A” desfere golpes de faca contra “B”, com intenção de provocar a sua morte ou apenas de feri-lo gravemente. — Dolo eventual: o agente não quer diretamente o resultado, mas, com a sua conduta, aceita a possibilidade de produzi-lo. Exemplo: trafegar com velocidade excessiva, sobre calçadão repleto de pessoas, sendo ou não a intenção do agente, certo é que ele admite a hipótese de atropelar algum pedestre. • Dolo de dano: o agente realiza o comportamento criminoso com o fim de lesar o bem jurídico protegido pela norma penal. • Dolo de perigo: basta ao agente, com o seu comportamento criminoso, expor determinado bem jurídico a perigo, sem intenção de provocar lesão efetiva. • Dolo genérico: é a vontade do agente de praticar determinada conduta criminosa sem uma finalidade especial. • Dolo específico: é a vontade do agente de praticar certa conduta criminosa visando uma finalidade específica. Assim, orientando-se o tipo penal pela intenção do agente, os tipos penais são ordinariamente formulados a partir de uma conduta dolosa. Daí que se diz que somente por exceção, é que se pune uma conduta culposa. Ou seja, só será relevante ao Direito Penal a conduta culposa quando expressamente prevista como delituosa. Nessa linha, prevê o art. 18, II do CP, que o crime será considerado culposo “quando o agente deu causa ao resultado por imprudência, negligência ou imperícia”. 25 ILICITUDE E CULPABILIDADE 1.7.2 Tipo penal nos crimes culposos Conceitua-se culpa como a quebra do dever de cuidado imposto às pessoas de razoável diligência. Para melhor compreensão acerca do que vem a ser a tal “razoável diligência”, utiliza-se de comparação entre o comportamento do agente em determinado caso e aquele previsto na norma. Por conseguinte, não havendo coincidência entre ambos, restará configurada a culpa do agente. Quanto aos tipos culposos, estes têm como característica a estipulação normativa em aberto, recebendo a denominação de tipos penais abertos. Ou seja, sendo impossível descrever as múltiplas hipóteses de condutas culposas, a redação dos tipos penais culposos emprega fórmulas genéricas, a partir das quais o intérprete compara o comportamento adotado pelo agente com a norma. Por exemplo, podemos citar o homicídio culposo, previsto no art. 121, § 3º do CP, cuja redação é estipulada nos seguintes termos: “Se o homicídio é culposo”. Ora, como saber o que vem a ser a modalidade culposa de homicídio? Bem, para identificarmos a forma culposa, temos de comparar o comportamento adotado pelo agente com as hipóteses de homicídio. Isto é, se a conduta não foi intencional, não se fazendo presente qualquer hipótese dentre as qualificadoras, nem mesmo sob a forma dolosa simples prevista no caput do artigo em questão, então resta a modalidade culposa, para o caso de o agente ter agido sem a intenção de matar alguém, apesar de ser o responsável por tal resultado. Portanto, temos a ocorrência do resultado ‘morte’, não em virtude da vontade do agente, mas pela conduta descuidada do agente, incomum ao senso comum da sociedade. Nesse sentido, as pessoas em geral teriam adotado algum comportamento diferente daquele ostentado pelo agente, o que evidencia a sua culpa, passível de responsabilidade criminal. 1.7.2.1 Elementos do fato típico culposo São elementos do fato típico nos crimes culposos: • Conduta voluntária. • Inobservância do dever de cuidado objetivo. • Resultado lesivo involuntário. • Previsibilidade. • Tipicidade. 26 Unidade I Conduta voluntária Trata-se de ação ou omissão criticável, uma vez que impregnada de desvalor. É irrelevante a finalidade do agente, mas importam o modo e a forma impróprios de seu comportamento. Exemplo: motorista conduz veículo automotor, em velocidade excessiva, com o intuito de assistir à uma missa religiosa. No percurso, infelizmente, perde o controle, vindo a atropelar e ferir um pedestre. Não importa o propósito louvável do indivíduo (prática de fé religiosa), mas a falta de cuidado com que agiu ao exceder a velocidade máxima permitida em determinada via pública e, imprudentemente, provocar o acidente automobilístico. Dever de cuidado objetivo