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E-BOOK 3 - ANTROPOLOGIA IDENTIDADE E DIVERSIDADE

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Antropologia, 
identidade e 
diversidade
E-book 3
César Niemietz
Neste E-book:
Introdução ���������������������������������������������������� 3
Sobre as construções das identidades e das 
diversidades ����������������������������������������������������������� 3
Povo, Estado, nação e identidade�������������������������� 4
A invasão da América e o choque entre “outros” � 8
A identidade nacional e o Estado 
visto como objeto de análise 
antropológica ���������������������������������������������16
O Estado como um mito ��������������������������������������16
O Estado e a nação como comunidades 
“imaginadas” ��������������������������������������������������������18
Sobre a formação das estruturas racistas ��������� 21
O etnocídio como efeito perverso do 
etnocentrismo e do racismo ��������������������������������24
A identidade negra ontem e hoje �������������������������32
Considerações finais�������������������������������38
Síntese ���������������������������������������������������������39
2
E-book 
1
E-book 
3
INTRODUÇÃO
As identidades contemporâneas são marcadas por 
elementos diversos� Neste capítulo, estudaremos 
um desses marcadores, a saber, a nação� Desse 
modo, refletiremos sobre como a ideia de nação é 
formada pelos grupos humanos, e como ela, por sua 
vez, acaba definindo uma certa identidade nacional, 
resultando em um sentimento muito particular: o 
nacionalismo�
De saída, uma constatação: não é possível afirmar 
que a nação e seus componentes básicos (língua, 
sentimento étnico e território) são naturais� Desse 
modo, a própria ideia de pertencimento a uma deter-
minada nação precisa ser colocada sob análise� Para 
tanto, recorreremos aos estudos de antropólogos 
e historiadores que se debruçam exaustivamente 
sobre essas questões�
3
POVO, ESTADO, 
NAÇÃO E 
IDENTIDADE
Em linhas gerais, podemos compreender povo como 
um agrupamento de pessoas que compartilham de-
terminadas afinidades entre si. Esse tipo de organi-
zação, no entanto, não é formalizado, de maneira que 
essas afinidades podem ser pensadas de maneira 
mais ou menos rigorosas� De outro lado, nação in-
dica um agrupamento de pessoas que ocupa um 
determinado território de maneira soberana, com-
partilhando relativo consenso sobre a identidade 
que se pretende projetar internamente – sobre o 
próprio grupo – e externamente – sobre os demais�
Dessa forma, outros elementos podem entrar na de-
finição de nação, tais como a existência de um sen-
timento que delimita uma origem comum entre as 
pessoas do grupo, bem como os costumes, língua, 
tradições, valores e ideias que estão circunscritas 
a essa identidade� Esse agrupamento característico 
pode vir a se tornar um Estado e um país, mas isso 
não é uma regra�
Se compreendermos o Estado como uma unidade 
administrativa que delimita o alcance governamen-
tal internamente, através das leis, e externamente, 
através da política externa, veremos que se trata de 
4
uma concepção também muito recente na história 
dos grupos humanos�
O Estado moderno, da forma como o pensamos nos 
dias de hoje, tem suas origens nos séculos 16 e 17, 
embora tenha se constituído de fato a partir do fim 
do século 18 e durante o século 19, na chamada “era 
das revoluções” (HOBSBAWN, 1990)� Essa forma de 
Estado, como a conhecemos, indica um domínio 
político direto sobre seus habitantes e a rigidez de 
suas fronteiras� Como exemplo posterior, tomemos 
a nossa Constituição Federal, de 1988, uma vez que 
é o documento legal máximo do Estado brasileiro, 
segundo o qual todas as demais legislações mu-
nicipais e estaduais devem a ele se subordinar, em 
última instância�
A propósito da crescente força que as intervenções 
dos Estados passaram a ter sobre as populações 
situadas em seu território, durante o século 19, o 
historiador Eric Hobsbawm afirma que:
[...] se tornaram tão universais e rotinizadas 
nos Estados “modernos” que uma família 
teria que viver em um lugar muito inacessível 
se um de seus membros não quisesse entrar 
em contato regular com o Estado nacional e 
seus agentes: através do carteiro, do policial 
ou do guarda, e oportunamente do profes-
sor; através dos homens que trabalhavam 
nas estradas de ferro, quando estas eram 
públicas; para não mencionar os quartéis 
de soldados ou mesmo as bandas militares 
5
amplamente audíveis (HOBSBAWM, 1990, 
p. 102).
Nos dias de hoje, existem Estados que se caracte-
rizam como representantes de mais de uma nação, 
a exemplo do Canadá, no qual convivem legalmente 
grupos correspondentes às primeiras nações (first 
nations), anteriores à constituição política e social 
do país, que se organizam e reivindicam políticas 
voltadas às suas características étnicas específicas. 