O dever de cuidado objetivo condiz com a cautela necessária para os atos da vida, de modo a não causar danos a bens jurídicos alheios. Exemplos: direção profissional ou não; manipulação de lixo tóxico. Todos devem ter cuidado, de modo a ser evitado qualquer lesão ao bem jurídico alheio. Não só, mas especialmente quem tem evidente conhecimento técnico sobre determinado assunto. Nessa linha, e de acordo com os exemplos anteriores, toda pessoa habilitada a dirigir veículo automotor tem o dever de cuidado para não cometer, por culpa, algum delito. Contudo, é evidente, que o motorista profissional deve adotar cuidado ainda maior, em razão de sua ocupação laboral. Por sua vez, é de conhecimento geral que todo lixo tóxico deve ser manipulado e descartado seguindo determinadas posturas administrativas. Então, quem trabalha com resíduos tóxicos bem sabe todo o cuidado com o qual deve agir para evitar, por exemplo, a contaminação dealguém ou do meio ambiente, deixando de incorrer em eventual crime culposo. Observação Sempre é bom relembrar que, por conta do princípio da ‘alteridade’, o Direito Penal somente se ocupa da lesão ou ameaça de lesão a bem jurídico alheio. Logo, não lhe diz respeito um ataque a bem jurídico próprio, como é o caso da autolesão. Por exemplo, o fato de alguém se lesionar não configura qualquer comportamento delituoso. Todavia, se a pessoa provocar lesão em si mesa e pleitear indenização securitária, esta pretensão fará surgir o interesse estatal sobre eventual responsabilidade penal do sujeito. 27 ILICITUDE E CULPABILIDADE Resultado lesivo involuntário Somente haverá ilícito penal culposo se da ação contrária ao cuidado resultar efetiva lesão a um bem jurídico, involuntariamente. Exemplo: conduzir veículo automotor sem a devida atenção pode gerar um acidente com vítima, configurando crime culposo. Por outro lado, ainda que atuando de forma desatenta, se o motorista de um caminhão não provocar um sinistro, inexistirá interesse do Estado para apurar responsabilidade do condutor, de natureza penal. Relação de causalidade Art. 13 - O resultado, de que depende a existência do crime, somente é imputável a quem lhe deu causa. Considera-se causa a ação ou omissão sem a qual o resultado não teria ocorrido. Mas, atenção, não basta o resultado para configurar o delito, ele deve ter sido provocado pelo agente, ou seja, deve haver nexo causal entre o fato e o resultado, em obediência ao art. 13 CP. Previsibilidade Como ensina Damásio (1999, p. 295), previsibilidade consiste na “possibilidade de ser antevisto o resultado, nas condições em que o sujeito se encontrava”. Exemplo: sob chuva, o motorista de um veículo automotor deve reduzir a velocidade, considerando que eventual frenagem poderá levar à falta de controle do carro, com risco de causar acidente. Não se trata de exercício de ‘adivinhação’, mas de conduta cuidadosa que qualquer pessoa prudente adotaria. Por isso, entende-se a verificação de ‘previsibilidade’ adota critério objetivo, importando-se com o comportamento que a maioria das pessoas empregaria em dada situação. Observação Por outro lado, a previsibilidade, sob critério subjetivo, levaria em consideração as razões pelas quais o agente agiu ou deixou de agir de certa maneira, para avaliar a reprovabilidade de sua conduta. Nestes termos, diz respeito, portanto, à Culpabilidade e não à Ilicitude. 28 Unidade I Tipicidade Ao contrário do que ocorre nos crimes dolosos - em que a tipicidade corresponde à perfeita adequação de dada situação fática à certo tipo penal - nos crimes culposos a ação não está descrita nos tipos penais, pois estes são tipos abertos, necessitando de complementação para sua compreensão. Exemplo: no art. 129, § 6º, CP, temos: “Se a lesão é culposa: Pena – detenção [...]”. Então, você deve se perguntar: “como saberei se a lesão é ou não culposa?” Bem, a resposta é determinada mediante comparação entre a conduta do agente e o comportamento ideal, ou seja, aquele que teria uma pessoa de discernimento e prudência ordinários. Se a conduta do sujeito não encontrar apoio no comportamento que a maioria das pessoas seguiria, então restará evidenciada a sua culpa. Logo, o agente deverá responder por lesão corporal culposa. 