Esses grupos que habitam o território canadense 
possuem assembleia própria, que conta com a par-
ticipação de cerca de 900 mil pessoas, oriundas de 
634 grupos�
Na página da Assembly of first nations (Assembleia 
das primeiras nações – http://www.afn.ca), é pos-
sível consultar os documentos e ideias referentes à 
identidade desses grupos, dentre as quais se desta-
cam a noção de autodeterminação, ancestralidade, 
direitos e responsabilidades, que vão para além da 
nacionalidade canadense�
Os movimentos de autorreconhecimento da ances-
tralidade étnica das identidades autóctones têm 
sido reconhecidos por países diversos� No caso do 
Canadá e da Austrália, por exemplo, os Estados ini-
ciaram a partir da segunda metade do século 20 uma 
série de pronunciamentos e políticas voltadas para 
o perdão e reconciliação em relação às populações 
originárias que foram vítimas dos extermínios físicos 
e culturais promovidos pelos Estados� Essa mu-
6
dança de perspectiva levou a Bolívia a oficialmente 
reconhecer sua plurinacionalidade, uma vez que 
grupos étnicos distintos estão situados nos limites 
administrativos do país – sobretudo os quéchuas 
e os aimarás, grupos que já traziam componentes 
nacionais antes da invasão espanhola�
Os atributos particulares que definem as nações são 
historicamente construídos, uma vez que, há muito 
tempo, o conceito de raça – tomado de empréstimo 
da biologia – deixou de ser empregado para designar 
o que define uma nação como particular. A história, 
desse modo, passa a ser o componente decisivo 
para a formação das identidades nacionais�
Podcast 1 
7
A INVASÃO DA 
AMÉRICA E O 
CHOQUE ENTRE 
“OUTROS”
Um primeiro ponto deve deter nossa atenção no que 
concerne aos impactos resultantes dos encontros 
entre as diferentes culturas� Esse ponto deriva de 
questões apresentadas por Tzvetan Todorov (1983) 
e contribuem para localizarmos um dos vetores pre-
sentes no processo de formação das identidades na-
cionais� Em obra intitulada A conquista da América: 
a questão do outro, Todorov expõe ao leitor suas 
intenções:
Quero falar da descoberta que o eu faz do 
outro. O assunto é imenso. Mal acabamos 
de formulá-lo em linhas gerais já o vemos 
subdividir-se em categorias e direções múl-
tiplas, infinitas. Podem-se descobrir os ou-
tros em si mesmo, e perceber que não se é 
uma substância homogênea, e radicalmente 
diferente de tudo o que não é si mesmo; eu 
e um outro. Mas cada um dos outros é um 
eu também, sujeito como eu. Somente meu 
ponto de vista, segundo o qual todos estão lá 
e eu estou só aqui, pode realmente separá-
-los e distingui-los de mim. Posso conceber 
8
os outros como uma abstração, como uma 
instância da configuração psíquica de todo 
indivíduo, como o Outro, outro ou outrem em 
relação a mim. Ou então como um grupo so-
cial concreto ao qual nós não pertencemos 
(TODOROV, 1983, p. 3).
Questões bastante profundas que, em linhas ge-
rais, podem ser elaboradas retomando a noção 
anteriormente apresentada no Módulo I, a partir do 
conceito de alteridade� Esse termo contribui de ma-
neira interessante para pensarmos no momento em 
que os europeus chegaram ao continente americano, 
sobretudo a chegada dos espanhóis na região do 
México e da América Central, junto às naus capita-
neadas por CristóvãoColombo, e a estranheza que 
marcou tanto a percepção dos indígenas quanto a 
dos europeus invasores: quem era o outro como 
indivíduo, e quem era o outro como grupo social? 
Fugindo das representações românticas que inter-
pretam a conquista do território americano pelos 
espanhóis como uma descoberta, Todorov não mede 
palavras para designar o que ocorreu nas décadas 
que se seguiram a essa chegada� Trata-se, segundo 
ele, do “maior genocídio da história da humanida-
de” (TODOROV, 1983, p� 7)� Desse encontro violento 
e genocida, forçado pelos europeus, decorreria a 
formação das identidades nacionais presentes nos 
países modernos�
9
Mas, para além do extermínio físico, ocorreu também 
uma forma de percepção ambígua dos indígenas 
que demarcaria, segundo Todorov, a relação entre 
colonizadores e colonizados também nos séculos 
seguintes� Essa forma de se ver o outro está re-
lacionada a uma tendência de projetar-se sobre o 
outro suas próprias experiências. No entanto, como 
o outro é diferente, passa-se a elaborar uma justifi-
cativa de superioridade moral sobre ele, uma vez que 
ele estaria em um estágio não-civilizado da história 
humana� Nesse sentido, a igreja e o Estado toma-
ram para si a missão de colonizar os territórios e 
exterminar também a cultura dos próprios indígenas, 
negando suas diferenças�
No caso brasileiro, o historiador Sérgio Buarque de 
Holanda (2010) apresenta registros das primeiras 
impressões que os portugueses tiveram sobre os 
índios que aqui estavam� A partir de ampla análise 
documental, o historiador percebe que a referência 
sobre o lugar e sobre os índios esteve baseada em 
uma perspectiva cristã, que via o território como 
uma espécie de jardim de Éden, um paraíso perdido 
(HOLANDA, 2010)�
Desse modo, pode-se dizer que a tendência dos in-
vasores europeus foi dupla: assimilar os índios como 
iguais, mas atribuir a eles um estatuto de inferiori-
dade, uma vez que ainda não estariam no mesmo 
patamar humano que os europeus� Nas palavras 
de Todorov:
10
Estas duas figuras básicas da experiência da 
alteridade baseiam-se no egocentrismo, na 
identificação de seus próprios valores com 
os valores em geral, de seu eu com o uni-
verso; na convicção de que o mundo é um 
(TODOROV, 1983).
Todavia, essa concepção foi sendo progressivamen-
te modificada à medida que os processos de colo-
nização avançavam, sobretudo a partir da segunda 
metade do século 16�
A iconografia europeia relacionada à colonização 
produziu uma série de registros interessantes aos 
nossos olhos contemporâneos� Na imagem a se-
guir, podemos observar a representação que um 
europeu, Jean Théodore de Bry (1561-1623), fez a 
respeito dos Tupinambá brasileiros� Importa com-
preendermos que o gravurista nunca esteve em terri-
tório brasileiro, de modo que sua representação dos 
indígenas se pautou exclusivamente pelos relatos 
que alguns viajantes fizeram sobre os costumes 
antropofágicos dos indígenas – o consumo ritual da 
carne dos inimigos vencidos em guerra, com o pro-
pósito de assimilar suas qualidades –, intensificando 
o caráter brutal do ritual para atender às demandas 
da imprensa europeia que então ganhava força�
11
Figura 1: Cenas de antropofagia no Brasil, Theodore de Bry, 1596.
Fonte: https://www.brasilianaiconografica.art.br/obras/18720/
cenas-de-antropofagia-no-brasil. Acesso em: 28 jun. 2019.
Quando da chegada dos portugueses ao território 
brasileiro, aqui existiam diferentes grupos indígenas, 
cada qual com seus costumes, tradições e línguas� 
Essa diversidade existente, todavia, não foi conside-
rada de maneira aprofundada pelos europeus, pois 
todos foram identificados igualmente como índios, 
termo este que tem origem nas excursões feitas an-
teriormente pelos europeus no continente asiático�
Dentre a pluralidade de grupos étnicos que ocu-
pavam o território brasileiro, destacavam-se dois 
grandes grupos, os tupinambás e os tapuias, sub-
divididos em muitos outros� À semelhança do ocor-
rido com as populações indígenas no restante do 
12
continente de colonização espanhola, os índios 
que estavam no território, hoje reconhecido como 
brasileiro, presenciaram um verdadeiro extermínio, 
seja pela violência direta dos invasores, mediante 
assassinatos, estupros e crueldades de toda sorte, 
seja pelas doenças trazidas junto com os europeus, 
para as quais os indígenas não possuíam anticorpos 
adequados� Desse modo, junto à perseguição feita 
por grupos com diferentes intenções – destacando-
-se os jesuítas e os bandeirantes, por exemplo –, os 
indígenas foram vitimados por gripe, pneumonia, 
sífilis, disenteria e tuberculose (SHELTON, 2005).
Abordamos acima que o choque cultural referen-
te às invasões europeias no continente america-
no trouxe uma série de representações parciais e 
equivocadas a respeito dos grupos autóctones que 
habitavam o território� Tais representações, por sua 
vez, justificaram inúmeras violências em relação às 
populações indígenas, de maneira a estigmatizar 
suas identidades étnicas� Mas será que essas falsas 
representações estão restritas apenas ao passado 
pouco lisonjeiro da atuação dos invasores? Para 
responder a essa pergunta, convém refletirmos so-
bre os mecanismos de produção das identidades 
nacionais nos séculos seguintes�
13
SAIBA MAIS:
O povo brasileiro: a formação e o sentido do Bra-
sil (1995), escrito por Darcy Ribeiro�
O antropólogo Darcy Ribeiro (1922 – 1997) se 
consolidou como uma das principais referências 
para o estudo das relações étnicas formadoras 
da experiência nacional brasileira. Embora ad-
mita que nossa identidade étnica esteja relacio-
nada com diferentes matrizes culturais, o antro-
pólogo não defende o processo de intercâmbio 
desses grupos como harmonioso� Segundo ele, 
o processo que estabeleceu uma certa unidade 
étnica, percebida como identidade nacional, es-
teve e permanece relacionado com processos 
de violência e desigualdades. Em suas palavras, 
a unidade nacional “resultou de um proces-
so continuado e violento de unificação políti-
ca, logrado mediante um esforço deliberado 
de supressão de toda identidade étnica dis-
crepante e de repressão e opressão de toda 
tendência virtualmente separatista. Inclusive de 
movimentos sociais que aspiravam fundamen-
talmente edificar uma sociedade mais aberta 
e solidária. A luta pela unificação potenciali-
za e reforça, nessas condições, a repressão 
social e classista, castigando como separatis-
tas movimentos que eram meramente republi-
canos ou antioligárquicos” (RIBEIRO, 2015, p� 23)� 
 
14
 
Figura 2: Capa do livro O povo brasileiro, de Darcy 
Ribeiro
Fonte: https://globaleditora.com.br/catalogos/
livro/?id=3607
15
A IDENTIDADE 
NACIONAL E O 
ESTADO VISTO COMO 
OBJETO DE ANÁLISE 
ANTROPOLÓGICA
O Estado como um mito
O filósofo polonês Ernst Cassirer (1874–1945) reali-
zou uma instigante análise a respeito da identidade 
nacional e da estrutura do Estado, pensando este 
como uma espécie de mito moderno� Publicado pou-
co antes da morte do autor, em 1945, a obra O mito 
do Estado foi escrita como tentativa de compreensão 
dos acontecimentos que marcaram a primeira meta-
de do século 20: duas grandes guerras e ascensão 
dos regimes nazista e fascista� Cassirer defende que 
o Estado é resultado de uma construção coletiva 
mítica, pois seus elementos constitutivos seriam os 
mesmos encontrados nos mitos, a exemplo do culto 
ao herói, do culto à superioridade racial, e da crença 
de que as nações possuem um destino inevitável, 
geralmente visto como grandioso (CASSIRER, 1976)�
Os três componentes apontados por Cassirer per-
manecem, em maior ou menor medida, recorrentes 
nos diferentes nacionalismos desde fins do século 
16
18� Basta pensarmos em como esses elementos 
constam em nossa própria experiência nacional 
e nas dos demais países contemporâneos� Nesse 
sentido, é comum o expediente de definição de he-