1.7.2.2 Modalidades de culpa De acordo com o art. 18, II, CP, são modalidades de culpa a: • Imprudência é caracterizada pela ação precipitada, realizada de uma forma afoita. Exemplo: limpar arma de fogo carregada, próximo a outras pessoas. • Negligência é caracterizada pela inação, por displicência. Exemplo: não frear o veículo automotor, ao estacioná-lo. • Imperícia é caracterizada pela imprudência ou negligência profissional, isto é, a não aplicação de conhecimentos técnicos no exercício legal de arte ou profissão. Exemplo: casa desaba e mata proprietário, por culpa do engenheiro. 1.7.2.3 Espécies de culpa As espécies de culpa não se confundem com as modalidades de culpa. Estas, como visto, compreendem as diferentes formas pela qual o agente realiza uma conduta delitiva, por falta de diligência ordinária, comum ao senso comum da sociedade. De sua parte, as espécies de culpa se referem às classificações doutrinárias de um crime culposo, levando-se em conta características que os diferenciam entre si. Assim, a culpa é classificada em inconsciente ou consciente, e própria ou imprópria, além da culpa mediata ou indireta. 29 ILICITUDE E CULPABILIDADE Culpa inconsciente ou culpa sem previsão Trata-se da culpa comum, em que o resultado não é previsto pelo agente, embora previsível. Exemplo: estaciono o meu veículo automotor, esquecendo-me de freá-lo, vindo a atropelar um pedestre. Culpa consciente ou culpa com previsão Refere-se ao resultado que é previsto pelo agente, embora espera que não ocorra ou que possa evitá-lo. Exemplo: em caçada, eu vejo um companheiro ao lado da caça. Aponto para esta, disparo mas acontece aquilo que eu tinha convicção de que não ocorreria: acerto o caçador. Culpa própria Diz respeito ao resultado, o qual, embora previsível, não é previsto pelo agente. Equivale à culpa inconsciente. Exemplo: ao limpar minha arma de fogo, disparo-a, acidentalmente, ferindo um colega que estava ao meu lado. Culpa imprópria, por extensão ou por equiparação Consiste na culpa fundada no erro do agente. Diferentemente das demais hipóteses de culpa, nesta o sujeito quer o resultado, mas sua vontade está viciada por um erro que poderia, com o cuidado necessário, ter evitado. Exemplo: policial militar atira para neutralizar a ação de um ladrão; atingido em sua perna, este tenta se levantar, em vão, ocasião em que o policial continua a alvejá-lo, pois acredita que o ladrão ainda não foi dominado. Culpa mediata ou indireta Trata-se da realização de um resultado, de forma culposa, indiretamente. Exemplo: durante um assalto, o roubador aborda o motorista de um veículo automotor que aguarda a liberação do sinal de semáforo. Assustado, a vítima abandona o carro e corre em direção ao cruzamento das vias, vindo a ser atropelado e morto por um caminhão. Neste caso hipotético, o roubador deve responder pelo homicídio culposo na direção de veículo automotor, tendo em vista ser previsível a fuga da vítima de um assalto, além de responder pelo roubo, sob forma tentada. 30 Unidade I Lembrete A culpa deve ser provada, no caso concreto, porque o ordenamento jurídico rechaça a responsabilidade penal objetiva. Daí, atualmente, não se admite a ‘culpa presumida’. 1.7.2.4 Graus de culpa Os graus de culpa se referem à maior ou menor possibilidade de previsão do resultado ou dos cuidados adotados ou pelo agente. Diante do afastamento do agente dos deveres objetivos de cuidado, quanto maior for a frustração da previsibilidade, maior será o grau de sua culpa. Temos, pois, em grau crescente, as culpas levíssima, leve e lata ou ampla. Os diferentes graus de culpa, no âmbito do Direito Penal não têm importância, uma vez que importa apenas verificar a presença ou a ausência dos deveres de cuidado, sob as modalidades imprudência, negligência ou imperícia, para a configuração de um delito culposo. Por outro lado, o juiz criminal, por ocasião da sentença, poderá fixar a pena, levando em consideração a maior ou menor intensidade de descuido do agente, por ocasião da análise acerca das ‘circunstâncias do fato”, como prevê o art. 59 CP. 1.7.2.5 Compensação de culpas Entende-se por compensação de culpas a possibilidade de se neutralizar a responsabilidade penal de um agente cujo comportamento delitivo se deu mediante culpa em face de outro comportamento delituoso, também culposo. Não se admite a compensação de culpas no Direito penal brasileiro. Assim, se duas pessoas se ferem mutuamente, por conduta culposa, ambas devem responder, cada qual pelo delito praticado. Isto porque não se trata de direito disponível, diferentemente do Direito civil. 