róis nacionais, cuja superioridade moral se torna 
algo indiscutível,mesmo à luz de evidências que 
demonstram o contrário� Além disso, se a noção de 
raça já deixou de ser considerada devido às suas 
inconsistências empíricas, a ideia de que existem 
nações superiores e outras, consequentemente, in-
feriores, é algo bastante presente, por exemplo, em 
filmes estrangeiros, como se pode notar em boa 
parcela da produção hollywoodiana contemporânea�
Podcast 2 
O terceiro ponto apresentado por Cassirer tam-
bém é fundamental para compreendermos como 
os Estados modernos possuem semelhanças com 
estruturas míticas� A ideia de que algumas nações 
possuem como destino inevitável impor seu poder 
sobre outras nações é algo que permanece cons-
tante, se pensarmos nos discursos proferidos por 
líderes de diferentes nações ao justificarem invasões 
militares em países alheios�
17
O Estado e a nação como 
comunidades “imaginadas”
O antropólogo Benedict Richard O’Gorman Anderson 
(1936–2015) desenvolveu profunda análise a respei-
to das origens da identidade nacional� Em primeiro 
lugar, diz o autor, não é possível localizar a data de 
nascimento ou o registro oficial de surgimento de 
uma nação� As nações, desse modo, são constru-
ções coletivas, sem início bem determinado e que 
se valem de elementos que gradualmente lhes dão 
feições e que se tornam recorrentes�
Dentre esses elementos, destaca-se a importância 
exercida pelos meios de comunicação, bem como 
também pelo sistema educacional – responsável 
pela reprodução da história considerada oficial de 
uma nação – e pelas ações realizadas por parte do 
Estado, para afirmar sua identidade sobre sua po-
pulação, mas também é possível notar a influência 
de outros componentes menos evidentes, a exemplo 
do censo, do mapa e do museu� Mas como esses 
três elementos podem servir para reforçar uma de-
terminada identidade nacional?
Se pensarmos em como nossa ideia de nação de-
pende em grande medida de determinadas infor-
mações, inseridas em contextos que lhes atribuem 
significados particulares – por exemplo, quantida-
de de pessoas e características dessas pessoas –, 
podemos perceber que os resultados dos censos 
18
são fundamentais para demarcarmos os limites de 
nossa população�
De outro lado, os mapas definem os limites físicos, 
sendo que tais limites, como sabemos, variam con-
forme o momento histórico em que estão situados� 
Historicamente, os territórios são incorporados e 
perdidos pelos países ao longo de guerras e disputas 
com seus vizinhos�
Por fim, os museus possibilitam a definição de uma 
história oficial, ou seja, uma narrativa que interessa 
à construção da identidade que as nações reivindi-
cam� Evidentemente, essas construções nem sempre 
estão de acordo com os fatos históricos tal como 
eles ocorreram� Por exemplo, historicamente sabe-
mos que a atuação dos bandeirantes no sudeste do 
Brasil foi marcada pela extrema violência com a qual 
trataram as populações nativas, capturando-as e 
sujeitando-as a todo tipo de crueldades� Entretanto, 
a despeito dos conhecimentos históricos a respeito 
do assunto, os diversos monumentos aos bandei-
rantes, presentes, por exemplo, na cidade de São 
Paulo, tornaram-se símbolos constitutivos da pró-
pria identidade paulistana�
19
Figura 2: Monumento ao Anhanguera, esculpido por Luigi Brizzolara 
e inaugurado em 1924. Atualmente está exposto em frente ao Parque 
Trianon, na Avenida Paulista.Fonte: https://www.al.sp.gov.br/
noticia/?id=272834 Acesso em: 28 jun. 2019.
A partir dessas considerações, podemos pensar que 
os censos, os museus e os mapas produzem um 
certo sentido de identidade nacional� Esse sentido, 
como afirma Anderson, é tributário de operações 
simbólicas relacionadas às dinâmicas culturais:
O meu ponto de partida é que tanto a nacio-
nalidade – ou, como talvez se prefira dizer, 
devido aos múltiplos significados desse ter-
mo, a condição nacional – quanto o nacio-
nalismo são produtos culturais específicos. 
Para bem entendê-los, temos de considerar, 
com cuidado, suas origens históricas, de que 
maneiras seus significados se transforma-
ram ao longo do tempo e por que dispõem, 
20
nos dias de hoje, de uma legitimidade emo-
cional tão profunda (ANDERSON, 2009, p. 
30).
Essas considerações realizadas pelo antropólogo 
demonstram que as raízes da nossa identidade na-
cional são sujeitas à ação cultural e aos movimentos 
históricos. Entretanto, essas afirmações não indicam 
que esses sentimentos sejam meramente fictícios, 
uma vez que as ideias de nação e de nacionalismo 
produzem emoções profundas entre as pessoas�
Sobre a formação das estruturas 
racistas
Assim como os demais conceitos, a categoria raça 
atende a diferentes significados que são mobilizados 
de acordo com interesses dos grupos que a utilizam� 
Todavia, para além de assumir um significado me-
ramente semântico, o termo raça trouxe consigo, 
durante muito tempo, uma série de teorias anexas� 
São as chamadas teorias raciais�
Vimos anteriormente que a noção de etnia designa 
a identidade de um determinado grupo, sendo este 
marcado por semelhanças relacionadas a uma an-
cestralidade comum e a padrões culturais discer-
níveis em relação a outros grupos� Raça, por outro 
lado, pretende indicar que essas diferenças estão 
relacionadas a componentes físicos e biológicos� 
21
Assim, a noção de raça serviu equivocadamente, ao 
longo dos tempos, para indicar diferenças que são 
culturais e sociais, tais como posições de status 
dentro dos grupos hierarquizados e pertencimentos 
a grupos sociais específicos.