1.7.2.6 Concorrência de culpasSe duas pessoas, agindo sob qualquer modalidade de culpa, desconhecendo uma a atitude da outra, atingirem terceira pessoa, lesionando a sua integridade física, ambas devem responder, cada qual pelo crime que praticou. 31 ILICITUDE E CULPABILIDADE 1.7.2.7 Culpa exclusiva da vítima A partir da conduta do agente, se o resultado for imputável somente à própria vítima, àquele não deve ser imposta qualquer responsabilidade criminal. Exemplo: decidida a praticar suicídio, a vítima se joga de um viaduto, vindo a cair logo à frente de um ônibus, cujo condutor a atropela, fatalmente. A responsabilidade do agente é anulada pelo comportamento imprevisível da vítima. 1.7.2.8 Excepcionalidade do crime culposo O tipo penal incriminador é, em regra, formado pelo dolo. Contudo, desde que prevista expressamente em lei, admite-se a forma culposa. Esta regra é prevista no parágrafo único do art. 18, do Código Penal: Art. 18 - Diz-se o crime: Parágrafo único - Salvo os casos expressos em lei, ninguém pode ser punido por fato previsto como crime, senão quando o pratica dolosamente. Por isso se diz que o dolo é a regra, e a culpa é exceção. Como exemplos de crimes culposos previstos no Código Penal, temos: homicídio (art. 121, §3º); lesões corporais (art. 129, §6º); incêndio (art. 250, §2º); explosão (art. 251, §3º) etc. 1.7.2.9 Crime preterdoloso Também conhecido como preterintencional, o crime preterdoloso é aquele formado por dois elementos subjetivos: o dolo e a culpa, em razão do resultado especialmente agravado. Em sua trilha delituosa, o agente age de forma dolosa e, em decorrência desta, advém um resultado não querido. Estruturalmente, temos o dolo na conduta antecedente e a culpa no consequente. Lesão corporal (dolo) Morte (culpa) art. 129, §3º Figura 4 32 Unidade I No exemplo anterior, temos o crime de lesão corporal seguida de morte, previsto no art. 129, § 3º, do CP. 2 TIPICIDADE Chama-se tipicidade a perfeita adequação de um fato atribuível ao ser humano em relação a determinado tipo legal. Em decorrência desta análise da conduta humana e a letra da lei, é considerado típico o comportamento que coincide com a previsão legal e, por sua vez, atípico quando há não há coincidência entre tais. Dessa forma, o fato de alguém matar outra pessoa é típico porque a supressão da vida encontra expressa previsão legal no art. 121 do CP. Há, portanto, tipicidade. Por outro lado, o fato de alguém deixar de pagar quitar uma dívida passível de regular cobrança não é típico porque inexiste previsão legal nesse sentido. Há, assim, atipicidade da conduta diante de sua irrelevância ao Direito penal. Trata-se, portanto, da “exteriorização do princípio da legalidade no corpo da estrutura analítica do delito” (BUENO, 2012, p. 26), que impõe os limites de interesse do Estado pela intervenção penal, diante dos inúmeros fatos comuns da vida. O Estado, na figura do legislador, descreve “as condutas consideradas nocivas à ordem jurídica” (DAMÁSIO, 1999, p. 265), não toleradas pela sociedade, as quais têm por consequência previsão punitiva. 2.1 Tipicidade conglobante Tipicidade conglobante ou antinormatividade é: a comprovação de que a conduta legalmente típica está também proibida pela norma, o que se obtém desentranhando o alcance da norma proibitiva conglobada com as restantes normas da ordem normativa (ZAFFARONI; PIERANGELI, 2011, p. 400). Trata-se de um dos elementos da tipicidade penal, à qual se junta a tipicidade legal. Por sua vez, a tipicidade legal ou ‘adequação à formulação legal do tipo’ significa, de acordo com os citados doutrinadores: “a individualização que a lei faz da conduta, mediante o conjunto dos elementos descritivos e valorativos (normativos) de que se vale o tipo legal”. 33 ILICITUDE E CULPABILIDADE Como exemplo, os autores citam a hipótese de o oficial de justiça, ao cumprir um mandado judicial, promove o sequestro de uma obra de arte, para colocá-la à disposição do Juízo. Tendo em vista que o estrito cumprimento de dever legal, não se revela criminosa a conduta do funcionário público, de acordo com a excludente de ilicitude prevista no art. 23, III, do CP, embora típica. Todavia, Zaffaroni e Pierangeli (2011, p. 399) criticam a citada tipicidade desta conduta, eis que a tipicidade implica contrariedade à norma, razão pela qual eles não admitem que: na ordem normativa uma norma ordene o que outra proíbe. Uma ordem normativa, na qual uma norma possa ordenar o que a outra pode proibir, deixa de ser ordem e de ser normativa e torna-se uma ‘desordem’ arbitrária. As normas jurídicas não ‘vivem’ isoladas, mas num entrelaçamento em que umas limitam as outras, e não podem ignorarem-se mutuamente. Nesse sentido, as condutas que configuram excludentes de ilicitude – estrito cumprimento de um dever legal e o exercício regular de direito - deveriam ser tratadas como atípicas, diante da ausência da tipicidade conglobante. Embora relevante e inovadora a visão crítica dos doutrinadores, convém destacar que, independentemente de ser observada a tipicidade conglobante, exemplos como a lesão desportiva ou a intervenção medico-cirúrgica não configuram crime, seja por ausência de ilicitude, seja por atipicidade conglobante. Saiba mais A fim de se aprofundar sobre a estruturação dos tipos penais, recomendamos o livro a seguir: MÉDICI, S. O. Teoria dos tipos penais: parte especial do direito penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1998. Além da formação dos tipos penais, o autor se dedica a evidenciar critérios a serem adotados na elaboração da legislação penal. 3 ANTIJURIDICIDADE 3.1 Conceito Antijuridicidade ou ilicitude consiste na contraposição do fato ao ordenamento jurídico, mediante exposição a perigo de dano ou lesão a certo bem juridicamente tutelado. 34 Unidade I 3.2 Classificações Antijuridicidade formal Do ponto de vista formal, a antijuridicidade pertence ao estudo da tipicidade, eis que aqui interessa a análise da correspondência do fato à previsão legal. Exemplo: o furto, como fato humano, é formalmente antijurídico porque viola a previsão legal do art. 155 do CP. Antijuridicidade material Sob perspectiva material, a antijuridicidade é aquela que reside na conduta humana que viola o bem jurídico tutelado pela norma. Exemplo: matar alguém viola a vida, como bem juridicamente protegido. Antijuridicidade subjetiva A configuração da antijuridicidade subjetiva depende da imputabilidade do sujeito. Portanto, “só há infração ao comando em relação à vontade, não em relação a ocorrências naturais ou condutas humanas que não podem ser atribuídas à vontade imputável” (DAMÁSIO, 1999, p. 355) que, segundo o autor diz respeito à culpabilidade e não à ilicitude. Antijuridicidade objetiva A antijuridicidade objetiva diz respeito ao fato humano capaz de contrariar determinada norma. Tem existente própria, independente da culpabilidade do sujeito. Em termos práticos, a título de exemplo: um louco pratica crime porque seu comportamento viola a expectativa social em torno da proteção da vida humana. Antijuridicidade genérica A antijuridicidade objetiva está relacionada à frustração do fato com a norma em abstrato, com a afetação de um bem jurídico tutelado penalmente. Antijuridicidade específica A antijuridicidade específica é aquela que contém termos normativos, tais como “casa alheia”, “repouso noturno”. 