Embora não seja do nosso interesse neste material 
entrar em questões pertinentes ao campo da bio-
logia, pode-se afirmar que a noção de raça, como 
elemento de diferenciação das espécies vivas, pou-
co contribui para definir os grupos humanos, uma 
vez que a raça humana se constitui como única� As 
diferenças, desse modo, estariam em outra esfera� 
Mas, qual é, de fato, o problema existente de fato na 
utilização desse termo?
De saída, podemos afirmar algo que parece óbvio: 
uma categoria é sempre formulada por um indiví-
duo ou uma pessoa cuja função é necessariamente 
categorizar as diferenças� Um possível problema 
referente a esse fato é que, em muitos momentos, 
os categorizadores possuem eles próprios uma de-
terminada visão estreita a respeito do mundo em 
que estão situados� Dessa forma, corre-se o risco 
de reproduzir-se nas categorias os próprios precon-
ceitos dos categorizadores� O etnocentrismo e o ra-
cismo são exemplos constantes desses equívocos� 
Essas perspectivas sobre as teorias subjacentes 
à categoria raça foram apresentadas por Claude 
Lévi-Strauss, em texto clássico intitulado Raça e 
História (1952)�
22
Lévi-Strauss parte da noção de que o uso da catego-
ria raça justificou uma série de violências em relação 
a populações humanas. Essas violências, estudadas 
por Lévi-Strauss, estariam relacionadas às teorias 
racistas que apresentam concepções pseudocientí-
ficas, uma vez que as diferentes aptidões humanas 
pouco ou nada teriam a ver com a base biológica�
A análise realizada por Lévi-Strauss indica também 
a diversidade humana como necessariamente dinâ-
mica, uma vez que as identidades são construídas e 
reconstruídas em um movimento incessante:
A humanidade está constantemente em luta 
com dois processos contraditórios, para ins-
taurar a unificação, enquanto que o outro 
visa manter ou restabelecer a diversificação. 
A posição de cada época ou de cada cultura 
no sistema, a orientação segundo a qual esta 
se encontra comprometida são tais que só 
um desses processos lhe parece ter sentido, 
parecendo o outro ser a negação do primeiro 
(LÉVI-STRAUSS, 1993, p. 361).
Nesse sentido, a Antropologia surge então como 
uma forma de adquirir subsídios para lidar com as 
diversidades humanas de maneira mais compreensi-
va. Ainda sobre o assunto, Lévi-Strauss afirma que:
23
A tolerância não é uma posição contemplati-
va dispensando indulgências ao que foi e ao 
que é. É uma atitude dinâmica, que consiste 
em prever, em compreendere em promover 
o que quer ser. A diversidade das culturas 
humanas está atrás de nós, à nossa volta e 
à nossa frente. A única exigência que pode-
mos fazer valer a seu respeito (exigência que 
cria para cada indivíduo deveres correspon-
dentes) é que ela se realize sob formas em 
que cada uma seja uma contribuição para 
a maior generosidade das outras (LÉVI-
STRAUSS, 1993, p. 366).
O etnocídio como efeito 
perverso do etnocentrismo e do 
racismo
Se o etnocentrismo pode ser compreendido como 
uma forma limitada de compreensão da diversidade 
humana, é possível verificar seus efeitos quando 
essa perspectiva passa a ser colocada em prática 
por grupos que detêm poder de imposição de suas 
vontades sobre os outros?
Como resposta para a pergunta formulada acima, 
refletiremos brevemente sobre o termo etnocídio, 
que indica, em linhas gerais, o genocídio realizado 
por um grupo em relação ao espírito de outros, ou 
seja, em relação à sua cultura� Essas observações se 
24
apoiam em outro texto clássico da Antropologia, in-
titulado Do etnocídio, escrito pelo antropólogo Pierre 
Clastres (1934–1977) e publicado originalmente em 
1974� Mas antes de discutirmos sobre essa noção, 
convém lembrarmos do que trata o termo genocídio�
A ascensão do nazismo na Alemanha, durante a 
primeira metade do século 20, esteve relacionada a 
um movimento de apelo à identidade que serviu de 
justificativa para a criação do Terceiro Reich (1933-
1945), a saber, a ideia de que os alemães possuíam 
uma origem única, pura e superior sobre os demais 
grupos humanos do mundo� Essa noção esteve rela-
cionada à ideia de raça ariana, elaborada e apresen-
tada por Adolf Hitler em seu livro Main Kampf (Minha 
luta), publicado originalmente em 1925� Nesta obra, 
Hitler apresentou uma suposta teoria segundo a qual 
não apenas os alemães eram dotados de pureza ra-
cial originária, mas também outros grupos poderiam 
ser vistos como impuros e degenerados, do ponto de 
vista de suas raças e de seus posicionamentos ide-
ológicos� Entre esses grupos marginalizados foram 
incluídos judeus, homossexuais, ciganos, eslavos e 
comunistas, entre outros�
Após a chegada de Hitler ao poder, os nazistas, de-
fensores de ideais políticos reconhecidamente de 
extrema-direita, iniciaram uma série de perseguições 
aos grupos considerados por eles inferiores� Sob 
o lema Deutschland über alles (Alemanha acima 
de tudo), desenvolveram formas de policiamento e 
prisões específicas para esses grupos, resultando 
naquilo que foi chamado por eles de solução final, ou 
25
seja, o extermínio físico dos grupos marginalizados 
em campos de concentração�
Figura 3: Imagem 4: Dawid Samoszul, criança judia que foi assas-
sinada pelos nazistas no campo de concentração de Treblinka, aos 
nove anos de idade.Fonte: https://encyclopedia.ushmm.org/content/
pt-br/article/introduction-to-the-holocaust. Acesso: 28 jun. 2019.