35 ILICITUDE E CULPABILIDADE 3.3 Relação entre antijuridicidade e Ilicitude Como vimos, o tipo penal possui várias funções, dentre as quais a função indiciária da ilicitude, eis que o tipo delimita a conduta penalmente ilícita. Dessa forma, se a ação ou omissão é típica, presume-se que tal seja impregnada de ilicitude, ou seja, contrária ao ordenamento jurídico. Claro, tal presunção é relativa, isto é, depende de prova no caso concreto. Exemplo: o policial que atende ao chamado de socorro, não responde por invasão de domicílio se tiver de arrombar porta da residência para salvar seus moradoresde um incêndio que expunha a risco suas vidas. Nesse panorama, a relação entre a ilicitude e a tipicidade dá conta de que esta configura um indício daquela, desde que não presente alguma causa eximente de ilicitude. 3.4 Causas excludentes de antijuridicidade Partindo-se da premissa, segundo a qual o crime possui dois elementos – o fato típico e a antijuridicidade – na hipótese de prática de um fato típico, se tal não se revelar antijurídico, o crime não restará configurado. Nas palavras de Janaina Paschoal (2015, p. 34): Se alguém mata uma pessoa, a conduta se subsume ao tipo penal, sendo, portanto, típica. Essa tipicidade, por sua vez, seria pressuposto (indício) da antijuridicidade do ato. A antijuridicidade somente restaria descaracterizada com a demonstração de que a morte se deu em legítima defesa ou em qualquer outra situação excludente. Em sintonia com o entendimento anterior, resta claro que se o Estado autoriza a pessoa, por exemplo, a se defender de uma injusta agressão, não é razoável que este mesmo Estado configure tal conduta como crime atribuível à vítima. Afinal de contas, a prática de legítima defesa está de acordo com a lei. Portanto, ao agir em conformidade com o ordenamento jurídico, o sujeito deve ser absolvido porque, embora típico o fato, não há ilicitude, o que afasta a caracterização de um delito. 3.4.1 Denominações Sobre as hipóteses de exclusão da ilicitude, várias são as nomenclaturas empregadas pela doutrina, tais como: descriminantes, justificantes, eximentes, causas permissivas. Em geral, as excludentes são identificáveis pela expressão normativa “não há crime”. 36 Unidade I Exemplos: Exclusão de ilicitude Art. 23 - Não há crime quando o agente pratica o fato: […] Divulgação de cena de estupro ou de cena de estupro de vulnerável, de cena de sexo ou de pornografia (Incluído pela Lei n. 13.718, de 2018) Art. 218-C. […] Exclusão de ilicitude (Incluído pela Lei n. 13.718, de 2018) § 2º Não há crime quando o agente pratica as condutas descritas no caput deste artigo em publicação de natureza jornalística, científica, cultural ou acadêmica com a adoção de recurso que impossibilite a identificação da vítima, ressalvada sua prévia autorização, caso seja maior de 18 (dezoito) anos (Incluído pela Lei n. 13.718, de 2018). 3.4.2 Previsão normativa Em nosso ordenamento jurídico, há causas genéricas e específicas, ambas contidas no Código Penal. Além destas, há hipóteses extrapenais e supralegais. Causas genéricas Previstas no art. 23 do Código Penal, portanto, em sua Parte Geral. Aplicáveis a qualquer espécie de delito, tratam-se das figuras do estado de necessidade, da legítima defesa, do estrito cumprimento do dever legal e do exercício regular de direito. Causas específicas Estão localizadas na Parte Especial do Código Penal, assim, aplicáveis somente aos crimes a eles referidos. Exemplo: Violação de domicílio Art. 150 - Entrar ou permanecer, clandestina ou astuciosamente, ou contra a vontade expressa ou tácita de quem de direito, em casa alheia ou em suas dependências […] 37 ILICITUDE E CULPABILIDADE § 3º - Não constitui crime a entrada ou permanência em casa alheia ou em suas dependências: I - durante o dia, com observância das formalidades legais, para efetuar prisão ou outra diligência; II - a qualquer hora do dia ou da noite, quando algum crime está sendo ali praticado ou na iminência de o ser. Causas extrapenais As causas extrapenais lidam com hipóteses não previstas na legislação penal. Exemplos: No Código Civil, ao tratar dos “efeitos da posse”: Art. 1.210. O possuidor tem direito a ser mantido na posse em caso de turbação, restituído no de esbulho, e segurado de violência iminente, se tiver justo receio de ser molestado. § 1º O possuidor turbado, ou esbulhado, poderá manter-se ou restituir-se por sua própria força, contanto que o faça logo; os atos de defesa, ou de desforço, não podem ir além do indispensável à manutenção, ou restituição da posse. Na Lei n. 9.605/98, ao tratar dos crimes contra a fauna: Art. 37. Não é crime o abate de animal, quando realizado: I - em estado de necessidade, para saciar a fome do agente ou de sua família; II - para proteger lavouras, pomares e rebanhos da ação predatória ou destruidora de animais, desde que legal e expressamente autorizado pela autoridade competente; III – (VETADO) IV - por ser nocivo o animal, desde que assim caracterizado pelo órgão competente. 38 Unidade I Causas supralegais As causas supralegais decorrem de entendimentos éticos sobre determinados assuntos cuja sociedade os aceita, além de encontrarem aceitação doutrina e jurisprudencial. Exemplo: o consentimento do ofendido em relação às lesões corporais decorrentes da prática de artes marciais. Observação Nem todos aceitam a possibilidade de uma causa supralegal excludente da ilicitude. Nesse sentido, oportuna a observação: Anote-se, porém, ser vedado o reconhecimento de causas supralegais para os partidários do caráter formal da ilicitude: se esta é compreendida como a mera contrariedade entre o fato praticado e o ordenamento jurídico (posição legalista), somente esse mesmo ordenamento jurídico pode, taxativamente, afastar a ilicitude legalmente configurada (MASSON, 2012, p. 376). 3.4.3 Excesso no exercício das causas excludentes Em que consiste o ‘excesso’? Excesso significa o exagero que resulta de uma conduta, em princípio, considerada legítima. Para que o agente se comporte com exagero, seja ele doloso ou culposo, ele deve se encontrar sob uma das hipóteses de exclusão da ilicitude, como prevê o parágrafo único do art. 23 CP: Não há crime quando o agente pratica o fato Parágrafo único – O agente, em qualquer das hipóteses deste artigo, responderá pelo excesso doloso ou culposo. 3.4.3.1 Modalidades A doutrina classifica o excesso em doloso ou consciente, e não intencional ou inconsciente. Doloso ou consciente Logo após ter agido licitamente, acobertado uma das causas excludentes da ilicitude, o agente emprega exagero em sua conduta, de forma intencional. 39 ILICITUDE E CULPABILIDADE Exemplo: durante roubo, a vítima desarma o roubador (licitamente). Embora sem qualquer nova investida criminosa, a vítima passa a agredi-lo (ilicitamente). Consequência: a vítima deve responder pelo excesso intencional, na forma dolosa. Não intencional ou inconsciente Baseada na falsa percepção da realidade, ou seja, em erro do agente. O “sujeito ultrapassa os limites da excludente sem se dar conta disso. Para determinar sua responsabilidade penal, será preciso avaliar se o erro por ele cometido foi evitável ou não” (ESTEFAM; GONÇALVES, 2016, p. 395). Nesse passo, importante verificar o erro era evitável ou inevitável. Considera-se evitável o erro praticado por pessoa sem as cautelas que dele se podia esperar, ao contrário do comportamento adotável pelo homem médio. Exemplo: sem perceber que o ladrão já não mais lhe representava qualquer perigo, a vítima continua agredindo o agente. Consequência: afastado o dolo, a vítima responderá por culpa, se prevista em lei tal modalidade. Por outro lado, considera-se inevitável o erro com que age a pessoa, tal como agiria a maioria das pessoas em igual situação. Exemplo: vítima reage ao roubo, disparando mortalmente contra o roubador, que segurava uma arma de brinquedo, semelhante arma de fogo. Consequência: afasta-se o dolo e a culpa, apesar do excesso, que é considerado exculpante. Observação O excesso exculpante é aquele que se apoia na culpa imprópria, por equiparação ou assimilação, o qual elimina qualquer responsabilidade penal do agente. 40 Unidade I 4 CAUSAS EXCLUDENTES DA ILICITUDE 4.1 Estado de necessidade Diz o Código Penal, no caput do art. 24: Considera-se em estado de necessidade quem pratica o fato para salvar de perigo atual, que não provocou por sua vontade, nem podia de outro modo evitar, direito próprio ou alheio, cujo sacrifício, nas circunstâncias, não era razoável
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