26
A morte sistemática de milhares de pessoas sob 
o pretexto da pureza racial nunca antes havia sido 
empreendida e registrada da forma como os nazis-
tas o fizeram. Desse modo, após a Segunda Guerra 
Mundial, durante os tribunais que julgaram os crimes 
cometidos pelos nazistas, na cidade de Nuremberg, 
em 1946, empregou-se o termo genocídio para de-
signar as atrocidades e o extermínio físico em massa 
de pessoas nos campos de concentração nazistas�
Mas uma questão importante pode ser destacada 
desses eventos� Existe a possibilidade de exterminar 
um grupo humano sem necessariamente recorrer à 
sua destruição física? Essa questão foi respondida 
por Pierre Clastres ao recorrer ao termo etnocídio, 
ou seja, o extermínio cultural de um grupo, de ma-
neira a aniquilar seus valores, suas religiões e suas 
características étnicas� Assim, os termos genocídio 
e etnocídio teriam semelhanças e diferenças:
Ele [o termo etnocídio] tem em comum com 
o genocídio uma visão idêntica do Outro: o 
Outro é a diferença, certamente, mas é so-
bretudo a má diferença. Essas duas atitudes 
distinguem-se quanto à natureza do trata-
mento reservado à diferença. O espírito, se 
se pode dizer, genocida quer pura e simples-
mente negá-la. Exterminam-se os outros 
porque eles são absolutamente maus. O et-
nocida, em contrapartida, admite a relativida-
de do mal na diferença: os outros são maus, 
mas pode-se melhorá-los obrigando-os a se 
27
transformar até que se tornem, se possível, 
idênticos ao modelo que lhes é proposto, 
que lhes é imposto (CLASTRES, 2004, p. 85).
Há de se ressaltar que, no Brasil e em outros países, 
as populações indígenas foram submetidas aos dois 
processos – genocídio e etnocídio –, uma vez que a 
perseguição aos índios no Brasil é constante desde a 
invasão dos portugueses� Durante a Ditadura Militar 
(1964-1985), por exemplo, a despeito da dificuldade 
de acesso a informações devido à ampla censu-
ra promovida pelos militares, alguns documentos 
evidenciam a devastação dos territórios indígenas 
e o extermínio dessas populações através de as-
sassinatos e da introdução de doenças, a exemplo 
da varíola, que foi inoculada em índios por aqueles 
que estiveram na dianteira do processo de ocupação 
do interior do país� Sobre esse assunto, os poucos 
registros que não foram destruídos, constavam no 
relatório do procurador Jader de Figueiredo Correia, 
realizado em 1967, sobre a atuação do Serviço 
Nacional do Índio (SNI)�
Se seguirmos as observações de Pierre Clastres, 
veremos que os processos de etnocídio não estive-
ram limitados às invasões e colonização por parte 
dos europeus na África, América, Ásia e Oceania� O 
processo de identificação do outro não necessaria-
mente como maus, mas como grupos que podem 
ser melhorados ou civilizados seguindo padrões 
culturais específicos (religiosos, econômicos, entre 
outros), é algo recorrente mesmo nos dias de hoje e 
28
convém ao leitor deste material que procure refletir 
e identificar a permanência de práticas etnocidas 
em nossas sociedades contemporâneas�
Figura 4: Guarda Rural Indígena, criada pela Funai em 1968, que 
submeteu os índios a treinamentos militares.Fonte: Acervo O Globo. 
Disponível em: https://oglobo.globo.com/cultura/livros/a-historia-
-de-resistencia-morte-dos-povos-indigenas-na-ditadura-mili-
tar-21110809. Acesso em: 28 jun. 2019.
29
Saiba mais:
Filme Martírio (2016), dirigido por Vincent Carelli, 
Ernesto de Carvalho e Tatiana Almeida� Produ-
ção: Papo Amarelo Produções Cinematográficas 
e Vídeo nas Aldeias� 162min
Figura 3: Pôster do filme Martírio.
Créditos Figura 6:� Fonte: https://letterboxd�
com/film/martirio/. Acesso em: 28 jun. 2019.
Com o objetivo de reconstruir a luta indígena no 
Brasil desde a redemocratização do país, os ci-
neastas apresentam em Martírio importantes re-
gistros para se compreender como o massacre 
e a perseguição aos índios permanecem como 
constantes em nossa política contemporânea� 
Além desse potente documento político, antro-
pológico e jurídico, Carelli se notabilizou como 
um dos principais cineastas que se empenham 
em documentar a situação indígena no Brasil� 
Em companhia de outros cineastas e antropólo-
gos, Carelli é um dos responsáveis pela iniciati-
va Filme nas aldeias, que desde 1986 estimula 
30
projetos audiovisuais desenvolvidos pelos pró-
prios índios� A partir dos anos 2000, o projeto se 
tornou uma ONG autônoma. É possível encontrar 
no site da ONG (http://videonasaldeias�org�br/) 
uma plataforma de streaming com produções 
feitas por antropólogos e índios de diferentes et-
nias� Dentre as produções realizadas pela ONG, 
recomenda-se a série Índios no Brasil, apresen-
tada por Ailton Krenak, a respeito dos diversos 
grupos indígenas presentes no território brasi-
leiro� É possível assistir à série completa, dispo-
nibilizada pela própria ONG, através do endereço 
https://vimeo�com/showcase/1426010 (Acesso 
em: 12 jun� 2019)�
31
A IDENTIDADE 
NEGRA ONTEM E 
HOJE
No Brasil, os processos de extermínio da popula-
ção indígena ao longo da construção da identidade 
nacional brasileira foram seguidospela sujeição, 
sequestro e assassinato das populações negras 
sequestradas no continente africano e trazidas ao 
território brasileiro para serem escravizadas�
Se pensarmos na escravidão, ou seja, na sujeição 
de uma pessoa ou um grupo por outras pessoas ou 
grupos, veremos que não é algo incomum na história 
das sociedades humanas� Entretanto, não é possível 
estabelecer semelhança entre as formas antigas de 
escravidão e a forma como se desenvolveu a escra-
vidão de negros africanos no Brasil� Não é possível, 
pois quando os negros africanos vieram para cá à 
força foram considerados mercadorias e ferramentas 
de trabalho, que se tornaram fundamentais para o 
tipo de colônia de exploração que aqui se consoli-
dou� Esses dois componentes de identidades dos 
escravizados distinguem e particularizam signifi-
cativamente os processos de escravidão ocorridos 
em território brasileiro diante dos demais�
Diferentemente dos indígenas, a quem ocasional-
mente as instituições reconheciam algum grau de 
humanidade – ainda que quase sempre formal –, 
32
os negros escravizados foram considerados como 
meros objetos sobre os quais o Estado e os escravi-
zadores tiveram diretos de posse garantidos� Nesse 
sentido, a historiadora Keila Grinberg afirma que:
Durante todo o período colonial, os castigos 
infligidos aos escravos eram prerrogativa 
dos senhores, praticamente uma obrigação, 
reconhecida e corroborada pelos costumes e 
pelas leis. Assim, o castigo deveria ser “jus-
to”, só executado quando houvesse motivos 
e de maneira corretiva, para evitar a reinci-
dência. Se o domínio mais amplo sobre a 
ordem escravista era mantido pelas autori-
dades coloniais, que reprimiam as fugas e a 
formação de quilombos, a continuidade da 
dominação dos senhores sobre seus escra-
vos cabia aos próprios senhores. A ação do 
poder real se dava fora da unidade produti-
va, fora da casa do senhor. Fosse executado 
pelas autoridades ou pelo senhor, o controle 
dos comportamentos seguia a mesma lógi-
ca: a punição deveria ser pública, exemplar, 
reafirmando o poder do senhor ou do sobe-
rano (GRINBERG, 2018, p. 138).
Cada vez mais os historiadores têm encontrado re-
gistros que comprovam que os negros escravizados 
não assistiram passivelmente sua sujeição� Exemplo 
dessas fugas e resistências constantes foi o famoso 
quilombo de Palmares, cuja existência durou cerca 
33
de cem anos e se tornou uma sociedade à parte, 
composta por negros que fugiram da escravidão� 
Mas, além deste exemplo clássico, outras inúmeras 
formas de resistência marcaram a identidade dos 
escravizados no Brasil�
Ao deter os lamentáveis títulos de maior destino dos 
negros sequestrados e de última nação a abolir a 
escravidão africana, é impossível deixar de se com-
preender nossas dinâmicas políticas, econômicas e 
sociais sem considerar o fato de que foram séculos 
de tráfico transatlântico e de exploração de pessoas 
tornadas escravas, de meados do século 16 até a 
abolição oficial, em 1888.
A propósito das interpretações sobre a identida-
de que formou a nação brasileira, existe uma linha 
interpretativa que se costuma atribuir ao antropó-
logo e historiador Gilberto Freyre (1900–1987), au-
tor de obras como Casa Grande & Senzala (1933) 
e Sobrados & Mucambos (1936)� Em ambas as 
obras, Freyre apresenta a relação de dependência 
e aproximação entre o espaço dos escravos e dos 
escravistas, mas também induz uma representação 
relativamente passiva no que concerne à miscige-
nação de brancos e negros no Brasil�
De maneira sintética, a tese freyreana está próxi-
ma daquilo que ficou conhecido como democracia 
racial (embora o termo, propriamente dito, não seja 
constante na obra do autor)� De acordo com Freyre, o 
intercurso sexual e o intercâmbio cultural de africa-
nos e portugueses procederam, no Brasil, um certo 
34
efeito democratizante no que se refere às distâncias 
entre esses povos�
Embora não negligenciasse as violências às quais 
os escravizados foram submetidos, Freyre acaba 
por defender essa miscigenação como algo que te-
ria atenuado os antagonismos dos grupos durante 
o processo de colonização� No entanto, a tese de 
Gilberto Freyre foi questionada por dois importan-
tes intelectuais: Florestan Fernandes e Abdias do 
Nascimento�
O sociólogo Florestan Fernandes (1920–1995) rea-
lizou intensos estudos sobre a realidade dos negros 
no Brasil� Em obra intitulada A integração do negro 
na sociedade de classes (1964), Fernandes procura 
investigar os modos possíveis de inserção dos ne-
gros com a emergência do capitalismo brasileiro.
Entre os diversos pontos tratados pelo sociólogo, 
destaca-se a dificuldade estrutural que marcou a 
integração dos negros, devido à permanência da 
mentalidade escravista na sociedade brasileira, que 
não conferiu democraticamente as mesmas possibi-
lidades e posições sociais a negros e brancos após 
a abolição da escravidão. Afirma Fernandes que os 
negros, no Brasil, correspondem ao:
[...] contingente da população nacional que 
teve o pior ponto de partida para a integração 
ao regime social que se formou ao longo da 
desagregação da ordem social escravocrata 
e senhorial e do desenvolvimento posterior 
35
do capitalismo no Brasil (FERNANDES, 1973, 
p. 9).
Os efeitos perversos e nada democráticos da es-
cravidão foram também tratados por Abdias do 
Nascimento (1914–2011), intelectual negro de gran-
de relevância para as discussões sobre o racismo 
no Brasil – racismo este identificável nas institui-
ções brasileiras, a exemplo da família, da escola e 
do Estado – portanto, racismo institucional�
Segundo Nascimento, em obra de referência para 
os estudos brasileiros sobre a identidade negra, O 
genocídio do negro brasileiro: um processo de ra-
cismo mascarado (1978), a tese de Gilberto Freyre 
esconderia uma grande perversidade ao naturalizar 
as relações entre escravos e escravistas, de modo 
a apresentar uma espécie de mito do senhor bene-
volente que, segundo o autor, nunca existiu:
Durante séculos, por mais incrível que pare-
ça, esse duro e ignóbil sistema escravocrata 
desfrutou a fama, sobretudo no estrangeiro, 
de ser uma instituição benigna, de caráter 
humano. Isto graças ao colonialismo por-
tuguês que permanentemente adotou for-
mas de comportamento muito específicas 
para disfarçar sua fundamental violência e 
crueldade. Um dos recursos utilizados nesse 
sentido foram a mentira e a dissimulação 
[...]. Essa rabulice colonizadora pretendia 
imprimir o selo de legalidade, benevolência 
36
e generosidade civilizadora à sua atuação 
no território africano. Porém todas essas e 
outras dissimulações oficiais não dissimu-
laram a realidade, que consistia no saque de 
terras e povos, e na repressão e negação de 
suas culturas – ambos sustentados e rea-
lizados, não pelo artifício jurídico, mas sim 
pela força militar imperialista (NASCIMENTO, 
1978, p. 50).
Esse procedimento ao qual Nascimento se refere, 
baseado em uma miscigenação cultural harmoniosa 
entre portugueses e negros africanos escravizados, 
estaria na própria interpretação de como funciona a 
mentalidade colonial� Esse assunto será tratado com 
atenção na próxima unidade, mas antes ficaremos 
com as constatações de Nascimento:
No Brasil, é a escravidão que define a quali-
dade, a extensão, e a intensidade da relação 
física e espiritual dos filhos de três conti-
nentes que lá se encontraram: confrontan-
do um ao outro no esforço épico de edifi-
car um novo país, com suas características 
próprias, tanto na composição étnica do 
seu povo quanto na especificidade do seu 
espírito – quer dizer, uma cultura e uma ci-
vilização com seu próprio ritmo e identidade 
(NASCIMENTO, 1978, p. 59).
37
CONSIDERAÇÕES 
FINAIS
Nesta unidade tratamos dos assuntos pertinentes 
à construção das identidades nacionais� Como ob-
servamos anteriormente, as ideias de nação e de 
nacionalismo exerceram e exercem grande influência 
sobre os horizontes culturais das pessoas desde o 
final do século 18.
Muitos conflitos queocorrem atualmente, em dife-
rentes partes do mundo, apresentam componentes 
referentes históricos que estão relacionados aos 
efeitos do nacionalismo� Boa parte da diversidade 
cultural presente hoje em países distintos ao redor 
do mundo também é influenciada pela noção e iden-
tidade nacional�
Na próxima unidade, voltaremos nossas atenções 
para a construção das diversidades no interior dos 
espaços de socialização contemporâneos� Como 
será visto, para refletirmos sobre esses aspectos que 
demarcam identidades e comportamentos, precisa-
remos de apoio das novas teorias sobre a formação 
de identidades�
38
b) Contra o conceito de “democracia 
racial”: a crítica de Florestan 
Fernandes e Abdias do Nascimento 
às teses de Gilberto Freyre.
a) Características da escravidão 
negra no Brasil. Pessoas tornadas 
mercadorias e ferramentas de 
trabalho;
 A identidade negra ontem e hoje:
5
b) Etnocídio como extermínio 
cultural, segundo Pierre Clastres.
a) Genocídio e fundamentos 
racistas do Terceiro Reich;
Sobre a formação das estruturas 
racistas. Raça e história, segundo 
Claude Lévi-Strauss;
4.1
Sobre a formação das estruturas 
racistas. Raça e história, segundo 
Claude Lévi-Strauss;
4
b) O Estado pensado como 
“comunidade imaginada”: Benedict 
Anderson. Sentidos identitários 
despertados pela nação.
a) O Estado pensado como “mito”: 
Ernst Cassirer. Elementos 
constitutivos do imaginário sobre o 
Estado;
A identidade nacional e o Estado 
vistos como objetos de análise 
antropológica:
3
b) Iconografia e representações dos 
indígenas.
a) Tzvetan Todorov sobre a 
conquista da América. Dificuldades 
na representação do “outro”;
A invasão da América e o choque 
entre “outros”
2
b) Plurinacionalidade e Estados 
contemporâneos.
a) Estados no século 19;
Povo, Estado, nação e identidade:t
SOBRE AS CONSTRUÇÕES DAS 
IDENTIDADES E DAS DIVERSIDADES
1
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Tradução de Maria Celia Paoli e Anna Maria Quirino. Rio 
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HOLANDA, Sérgio Buarque de. Visão do paraíso. São 
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MELATTI, Julio Cezar. Índios do Brasil. São Paulo: Edusp, 
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TODOROV, Tzvetan. A conquista da América: a questão 
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	Página 41:

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